Programa Conte Sua História – Histórias de Consumo Consciente
Depoimento de Adriana da Silva Tubino
Entrevistada por Joyce Pais e Eliana Schineider
São Paulo, 26/09/2016
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV541_Adriana da Silva Tubino
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
P/1 – Queria que você começasse falando qual o seu nome, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Adriana da Silva Tubino e eu nasci em Porto Alegre e o que mais?
P/1 – Data de nascimento.
R – Nasci no dia 23 de outubro de 1977.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – José Milton Soares Tubino e Maria Elisabete da Silva Tubino.
P/1 – O quê que eles faziam.
R – Olha, a minha mãe, quando eu nasci, ela era professora de primeira, segunda série e aí depois, ficou uma época, professora de inglês e foi um curto período e depois, ela voltou para a faculdade para estudar Psicologia, hoje ela é psicóloga e atua como psicóloga e psicanalista. E o meu pai sempre foi administrador de empresas, assim, diferentes empresas ao longo da minha vida, assim, eu vi ele passar. Na verdade, até poucas porque era muito tempo nas mesmas empresas, mas ele é administrador de empresas.
P/1 – E qual é a origem da sua família, assim? Como eles se conheceram? Você costuma ouvir essas histórias?
R – Costumo, eu adoro histórias, eu tenho até cartas, uma caixa de cartas que o meu pai e a minha mãe trocavam entre eles, então, eu sempre fui atrás muito das histórias da família e tem uma… de origem assim, a família do meu pai veio de Genova, mas em uma época em que a Itália nem era unificada ainda, então não consegui, por exemplo, cidadania italiana, mesmo a família tendo vindo de lá. E uma família super simples, assim, meu pai nasceu no interior do Rio Grande do Sul, numa cidade que chama Quaraí, que é já fronteira com o Uruguai. Então, cresci também com, a minha avó falando metade português, metade espanhol e eu achava que ela falava errado até minha adolescência, que eu comecei a descobrir que ela falava, na verdade, era metade espanhol, né? E uma família super simples, assim, minha avó tinha uma pensão, fazia pastel, meu pai entregava os pasteis na cesta, assim, então, ele teve uma infância muito simples, no interior e aí depois, ele foi… Depois de um tempo, ele veio estudar na capital, que era Porto Alegre, né? E a minha mãe, uma família de origem portuguesa, mas bem mais distante assim, foi bem mais difícil de achar essa origem, assim, mas é uma origem portuguesa e também, um vida super simples, assim, meus avós moravam numa casinha de madeira no alto de um morro lá de Porto Alegre, minha mãe nasceu na capital, já. E eles dois se conheceram porque eles trabalharam durante um tempo no mesmo lugar, o meu pai de office-boy, que foi o começo dele nas empresas como office-boy e a minha mãe era secretária e aí então, a forma deles se comunicarem era por bilhetes, né, então por isso tem essa caixa repleta de cartas e bilhetes, porque como o meu pai estava sempre entrando e saindo, como office-boy e a minha mãe sempre parada como secretária, a forma que eles tinham de se comunicar era de deixar bilhetes na mesa dela. Então, tem inúmeros bilhetes que contam um pouco a história de amor dos dois, né? Esses bilhetes estão guardados comigo, eu sempre quis fazer alguma coisa com eles, ainda não descobri bem o que eu vou fazer, mas pelo menos guardar. Eu sempre achei que aquilo era um tesouro, né?
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho um irmão que chama Daniel da Silva Tubino, um querido. É dois anos mais velho do que eu, a gente se dá super bem, mora em Florianópolis, hoje, trabalha com comércio exterior.
P/1 – E onde você passou a sua infância? Foi em Porto Alegre, mesmo?
R – Em Porto Alegre.
P/1 – E como foi esse convívio de você com os seus pais, na sua casa, com seu irmão?
R – Super legal, assim, tenho recordações de infância preciosas, especialmente, no sitio que a gente tinha da família, que é um… A gente sempre teve essa coisa urbana de morar na cidade, apartamento, mas logo que a gente era pequeno, meu pai resolveu comprar um sitio numa cidade uma hora distante assim, de Porto Alegre e aí lá, a gente tinha aquela vida rural, super gostosa, de ter bichinhos, então tinha pato, tinha galinha, árvore frutífera, enfim, açude, barquinho, então a minha infância, basicamente, as memórias que eu tenho são os amigos do edifício brincando e a gente levando os amigos do edifício para o sitio para poder brincar lá nessas brincadeiras rurais, assim. E hoje eu reconheço o quanto foi precioso poder viver essa infância pé no chão, assim, natureza, foi muito gostoso, então tenho recordações muito boas assim, de convivência em família.
