Programa Conte a sua história
Depoimento de Luana Mercante da Rocha Viana⠀
Entrevistada por Denise Cooke e Carol Margiotte
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2018
Entrevista número PCSH_HV652
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Bruno Pinho
P/1 - Oi Luana. Obrigada por estar aqui contando a sua história para a gente. Seja bem-vinda. Vamos começar falando o seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Luana Mercante da Rocha Viana. Tenho 23 anos e nasci aqui no Rio de Janeiro mesmo.
P/1 - Você sabe alguma coisa sobre o dia do seu nascimento?
R - Dia 10 de abril? Não.
P/1 - Como que foi?
R - Não tem nenhum marco histórico também. Mas acho que não foi nada fora da normalidade, extraordinário.
P/1 - E como era a casa onde você nasceu? Onde você passou a sua infância?
R - Era um apartamento muito bom no Méier. Eu andava de bicicleta dentro dele. A única coisa estranha era que a sala não tinha janela basculante. A sala era imensa. Tinha um corrredorzão, mas ela não tinha janela. Minha mãe detestava o apartamento por causa disso.
P/1 - E o que você gostava de fazer quando você era criança?
R - Nossa, eu sempre fui muito agitada. Era para dizer o que eu não fazia. Eu não gostava de ficar em casa. Sempre muito rueira, brincando, ralando-me, descabelada, batendo nos coleguinhas. Sempre muito agitada.
P/1 - E do que você gostava de brincar?
R - Jogar bola, soltar pipa, bolinha de gude, qualquer brincadeira de pique, videogame, tudo.
P/1 - Vamos falar dos seus pais. Como eles se chamam?
R - Minha mãe se chama ngela e meu pai, Jorge.
P/1 - E como eles se conheceram?
R - Pelo que eu me lembre, eles se conheceram – antigamente como que era – discoteca que fala? Alguma coisa assim. Um samba. Em algum clube que eles se conheceram. Minha mãe estava com a amiga dela e meu pai, acho que, com meu padrinho. Se não me engano. Eles se conheceram ali.
P/1 - Ele foi o primeiro casamento da sua mãe?
R - Não, não. Foi o segundo.
P/1 - Fale um pouco do casamento anterior da sua mãe para a gente.
R - A minha mãe era casada com o pai da minha irmã mais velha. Nós temos nove anos de diferença, e eles ficaram casados – eu não sei quando tempo eles ficaram casados -, mas eles casaram mesmo na igreja, de véu e grinalda. Foi o primeiro namorado da minha mãe, se não me engano, que eles ficaram juntos. Aquela coisa bem tradicional mesmo. Não muito bem. Basicamente isso de relevante mesmo.
P/1 - E qual o nome da sua irmã?
R - Priscila.
P/1 - E quantos anos a Priscila tinha quando você nasceu?
R - Nove anos.
P/1 - Conte-me dessa sua relação com a Priscila.
R - É maravilhosa. Minha mãe achava que nunca mais iria ter filho, era a Priscila. Quem ia imaginar que nove anos depois vai ter mais dois filhos ainda. Minha irmã queria muito que a minha mãe me tivesse, e aí virou paixão. Minha mãe sempre trabalhou muito, então a minha irmã meio que gostava de pegar a responsabilidade de fazer as coisas. A gente é muito próxima por isso, justamente porque ela ficava minha mãe. Ela me buscava na escola, brigava comigo – briga até hoje –, dá conselhos, conversa, tudo, tudo.
P/1 - E qual é a profissão da sua mãe?
R - Minha mãe é professora.
P/1 - De que ano?
R - Minha mãe é professora de português / inglês. Na época dava aula para o primário, mas hoje em dia é de oitava série até ensino médio.
P/1 - E os seus pais estão juntos ainda?
R - Não. Meus pais ficaram juntos até os meus dois anos de idade mais ou menos.
P/1 - E você convive com o seu pai ainda?
R - Não. Não. Hoje em dia nossa relação é bem distanciada.
P/2 - Você tem alguma lembrança desse momento da separação dos seus pais?
R - Nenhuma. Minha mãe diz que na época eu ficava muito doente. Problemas de imunidade, era sempre tudo muito emocional. Tinha febres altíssimas, sempre estava gripada, alguma coisa assim palpável. Era uma coisa bem emocional mesmo. Mas eu mesma não me lembro de nada. Lembro-me de estar em hospital fazendo nebulização, acamada; mas não me lembro de cenas de nada.
P/2 - Sua mãe conta desse momento o que mudou na vida de vocês, na rotina familiar nessa separação?
R - Acho que nada muito diferente do que já fosse.
P/1 - E nesses quase 20 anos de separação, você quase não teve contato com o seu pai? Como foi a sua relação com ele?
R - Não. Eu tive contato com ele, assim, mais nova. A gente era bem próximo, sendo que não era aquela coisa, aquele pai presente. E aí se alastrou para a maioridade. No caso até hoje. A gente tem uma – a gente se gosta muito, óbvio, mas a questão é mais de pensamento. É muito embate. Ele não aceita as coisas que eu penso; sempre ele que é o certo; é o jeito dele; se não for do jeito dele, não vai dar certo. É uma pessoa que; enfim, não é que eu faça o que eu queira, mas eu tenho minhas prioridades, meus pensamentos. A gente vai ficando mais velho e vai mudando a nossa cabeça e vai traçando o nosso caminho. E isso atrapalha muito. Ele também fica com muito remorso da minha mãe. Então, sempre tem uma questão que não tem nada a ver com a gente que ele usa como empecilho. E nas últimas vezes, foi ele mesmo quem se afastou. Então, é uma escolha dele.
P/1 - E o seu irmão Jorge, qual é a diferença de idade entre vocês?
R - Acho que dois anos, dois anos e meio. Porque eu faço aniversário no começo do ano e ele no final. Aí fica essa diferença pequena.
P/1 - E como é a sua relação com o Jorge?
R - Muito chato. Muito chato. Que garoto implicante. Chato. Mentira. A gente, quando era mais novo, era ótimo porque ele era meu brinquedo. Meu brinquedo que falava. Eu dava aula para ele no meio dos bichinhos de pelúcia. Ele era o meu brinquedo. E a gente vai crescendo e ficando com mais diferença, mas sempre meu parceiro. A gente aprontava junto. E ele também me dá muita força porque, no caso, ele é muito centrado, muito esforçado. Eu não sou muito dessas. Antes de vocês chegarem, ele estava ali sentando estudando, o tempo inteiro. “Vamos à praia”, “não, tenho prova”; a prova é daqui duas semanas, e ele está sentado estudando. Rio de Janeiro com 60 graus, ele tem prova, é bem centrado. Isso eu gosto nele, mas ele é muito implicante também. O tempo inteiro querendo me tirar do sério, achando que é dono, que manda na casa.
P/2 - Lu, você tinha comentado um pouco sobre a sua irmã e sobre o outro apartamento. Você consegue falar para a gente como que era a divisão de quartos; quem morava junto com você naquela época do outro apartamento.
R - O do Méier? Porque a gente é igual cigano aqui. Essa é sexta, sétima vez que eu estou me mudando. A gente se muda para caramba, mas lá no Méier.
P/2 - Foi o apartamento da sua infância?
R - É. Até os quatro, cinco anos, foi lá. Depois a gente vai se mudando toda hora.
P/1 - E teve alguma casa, apartamento, que foi o mais marcante para você até hoje? Que você tem as melhores lembranças?
