Entrevista de Carmelinda Ventura Barros
Entrevistada por Telma Salvador Barbosa e Luiza Gallo
Rafard, 28/09/2022
Projeto: Todo Lugar Tem uma História pra Contar – Rafard
Entrevista número: PCSH_HV1365
Realizado por: Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Luiza Gallo
P/1 – Dona Dide, primeiramente eu quero agradecer a presença da senhora, [por] estar colaborando com a história de vida e inspiração pra novas gerações, pessoas que vierem a vir assistir a entrevista. E eu vou começar assim, Dona Dide: pra iniciarmos a nossa entrevista, eu gostaria que a senhora dissesse o seu nome completo, a data e o local de nascimento e o porquê do apelido Dide.
R – Carmelinda Ventura, hoje Barros. Nasci em Porto Feliz, aos 25 de dezembro de 1945.
P/1 – E por que a senhora tem o apelido de Dona Dide?
R – Então, até hoje eu não sei explicar. E hoje não tem mais quem venha falar pra mim.
P/1 – Foi desde pequena que chamam de Dide?
R – Desde que eu me conheço eu sou chamada por Dide.
P/1 – Às vezes apelido carinhoso de mãe.
R – Os três. Eu tinha dois irmãos e nós três tínhamos apelido. O caçula era Tuto, o segundo era Tite e eu Dide.
P/1 – Ah, que legal! E qual o nome dos pais da senhora e dos seus avós, Dona Dide?
R – Pedro Ventura, Maria Suzana Ventura.
P/1 – Pedro Ventura é o nome do seu pai?
R – É o meu pai.
P/1 – E Maria Suzana sua mãe?
R – Maria Suzana, minha mãe. A mãe do meu pai era Joana de Melos e o meu avô, pai do meu pai, no caso, era... ai, ‘deu branco’, meu Deus! ‘Deu um branco’ agora.
P/1 - Não tem problema.
R – Não consigo lembrar o nome do meu avô. Benedito.
P/1 – Benedito.
P/2 – Posso fazer uma pergunta?
R – Sim.
P/1 – Como foi nascer no dia do Natal?
R – Então, pra você ver! E meia-noite, ainda!
P/2 – Meia-noite?
R – Hum-hum. Meia-noite ainda.
P/2 – E como você comemorava seu aniversário?
R – Nunca fiz. Uma vez as crianças me fizeram uma surpresa, há pouco tempo, mas eu nunca tive. Na época ninguém ligava pra isso, também, então não teve isso comigo, de comemorar. Nem com as minhas crianças, eu não fiquei com esse costume. Não ‘peguei’ isso.
P/2 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Não. A única coisa que minha mãe dizia era que ela começou a se sentir mal e acabei nascendo. Nasci em casa, não foi no hospital.
P/2 – Com parteira?
R – É.
P/1 – A senhora nasceu em Porto Feliz?
R – Porto Feliz.
P/1 – E como foi a vinda de Porto Feliz pra Rafard?
R – De Porto o meu pai foi pra uma fazenda que pertencia acho que pra Tietê. Aí, de lá, foi que nós viemos pra cá.
P/1 – Ele foi pra fazenda pra trabalhar?
R – É, pra trabalhar.
P/1 – Trabalhava na roça?
R – Trabalhava na lavoura. Aí de lá é que a gente veio pra cá. E daqui não saiu mais.
P/1 – E veio pra que lugar de Rafard?
R – Viemos pra Capela.
P/1 – Na Capela. Então a infância da senhora, a senhora passou toda na Capela?
R – A minha infância foi toda na Capela.
P/1 – E a senhora tem lembrança da casa, como era?
R – Nossa, como se fosse hoje! Se a montassem de novo – derrubaram, hoje – e tivesse uma condução - porque não tem ônibus, não tem nada lá – e me convidassem pra morar, eu ia.
P/1 – E a senhora consegue lembrar, assim?
R – Nossa!
P/1 – A senhora pode descrever pra gente?
R – Meu Deus! Era uma colônia. Era a primeira colônia, quando você entrava em Itapeva. Era uma colônia dividida em quatro casas. Quatro aqui, quatro lá, quatro lá e a gente morava na penúltima casa, do penúltimo grupo. Chamava de grupo as casas.
P/1 – Hum-hum. Que era grupinho de quatro, as casas?
R – Era tudo grupinho de quatro casas.
P/1 – E os cômodos, a senhora lembra como era?
R – Eram dois quartos, sala, copa e cozinha.
P/2 – E a senhora tem irmãos?
R – Hoje não mais, Deus já levou os dois que tinha. Meus irmãos agora são os da graça, da fé.
P/2 – Mas nessa época dessa casa…
R – Tinha todos. Eram crianças.
P/2 – E vocês dormiam como?
R – Tinha o quarto da minha mãe, dos meus pais e o meu, que sempre tinha alguém morando com a gente: era uma avó, ou era outra. E os meus irmãos, onde era copa, foi feito quarto pra eles.
P/2 – Eles dormiam juntos?
R – Dormiam juntos, os dois.
P/2 – E você é a mais velha?
R – Eu sou a mais velha deles. Depois de mim veio meu irmão Jorge, que faleceu agora, há pouco tempo e o Tuto, o caçula, que já faleceu há mais de dez anos.
P/1 – E aquela época lá usava-se muito fogão de lenha?
R – Era só lenha. Não existia fogão a gás na fazenda.
P/1 – E o que a senhora lembra da mãe da senhora, do fogão de lenha, a vida ali na Itapeva? O que a senhora tem de lembrança?
R – A vida da minha mãe na fazenda foi sofrida. Sofrida, sofrida mesmo. Eu não passei o que a minha mãe passou. Trabalhava na roça, cuidava da casa quando nós éramos crianças e inclusive eu queria trabalhar, quando eu ‘peguei’ idade, ela não deixava, porque ela falava que eu tinha que, primeiro, aprender lavar, cozinhar, passar, costurar, pra depois eu ir trabalhar. Tanto que eu trabalhei na roça, mas não foi tanto quanto ela. Levantava quatro horas da manhã, fazia o almoço pra levar no serviço e pra deixar pra mim e meus irmãos, que eram crianças e só chegava em casa quatro e meia, cinco horas da tarde.
P/1 – E a senhora, enquanto isso, cuidava da casa?
R – Cuidava da casa e dos irmãos.
P/1 – E brincava?
R – Brincava, mas só à tarde, só depois que os pais chegavam. Enquanto eles estavam no serviço, não podia sair de casa, não. Os meninos ainda saíam, porque os moleques, ninguém segura. Mas as meninas você não via andar pra rua, não. Era tudo dentro de casa.
P/1 – O pai da senhora também trabalhava na roça?
R – Meu pai trabalhava. Naquela época o meu pai trabalhava em um depósito desse produto que joga na cana. Adubo. Inclusive foi lá, nessa época, que ele machucou as pernas, que ficou com aquele problema depois, mancava. Se ele caísse, ele não conseguia levantar, porque a perna endureceu. Na época você não ia atrás de médico, passava um remedinho em casa e ficava por isso mesmo.
P/1 – E lá em Itapeva tem os rios, né? Rios, lagos…
R – Tinha um ribeirão que passava um pouco pra baixo da minha casa, que esse ribeirão vinha do outro lado da fazenda, pertencia também à fazenda, que era o São José. Esse ribeirão vinha de lá e aí desaguava no Rio Tietê.
P/1 – E a senhora tem lembrança de brincar no rio, alguma coisa, ou não?
R – Não. Brincar na água, não.
P/1 – E no Tanque São José, o que a senhora lembra?
R – O Tanque São José é na época dos franceses, eram bem cuidados, bem zelados. Aquele lugar era muito bonito. Não era frequentado pela população, era proibida a entrada de pessoas estranhas. Eram só os franceses que comandavam a usina, então ali era o lugar de lazer deles.
P/1 – E o avô da senhora que cuidou de lá? Avô ou pai?
R – Meu pai. Quando tiraram meu pai da lavoura, o passaram pra cuidar do Tanque. Era um lugar muito bonito, muito limpo, bem-organizado.
P/1 – Lá era como se fosse um lugar de lazer?
R – Lazer pra eles, né? Era uma gente muito boa. Quem dera eles estivessem aqui, até hoje! Talvez muita coisa seria diferente. (risos)
P/2 – Dide, o que você sabe sobre a origem da sua família, da história dos seus familiares, que vieram antes de você?
R – Olha, os meus avós eu não lembro de nada. A única coisa que eu lembro é que todos eram de lavoura, que era o serviço que eles faziam. É a única coisa que eu lembro. Que antigamente os pais não ficam contando coisas, fazendo a gente lembrar, como hoje, que a gente chama os filhos e fala e faz eles entenderem que era assim e está assim. Então, pouca coisa eu lembro.
P/2 – Mas e do seu ‘biso’?
R - O meu bisavô, que no caso era o avô da minha mãe, a única coisa que eu sei dele é isso, que a minha mãe contava que ele foi pego a laço, era índio. Laçaram meu avô, pra civilizar, né? É a única coisa que eu sei mais profunda, é isso.
P/2 – No dia a dia você não conhece histórias de como era?