R - Acho que depende porque como a gente têm as fases – de criança –, aí tem a parte do Méier, mas também depois tem a parte em que a gente morou em Jacarepaguá, que era um apartamento legal, que tinha muita criança. E quando estava na adolescência já tem outra parte; então acho que todos os lugares marcam um pouco. Mas lá no Méier, tinha o quarto da minha mãe e o quarto da irmã. Eu gostava de dormir com a minha mãe – até essa idade, eu gostava de dormir com a minha mãe –, e meu irmão, na época, ficava no berço; e a minha irmã ficava no quarto dela. Se não me engano era isso.
P/2 - E o que motivou esse começo de monte de mudança de casa?
R - Minha mãe adora mudar. Assim, na verdade, esse apartamento, minha mãe se incomodava muito com essa falta de janela da sala e era um apartamento que tinha muitas lembranças para ela. Então, a gente veio para Jacarepaguá e sempre que tinha alguma coisa mais legal, mais atraente, a gente ia.
P/1 - E me fala uma coisa: essas mudanças de apartamento também acarretaram mudanças de escola? Você estudou em várias escolas? Ou não?
R - Não. Eu só estudei em quatro, três escolas só. O maternal até o jardim três; depois do CA até a quarta série num colégio; da quinta ao segundo ano num colégio. É. Foram quatro colégios só.
P/2 - O que é CA?
R - É alfabetização. Alfa que chama.
P/1 - E como era a vida na escola até a quarta série? Você lembra?
R - Nossa, eu era muito atentada. Eu era impossível. Minha irmã conta – ele estudava no mesmo colégio que eu até mais nova –, lá no Méier, ela estudava, eu estudei; e ela ia me buscar e as pessoas falavam: “ela é tão diferente de você”. Minha irmã um anjo, e eu encapetada, aprontando na escola. Era muito agitada.
P/2 - O que você fazia? Conta uma dessas aventuras aí.
R - Minha irmã fala que eu cortei o cabelo da minha melhor amiga. Não sei por que, não me perguntem o que passou na minha cabeça. Isso que era a minha melhor amiga, cortei o cabelo dela. Bati num menino por causa de lanche. Depois minha mãe falou: “você não tem comida em casa? Qual é o seu problema”? Aprontava muito. Isso é o que ela conta. Batia nas pessoas por besteira; ficava batendo nos coleguinhas. Ela vinha descendo a rua e conversando comigo: “não pode fazer isso; por que você está fazendo isso”.
P/1 - E você lembra o que passava na sua cabeça quando você aprontava isso?
R - Não faço ideia. Criança problemática. A louca. Impossível. Eu só lembro que ela falava e eu fingia que não estava ouvindo. Ela: “você ouviu”? E eu estava voando com a cabeça “ouvi”. Nem ligava para o que ela falava.
P/1 - Deixe-me falar uma coisa. Aqui, numa das fotos que a gente estava olhando, você falou do cabelo. Que a partir de uma determinada época da sua vida você começou a alisar o cabelo, a passar produto químico. De quem foi essa decisão? Sua, dá sua mãe?
R - Isso. Da minha mãe.
P/1 - E por que foi isso?
R - Acho que porque a nossa sociedade tem uma cultura – no caso, um padrão europeu, uma coisa eurocêntrica – que tem um outro tipo de padrão. E aí o cabelo crespo não era bonito. Até quando eu estava passando pela transição, minha mãe não gostou muito não. Hoje ela gosta, mas antes ela: “para a sala alisar esse cabelo”. E aí começou cedo. Tem uma cena muito engraçada da minha mente, eu estava nesse colégio de jardim de infância, eu não sei se eu tinha feito um relaxamento, alguma coisa para abaixar a raiz, e eu estava me achando com aquele cabelo. Pequenininha, era uma comédia. Aí brincando, um menino veio e colocou a mão no meu cabelo. Eu falei: “não encosta no meu cabelo que eu acabei de alisar”. E isso marcou porque as professoras brincavam “sua filha é uma comédia”. Ela com esse cabelo não sossega. E bem pequenininha passava coisas e tal. Tanto que eu falei que aquela foto eu sei que não tinha mexido ainda; mas já mexi alguma coisa durante muitos anos. No começo era ela, mas depois passou a ser eu. Porque aí é o padrão. No colégio, quantas pessoas tinham o cabelo crespo? Sei lá, eu e mais uma; eu e mais duas. Liga a televisão, pega a Barbie; qual brinquedo tem cabelo crespo? Nenhum. Aí eu comecei a querer ter o cabelo alisado durante muitos anos.
P/1 - E quando você resolveu parar de alisar o cabelo?
R - Isso foi no final de 2015. Mas foi de uma hora para outra. Eu nunca pensei que eu fosse ter coragem. Porque eu lembro que na faculdade – eu estudava na UERJ – tinham vários movimentos que faziam isso e eu falava: “eu me sinto tão bem com o meu cabelo alisado que não tem necessidade”. Eu não vou menos negra por não ter meu cabelo crespo, não é? Aquilo, para mim, é muito forte. Mas depois eu não sei de onde saiu essa força que eu estava começando a ter um outro trabalho. Eu estava enrolando – eu nunca gostei do meu cabelo liso, chapado – eu dava uma enrolada nele. Falei: “vou parar. Vamos ver se eu vou aguentar”. E está até hoje. De uma hora para outra, passaram-se os três meses que eu fazia progressiva; não fiz mais. Comecei a enrolar o cabelo, no final foi ficando difícil. Aí coloquei as tranças que vocês viram na foto. Foi bom porque cresce muito o cabelo, aí deu mais um up para continuar, e agora no final eu mesmo fui e meti a tesoura. Acabou. Chega.
P/1 - E como você está se sentindo agora, assumido o teu cabelo?
R - Muito bem. É liberdade. Claro que dá mais trabalho porque você tem todo um cuidado especial; mas sou eu. Eu não sabia como era o meu cabelo. Às vezes eu olhava as fotos e como é que deve ser o meu cabelo? Porque muda a estrutura do fio e o cabelo fica com uma outra textura que você não consegue imaginar. Eu não sabia o que era um leãozinho desses. Eu via um cabelo muito fininho, mais ralo, e agora eu sei como é que eu sou.
P/2 - Já que a gente entrou no tema cabelo, a gente está falando do Rio de Janeiro, uma cidade que tem praia. Pensando essa vida social e, inclusive, de viver a cidade, o que é ser uma menina que alisa o cabelo? Quais eram os impedimentos?
R - Às vezes, na faculdade – na UERJ – a gente viaja muito para congressos, então tinha aquele pânico de conseguir marcar para a menina vir aqui em casa fazer a progressiva antes da viagem. Porque você vai viajar para congresso em outro estado, que são um ou dois dias de viagem; aí você vai tomar banho e você não vai ter aquela coisa de casa, que vai ter um secador, uma prancha. Então, ficava bem preocupada de viajar com o cabelo alisado, e também no final do ano que salão está lotado, todo mundo com a agenda cheia e você está em pânico. Você não ficar com o cabelo crespo. Porque toda hora você vai à piscina, você vai à praia. Sai da praia direto e não poder sair porque está com aquela raiz alta. Então, era meio difícil, principalmente quando não dava para marcar para fazer o cabelo porque não tinha essa liberdade. Tinha que ir em casa, já perdia um tempo para dar um jeito para se achar bem.
P/2 - Eu acho que a gente pode voltar ainda um pouco mais, porque a gente já chegou a UERJ, mas tem muita coisa que aconteceu nessa UERJ que principalmente em relação a sua família. Você tem ou teve contato com seus avós paternos e maternos? Qual o nome deles?
R - Meus avós paternos. Minha avó Dulce e meu avô Finio; Os Marinos, a gente chama de Finio. Com a minha avó paterna eu não tive muito contato. Não havia muita identificação nem da minha parte nem da parte dela. Então, foi uma coisa assim ok, mais maquiada. Com o meu avô paterno, ele era um amor. Morro de saudade dele, ele faleceu tem pouco tempo e ele era um fofo. A gente parecia muito de jeito, um cara brincalhão, bem sacana. A gente era próximo dentro da medida, porque como eu e meu pai a gente não foi muito próximo, não tinha essa ligação de família estar sempre junto. Então, o que tinha com o meu avô era ótimo. Ele era um cara bem espontâneo, agradável.
P/2 - Você conhece a história dele? A parte dos avós paternos?
R - Sei que a minha avó ela era empregada doméstica, mas isso muito antes de eu nascer, porque quando eu nasci ela já era aposentada. O meu avô deu muita sorte. Ele é semianalfabeto – era semianalfabeto – veio lá da roça, do interior da Paraíba, e ele veio para o Rio com uma oportunidade, meu tio que até aparece na foto do meu aniversário ele conseguiu um emprego na Petrobras – e naquela época não tinha aquela coisa de concurso – para ele ser motorista dentro da plataforma. Daí ele conseguiu e meu avô só assinava o nome. Aposentou-se bem, aprendeu; mas ele não tinha nada para dar certo dentro do padrão. O cara era muito sortudo.
P/1 - E o que o seu pai faz?
R - Meu pai é técnico em instrumentação. Essa parte, também, muito focada. Meu irmão tem muito essa parte deles, porque na época quando meu avô começou a ter uma grana um pouco mais legal, falava: “faça o que você quiser”. Meu pai sempre quis ser jogador de futebol, fazer alguma coisa relacionada ao esporte. Só que ele mesmo pensou: “isso aqui não vai me dar dinheiro”. Aí foi e quis fazer engenharia, falou: “não vai me dar dinheiro agora”. Foi e fez um curso técnico e está muito bem financeiramente. Enfim, focado. Os primos dele na época ficavam: “vamos para tal lugar”; meu pai: “não, eu vou fazer isso, aquilo”. Tanto que foi o primeiro a ser bem sucedido no meio deles.
P/2 - E antes dos avós maternos, falando do seu avô paterno, qual é a lembrança que você tem junto dele, qual é a história – a primeira história – que teve de vocês dois juntos quando você se lembra dele? Pode ser uma imagem. Por que ele era fofo?
R - Ele adorava – meu irmão fazia judô e ele levava. Ele comprava a gente com bala. Sempre dava bala ou McDonald’s. A gente sempre que se encontrava, ele tinha alguma coisa de bala para dar, McDonald’s. Ele era muito fofinho.
P/2 - E os avós paternos?
R - Meus avós maternos. Minha avó Nivalda, mãe da minha mãe, que era no caso a mais próxima; e meu avô Estelio. Ele faleceu tem três anos, se não me engano. Também a gente não era muito próximo porque essa parte da família também não era muito próxima. Ele sempre fez tudo para agradar, era muito agradável, mas não era aquela relação de vô que tem. E minha avó era a mais próxima de todos eles, até pela minha mãe ser muito agarrada a ela e vice-versa. Ela também mora aqui no prédio, no oitavo andar; todo dia ela vem aqui. Daqui um pouco ela deve descer.
P/1 - Eles nasceram no Rio de Janeiro, teus avós maternos?
R - Minha avó é mineira e meu avô, eu acho que ele é carioca. Não tenho certeza porque os pais dele, o avô dele era português, mas eu acho que mãe era pernambucana. Eu não tenho certeza. Acho que é isso. Mas a minha avó é mineira.
P/1 - E você tem alguma história da tua tia avó Nivalda?
R - Eu lembro que há uns dez anos atrás ela era muito festeira, sempre animada, com muito samba, muita cerveja, muito churrasco, curtindo muito. Isso vem muito forte na minha mente. A gente fazia várias festas, karaokê, sempre gostou muito.
P/2 - E talvez para encerrar a infância, como que era a sua relação ou a relação da sua família com a praia?
R - Era o passeio de todo o tempo sempre. Sempre. Minha mãe ficava: “vamos a la playa”. Era o evento. A gente dormia cedo. Praia era a nossa vida. Passeio de final de semana certo.
P/1 - E que praias vocês costumavam frequentar?
R - Eu não lembro direito. A gente ia muito para a Barra. Para a zona sul, mais agora. Tinha muito a praia da Barra, na prainha que fica ali em cima no Recreio, região dos lagos; mas a Barra era certa.
P/1 - E a sua mãe não casou de novo depois do seu pai?
R - Não.
P/1 - Então, basicamente foi você, ela, o Jorge e a Priscila?
R - Não. Sempre nós. É. Sempre nós.
P/1 - E agora vamos tentar um pouco na sua adolescência. Conta para gente. Você mudou de escola na adolescência? Depois da quarta série que você falou?
R - Adolescência. Foi. Mudei.
P/1 - Como foi essa nova escola?
R - Nessa parte eu estava calma. Era uma escola grande que eu não estava acostumada. Eu estava acostumada com escola mais pequena e tal. Escola grande foi meio que um susto. Um ritmo mais acelerado em questão de estudo. Mas eu gostei bastante. Foi ali que eu peguei mais a parte de esporte, eu gostei mais, que eu comecei a me interessar.
P/1 - Que esporte você praticava?
R - Jogava handball, um moleque. Mas eu gostava para caramba de lá também. Muito bom o colégio.
P/1 - E que matérias você gostava de estudar?
R - Sempre gostei de história, geografia, português. Nada de matemática, nada que bote número, estava fora. Detestava ciências. Não aprendia por nada, entrava em pânico, detestava professor, detestava tudo que ia nessa matéria; mas o resto eu gostava.
P/1 - Teve algum professor que te marcou nessa fase?
R - Professor de geografia. O professor de geografia era maravilhoso. Eu acho que escolhi geografia por causa dele. Era muito gente boa. Mas eu já estava na sexta, sétima série, por aí. Tinha a professora; acho que nessa época até a oitava série foi ele.
P/2 - E o que essa menina queria ser quando crescesse?
R - Até hoje essa menina não sabe o que ela quer ser quando crescer. Ela gosta de tudo, ela vive no mundo da lua. Com pé no chão, mas no mundo da lua. Já quis ser bióloga marinha. Desisti porque eu tinha medo de peixe. Não faz nenhum sentido, eu sei. Mas eu queria muito fazer, eu adorava biologia. Eu ia muito bem em biologia. Até hoje eu ossos do corpo, nome de tecidos, de tudo porque eu gostava e quando eu viajava para a região dos lagos, que tinha peixinho, eu me forçava, eu vou ficar aqui. Eu ficava parada, passava dois segundos, “meu Deus do céu, estou entrando em pânico”. Aqueles peixinhos pequenininhos. Desisti de fazer biologia marinha. Aí o meu mundo caiu no ensino médio porque é época em que está todo mundo encaminhando. “Eu vou fazer isso, e você Luana?” “Eu não sei, estou vendo ainda”. E começa a pressão. Já pensei em fazer educação física; já me fizeram querer fazer direito, “não, vai fazer direito; você escreve e fala bem”. Gente, pelo amor de Deus, detesto. O mercado já está encharcado de profissional. Não. Eu queria fazer gastronomia porque eu adoro cozinhar e comer também, não é? Só que a minha mãe falou: “você não vai fazer gastronomia não. Você é ambiciosa, vai ficar limpando cozinha e reclamando na minha orelha. É um curso caro, não vai fazer”. Falei: “está bom. O que eu vou fazer”? Fiquei meio assim, voltei para direito. Falei: “Vou fazer direito. Depois lá eu resolvo”. E aí eu vi, vou fazer geografia. Perto do período da prova discursiva da UERJ, eu estava estudando e falei: “eu prefiro muito mais geografia que o direito”. Conversei com um professor na época do ensino médio, ele super me apoiou e eu fui. Comecei a fazer geografia em 2014. Claro que todo mundo, toda pessoa que vai entrar na faculdade imagina qualquer outra coisa, menos o que vai ver na graduação porque é tudo muito diferente; mas acho que ali eu gostei mais do imagina. No começo é a parte muito teórica, mas depois você vê – eu digo para todo mundo que ela está presente em tudo. Tudo em nossa vida. Aí você se torna uma pessoa muito diferente. Um ser-humano muito melhor quando você passa a observar o mundo com os olhos, não de um geógrafo, mas de uma pessoa que entende a dinâmica ao seu redor. Foi um momento muito construtivo da minha vida. Depois eu fiquei doente, foi quando a dermatite, eu tive uma crise que eu nunca tinha tido antes e aí eu tranquei a faculdade. Eu estava terminando o período e foi logo antes dessa greve mais longa que a UERJ teve. Nem valeu a pena eu ter trancado porque já ia entrar em greve, mas enfim, eu tranquei e minha mãe ficou reclamando logo depois: “você tem que voltar a fazer graduação, mas vamos pensar em outra coisa, a UERJ vai ficar em greve, vamos para uma particular”. E a minha mãe sempre – como ela é psicóloga – começando: “eu acho que você tem muito a ver com a parte de comunicação, dá uma olhada, procura com calma” e eu lembro que eu não sabia nada disso. Falei: “publicidade e propaganda”. Ela falou: “Lua, procura melhor. Vi que na faculdade que você está tem uma outra coisa que pode ser mais legal”. Aí eu comecei a fazer relações públicas, que quando eu li sobre o curso eu me interessei bastante. É um curso que tem muito essa preocupação também com a dinâmica espacial ou tudo o que está envolta da gente; e de forma indireta tem relação com geografia e estou gostando para caramba também.