R – Não.
P/1 – E a senhora viveu lá na fazenda?
R – Não, eu só sei que o meu avô que, no caso, era considerado como avô, minha mãe considerava como pai, mas era padrasto, era muito bravo. Isso é uma coisa que sempre foi dita. Bravo demais, demais da conta. Ele bebia, tinha vício de bebida, na época era a ‘dona pinga’ e quando ele chegava do lugar que ele estava vendendo, a minha mãe contava que eles tinham que correr de casa, esconder, porque ele ficava agressivo demais. Então, eles tinham que sair correndo, escondendo e ele saía a procurar com coisa, com facão, que a agressividade dele era demais, era muito grande. Isso eu lembro.
P/2 – E costumes familiares? Você tem recordação na infância de alguma comida ou de alguma data comemorativa?
R – Olha, data que se comemorava lá em casa, na minha casa não, a vila inteira, era o Natal e o Dia de Ano. Eram duas datas comemorativas. E também tem Sexta-feira Maior, será que seria? Não. É Sexta-feira Maior, que na época era tudo católico, então resguardava, só fazia coisas pra comer que não tivesse carne e tinha hora também, pra comer, fazia jejum até uma certa hora pra depois se alimentar. E no Natal, no Dia de Ano, aí sim, matava – criava – galinha, cabrito, porco, tudo que tivesse, punha na mesa pra comer.
P/1 – Aí era aquela fartura?
R – Era.
P/2 – E como era? Vocês sentavam todos na mesa?
R – Aí, sim. Na época existia - hoje a gente quase não vê mais - aquela mesa enorme, sabe? Então montava no quintal.
P/2 – Você estava contando pra gente como eram esses eventos, a mesa...
R – Tinha aquelas mesonas enormes, mas dentro de casa não cabia, então todo mundo colocava no quintal e aí montava lá um pano, uma coisa pra cobrir o sol e reunia todo mundo na mesa. Todos. Os da casa, os parentes, a família inteira. A nossa comemoração era essa: Natal e Dia de Ano que fazia isso.
P/1 – Hum-hum. A senhora morou até quando na casa de Itapeva? Na juventude da senhora, se a senhora morou lá, o que a senhora lembra?
R – O que eu me lembro, a gente foi pra Itapeva eu deveria ter de sete pra oito anos. E eu saí de lá quando eu casei. Já faz cinquenta anos de casada e esse tempo todo eu morei lá.
P/1 – E saiu de Itapeva e foi pra onde?
R – Pro Saltinho.
P/1 – E lá a senhora casou com o pai dos filhos da senhora. A senhora o conheceu como?
R – Eu o conheci, na época eu trabalhava na usina, na lavoura e uma menina se acidentou. Então o feitor, que é uma pessoa muito conhecida no cargo, a gente o chamava de Ruizinho, não consigo lembrar agora o sobrenome, ‘deu branco’ no sobrenome. Ele mandava uma pessoa junto pra levar o acidentado. No caso ele me mandou pegar a ficha na usina pra depois passar no consultório do médico para atender a menina e aí eu o vi, aquele homem pequenininho, engraçadinho, ali, trabalhando, mas foi como se eu o tivesse conhecido há séculos. Gostei dele na hora. Cheguei em casa, comentei com uma das meninas, uma amiga e ela falou pra mim: “Sabe quem é esse homem?” Eu falei: “Não, nunca vi. É a primeira vez que eu vi e gostei do homem. Não sei nem se é solteiro, se é casado, se é viúvo”. Ela falou: “É tio do meu namorado”. Foi a ‘gota d’água’ (risos) pra chegar no ouvido dele. Assim que ela contou pro namorado, o namorado contou pro tio, o tio bateu na minha porta. E ficamos até hoje. Até hoje, não, que Deus o levou. Foi assim que eu o conheci.
P/1 – Posso voltar um pouquinho ainda, um instante? Quantos anos você tinha quando você o conheceu?
R – Quando eu conheci acho que eu deveria ter uns vinte e poucos anos. Não me lembro bem. Mas tinha uns vinte e poucos anos, sim.
P/2 – Eu vou voltar um pouquinho. Você falou que as brincadeiras que vocês faziam eram no final da tarde.
R – Era.
P/2 – O que vocês faziam?
R – Brincava de roda, de Amarelinha, passa-anel, esse tipo de coisa. Só não brincava com correria. Não tinha correria as meninas, os pais não aceitavam que ficasse correndo, pra cá e pra lá, escondido, aqui e ali, né? Esse tipo de brincadeira não existia, os pais não deixavam. Principalmente as meninas, né? Então, a gente brincava de Amarelinha, pula-corda, passa-anel. Era esses tipos de brincadeiras.
P/2 – O que a senhora mais gostava de fazer na infância?
R – Na minha infância, pra ser bem sincera, eu não considero que eu tive uma infância livre, como hoje tem as crianças, porque minha mãe trabalhava e eu tinha que cuidar da casa e dos meus irmãos. Então eu não tive uma infância gostosa, como as outras crianças têm. Eu não considero que eu tive infância, porque tinha que trabalhar, cumprir com o dever. E autoridade de mãe, naquele tempo, era cumprida à risca.
P/2 – E quando você foi crescendo, você conseguia se divertir? Como a senhora fazia?
R – Não, nunca fui de sair de casa, de baile, namoradeira. Não. A minha mãe não me deixava trabalhar registrada na usina, eu fui trabalhar com turneiro, escondida da minha mãe. E chegava no domingo, que as meninas todas iam pra campo de futebol, assistir futebol, passear, dar suas ‘voltinhas’, eu estava lá embaixo, na caixa, lavando roupa. Não saía, nunca fui de sair de casa. Às vezes o meu pai deixava eu ir em algum baile, mas era muito difícil. Eu nem pedia. Não tinha ‘aquela coisa’, sabe? Eu sempre fui de falar muito, mas de ‘bater perna’, como diz o povo, nunca fui.
P/1 – A senhora falou que, na época, a família era católica, né?
R – Era.
P/1 – E na igreja, a senhora ia?
R – Ia na igreja, lá, na capelinha nossa, de Itapeva.
P/1 – O que a senhora tem de lembrança da igreja, da capela?
R – A capelinha era assim: na época tinha o sino, então o dia que tinha missa ou reza alguém ficava incumbido de ir bater o sino. E muitas vezes caía pra mim. Mas eu lembro bem da igrejinha, sim. Ela era bem feinha. Era aquela coisa bem antiga, mesmo. Você ia... perto de hoje, porque as coisas antigas eram todas coisas boas. Ninguém dá valor, mas era coisa boa. Só que era tudo assim, esquisitinho, né? Então dia de festa, quando tinha festa de Nossa Senhora de Lourdes, que era aqui, tinha festa de São João, se não me engano, não lembro bem, fazia as festas, já ficava... a Cidinha Zat era responsável - a mãe daquele menino que trabalha ali, do Edmundo – por tudo aquilo que fizesse na igreja. Então a gente ia lá com ela pra fazer flor, pra enfeitar os andores, que falavam, e era assim. Isso aí que a gente fazia, na época. Depois ia pra igreja, ali tinha a missa. Muitas vezes eu vesti o anjo e subi lá em cima do altar, correndo o risco de cair. (risos) Só que na época a gente não tinha medo de nada.
P/1 – E as festividades da igreja: São João...
R - Tinha. Todo ano tinha.
P/1 – A senhora participava?
R – Participava. É porque eu passei, conheci a religião evangélica, eu tinha dezessete anos e a primeira vez que eu assisti um culto evangélico, nunca mais saí de lá. Nunca mais saí. Aceitei, como se fosse um pedaço do céu que estivesse caindo na minha vida e não saí mais, mas antes disso era só o catolicismo. Outra coisa, a gente não procurava, não. Que até então, antigamente tinham muitas religiões, mas a gente era só o catolicismo, mesmo.
P/2 – E escola, a senhora frequentou?
R – O grupo de Itapeva, da fazenda. Tinha um grupo enorme lá, que eu não sei nem se hoje ainda está o prédio, mas deve ter o prédio lá ainda. Eu não sei se está como antes. Na época eles mudaram muito, mexeram muito nas coisas. Eu frequentei lá, o grupo de Itapeva. E aquela época era só até o quarto – a gente falava – ano. Não é hoje: série, tal, tal. Era ano. Primeiro ano, segundo. Eu fui até o quarto ano porque, saindo de lá, tinha que ir pro ginásio, mas era aqui em Rafard e você não tinha condição de vir à noite. Nem de dia também, porque não tinha condução.
P/1 – Que recordações você tem da escola, de professores, algum amigo...
R – Todos, tenho saudades de todos. Sinto saudades de todos. Lembro... a gente esquece os nomes, que é impossível você guardar nome por nome o resto da vida, mas lembro de todos, tenho saudades de todos. A minha última professora foi a Dona Rosa Lembo e a outra era Elza, mas esqueci o sobrenome dela. Lembro como se fosse hoje. Era uma escola que você já entrava, você sentia paz. Não é que nem agora, que você força a criança pra ir pra escola, que eles não querem ir. Naquele tempo a gente tinha prazer em ir na escola. Eram professores todos atenciosos, não era daqueles que deixavam você sem aprender, eles ficavam ali, você tinha que aprender, mesmo. Eu tenho muitas saudades. Nossa, meu Deus! Quem dera que o tempo voltasse atrás!
P/1 – A escola de Itapeva era grande?
R – Era grande, bem grande. Se ela ainda está como era no ‘meu tempo’, enorme. Bastante grande. E ela era acho que mais ou menos como essa aqui embaixo.
P/1 - [EMEF Prof. Luis] Grellet?
R - Como é que chama essa primeira aqui?
P/1 – Grellet.
R - Grellet.
P/1 - Isso.
R – É. Era mais ou menos assim. Um monte de praça, tinha o fundo onde se lanchava o lanche, tinha a cozinha onde fazia merenda. Era uma escola... acho que, na época, uma das melhores que existia aqui, na região. Era muito boa.
P/2 – E como vocês iam pra escola?
R – Era ali na fazenda.
P/2 – Do lado de casa?
R – É. Então você atravessava, ia pela linha do trem. O trem que eu falo não é de passageiros, o que carregava a cana.
P/2 – E você lembra de algum dia, de alguma história indo pra escola, aconteceu alguma coisa, ou alguma história engraçada, ou legal, difícil na escola?
R - Olha, história na época que eu ia na escola, a única que eu tenho é uma que me magoa até hoje! Tinha as amigas e tinha umas que fumavam. E o que elas faziam? Catavam aquelas bitucas de cigarro na linha do trem. E com isso eu aprendi a fumar também. Essa é a história que eu tenho, mas não falo com prazer, falo com tristeza. Quando minha mãe descobriu, falava: “Você não vai largar de fumar. Você aprendeu a fumar catando restos dos outros?” Eu sofri com aquilo. Apanhei. Nossa! Eu não vejo graça na minha história. Essa é a única história de quando eu ia na escola. Na minha opinião, a pior de todas. Entrava às oito horas na escola, saía meio-dia, chegava em casa e ia servir o que a mãe deixava pra fazer.
P/2 – E quando sua vida começou a mudar um pouco? Foi na juventude, que você começou a trabalhar em outro lugar?
R – Não. Quando eu casei, eu ainda fui pra roça, porque eu casei, meu marido era viúvo, tinha sete filhos. Mas como eu sempre fui amorosa com criança e até hoje, viu? Nossa, eu amo, amo, amo criança! Então a mais velha casou antes da gente casar e os outros sobraram pra essas duas mãos, né? E aí, dá um nó quando a gente lembra dessas coisas, meu Deus do céu!
P/2 – Eu estava perguntando quando a vida começou a mudar.
R – Sim, foi quando eu casei. Com todas aquelas crianças, só ele trabalhava. Quando a mãe, no caso a primeira esposa dele, faleceu, a avó, os tios levaram os mais velhos pra casa deles, pra Indaiatuba, que eles moravam em Indaiatuba. Eles tinham, já, idade, pra trabalhar. E o pai ficou com os menores, que estavam ali pra ser tratados. Era só o pai que trabalhava, infelizmente ele também tinha o vício da bebida, só que eu não sabia, porque na minha mocidade já tinha dispensado meu primeiro namorado, com casa alugada, quinze dias pra casar, por causa da bebida que eu não estava acostumada com a bebedeira, né? Na minha família não tinha. E ele eu não sabia que bebia. Eu não sabia, ou era destino, mesmo, né? Então eu acho que, de tudo que eu passei, a minha maior ‘sofrência’ foi nessa parte, nesse tempo, porque ele trabalhava, era um homem super trabalhador, mas onde ele bebia, você sabe, você vai comprar coisa fiado, tem sempre um jurinho no meio, né? E chegava o dia do pagamento era o primeiro lugar que ele pagava, ele não ficava devendo, nunca. Inclusive ele gostava muito de beber... aqui muita gente conhece. Todo mundo conhece o Toninho Maxereto, que hoje já é falecido também. Então o que sobrava pra sustentar a família? Nessa época eu sofri, eu cheguei passar… não de dormir sem comer, porque as crianças comiam, nunca ficaram sem comer. Do que tinha pras crianças eu fazia, mas pra mim eu ficava sem e quantas vezes de eu comer abóbora, fazer abóbora madura, quibebe de abóbora e todo mundo conhece aqui em Rafard também, tinha um irmão que gostava de pescar e hoje está até internado, infelizmente, e ele me dava muito peixe, que ele pescava muito, então quantas vezes eu fazer quibebe naquela abóbora, fritar peixe, porque não tinha o que eu comer, que a comida eu servia pra eles e o que estava guardado no armário eu não podia fazer, porque no outro dia não ia ter pro meu marido, que ia trabalhar. Então nesse tempo eu sofri muito. Só que a casa bem zelada, bem cuidada, os meninos que estavam morando com a avó vinham todo fim de semana pra casa do pai, né? E aí eles viram a mudança, porque quando eu casei, meu marido não tinha sequer uma xícara pra tomar um café, só tinha um prato cada um, pra comer, não tinha nada. Sabe aquelas casas que não têm nada, nada, nada, que a gente fala pobre? Mas ele foi pobre de verdade. Perto daquele tempo, hoje eu sou rica. Graças a Deus, em primeiro lugar. E aí eles quiseram vir embora pra cá. Um dia eu cheguei a pedir dez - na época era cruzeiro – cruzeiros pra pagar um pão que ele devia, que tinha pegado pras crianças, mandei pedir, a avó falou pra mim que o que eles ganhavam não dava nem pra eles, que iam mandá-los de volta e eles já estavam querendo vir mesmo, eu falei: “Pode mandar”. Eu sabia que eu tinha casado com o pai, eu tinha que aceitar os filhos, né? Então nessa época eu sofri. Mas quando eles vieram pra cá, Heitor Turolla com Geraldo, irmão de uma vizinha minha, na época, foram pra casa dela, ela não estava lá, eles pararam na porta da minha casa e ficaram conversando. Aí meu marido falou com o Heitor, o Heitor falou: “O manda amanhã pra usina, que nós vamos dar serviço pra ele”. O meu menino veio pra usina e já foi registrado, já na outra semana começou a trabalhar. E o outro, que era menor de idade, foi trabalhar com um turneiro, até fazer os dezoito anos, que o Heitor prometeu pra ele que quando ele fizesse dezoito anos podia ir lá que ele dava serviço pra ele também, aqui na usina. E assim foi. Então aí quando ele entrou na usina, sim, a minha vida foi melhorando e graças a Deus nunca mais passei necessidade. Nunca mais. Cresceram, os que eram pequenininhos foram crescendo também, cada um... um casou hoje, outro casou amanhã, outro depois e hoje eu só tenho mais um dos enteados.
P/1 – Que mora com a senhora?
R – É, mora comigo. Graças a Deus consegui colocar cada um no seu lugarzinho!
P/1 – E os filhos da senhora com o seu esposo?
R – Os meus, eu casei em janeiro, em dezembro nasceu a primeira, que foi a Suzana. Aí depois da Suzana, acho que dali dois anos, dois anos e pouco, a Giovana, que é aquela que trabalha na escola. E depois acho que uns três anos, mais ou menos, eu tive os gêmeos, que foi o Alan e o Alex. Aí tive os dois. Então quer dizer: foram três gestações, mas quatro filhos.
P/2 – Como foram essas gravidezes?
R - Muito bem. Nunca senti nada. Nada, nada, nada. Que a gente cuidava da casa, casa de sítio não tinha água encanada, não tinha banheiro, não tinha nada. Era tudo água nas costas. Então eu guardava água lá embaixo da caixa, que era longe de casa, num ‘bigolo’, que eu não sei se você conhece, é um pau nas costas e duas latas, (risos) uma de cada lado, de vinte litros. Enchia as latas, punha nas costas e trazia em casa. Fazia tudo isso. Bacia de roupa na cabeça, eram aqueles baciões enormes na cabeça, lavava roupa na caixa e era como se não tivesse nada. Nunca senti nada. Nada, nada, nada.
P/1 – Essa vida que a senhora teve, depois, com o casamento, com os enteados e depois a família formada, foi na Fazenda Saltinho? É isso?
R – Essa foi na Saltinho. Que eu casei e vim direto pro Saltinho. Aí os meus iam fazer… uma semana faltava pra fazer um ano, eu vim aqui pra essa casa, onde eu estou até hoje. Já faz quarenta anos que eu estou aqui.
P/1 – Aqui na popular, né?
R – Exatamente.
P/1 – Mas antes da popular a senhora morou na Fazenda Saltinho.
R – Isso.
P/1 – Quanto tempo a senhora morou lá?
R – Lá na Saltinho eu morei pouco tempo. Mas eu gostava muito de lá, apesar de ser bem pior do que Itapeva, mas eu gostava muito de lá. Era um lugar sossegado, calmo. Era mais calmo do que Itapeva. Que quando eu fui morar lá já não tinha mais salão de baile lá, jogo de futebol. Então era um lugar calmo, mesmo. Era como se fosse um sítio escondido lá no fundo.