P/1 - Agora, voltando um pouquinho. Você falou que você gosta de cozinhar, conta para a gente como é que você começou, com que idade, como é que você pegou esse gosto, o que você gosta de cozinhar.
R - Eu comecei a gostar de cozinhar, na verdade, foi a necessidade, porque a minha mãe contratou uma moça para ficar lá em casa para fazer a faxina e cozinhar, mas ela cozinhava muito mal. Era um desastre na cozinha. E eu sempre fui muito enjoada para comer. E o básico, eu só comia o feijão e a carne. Eu não como arroz. Então, não tinha como errar, ela errava. E aí começou a pegar porque eu ficava na escola e eu comia salgado. Chegava em casa comia misto quente. Não comia a comida dela. Era horrorosa, era horrível, era péssima. E eu comecei: “não é possível, eu tenho que pensar em alguma coisa para fazer diferente”. A primeira coisa que eu fiz foi macarronese. Coisa fácil, comida gelada. Claro que não deve ter ficado essas maravilhas, mas foi a única coisa que deu para fazer. Dali comecei a gostar de fazer, inventar uma coisa ou outra, mas não muito a fundo. Na época, a gente voltou da praia e eu fiz um macarrão com molho branco que até hoje o meu cunhado e meu irmão falam desse macarrão. Eu faço um macarrão penne com molho branco, peito de peru que eles amam. E ali que começou. Fiquei me achando a Masterchef. Cozinhava todo dia, inventava uma coisa nova. Mas gosto para caramba.
P/1 - O que você gosta de cozinhar?
R - Tudo. O que eu não sou chegada a fazer é doce porque fazer uma receita doce ela não te dá liberdade de você testar. Envolve muita química. No caso da reação. Então, você tem que seguir muito à risca, mas a parte de salgado; eu gosto muito de fazer feijoada, adoro feijoada. Já estou contando os dias – no caso, sábado – que eu vou fazer uma feijoada. Eu adoro comida grande; caldo verde, sopa de ervilha. Até um simples almoço é uma coisa que eu gosto muito de fazer.
P/1 - E voltando um pouco para a sua adolescência, como é que foi esse período, a vida social, os amigos, como que era?
R - Eu morava num condomínio que era muito legal. Tinha muita criança, era todo mundo da mesma idade. Todo mundo brincando, interagindo muito. Então, era bem movimentado, não posso reclamar dessa parte da vida, porque eu brincava para caramba. Foi bastante tranquilo, também, para fazer amizade, porque todo mundo já morava no prédio há muito tempo e eu já havia morado lá antes, então, todo mundo se conhecia. Foi bem tranquilo.
P/1 - E o que você gostava de fazer com os seus amigos, quando você saía, namoradinhos, romance... Como é que foi essa parte da sua vida?
R - A gente jogava muita bola; jogava vôlei, brincadeira de criança, de ficar correndo. E eu lembro que a nossa diversão era ir para um shopping que tinha perto. Sempre a mãe de um deixava, a mãe do outro buscava. A gente ia ao cinema e entrávamos nesses lugares de videogame. Ficávamos jogando a maior quantidade de jogos que saísse ficha, para trocar por um brinde. Era isso que a gente fazia. A nossa diversão era ir para o shopping ficar fazendo isso.
P/2 - Tem algum brinde que foi muito bem recebido?
R - Nada. Tudo porcaria. Era para dividir com um monte de gente. Nenhuma mãe dá dinheiro para criança. Tem gente que pegava um cartão, que era da década de 80, de alguém, e cada um botava cinco reais. Com esse dinheiro que tinha no cartão, tinha que arrumar brinquedo que desse para todo mundo participar e que soltasse ficha. Oito crianças. Ganhava um lápis, um chaveiro. Nada muito expressivo, mas a graça era fazer isso.
P/2 - E você comentou na época da faculdade em geografia que você teve uma crise, que crise foi essa?
R - Foi a crise da dermatite, que acho que tem a ver muito com a parte psicológica, emocional. Eu acabava de ter tido um problema com meu pai de reaproximação. Uma discussão dessas. Eu não sei o que aconteceu. Sabe quando dá um apagão e você não sabe dizer como começou? Só sabe que começou, e aí, veio tudo, foi horrível.
P/2 - Foi assim que a dermatite entrou na sua vida ou você já tinha?
R - Não, dermatite está na minha vida inteira.
P/2 - Com que idade você começou a desenvolver os sintomas? Você lembra?
R - Não.
P/2 - Mas desde que idade você tem? Basicamente. Foi a vida inteira, desde que você se conhece por gente?
R - Eu acho que desde que eu me conheço por gente. Assim, não sei quando bebê, não vou lembrar, mas desde muito novinha, sempre fui muito alérgica, sempre tive bronquite, e a dermatite sempre teve muito presente. Assim, em colégio, tem época que está muito fechado, tem época que está ótimo, mas tem época que está horrível. Então, é horrível você conviver com isso também.
P/2 - Em que fase da sua vida foi mais aguda?
R - A mais aguda de todas até os meus 23 anos, foi essa época, em meados de 2015.
P/2 - Você consegue descrever para gente o que foi essa crise?
R - Essa crise foi um tormento, foi desesperadora. Eu não sei dizer o que passou pela minha cabeça, o que tudo isso culminou, mas foi péssimo. Parece que todo mundo desabou no mesmo momento. Porque não tem só a parte de estética, você ter um corpo Ok. Meu corpo ficou todo aberto, o corpo inteiro aberto. Dá uma depressão, você tem uma depressão. A depressão está até hoje. Você fica muito vulnerável a tudo, uma tristeza absurda dentro do seu coração, não tinha vontade de fazer nada. Fiquei três meses sem sair de casa. Fui sair de casa para poder almoçar num restaurante aqui do lado. Muita tristeza, um vazio. Muita solidão. Sentimento de culpa. Questionando por que eu estava passando por isso. Tanta coisa para acontecer, por que eu tenho que passar por isso? Por que isso não acaba? Porque a dermatite, por mais que tenha sido a primeira vez que ela ficou tão forte em mim, ela sempre esteve presente. Em todos os momentos eu me questionei, por que isso acontece comigo? Eu me trato, ainda mais nesse momento. Quando eu conheci o médico específico que eu comecei a tratar de forma correta. Passa um turbilhão de coisas na sua cabeça. É muito forte, pesado.