P/1 – E ficava... a senhora lembra a localização da Saltinho?
R – Do quê?
P/1 – Da Fazenda Saltinho.
R – Sim, eu lembro, lógico. Hoje não tem mais nenhuma, que a usina derrubou tudo, mas eu lembro até onde era a casa que eu morei. Era uma casa pequena. Como a família era grande, aí o meu marido foi e pediu pra abrir três cômodos, que era vizinho, parede vizinha assim, aí abriu uma porta, fiquei com a casa inteira, com duas casas, duas em uma. Era uma casa enorme, dava um trabalho pra cuidar dela! Mas era muito bem cuidada. Na época dava, tinha resistência pra tudo, então nunca fui privada de sujeira na minha casa, não. Minha casa estava sempre em ordem. Melhor do que hoje, até. (risos) Com toda aquela turma que eu tinha.
P/1 – As crianças nasceram todas lá?
R – Todas lá. Os meus foram todos lá. E os dele, que são do primeiro casamento, foi em... a gente falava Taquaral, Santa Lídia a fazenda, o nome. Os dele eram todos de lá.
P/2 – E como foi ter gêmeos?
R – Então, eu fiquei sabendo dois dias antes deles nascerem. (risos)
P/2 – Sério?
R – Na gestação eu sentia diferença do movimento deles, diferença das duas primeiras gestações, mas não imaginava. Aí comecei a ter dor, fui pro médico, que todas as minhas gestações foram tratadas como Doutor Máximo. Pra mim não tinha ninguém melhor que ele. Aí mandou pra Santa Casa, pra fazer... que na época não tinha ultrassom, que hoje tem. Naquela época era raio X. Mandou pra lá. O moço tirou raio X, chegou em mim e falou assim: “Quantos filhos a senhora tem?” Eu falei: “Eu tenho duas, dois”. Ele falou: “Homem ou mulher?” Eu falei: “Duas mulheres”. Ele falou pra mim: “Agora é homem, né? Falei: “Dois?”, porque eu vi na mão dele, lá no fundo. Ele falou: “Exatamente. A senhora vai ter dois, gêmeos”. Nossa, eu levei um choque! Santo Deus! Na época precisei arrumar roupa, enxoval pra dois, mas não passei necessidade, não. Um deu de um, o outro deu outro, meus filhos tinham mais do que muita gente que podia comprar, fazer. Tinham. Eles cresceram e deixaram roupas, até calcinhas plásticas, que na época usava, sem usar, porque não teve necessidade de usar. Cresceram e ficaram sem usar.
P/2 – Que diferença a senhora sentiu, na gravidez?
R – A diferença?
P/2 – É.
R – Que mexia dos dois lados. Porque quando era uma só era o direito ou o esquerdo e no meu caso, não, era os dois lados, por isso que eu sentia dor, na época, na hora que mexia, que daí eu fui ao médico. Quando cheguei lá, chegou a minha vez de ser atendida, eu não conseguia levantar, porque travou. Aí o médico era paciente, esperou até eu conseguir levantar, andar, só que mandou direto pra Santa Casa pra fazer raio X pra ver o que tinha acontecido. E foi aí que viu que eram os dois, mas é diferente, sim. Bem diferente.
P/1 – E o parto foi tudo bem?
R – Foi. Cesárea. Porque eu falei: “Agora chega. Não pode deixar vir mais”. Nem que eu quisesse ter mais, ia ser difícil, porque já tinha sete dele, mais com os dois, quatro meus, já foi pra um time de futebol, então já deu. Aí eu falei: “Chega. Que Deus me ajude a criar”, como consegui criar, até uma altura, todos quatro e foi.
P/1 – E a saída do Saltinho pra morada lá na casa popular de Rafard, como foi, Dona Dide?
R – Olha, a primeira inscrição que teve, de popular, eu não quis. Meu marido estava louco pra vir, eu não aceitei, porque era casa muito pequena e a família era grande. Então eu não aceitei. Aí quando fizeram a segunda, que foi no tempo do Eugênio Tonin, aí meu marido falou: “Agora são cinco cômodos”. Eu falei: “Cinco cômodos como?” Ele falou: “Três quartos, sala e cozinha”. Eu falei: “Então agora pega, agora eu quero ter”. Eu imaginava, na minha cabeça, que era casa grande. Estava acostumada, sempre morei em casa grande. Falei: “Então agora você faz”. Aí ele foi e fez a inscrição.
Um dia, ele trabalhava na lavoura naquele tempo, choveu bastante, já tinha começado as casas, eles foram esconder na primeira casa da parte que eu moro, chegaram em casa e falaram: “Ai, você não sabe onde que nós fomos esconder hoje: lá nas casas novas que estão fazendo, da popular e é assim, assim, assim”. Eu falei: “Então está bom”. Ele falou: “Eu queria tanto morar naquela casa que nos escondemos da chuva!” Quando saiu, entregou a chave, fizeram um mapa pra quem quisesse saber onde era a casa dele, vinha, descia aí e via no mapa. Justo a casa que ele escolheu! A primeira casa que foi feita! Então eu não sofri com barro, com lugar muito longe, subida, porque ali então não tem tanta subida, praticamente não tem subida, mesmo. E também barro, porque na época era sem asfalto, sem nada, então a parte de baixo era tudo barro, né? Ali não tinha. Essa parte já não sofri.
P/1 – Ali já era asfaltado?
R – Já era. A frente da minha casa não era, mas era dar dois passos e já estava no asfalto.
P/2 – E você percebeu alguma mudança por mudar de cidade?
R – Como Rafard já era roça nossa, caminho nosso, não. A única coisa que eu estranhei ali, que foi meio difícil acostumar, de uma fazenda, um sítio onde você morou, você tinha criação, horta, não pagava água, luz. A gente veio aqui, nada disso se teve mais, né? Aí você não tem uma criação. Você tinha que comprar um frango, ovo, tinha que comprar tudo. Tinha que pagar água, luz. Então aí começou já a dar uma meio ‘apertadinha’, mas com jeitinho a gente controlou e agora não sai daí. (risos)
P/1 – A senhora trabalhou na lavoura pra usina, né?
R – Trabalhei. União São Paulo.
P/1 – Que lembranças a senhora tem de como era a rotina de acordar cedo, ir pra roça?
R – O horário de eu levantar é como sempre: quatro horas da manhã. Porque a gente não fazia comida hoje pra levar amanhã. Levantava quatro horas, fazia comida, tudo novo: arroz, feijão, café, mistura, tudo novo, ‘botava’ na marmita, levava uma cestinha assim, punha todas tudo ali: café, pão, o que tinha pra levar naquela cestinha, quatro horas da manhã. Seis horas saía de casa. Entrava pra trabalhar sete horas, oito horas a gente sentava pra tomar café no serviço, oito e meia levantava, meio-dia sentava pra almoçar, levantava uma hora, ia pro serviço de novo, quatro e meia ia embora, na época, que hoje mudou tudo, né?
P/1 – E pra chegar até a roça, a senhora ia como?
R – Quando era na fazenda, ia a pé. Agora, quando era lugar longe, mais pro sítio, que tinha muita… ou então em outra fazenda, a gente ia de caminhão. Boia fria que fala?
P/1 – Bóia fria.
R – Então, ia com caminhão.
P/1 – E esse sentar pra tomar o café, pra almoçar, era ali no meio da lavoura, mesmo?
R – Era no meio da terra, do canavial. Se estava carpindo, você sentava no cabo da enxada. Se estava cortando cana, sentava em cima do coiote de água. (risos) Era assim. Se chovia, se sentava em cima do coiote, jogava um plástico em cima e ficava ali, até passar a chuva pra depois trabalhar.
P/1 – E tinha uma forma de cortar cana, de arrumar a cana?
R – Não. No início, no meu tempo, que hoje não é mais assim também, eram quatro ruas de cana. Então você fazia ali, no meio das quatro ruas. Aí era a lira inteira. Você tirava três pontos e jogava ali. Depois passou a cinco. Aí já complicou um pouco mais. Você tinha que tocar cinco ruas. E depois o feitor vinha e media quantos metros você tinha cortado.
P/1 – O pagamento era feito em cima...
R - ... de quantos metros conseguiu. Era pago por metro.
P/2 – Fazia chuva ou sol...
R - ... era ali. Se você trabalhasse, você ganhava; se não trabalhasse, você não perdia só domingo, mas o dia você não ganhava. Só não perdia o domingo, eles pagavam, porque você estava ali, mas o dia ficava pra trás.
P/2 – E você lembra de alguma história marcante em algum dia do trabalho?
R – Olha, o que eu não consigo esquecer: eu trabalhava no turneiro, na época, não estava aqui na usina ainda. Era a mesma usina, mas o turneiro que tomava conta dessa parte. Eu tomava muita água. Sempre, toda a vida tomei muita água. Eu tomava quase dez litros de água por dia. Das sete horas, até às quatro e meia, eu tomava dez litros de água por dia, que nem dava, viu? Tinha dia que nem dava. E eu não suava. Ninguém via uma gota de suor no meu corpo. Um dia, esse dia que eu não me esqueço, a gente começou a trabalhar sete horas, oito e meia eu estava pingando suor. Nunca eu tinha suado na minha vida! Eu estava pingando suor. O calçado você pisava e fazia tchoc, tchoc, tchoc, de tanta água que eu tinha. Aí umas pessoas mais velhas que estavam lá, que estavam acostumados com a gente e tudo, achavam que eu estava com diabete, por isso que aconteceu aquilo. Eu vim pro médico, fiz... naquele tempo não fazia exame de sangue, urina, essas coisas. Você trazia a urina e o médico fazia na hora, ali, no consultório. Meu Deus! Fez o meu e falou que eu estava com diabete insípido, que eu nem sei como é isso. Fez uma injeção, foi tão difícil achar aquela injeção pra fazer! Mas quando ele fez, quase morri. Essa é a parte que eu não esqueço. Quase morri. Dava uma dor, mas uma dor, que nem nas minhas gestações, nos meus partos, eu nunca senti uma dor daquela. Aí correu, na época tinha o Hugo, que era motorista nosso... nosso, não, daqui e ele correu Piracicaba, não sei quanto lugar aí, pra achar uma outra injeção pra ‘cortar’ aquela primeira, que o médico tinha receitado. Conseguiu achar. Veio, aplicou meio cc...
P/2 – Dide, você estava falando de um dia marcante do trabalho, na lavoura. Você estava contando da diabete, da injeção.
R – Aí o Hugo foi procurar a injeção, foi um sacrifício pra achar. Ligava numa farmácia, não tinha; ligava pra Piracicaba, numas farmácias que ligaram lá e não acharam; Capivari não tinha; aqui em Rafard piorou, ele foi achar essa injeção em Monte Mor. Mas num segundo o homem foi e voltou com a ambulância. Quase matou. Aí foi pior ainda. Foi aí que eu fiquei mal. Aí, depois daquele dia, não tomei mais. O Doutor Faria era o médico da época, na usina, falou pras meninas: “Agora ela vai dormir o resto da tarde, do dia”. Não dormi um segundo. Eu falava pra Maria Helena: “Escutei isso, isso e isso. Então, não dormi, não”. Não conseguia dormir, eu não dormia. Só que a dor passou. Depois da última injeção, a dor passou. Mas eu sofri isso aí. Isso eu não esqueço. E eu não tinha diabete e não tenho, graças a Deus, até hoje. Não sei o que aconteceu.
P/2 – Mas aí parou de suar?
R - Não. Aí eu continuei suando. Só bem menos do que antes, do que naquele dia. Daquela vez pra cá foi que eu comecei a aprender o que era suar, que eu nunca tinha derramado uma gota de suor. Derramava lágrima, que eu chorava, me emocionava com tudo quanto é coisa. Nossa, tudo fazia eu chorar! Mas suar jamais. Nenhuma gota de suor descia do meu corpo. Aí, dessa vez pra cá, diminuiu. Não foi assim como foi no primeiro dia. Mas de lá pra cá foi que eu aprendi o que era suar, o que é o suor.
P/2 – E quanto tempo a senhora ficou trabalhando na Usina União São Paulo?
R – Olha, a época certa... foi pouquinho tempo, porque trabalhava em bastante lugar: com turneiro, com outro fornecedor, na usina. Entre um e outro, foi um bom tempo. Mas dizer pra você: “É tanto X aqui, X ali, X lá”, eu não lembro. Só a carteira mesmo que pode contar, (risos) que está tudo registrado, né?
P/2 – Dona Dide, eu vou voltar um pouquinho: se você puder contar algumas lendas, histórias da cidade de Itapeva. As que você quiser.
R – Por exemplo?
P/2 – Por exemplo: a Mãe de Fogo.
R – Ah, existia. Essa eu cheguei ver. Era um casamento que a gente estava esperando os noivos, que a moça, a noiva era de Porto Feliz e o noivo era morador de uma casa de pedra que tinha em Itapeva. A única casa de pedra que tinha lá. E a gente estava esperando-os vir do Porto pra festividade que lá, na época, fazia tudo em casa, né? De repente aquela bola apareceu, espantando ‘meio mundo’. Não tinha quem não ficasse com medo. Essa eu cheguei a ver com os meus olhos. Era uma bola enorme, que dava medo, mesmo. Dava medo. Inclusive uns falavam que era... não lembro como que falavam, outros falavam que era briga de comadre com compadre. (risos) Era um BO. A turma inventava qualquer coisa e punha nome naquilo ali. Mas era uma bola de fogo que você via que descia no chão. Era feio, não era bonito, não. Era de dar medo pra qualquer pessoa.
P/2 – E quando você viu?
R – Essa bola? O dia que eu vi com os meus olhos foi nesse mesmo casamento, que a gente estava esperando os noivos chegarem pra festa. Mas não lembro quantos anos faz, não. Já faz muito tempo. Inclusive, os noivos nem existem mais, judiação. Só tem um filho, que ainda mora em Porto, que de vez em quando ele vem com drone lá em Itapeva, faz a revisão dele lá, ‘mata a saudade’ dele, que foi nascido lá e depois foi embora pra Porto. Era ele.
P/2 – E os lobisomens da fazenda?
R – Lobisomem? Eu não cheguei a ver, mas segundo o povo diz que saía e ficava uivando, ia pros galinheiros, não dava sossego pras galinhas. Esse eu não cheguei a ver com os meus olhos. Não dava sossego pras galinhas e as pessoas que conseguiam vê-los, mandavam que fossem embora e voltassem no outro dia pra pegar um quilo de sal. No outro dia disse que ia e aí ficava sabendo quem era o lobisomem. Só que desmanchava o mistério dele, porque o lobisomem era um mistério, uma coisa que, segundo a lenda, os pais que têm sete filhos homens seguido, sem uma mulher no meio, um deles tem que batizar o último, uma coisa mais ou menos assim, porque senão vira lobisomem. E quando é mulher, sete mulheres seguidas, aí vira bruxa. Aí, pra bruxa, eu não sei se tem remédio. (risos) Mas o remédio que eu sei, que diz, que eu teria pra contar, é que tinha que batizar também. Uma irmã tinha que batizar a outra, pra não virar bruxa. Diz que pra não acontecer o bruxismo e nem o lobisomem tinha que ser assim, um tinha que batizar o outro. Se isso não acontecesse, podia esperar. Diz, segundo falam, as bruxas gostavam muito de bar, diz que entravam em bar, em venda e faziam o maior rebuliço dentro do bar e da venda onde eles entravam. Na época não era supermercado, era tudo venda, né? E diz que entravam e faziam barbaridades dentro desses lugares, pelo que conta o povo antigo, né? E a gente acredita, porque tanta coisa tem nesse mundo, nessa terra, né? Nossa!
P/2 – E teve alguma outra história, lenda marcante pra senhora?
R – Que eu lembre, de Itapeva? Tinha um paredão do lado do rio, pra baixo da ponte, uma ponte que ligava Rafard com Itapeva, com Mumbuca, com Saltinho, Santa Rita. Aquela ponte ligava esses lugares. Então do lado de baixo, mais próximo à fazenda, mesmo, tinha esse paredão, que acho que existe até hoje, mas ali ninguém entrava, ninguém conseguia entrar ali e aquele que entrasse, nunca mais saía. Segundo eles contam, contavam. Nunca mais saía. A vespa diz que era a primeira coisa que eles encontravam, aquele que tentava entrar. Então aqueles que tentavam entrar e davam com o vespeiro, já voltava pra trás, né? Não seguia em frente. Essa eu lembro. Esse lugar ainda existe lá, mas ninguém consegue entrar naquele lugar. É uma pedreira enorme, um paredão enorme, mas é só mato. Fica do lado de lá do rio. Está lá até hoje.
P/1 – Dona Dide, eu vou voltar, também, um pouquinho.
R – Hum-hum.
P/1 – Quando a senhora era criança, o pai da senhora que vinha de charrete da fazenda pra fazer compra? É isso, na verdade?
R – Quando eu era criança e meu pai trabalhava na roça, tinha uma venda... deixa eu ver: Menegão era o nome. Não sei se era o nome do lugar ou do proprietário. Era Menegão que chamava. Meu pai trabalhava até quatro e meia, que era o horário de todo mundo e depois tinha, na época, falava sapicuá, parece que é uma coisa mais ou menos assim, era um saco, um pano comprido, dobrado assim, com duas bocas, jogava assim em cima do cavalo, ficava uma boca pra lá e uma pra cá. Meu pai montava naquele cavalo e vinha nessa venda, que fica aqui por perto do... ai, meu Deus, como chama ali, pra lá do matadouro? _______. Fica pra cima daquele lugar lá. Esqueci o nome daquele sítio. Tudo sobrinhada que mora lá, mas não consigo lembrar. Mora, não, são donos. Mas eu não consigo lembrar o nome do lugar agora, ‘deu branco’. Vinha fazer compra com eles lá. Chegava em casa onze horas, dez e meia da noite pra tomar banho e descansar, jantar e levantar cedo no outro dia pra trabalhar. Era sacrificoso, viu? Aí, depois, essa cooperativa era lá em Itapeva que tinha aqui, que acho que hoje não tem mais, também. Acho, não, não tem mais.