P/2 - E quais foram os sintomas dessa crise? O que exatamente estava acontecendo tanto no seu corpo, quanto na sua cabeça?
R - Ao mesmo tempo? Meu corpo inteiro só coçava, só doía. Meus vasos estavam dilatados, eu ficava me tremendo, como se tivesse tendo calafrios 24 horas por dia. Minha cabeça estava um lixo. Eu estava me sentindo o pior ser humano do mundo. Zero vontade de viver, de ficar no meio das pessoas. Às vezes, quando tem alguma época do ano que pega muito forte, eu sinto que está tudo errado de novo, mas é claro que a gente passa a criar um escudo para não cair de novo nisso, porque é muito forte. Eu pelo menos, não vou ficar me entregando para esse tipo de sentimento que é ruim. Mas quando está muito atacado, é aquele sentimento de isolamento. Você não se sente apto para estar no meio, porque você não está feliz. E nesse meio todo, eu tomando muitos remédios. O tratamento ficou muito intensivo, eu tomava 80 gramas de corticoide por dia. Então, eu fiquei super acima do meu peso. Eu não estava entendendo, como eu não saía de casa, eu não estava entendendo, eu não me via. Quando eu fui botar uma roupa, um short que ficava super largo em mim, não passava da minha coxa. E as pessoas são cruéis nessa hora, não sabem pelo o que você está passando. Não sabem por que você está triste, as pessoas não sabem por que você está daquele tamanho. Era um discurso repetitivo. Toda vez explicar, só para você tirar aquela culpa, para as pessoas entenderem que aquilo não é culpa sua. É um momento muito difícil, eu espero nunca mais ter isso.
P/2 - Você falou que você achou um médico nesse momento, que te ajudou muito.
R - No caso foi antes até, porque o doutor Omar me acompanha desde 2014, por aí. 2015? 2014, é. Porque fez um tratamento com a esposa dele, e ela olhou assim para mim e falou: “Dermatite atópica”. E até então, eu não sabia que eu tinha dermatite atópica, porque em todos os médicos que sempre fui, era tratado como uma bronquite que ataca na pele. Ninguém nunca falou: “É dermatite atópica”. Eu fui, marquei uma consulta com ele, e ele me explicou, eu comecei o tratamento. Aí eu sabia o que eu tinha. Mas até então, era bronquite que ataca na pele.
P/2 - E você disse que o gatilho dessa crise, foi uma discussão com o seu pai. Naquele momento você tinha consciência disso?
R - Eu não vou falar que foi isso exatamente. Eu acredito que tenha sido algo relacionado a isso, porque tudo é gradativo. A gente, com o subconsciente não tem controle. Algum momento isso veio muito forte à tona. Tudo que mexe muito com o emocional, a pessoa que tem dermatite atópica, é muito delicado. Qualquer tipo de estresse muito grande, alguma coisa que vai te deixar muito triste, vai te remeter todo aquele processo que você já passou e vai arrebentar.
P/2 - E como você fez para superar essa crise?
R - Cara, minha mãe, meus irmãos e meu cunhado foram peças fundamentais. Minha prima, que estava aqui na época. Minha família de modo geral, foi muito consistente para me ajudar nisso.
P/2 - O que eles fizeram?
R - Muito apoio. Minha mãe toda vez falava para levantar dessa cama. Minha prima ficava comigo conversando, ficava sempre me motivando. Meus amigos. Minha amiga Jandiara, que até botei na foto. Minha amiga Daniela, sempre também me dando muita força, porque é complicado.
P/2 - Esse período que você ficou em casa sem sair, o que você fazia? Como era o seu dia a dia?
R - Só dormia. E aí, como quem tem dermatite atópica fica com muita dificuldade, porque coça muito o corpo. E a noite, até o meu médico me explicou, o cérebro ele entende que você vai dormir, você não vai coçar. E aí, o que ele faz? Você não vai dormir, vai ficar se coçando a noite inteira. Nessa época, a única coisa que foi me parar, foi o antidepressivo. Antidepressivo é horrível. Era uma fome absurda, um sono horrível. Tudo sai da rotina, e eu só dormia. Dormia e comia. Dormia e comia. Dormia e comia. Horário trocado, minha vida ficou de cabeça para baixo.
P/2 - E qual foi o momento que você falou: “Ufa, acabou”?
R - Olha, vou te falar que é recente. É recente. Por mais que tenha dado um alívio, é muito instável. Às vezes está tudo bem, mas quando troquei de faculdade, quando comecei a viver em outro mundo que eu não estava acostumada, aquilo mexeu muito comigo. Então, agora é o momento que eu estou melhor, desde que eu tive aquela crise forte. Os últimos meses são os momentos bons, que foi quando eu comecei a emagrecer um pouco, desinchar, eliminar esses remédios, entender mais o processo. Porque até então, você só ouve crítica. As pessoas não entendem o que você está passando, as pessoas só querem criticar. Então, você se sente mal, até pela sociedade que a gente vive.
P/2 - E antes dessa crise forte, como foi a sua vida com a dermatite? Como foi na infância, na adolescência?
R - Também. Não é fácil. Criança é um bicho sinistro. Criança não tem essa coisa de medir palavras, então ela vai te magoar, vai falar: “O que é isso aí na sua pele”? Eu não sabia explicar, então ficava aquela coisa. Sempre tiveram olhares preconceituosos, achavam que era contagioso, nunca foi tranquilo. Era tranquilo quando ela não estava forte, quando estava com a pele lisinha, ok. Mas quando ela estava atacada de algum modo que destoasse do normal, era complicado. Hoje que estou mais velha também, não estou nem aí, mas antigamente eu ligava muito para isso, porque era chato.
P/2 - Você tem alguma situação de exclusão, de bullying que você tenha sofrido por causa da dermatite na adolescência ou na infância?
R - A questão é você ouvir e fingir que não ouviu. Você sabe que tem gente comentando daquilo, mas você vai fingir que não ouviu. Não vou lembrar de nada assim, concreto, mas sempre soube que as pessoas comentavam de forma maldosa, óbvio. Mas não tem nada assim de forma concreta, uma cena de frente.
P/2 - E como é ser portadora de dermatite atópica e gostar de ir para praia?
R - Cara, a água do mar é boa. É bom para pele. Cicatriza e limpa. A questão é se tiver com a pele aberta, vai arder. No começo eu evitei muito, estava muito tempo ser ir à praia. Muito tempo, porque vai incomodar, a pele está muito manchada. Até agora, estou dando um tempinho, porque eu estava numa crise meio chata, mas é bom. Pegar o solzinho da manhã, é muito bom.
P/2 - E até os 20 anos você não tinha sido diagnosticada, então, quais tratamentos, como que os médicos lidavam com a sua dermatite?
R - Só doideira, passava cada coisa maluca. Tomava banho de papa de maisena, sabonete de arueira. Não tinha muito fundamento, mas eu ia fazendo.
P/2 - Ajudava de alguma maneira?
R - Acho que também era mais psicológico. Ajudava da minha forma de pensar. Já tratava com corticoide, mas acho que era via nasal, se eu não me engano. Mas de pele, falta para usar um sabonete que não tem nada a ver, porque ele fala que é hidratante, mas é cheio de agente químico que ia ferir minha pele de qualquer forma. Forma bem curiosa, tanto que quando eu perguntava: “Mas o quê que eu tenho”? Não dava nome, porque não sabia.
P/2 - E por que você acha que teve essa demora nesse diagnóstico?
R - Não é conhecido. As pessoas não conhecem a dermatite atópica. As pessoas não sabem o que é dermatite atópica. A maioria. Tanto as pessoas, nós, a população, quanto os médicos. Os médicos não sabem o que é dermatite atópica. Os dermatologistas não sabem.
P/2 - Lu, voltando, se você puder falar de novo para gente, por que você acha que existe essa demora no diagnóstico?
R - É porque ninguém conhece. Os próprios dermatologistas não têm conhecimento amplo nisso. Acho que agora que estou vendo que um ou outro tem. Até aqui no Rio de Janeiro mesmo, se você for no consultório de dermatologia, sem falar o que você tem, sabendo o que você tem, te digo com toda certeza, ninguém vai dizer que eu tenho dermatite atópica. E a população não tem conhecimento disso também, por não ser um diagnóstico comum. Assim como eu, várias pessoas que tem dermatite atópica, não sabem como tratar. Enfrentam o mesmo preconceito, porque não é algo comum. Assim como as pessoas demoraram para entender do que se tratava a hanseníase, as pessoas sabem, tratam hoje com menos discriminação, porque houve uma mídia massiva explicando o quê que é, aperfeiçoamento do profissional para explicar para população o quê que era. A dermatite atópica, até entrar nesse patamar, vai demorar. As pessoas não conhecem.
P/2 - E ter o diagnóstico, ter um nome para alguma coisa que você tem, mudou alguma coisa?
R - Claro. Principalmente quando eu ouvi de um profissional, no caso, me deu um conforto de que eu estava em boas mãos. Esse médico vai me ajudar a controlar. Ele domina isso. Principalmente o meu médico que é doutor nisso, faz estudos, dá palestras, vai para fora falar sobre isso. Então, para mim é total confiança.
P/2 - E você tem restrições ou medidas que você tem que adotar para amenizar? Como é o seu dia a dia em relação a dermatite?
R - Zero poeira. Zero poeira sobre tudo. Sou super neurótica, minha mãe também já é louca com limpeza. Eu detesto, eu não gosto e me sinto mal. Ambiente que tem muita poeira, as pessoas vão saber na hora, porque eu vou começar a espirrar, eu vou começar a me coçar. Eu não fico em paz, me dá agonia. Eu fico tão nervosa, que começa a me fazer mal. Então, principalmente lugar limpo, sem poeira.
P/2 - E você tem alergia a alguma coisa, além de poeira?
R - Ácaro. Tudo que gira em torno de poeira. Mudança de tempo. Alimentícia não tenho nenhuma restrição. É mais a questão de atmosfera mesmo, porque a dermatite atópica é a falta de uma camada da pele, então no caso você fica mais sensível ao que está ao seu redor.
P/2 - Tem outras pessoas na sua família que também tem dermatite?
R - Sempre falei que não, mas descobri que o meu primo por parte de mãe, tem, só que é um grau bem abaixo do meu, bem abaixo. E minha irmã, é engraçado, não chegar ser dermatite atópica, mas é algo muito semelhante que ela tem, que fica atrás de uma perna. Só em uma. E assim, agora, minha irmã depois de velha, meu primo também, depois de velho, que a gente foi ver.
P/2 - Você falou que você tem, não sei se eu chamaria isso de um ativismo, mas você tem feito palestras, você está atuando essa coisa da conscientização da dermatite. Você quer contar um pouco para gente como está sendo isso?
R - Foram duas vezes que eu falei sobre, continua sendo difícil. Não é um assunto legal para falar para galera. É difícil, porque a gente, hoje eu aceito muito mais a dermatite do que antes, do que há um ano atrás. Porque é vergonha, não é legal. Não é que seja legal, mas eu não aceitava pela condição que me empunha. Por reclamar de como meu corpo ficava, por eu achar feio, por não gostar. Por todas as coisas que aquilo me impedia de fazer, de me sentir bem. Então, é quebrar barreira. Quando o meu médico me ofereceu, que o laboratório entrasse em contato comigo para eu dar uma palestra para os médicos sobre aquilo, eu falei: “Caramba”, na hora eu falei que sim. Eu não imaginei a magnitude que seria aquilo, e quando chegou na hora eu quase saí correndo, porque é um momento de exposição. Porque é um momento que quando você está falando, você vai lembrar das coisas que você já passou, e você vai ficar um pouco desconfortável, porque você não está contando uma história legal, uma história bonita. Uma história triste. Então, também é uma maneira de você aprender a lidar com o que você está passando. Eu acredito que quando a gente fala as coisas que magoam, que entristecem a gente, é uma forma da gente trabalhar para o nosso próprio entendimento e evolução, então para mim esse foi um pontapé que me ajudou muito. Depois veio o jornal, que o jornal também. A gente está saindo de uma sala que só tinha médico, para um jornal que é extra regional. A maioria da galera daqui do rio, é um jornal que vai circular bem. A menina da fisioterapia, falou: “Eu vi você no jornal de sábado”, eu fiquei toda sem graça. E também foi outra forma, eu até fiz uma postagem. Foi a primeira vez que eu comentei de forma ampla em rede social sobre isso. Várias pessoas me adicionaram em rede social, eu falei: “Gente, eu não sou médica. Eu só entendo de dermatite atópica, tem que procurar um médico”, mas é legal essa troca. E dolorosa.
P/2 - Pode perguntar, Dê.
P/1 - Eu só ia perguntar, como é que é você falando para os médicos o quê que você como paciente, acha que os médicos devem ouvir, ou que eles não sabem ou precisam saber sobre isso?
R - Eu acho que eles estavam muito mais para me ouvir do que eu passar coisas para eles. Eles estavam com muita vontade, porque nessa semana que teve em São Paulo, eles viram o quão sério era. E eles estavam assim, eu via pela fisionomia deles muita surpresa, porque eles não faziam ideia do que era dermatite atópica. Eles não faziam ideia do que era.
P/1 - E o que você falou que você sentiu que surpreendeu eles? Você lembra mais ou menos?
R - Não lembro. Assim, contar o dia a dia do que a gente passa. Ninguém coça a pele porque quer coçar. A gente coça porque está coçando, é uma coisa involuntária. Eu acho que foi alguma coisa relacionada a isso, porque quando é falado sobre dermatite atópica, é uma coisa bem superficial. Então, o que faltava era esse encontro com pessoas que tem a doença, para explicar como é ter, não de forma teórica, de forma prática. Acho que foi ali que eles se surpreenderam, porque eles não esperavam uma batalha diária, como é. Que é passar pelo preconceito, que é passar pela dúvida, que é passar pela dor. Porque dói. Ninguém está fazendo carinho em você. Dói. Passar pela solidão, às vezes você fica muito triste. Porque ninguém quer ficar com o corpo todo marcado, se machucando. Porque se está se coçando, está machucando. Então, eu acho que eles entenderam o quê que é, quando eles ouviram isso.
P/1 - Você falou da questão emocional, como isso também ajuda muito?
R - Sim. O que eu comentei com eles, eu não sei se eles concordam. Eu acho que a dermatite atópica está super ligada a parte emocional. Se você vai ficar bem ou mal, dependendo do seu emocional, é uma coisa que influência bastante.
P/1 - Os médicos estão conscientes do papel importante que o emocional exerce?
R - Eu acho que sim, porque todo mundo que tem dermatite atópica, sabe o quanto é importante estar com o emocional em dia. O mundo de hoje não favorece muito isso, tem várias questões, além da parte pessoal. Então, a parte emocional, eu, Luana, acredito que conte muito.
P/2 - Quando você percebeu que não era a única?