P/1 – A que tem aqui em frente ao escritório?
R – A cooperativa era em Itapeva. Aí de Itapeva, o ‘seu’ Roberto lá, que tomava conta, fez aquela venda, que a gente chamava de venda. E a cooperativa mudou aqui, embaixo, perto do escritório, mas ela era em Itapeva.
P/1 – Ah, ela pertencia à Itapeva?
R – Pertencia à Itapeva.
P/1 – E que lembranças, mais, a senhora tem dessa charrete, desse cavalo?
R – Então, a charrete nós tivemos pouco tempo, sabe? Meu pai tinha um carrinho, uma carrocinha. Ele usava muito quando ele vinha trabalhar no São José, que daí ele trazia o carrinho. Ele não podia andar, andava pouco, já tinha se ofendido com o negócio lá no trabalho, então ele tinha que vir com o carrinho já pra poder levar capim, o que precisasse, pros animais comerem, né? O único tempo que eu lembro bem foi esse, que o meu pai punha o cavalinho dele no carrinho e vinha em São José, trabalhar no Tanque.
P/2 – Voltando um pouco, dando um salto, queria saber que outros trabalhos a senhora fez ao longo da vida.
R – Ao longo da vida eu trabalhei um pouco na costura. Meu primeiro emprego, depois de casada, com registro na carteira, foi aqui no Santander. Eu vim fazer faxina aí, mas como era pouco, uma das meninas arrumou pra mim numa fábrica de costura. A dona da fábrica era a Dona Terezinha, em Capivari. Aí eu fui trabalhar lá, mas como eu sempre fui uma pessoa que, se eu não merecesse aquilo, se aquilo eu não devesse, mesmo que eu estivesse enxergando que você que fez aquela coisa errada, eu não ia falar pra você: “Foi fulano que fez, não fui eu”. Aí fui, quando eu saí daí, pra Dona Terezinha, trabalhar lá, que eu era costureira, na época e um dia... trabalhei pouquinho, mesmo, não sei nem se chegou um mês, porque uma das meninas estava sem serviço e ela falando pra patroa dar outro serviço pra ela, ela foi pegar o meu serviço. A minha linha era azul, porque eu costurava jeans, a fábrica era de jeans e a da menina ela estava costurando outro tipo de tecido, que era branco e ela entrou com a linha dela na máquina. A filha da Dona Terezinha, que era a dona da fábrica, me deu uma bronca tão grande, porque eu tinha feito o serviço errado. Foi aquela bronca! Sabe coisa de patrão como que é, né? E eu não falei que foi a outra moça que pegou o meu serviço e levou na máquina dela. Só que quando deu a hora de almoço eles levavam nossa marmita pra esquentar na casa dela, eu peguei minha marmita, os outros que comiam em casa foram pra casa, os que estavam lá sentaram pra comer, eu peguei minha marmita, ‘punhei’ na minha mochila, vim embora e não voltei mais, porque eu não conseguia falar: “Foi fulana, sicrana que fez”. Aí não voltei mais. E depois dali eu fui trabalhar, acho, na roça, cortar cana de novo. Tinha uma perua que estava precisando de pessoas, peguei e fui cortar cana, porque eu nunca tive preguiça e serviço, pra mim, nunca fez frente, né? Eu fazia serviço de mulher e de homem também, na minha casa. Então um dia eu cheguei do serviço, trabalhei acho que uns quinze dias, só, também, uma amiga minha estava no portão, esperando que eu chegasse pra me chamar pra trabalhar na Brasilit. Aí eu fui, saí da roça e fui entrar na Brasilit. Da Brasilit, chegou uma época que estava dispensando muita gente, porque o pátio estava cheio, então nessa época eu fui também, né? O meu patrão, que era terceirizada a área que eu trabalhava, não queria mandar eu embora, que era o ‘seu’ Moacir Andrello. Devo isso ao ‘seu’ Moacir. Aí ele me chamou de lado e falou pra mim: “Eu vou dar férias pra senhora, a senhora não se importa? Não venceu, mas eu não quero mandar a senhora embora” e tinha uma outra menina também que ele gostava do serviço dela, que também ele não queria mandar embora. Ele falou: “Assim, quem sabe, nesses dias, passa esse tempo de dispensa e a senhora volta conosco, fica conosco de novo”, mas não deu certo, porque quando terminou as minhas férias eu voltei e ele foi pra dar férias pra essa outra menina, que ele também não queria perder o serviço dela, né? Que era uma boa pessoa, trabalha direito também. Só que ela estava com seis meses, não podia dar férias pra ela. Conclusão: eu entrei no meio da turma que foi mandada embora, né? Aí fiquei em casa, não lembro se eu recebi alguma coisa naquela época que, quando manda embora, tem aquele Fundo de Garantia... não é Fundo de Garantia, como chama?
P/1 – É o Fundo de Garantia.
R – Não. É que recebe dois, cinco, seis, quatro meses...
P/1 – Seguro-desemprego.
R – É, seguro-desemprego, isso. Aí recebi o seguro-desemprego, mas pensando em trabalhar em qualquer outra coisa, mas nesse espaço de tempo a Dona Antônia Petrini tinha cozinha, prestava serviço, na época, tanto na casa, como na Rigitec. Aí me chamou pra trabalhar lá. Queria, porque queria. Eu nem sabia onde era, nem conhecia a mulher, mas queria porque queria, fui. Trabalhei lá por um tempo. Depois _____ Santa Marina, na época, que hoje não é mais Santa Maria, tem outro nome, que eu não lembro, eu fiquei sabendo que o ‘seu’ Moacir, a menina que trabalhava comigo falou que o ‘seu’ Moacir ia pegar cozinheira de Santa Marina, que a Santa Marina ia começar a funcionar. Ah, mais que depressa, falei: “Então, vou pedir minha conta, faço aviso prévio, que vai dar certinho”. Eu tinha certeza - que o ‘seu’ Moacir, se não fosse ele, nunca ia pegar, porque nós ficamos sabendo que era ele, né? – ia me empregar lá. Só que foi ao contrário. Fiz o seguro... cumpri os meus trinta dias lá, com a Dona Antônia, chegou no dia de fazer a entrevista na Santa Marina, eu fui, acho que fui uma das últimas a chegar lá. A fila era enorme, acho que pegava Rafard inteiro, quase. Falei: “Não vou, não vai dar pra mim”. Inclusive foi meu sobrinho que me levou lá. Aí, um dos moços chegou lá na fila e pediu pras pessoas desculpas, agradeceu por ter tanta gente lá, falou: “A gente não esperava. Então a gente vai ficar com as pessoas que têm na carteira o serviço de cozinha, ou então aqueles que têm prática, que já trabalharam na cozinha”. Foi todo mundo embora. Só ficaram as que tinha, mesmo. E nessa eu fiquei também, né? Eu já tinha trabalhado, né? Fiquei e aí fui empregada na Santa Marina. Da Santa Marina machuquei... eu tinha uma ajudante, era bem pequenininha, um amor de pessoa, trabalhadeira, muito esperta, mas tinha uma vala, então ela ia jogar o lixo e eu falei: “Espere, deixa eu terminar”, não sei o que eu tinha no fogo, fazendo: “Espere um pouquinho, deixa eu desligar esse fogo e eu vou ali pra você”, que era uma vala muito grande pra ela atravessar com aquele tambor pesado. Escapou da mão dela, pegou o pé. Aí sim, eu ‘vi estrela’. Aquele lugar, bateu e ficou naquilo. No outro dia aquilo lá abriu, acabei sendo até internada, deu trombose, foi o maior sufoco. O médico queria cortar as minhas pernas... minha perna, uma só, na época, mas Deus foi maior e não precisou nada disso. A minha confiança em Deus é muito grande. Fiquei em casa, até que, no fim, deu alta. Fiquei dois anos tratando, fazendo tratamento. No fim o INPS chamou, deu alta, que já estava são, aí a Valdeci era nutricionista aqui na Branyl. Eu não sei como ela ficou sabendo, ela falou pra Antônia que ela me queria pra trabalhar lá com ela e eu não sabia nem onde era esse lugar. Falei: “Antônia, tem uma mulher lá embaixo” – eu estava afastada ainda, mas não tinha ido dar baixa na carteira – “que pediu pra mim quando tivesse uma vaga num desses lugares, pra falar pra ela, que ela queria ir trabalhar”. Aí falei, a mulher não foi. No outro dia a Valdeci, de novo, mandou a Tonha avisar que ela me queria lá. Falei: “Quer saber? Eu vou”. Fui lá conversar com ela. Fui no outro dia, mas eu não estava desempregada, ainda, porque a outra firma que pegou, assumiu os funcionários todos. E eu falei: “Mas eu tenho que dar baixa na minha carteira”, que eu não tinha dado baixa ainda. Ela falou pra mim: “Você vai dar baixa na carteira quando?” Eu falei: “Amanhã” “Que horas?” “Cedo”. Porque o meu genro saía do serviço, trabalhava à noite e ele que me levava pra cá e pra lá. Aí meu genro me levou, ela perguntou que horas, eu falei que era cedo, ela falou: “Então de noite a senhora vem trabalhar”. Falei: “Venho”. Aí lá o calçado nosso, que cozinha você tem que trabalhar com uma bota, mas tinha uma das funcionárias que deu em cima dela, que queria aquela botinha pequenininha, machucou meu pé e lá foi mais dois anos de novo aquele pé. Outra vez, tudo a mesma coisa de novo, um buraco, aquele buraco você enxergava o osso. Trombose de novo. Nossa, eu fiquei internada outra vez. Aí nesse espaço de tempo eu tive problema da vesícula, minha vesícula estava pra estourar, de tanta pedra. Fui no médico, que estava com dor, a médica que me atendeu falou: “Amanhã a senhora vai marcar pra fazer cirurgia, mas a senhora não vai, vai outra pessoa marcar pra senhora, porque se a senhora começar a se mexer, ela vai estourar”. Aí fui, continuei no INPS de novo. INPS na época, hoje é INSS.