R - Quando eu percebi? Quando eu entrei na faculdade, nessa segunda graduação, que eu vi uma amiga que tinha dermatite atópica. Eu nunca tinha conhecido. Minha amiga tem dermatite atópica também.
P/2 - Já tinha o diagnóstico?
R - Já.
P/2 - E como que foi conversar e conhecer essa menina?
R - Foi falar: ”Meu Deus, obrigado por conhecer uma pessoa ao vivo”, porque até então eu não sabia. A gente trocou muita ideia sobre isso, sobre dicas, de como uma tratava, de como a outra tratava. E aí, de forma mais ampla, depois da manchete no jornal, que até eu li os comentários na própria página do jornal, muita gente falando. As mães desesperadas, as pessoas desesperadas, e aí as pessoas contatando. Não sou a única. O problema da dermatite atópica, de muitas pessoas tratarem de forma indevida, e às vezes não serem assistidas da forma correta, é a falta de informação. Eu tenho diagnóstico, tenho dermatite atópica desde pequena. Fui ser diagnosticada com 20 anos. Eu vou ao dermatologista desde muito pequena, olha quanto tempo. Quantas pessoas não passam e passaram por isso? Por isso que os médicos têm que estar conscientes do que é. E no caso, até utilizar um meio de comunicação que for, para deixar isso bem claro. Porque quanto mais tarde você trata, é pior. Às vezes, você pode estar agredindo seu organismo de forma desnecessária, por não conhecer como enfrentar a doença, como qualquer outra doença. É bom você conseguir dominar aquilo para poder conseguir radicar, minimizar, os tipos de dores, de tudo.
P/1 - Como que sua mãe, os seus irmãos, como eles lidaram com isso ao longo da sua vida? Como isso afetou a rotina da família?
R - Muito mexidos. Ainda mais depois dessa última crise, eu até brincava com minha mãe, que minha mãe não é muito de ficar fazendo carinho, ela ficava toda preocupada. Nenhuma mãe quer ver o filho triste, meus irmãos ficavam preocupados. É um momento pesado da família, de todo mundo estar voltado para uma coisa que eles não tinham muito controle, só queriam me tirar daquele poço, que me afundava em tristeza. Eu caía de novo e eles estavam ali. Um momento de recomeçar.
P/1 - Você está emergindo dessa crise, como você está se sentindo agora? Quem é a Luana hoje, depois de ter passado por isso?
R - Mais forte. Todo dia, mais forte. Dá uma fraquejada aqui, mas vai se recuperando de novo. Porque às vezes é inevitável. Quando não está do jeito que você quer, dá uma tristeza. Essa semana mesmo, estava abrindo tudo de novo, dá uma coisa assim, que você quer estagnar. Você fica: “O que está acontecendo? Não é possível. De novo”? E aí, ao mesmo tempo, passa dez minutos, vamos embora, não pode parar, levanta. Todo dia a vitória, não pode desanimar.
P/2 - Você está muito apropriada do que está acontecendo com o seu corpo e do que acontece com o seu corpo. Ter esse diagnóstico te faz ter muita certeza do que está acontecendo com você. Quando você tem um novo ciclo de amizade, um emprego novo, como que é a sua postura em relação ao seu corpo? Você conversa sobre as pessoas sobre o seu corpo? Você adianta o que você tem para as pessoas?
R - Sim. Primeiro porque a maioria vai olhar e se perguntar o que é isso. Em algum momento oportuno, eu vou comentar sobre. Como eu tenho que ir em consultas, meu médico em específico que vai demorar um pouco, tem que buscar remédio, então, eu aviso que vou para tal lugar, por causa da minha dermatite atópica, a pessoa fala: “O que é isso”? Eu faço um bebe apanhado para explicar para a pessoa.
P/2 - Como que você explica para as pessoas o que é dermatite atópica para as pessoas, para as suas amigas?
R - Como é que eu explico? Vamos ver. É uma falta de camada da pele, minha pele é supersensível a qualquer tipo de contato, e é isso. A pessoa fica meio assim, e eu falo que só coça muito, pronto. Começa a coçar e a pessoa fica: “Porque está coçando? O que está acontecendo”? É isso. É isso que você precisa saber.
P/1 - O que você falaria para as pessoas que tem, e para as que não tem dermatite atópica?
R - Para as pessoas que tem, que eles continuem tirando forças dos lugares mais inimagináveis possíveis, busque o apoio familiar, a gente sempre critica nossa família, mas é no momento mais difícil que ela vai estar ali. Você vai ter certeza que só ela vai estar ali. Muitos amigos não vão estar, e seu pai ou sua mão, seus irmãos, eles que vão te dar forças. Seus primos, seus cunhados. Então, aproveita a força que eles estão te dando, porque eles sabem o que é bom para você e vão te ajudar muito. Porque é passageiro, a gente vai conseguir chegar em um momento que a dermatite atópica, está chegando também, está vindo uma vacina excelente de fora, que vai minimizar muitos sintomas, que vai cortar muita quantidade de remédio. Vai ficar tudo bem, vai ter uma vida normal. Para as pessoas que não tem, que elas entendam, sejam pacientes, porque é como qualquer outra doença que não tem diagnóstico. Há gente que vai ser preconceituoso, há gente vai olhar com desdém, mas se colocar no lugar do outro, ter empatia. Ainda mais para aproveitar esse momento do mundo, principalmente o que a gente está vivendo agora, as pessoas estão usando muito a palavra empoderamento, empatia, respeito. Não vamos só fazer texto no Facebook, não, vamos entrar na brincadeira e levar para vida real. Não adianta você ver uma situação na internet, compartilhar, fazer um texto de 50 linhas e quando passa uma pessoa na rua com uma coisa que não é aprovável pelos seus olhos, você é o primeiro a fazer piadas. Então, entenda o outro também.
P/2 - Lú, você namora?
R - Não.
P/2 - Está apaixonada?
R - Não.
P/1 - Já esteve?
R - Já.
P/1 - Quer contar para gente?
R - Não.
P/1 - Tudo bem, tranquilo.
P/2 - Fala para gente como é a sua rotina hoje em dia?
R - Minha rotina? Acordo seis e meia da manhã, vou para o estágio, saiu do estágio e subo para aula. Saiu da aula, sempre que possível, sempre que dá todo uma cerveja para descansar com minhas amigas. Vou ver o Flamengo. Vou para o samba.
P/2 - Porque você é flamenguista?
R - Porque eu amo esse time, desde pequenininha. Meu pai me leva no maracanã desde os dois anos de idade, não tem como não ser.
P/1 - Você vai em todos os jogos?
R - Agora não, porque está muito caro. A diretoria não está colaborando muito para gente estar indo, mas sempre que possível estou no maracanã, se não em um barzinho com os amigos vendo o jogo, ou na casa de alguém.
P/1 - Você lembra de algum jogo memorável, que te marcou? Aquela emoção.
R - Flamengo, todo jogo é aquela emoção. Minha mãe fica: “Para com essa palhaçada”, a pressão sobe, eu fico desesperada, eu choro, eu grito. Todo jogo do Flamengo é uma emoção, acho que não teve um marcante.
P/2 - Então, descreve para gente como é entrar no campo?
R - Toda vez que eu subo. Quando o Flamengo não estava no Maracanã, estava em obra, eu achava um saco ir no Engenhão, qualquer ouro estádio. Agora, quando é no maracanã, você começa a subir, aquela rampa já vai dando uma emoção. E quando você chegar para sair de frente para o campo, ali acaba tudo. Ali você está em outra dimensão, é uma emoção fora de série. Muito bom.
P/1 - E o que é esse estágio que você está fazendo?
R - É de relações públicas mesmo, dentro da faculdade, na parte de atendimento.