P/2 – Dona Dide, você estava falando da vesícula, dos seus trabalhos na cozinha e depois queria que você falasse...
R – Que daí eu tive que fazer a cirurgia da vesícula às pressas, continuei no INSS, que na época dizia INPS. E fiquei um tempo, até que um dia o chefe mandou me chamar pra ir lá e inclusive ele até usou um termo de brincadeira. Diziam que ele era uma pessoa muito ruim, muito isso, muito aquilo, mas se eu falar mal dele, eu peco, que comigo sempre foram gente boa. Ele até brincou, mandou o guarda falar pra mim que eu tinha que levar um atestado lá, porque eu fiz coisa errada, porque não sei... inventou mil e uma coisas pra fermentar minha cabeça, né? Tá bom, vou, né? E o guardinha sabia, que era, no caso, o Totó. E eu fui. Fiquei com medo, mas fui. Fazer o quê? Eu tinha que ir, vamos lá! Cheguei lá, quando ele me escutou conversando lá fora, no INSS: “Está aí a mulher de bengala?” Ele me chamava de mulher de bengala, porque eu sempre andei com sobrinha, (risos) em todo lugar. “Dê risada, mesmo, que daqui a pouco você vai chorar”. De lá de dentro ele falou lá fora, pra mim. Eu falei: “Ah, não tem importância, daqui a pouco eu vou”. Quando chegou a minha vez de ser atendida, entrei: “Dona Carmelinda, como a senhora vai fazer isso? Falei pra senhora que era assim, assim”. Falei: “ ‘Seu’ Benito” – ele era Benedito, o nome dele é Benedito, a gente o chamava de Benito – “o senhor falou pra mim que era pra levar todos os atestados, cada vez que fosse fazer perícia, eu levei”. Ai, mas fermentou minha cabeça, pra ver se conseguia tirar a minha paz, mas ele viu que eu não estava nem aí mesmo, com nada, falou: “Parabéns, Dona Carmelinda”. Eu olhei pra ele, assim: “Parabéns por quê?” Ele falou: “A senhora está aposentada”. Aí foi que eu dei um grito, porque imagina, nunca estava esperando uma aposentadoria! Naquela época, não. E aí ele falou assim: “A senhora está aposentada”. O povo até deu risada lá atrás, lá fora, porque todo mundo escutou meu grito, quando eu falei: “Não acredito” e aí aposentei e estou aqui até hoje.
P/2 – Quantos anos a senhora tinha quando se aposentou?
R – Eu acho que já faz... se não tiver vinte anos, está por aí.
P/2 – E de lá pra cá, desde a sua aposentadoria, até hoje?
R – Bom, depois que eu me aposentei, fiquei cuidando da casa, não fui trabalhar mais fora, fiquei cuidando da minha casa, dos filhos, casando um, casando outro, os que ainda estavam pra casar. Os que não casaram estão lá comigo, até hoje e eu estou ‘tocando’ a minha vidinha. Não saio pra lugar nenhum, não fui trabalhar mais em lugar nenhum também, se bem que eu falo que eu não fui trabalhar assim, num serviço fixo, mas eu cozinhei uma ‘montanha’ de casamento. Então eles sabiam que eu estava em casa, aí um chamava, outro chamava. Na época eu não cobrava, eu fazia tudo de graça. Trabalhava o dia inteiro, dependendo do horário do casamento, às vezes eu ia pra fazer o pré-preparo num dia, numa tarde, noite, às vezes e no outro dia eu ia pra fazer os preparativos de um dia pro outro e no outro dia pra fazer. Depois eu comecei a cobrar, porque eu ia trabalhar, eu não tinha vasilhame, as pessoas falavam que tinham, mas quando chegava na hora, também o que tinha não dava. Era muito sacrificoso. Aí eu comecei a cobrar e mandar meus vasilhames. Só que depois que eu caí um tombo - isso eu trabalhei muitos anos assim, cozinhando fora, em festa – bati o quadril, por isso que eu tenho problema, dificuldade pra andar longe, eu não saio longe mais, por causa disso, que fiquei com dificuldade pra andar longe, aí eu parei e não trabalhei mais, em lugar nenhum, só em casa mesmo. E assim foi indo, até hoje.
P/2 – Teve algum casamento muito marcante pra senhora?
R – Marcante, marcante, olha, teve um casamento, mas nunca pro bem, sempre pro lado que deixa a gente triste, né? Foi um casamento que eu fiz, que foi feito nesse barracão da escola de samba ali em Capivari, como chama? Vai com Dez?
P/1 – Vai com Tudo? Vai com Dez?
R – Sei lá! Naquele barracão que foi. Meu Deus! Tudo que eu pedi na minha lista, não tinha nada. Nada. A dona do casamento levou cesta básica, sabe como é que é. Não vou falar que não ‘mata’ a fome, porque ‘mata’. Mas é o último que está lá, a pessoa não quer, então ‘vou dar pro fulano’. Foi assim. O arroz a mulher levou um de uma marca, outro de outra, outro de outra. Olha, aquele marcou! Na hora ela quis fazer Virado, tutu de feijão que eles falavam, porque eram mineiros. Aquele me marcou, viu? E se for pra eu fazer um daquele lá, nunca mais na minha vida! Nunca mais. Se eu tiver certeza que vai ser assim, nunca mais. Aquele marcou, mas marcou pra ruim. Agora os outros foram todos normais. A última festa que eu fiz foi de quinze anos, de uma sobrinha da minha nora, mas ali não faltou nada. Vixi, tinha pra dar e sobrar! (risos) Essa foi a última festa que eu fiz, última que eu cozinhei. Não que a gente, se precisar, não vá fazer. Só que já não tem mais a mesma destreza que tinha antes, porque eu não reunia ‘montanha’ de pessoas dentro da cozinha, porque quanto mais gente, pior é. Você acha que é melhor, mas não é, é pior. Então só trabalhava eu e a Antônia. Você conhece a Tonha, né?
P/1 – Hum-hum.
R – Trabalhava na escola. Nós duas. Era eu e ela. Eu pra fazer e ela de ajudante, que ela também tinha conhecimento de todas as coisas, não precisava pedir nada, porque tudo que eu ia fazer, ela já sabia, já pegava e ia fazendo. Depois dessa festa de quinze anos da menina, nunca mais. Acabou de vez, porque agora, imagina, que jeito? Deus o livre!
P/2 – E a senhora é avó?
R – De sangue eu tenho três... cinco. Mas dos que eu criei que, pra mim, foi eu que acabei de criar, é meu. Meu marido achava ruim quando eu falava que eram meus filhos, porque o meu amor é o mesmo. Meu Deus do céu! O mesmo sofrimento que eu tenho pelos meus, eu tenho por eles, porque não está junto comigo, eu não estou vendo o que está fazendo, eu não estou conseguindo livrar de um mal, de um perigo, de alguma coisa, sabe? Então deles eu tenho neto, bisneto e uma riquezinha de tataraneta. (risos)
P/2 – Ah, caramba!
R – Neto, bisneto e não pergunte quanto, que nem eu sei contar, viu? Nem eu sei contar, agora. Um monte de ‘netaiada’, bisneto. Um monte.
P/2 – E como foi se tornar avó?
R – Olha, pra mim foi a maior preciosidade da minha vida, que o meu primeiro neto nasceu no mesmo dia que eu, 25 de dezembro. Inclusive o nome dele, a mãe dele pôs Natanael. Eles estavam em casa, que era dia de Natal e ela começou a se sentir mal, aí eu tive que chamar um sobrinho - que era vizinho ali, nosso, lá de Saltinho, na época eu morava em Saltinho - no carro, pra trazê-la pro hospital, chegou lá, o menino nasceu. Está lá. Dele que eu tenho a tataraneta. A neta dele que é a minha tataraneta. Uma princesa.
P/2 – Dona Dide, quais são seus sonhos, hoje?