P/1 - E o que você se vê fazendo nessa área? O que você gostaria de fazer?
R - Eventos. Essa parte assim de lidar com o público, eu gosto bastante.
P/1 - E a geografia, você não quer voltar?
R - Vou voltar. Eu estou querendo voltar, se não for no próximo período, no ano que vem. Quero continuar, até para não perder minha matrícula também.
P/1 - E de que maneira você quer unir essas duas disciplinas? Você tem alguma ideia?
R - A humanidade que a geografia te ensina a ter, ainda mais na licenciatura. Ser professor é muito difícil, ainda mais aqui aonde a gente mora. Então, você passa a ver tudo com outros olhos, com uma coisa mais consciente, respeitosa. Não sei explicar, é uma reviravolta na vida de qualquer pessoa, quando você entra em uma graduação de licenciatura. E aí, você consegue atrelar isso a qualquer lugar. Qualquer profissional, de qualquer área, se ele pega uma matéria de licenciatura, a geografia ela está em tudo. Então, ela é muito fácil de você atrelar. Tudo.
P/2 - Lú, vamos entrar mais na parte avaliativa. E a pergunta é, o que é ou como é ser, mulher, carioca, negra, portadora de dermatite atópica, estudante universitária de geografia, considerando a geografia, e RP?
R - O que é? Força na peruca. Difícil. Já foi mais, mas é difícil. Ser mulher e ser negra já é mega complicado. Primeiro, porque a gente está falando de um lugar que é expositório, aí quem está aqui?
P/2 - Como é ser mulher, negra, portadora de dermatite atópica, estudante universitária?
R - Ser mulher e ser negra é muito complicado. Ainda mais aqui no Rio de Janeiro, porque há uma supervalorização do corpo, então você se sente um pedaço de carne que a qualquer momento vai ser devorado, sem dúvidas. Universitária, também. Ainda mais no antro que você vive, de discussão, de formulação de ideias, então muita gente fala: “A pessoa é universitária, não vai levar muito a sério”, por estar em formação, e não respeita esse momento de aprendizagem. E atrelar tudo isso junto é complicado. Tem que estar sempre se informando, fazendo questão de se colocar, ter um lugar na sociedade, fazer questão dele, porque se você não tirar das suas forças, ninguém vai te ajudar, você só vai apanhar.
P/1 - Só uma coisa, voltando rapidinho. Fala só um pouquinho da relação com sua mãe, que você falou que ela é o grande amor da sua vida, que ela é uma pessoa tão importante. Fala um pouquinho sobre isso.
R - Minha mãe é maravilhosa, uma mulher muito guerreira. Muito determinada, corajosa. A baixinha tem um metro e meio, mas ela cai para dentro, ela não mede esforços. Nunca mediu esforços, sempre fez tudo pela gente. Até quando ela não podia, ela falava que não podia, e ela se virava e podia sim. Sempre muito forte, muito guerreira, muito amiga, muito mãe. Ela é mãezona. Meus amigos me zoam até hoje: “Cara, você tem 23 anos, sua mãe não para de te ligar, você liga para sua mãe o tempo inteiro”. Mas é minha mãe, eu estou na casa dela. Minha mãe não dorme, enquanto a gente não chega. Minha mãe é mãezona. Claro, a gente briga para caramba, a gente é muito diferente, e ao mesmo tempo a gente é muito parecida, e até quando ela me irrita, eu agradeço, porque é ela. Ela irrita para caramba, ela é muita chata, pega no pé. Mas é o jeito dela, eu esqueço rapidinho. Eu esqueço tudo isso, porque eu lembro quão maravilhosa ela é para gente. Quão presente ela é. Carinhosa, dedicada. Está sempre pensando na gente. Ela já abdicou muitos anos da vida dela só para estar com a gente, e fazer tudo que ela podia e não podia pela gente. Se tem uma pessoa que eu espero que o universo continue abençoando, que realize todos os sonhos possíveis dela, é minha mãe, que ela merece muito.
P/1 - E qual é o seu sonho hoje em dia?
R - Meu sonho? A gente tem sempre um sonho. Ser humano tem vários sonhos. Não sei, todo dia um sonho diferente. Agora, eu gostaria de me organizar para dar uma corrida com meus estudos, quero viajar. Eu quero tudo. Não sei qual sonho eu tenho, atual. A gente sonha cada coisa utópica, bem sonho mesmo, que a gente sabe que realizar não vai. Mas a consciência política das pessoas, mais empatia, mais respeito. Sonho para todos. Que a gente comece a pensar em caminhar, quando todo mundo está caminhando, todo mundo caminha junto.
P/2 - Como você se sentiu contando sua história hoje para gente?
R - Muito bom, dá um alívio. A gente fica com vergonha, fica com medo, mas depois é legal. Porque também é uma parte do dia, por exemplo, que já fiz várias tarefas hoje desde cedo, e agora, de forma involuntária, sem muita pretensão, parece que eu tirei 70 quilos das minhas costas. Desabafei, tipo um psicólogo. Só eu falei, eu fui ouvida. Vocês estão concordando com tudo que eu estou falando. Então, foi ótimo.
P/2 - Tem alguma história que você queira contar para gente, que a gente não te estimulou para dizer?
R - Não.
P/2 - Como última pergunta, como que você avalia esse projeto que a gente tem feito de contar história de vidas de portadores de dermatite atópica?
R - Eu acho muito importante. Fico até, primeiro muito feliz, me sinto muito lisonjeada de ter sido uma das primeiras pessoas com esse contato de paciente. Espero que as próximas pessoas não tenham vergonha, sejam sinceras com os seus sentimentos, porque as pessoas têm que saber como que é para gente conseguir mudar. A gente tem que falar a verdade no mundo, não tem como fazer maquiagem e fazer bonitinho. Tem que ser dito. Então, agradeço até pela iniciativa, parabéns. Foi muito sensitivo e bonito da parte de vocês, de ter também esse olhar para o outro. Parabéns.
P/2 - Na hora que você estava falando da sua irmã, você falou assim: “Aí, Lua”.
R - Ela me chama de Lua.
P/2 - Tem a ver com você um pouco isso?
R - Não, desde pequena ela me chame Lua. Não sei, vou perguntar para ela hoje por que ela me chama de Lua, daqui a pouco ela está aí.
P/2 - Mas você acha que você tem alguma relação com Lua mesmo? Você se enxerga?
R - Deve ser. Cheia de fases, muda tudo, muda cabelo. Acho que sim. Cheia de fases, de cabelo, de personalidade. Não de personalidade, mas de ideologias. A gente está sempre em construção, acredito muito nisso. Já fui muito radical, e fico muito feliz, essa fase da lua nova de ter tirado isso de mim. Antigamente, eu estava falando que era A, a pessoa falando que era B, dava meia dúzia de gritos e virava de costas. Agora, até tem pouco tempo, conversando com uma amiga, eu falei: “Cara, eu estava conversando com uma amiga, tomando banho, que não tem porque eu ficar fazendo isso, vamos ouvir. Claro que eu não vou mudar minha percepção. A pessoa vai falar, eu vou falar. Se a pessoa continuar insistindo, tudo bem. Não preciso ser uma pessoa grosseira por ricochetear aquele pensamento, mas vou ouvir e dar minha contribuição. Se ela quiser, valeu. Se ela não quiser, problema é dela. Evitar esse tipo de conflito. Eu estou sempre mudando muito. Acho que todo ano que passa: Eu vejo que eu estou muito madura, aí no outro ano eu vejo que estou muito mais madura, porque vai mudando.
P/2 - Então, Lua, muito obrigado por ter contado sua história hoje para gente. Em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece demais por esse momento.
R - Muito obrigada. Agradeço.
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