R – O maior sonho da minha vida é ver os meus filhos num bom caminho. Eu falo que eu quero ‘fechar os olhos’ a hora que Deus vier me buscar e deixá-los todos eles em paz, num bom caminho, sendo pessoas de bem, porque infelizmente eu já perdi um pro ‘mal caminho’. Então o meu maior sonho hoje é ter meus filhos, os filhos da gente, que são a vida da gente, né? A gente vive pra eles, por eles. Filho, neto. A gente vive por eles. Então quer dizer: o meu maior sonho é ver todos eles num bom caminho, que esse mundo oferece muita coisa ruim. Então aquele que estiver num bom caminho, não vai pender pro lado errado. Inclusive esse que está prestando serviço aqui, nesse meio período, nessa turma de meio período, eu sempre falo pra ele: “Eu não vejo a hora que Deus abre uma porta pra você ter um serviço fixo, porque eu não sei quanto tempo eu vou durar em cima dessa Terra. E aí quando eu for, com quem você vai viver?” Na minha vida essa é uma preocupação minha e o meu desejo é esse, que todos eles fiquem bem, estejam bem. Não só os meus filhos de sangue, os de coração também, todos eles. Os de coração, graças a misericórdia de Deus, estão todos bem, cada um na sua casinha, vivendo sua vidinha, de pobre, como nasceram, mas muito bem, graças a Deus!
P/1 – Dona Dide, hoje, dentro da história da senhora, vendo toda sua trajetória, desde a infância, o nascimento lá em Porto Feliz, vindo parar aqui na popular de Rafard, passando por várias lutas, qual é a mensagem de esperança, de luta que a senhora gostaria de deixar pra todas as mulheres que vierem assistir essa entrevista? Mulheres, homens, crianças, todas as pessoas que vierem… mas principalmente as mulheres de força, como a senhora. Qual a mensagem a senhora deixaria?
R – Olha, Telma, eu falo, não aconselho que siga o caminho que eu segui, no casamento, porque você viu, eu casei, meu marido tinha aquele monte de filhos, mas como eu tive certeza que eu ia dar ‘conta do recado’, eu entrei. Eu não aconselho que as moças de hoje façam o que eu fiz. Eu aconselho, Telma, que sejam honestas, que saibam enfrentar a vida, que não se iludam com qualquer coisa do mundo. É o que eu falo pra essas mulheradas de hoje, porque hoje são todas diferentes de ontem. Então o que eu falo é isso, Telma. Se elas tiverem coragem, forem honestas, elas vivem. Assim como eu sobrevivi, elas sobrevivem também. É a única coisa que eu falo, Telma, que tem tanta coisa que você pode falar e pode apanhar. (risos)
P/1 – E o que a senhora achou de estar aqui...
P/2 – Antes, posso pegar uma?
P/1 – Pode.
P/2 – Você gostaria de acrescentar alguma coisa, contar alguma história que a gente não tenha te perguntado, alguma passagem da sua vida?
R – Sim. Na história eu me lembrei lá de Itapeva, que é a colônia que a gente morava, tinha eucalipto no lado de trás da estrada da colônia que a gente morava e ali, um certo dia, não lembro se era na Sexta-feira Maior, se era no Finados, é um desses dois dias, que você ouvia lenhador fora de hora da noite, derrubando eucalipto. Escutava o barulho do machado, escutava a árvore cair, ali, atrás da nossa casa. Numa boa distância, assim. Não era uma coisa visível. Mas a primeira coisa que tinha era eucalipto, né, depois da casa e também tanta coisa que eu me lembrei, mas agora ‘fugiu da cabeça’ e da mente também. Fugiu, porque eu ainda lembro que eu não comentei isso. Fugiu, mesmo. ‘Deu branco’. (risos)
P/2 – Mas você acha que a gente conseguiu contar um pouquinho, aqui, da sua história, dos vários momentos?
R – Ah, sim, sim.
P/2 – Tudo não vai dar.
R – Não. Tudo, se eu for falar, vai aqui um mês inteiro. Nossa!
P/1 – (risos) Parte dois, parte três, parte quatro...
R – Nossa, meu Deus!
P/2 – Mas tem algo importante que ficou, que você queira registrar?
R – Olha, é que nem eu falei: se fizessem uma casa em Itapeva pra mim, eu tenho uma saudade de lá. Ai, que lugar que eu amei, meu Deus! Me criei ali e saí dali pra casar, né? E se você falasse pra mim: “Vou dar uma casa, fazer uma casa pra senhora...”, mas na fazenda, não na beirada do rio, porque eu sei que quando dá enchente, nas casas entra água, e [se] tivesse condução, como tinha um certo tempo, antes de tirarem, tinha ônibus dois horários por dia, né? E falassem: “Eu vou dar, tem ônibus duas vezes por dia, tem uma casa que eu fiz pra senhora morar, a senhora quer?” Nossa, eu ia ‘voando’! Isso aí eu gostaria. Nossa, meu Deus! Como eu gosto de Itapeva! Como eu gosto! Saltinho também, mas Itapeva foi mais, que foi onde eu me criei, né? Foi onde eu fui criada.
P/2 – E, Dona Dide, antes da Telma finalizar, queria te perguntar qual é a sua primeira lembrança da sua vida.
R – Deixa eu ver se vem alguma coisa na minha mente. Eu acho que a primeira lembrança minha foi uma surra que eu apanhei, que eu tomei da minha mãe. (risos) Porque não era pra sair de casa, era pra ficar dentro de casa. Saiu, apanha. Tinha lá uma amiguinha minha, não tinha nada demais, mas sabe como é que é: um tem um juízo, outro tem outro, então minha mãe não gostava que eu fosse lá na casa dela. E a minha mãe desceu pra pegar água lá embaixo, numa caixa e falou: “Você não vai sair daqui” e eu saí. Fui na janela, não entrei na casa. Menina, minha mãe não deu tempo de eu entrar dentro de casa, antes da minha mãe chegar. Fui na janela, falei com ela e voltei. Quando eu estava entrando, minha mãe viu. Minha mãe chegou em casa, desceu a lata da cabeça: “Onde você estava?” “Aqui, mãe” “Não, você não estava aqui, você estava na casa de fulana”, que é melhor eu não dizer o nome. Ela não está mais, mas tem família, né? Não se encontra mais nessa vida. “Você estava lá” “Não estava, mãe” “Estava”. Falei: “Quem falou pra senhora que eu estava lá, mãe? Eu não estava lá” “Não, você estava, eu sei que você estava”. Olha, falei um palavrão pra minha mãe: “Fulana...”, mas não xingando a minha mãe, xingando a pessoa que eu imaginava que tivesse falado pra minha mãe. Por que eu falei aquele palavrão? Meu Deus! Só estou aqui porque Deus sabia que eu tinha muita coisa pra fazer na vida! Minha mãe passou a mão num facão que o meu pai tinha, que ficava enfiado assim, na parede. Todo mundo enfiava na barede… teto ______. Minha mãe passou a mão naquele facão: “O que você falou?” Pá. A sorte minha que lá em Itapeva você saía daquela salinha do meio, que no caso seria o quarto dos dois meninos, dos meus irmãos, então tinha uma barrica e todo mundo tinha na casa pra armazenar água, que era difícil pra buscar, longe e todo mundo tinha uma daquela e enchia de água. Pá, o facão plantou nele. Deu tempo de eu fazer assim e o facão... foi só água pra casa. Essa é uma coisa que eu não esqueço nunca na minha vida. Mas por quê? Por desobediência minha.
P/2 – Você era pequena?
R – Ai, eu acho que eu tinha uns dez anos, será? Uns dez, doze anos, onze anos. De dez a onze, mais não tinha.
P/1 – Dona Dide... nossa, ‘deu branco’. (risos) Ah, Dona Dide, eu queria que a senhora deixasse registrado aqui duas coisas: a primeira é que esse vídeo vai ficar aí pra qualquer pessoa do mundo, do Brasil ver, inclusive seus tataranetos, seus bisnetos. Qual a mensagem de força e da vovó Dide quer deixar pros seus netos? E quanto foi, se foi bom, como foi a experiência de contar aqui a sua vida e deixar registrados pros seus herdeiros?
R – Olha, Telma, os meus netos eu só peço a Deus que os guie num bom caminho, que tenham bastante vida, saúde, paz. Isso é pros meus netos. E, no meu entender, são poucas palavras, mas a intenção é muito grande. E a outra que você perguntou?
P/1 – Como foi a experiência de contar a sua vida...
P/2 – De lembrar um pouquinho.
R – Ah, meu Deus! Se tivesse que falar mais uns dois, três dias, acho que ainda não cabia tudo. Pra mim foi ótimo! Amei vocês, né? Me deixaram à vontade, não tenho do que reclamar. Aquele índio lá atrás… amei. E vocês, também. Pra mim foi uma tarde excelente!
P/1 – Que bom, Dona Dide! Foi ótimo!
P/2 – Pra nós também! Foi um prazer te conhecer!
R – Obrigada!
P/2 – Obrigada por compartilhar um pouquinho a sua história com a gente!
R – Por nada.
P/2 – Foi muito gostoso!
R – Se for o caso de voltar, a gente volta outra vez! (risos)
P/1 – Muito obrigada, viu, Dona Dide, pela confiança!
R – Imagina!
P/1 – A senhora sabe quanto eu admiro e amo a senhora!
R – Sim. Conhecimento nosso já é de muitos anos, né, Telma? A gente sabe.
P/2 – Inspiração!
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