P/1 – Vocês tinham algum costume, assim, a sua família, festas ou alguma coisa que vocês gostavam de fazer?
R – A gente gostava sempre de viajar muito em família, então, se não era para o sitio, que o sitio era todo final de semana, segundo o meu pai, só na adolescência que a gente cansou do todo final de semana e começou a não querer mais ir para o sitio, que aí já muda os interesses, a gente queria ir às festinhas e tal, mas senão, a gente… Se não estava no sitio, a gente inventava alguma viagem, mesmo fosse curta assim, para algum lugar próximo, mas sempre a gente gostou de viajar, daí o meu pai pegava o carro, a gente fazia aquela farofada mesmo, literalmente, fazia mil lanchinhos e coisas e ia viajar, né? Então, acho que um costume era esse, assim, poder explorar lugares, conhecer lugares, a gente sempre gostou.
P/1 – E como era a casa da sua infância, você se lembra dela?
R – Lembro. Eu não lembro a primeira, primeira de todas, porque eu sai com um ano e meio, então essa eu tenho nada de memória, só as fotos que eu vejo que às vezes, eu me… São elas que na verdade não vem na memória, vem só a imagem que ficou guardada, mas o apartamento que a gente viveu daí, que eu vivi do um ano e meio aos treze, esse eu lembro bem, assim. Lembro bem do apartamento, bem simples. A nossa vida sempre foi muito simples, até uma fase, assim foi muito simples, aí depois, veio uma fase diferente, assim, que a gente pode se mudar para uma casa maior, grande, tal, mas até ali era um apartamento simples, eu tinha um quarto dividido com o meu irmão, o que dividia era um armário (risos), desses que para um lado era armário dele, para o outro era o meu e essa era a divisória do quarto, então eu lembro da gente ficar até tarde conversando porque era só um armário que nos separava. Então, a gente podia ficar cada um deitado na cama conversando um com o outro e sala, quarto dos meus pais, cozinha, então super simples assim, mas sempre rodeado de vizinhos, que era coisa de edifício, né, e como a gente morava desde um ano e meio, eu, até os 13 ali, a gente tinha muitos amigos, conhecia todas as famílias, então tinha uma vida em comunidade, mesmo sendo um edifício, né?
P/1 – E você comentou da sua avó, da lembrança que você tinha... Você conviveu bastante com seus avós?
R – Convivi. Com ambos, os pais do meu pai e os pais da minha mãe. Os pais do meu pai, como eles eram do interior, chegaram uma época a morar com a gente, eles vieram, na verdade, para morar no sitio porque como eles sempre foram ligados a essa vida na terra, assim, a única possibilidade de trazer eles mais para perto era se eles fossem morar no sitio, porque no apartamento, eles não viriam de jeito nenhum, né, eles precisavam botar a mão na terra, cultivar coisas, né? Então, nessa transição entre eles irem para o sítio, eles moraram um tempo com a gente, muito para a minha avó ajudar a cuidar de nós enquanto a minha mãe estava voltando para a faculdade. Então, ela estudava à noite e aí, a minha avó ficava cuidando da gente, ela que… Quando a minha mãe saía, sei lá, cinco da tarde, aí dali em diante, ela que dava janta, botava a gente pra dormir, essas coisas todas, né? Então, tem uma convivência grande, assim, com a avó e com os pais da minha mãe também, porque sempre foram da mesma cidade, então almoço de domingo na casa da vó, reúne todo mundo, meu vô era encadernador de livros, então era um universo muito encantado, também, né? E lá onde a gente almoçava era o galpão da encadernação, que era o lugar que tinha para a mesa grande e para reunir todo mundo, então tipo, prensas de livros, letras douradas, as letras douradas é uma coisa que ficou sempre na minha memória, porque ele gravava no couro, né, então tinha aquela quantidade de tipografias douradas sempre, então um universo muito lúdico, e ele encadernava livros infantis para nós, pegava livro, às vezes, da Disney de outras coisas e fazia encadernações assim, luxuosas, então era sempre uma expectativa as coisas que o vô ia nos dar, assim. E eles com uma vida ultra simples e ele era um cara culto, né, que fazia livro para os outros, então, ele lia muito os livros dos outros, né, então ele foi adquirindo essa cultura também pelos livros que ele encadernava.
P/1 – E nessa época, você chegou a comentar sobre essa convivência com os vizinhos e tudo mais, como que era o bairro e a cidade nesse momento? Que lembranças você tem nesse sentido?
R – Era uma cidade mais calma, uma cidade mais tranquila, assim, agora a gente tá aqui em São Paulo, São Paulo sempre foi mais agitado do que Porto Alegre, pelo tamanho de ambas, mas eu sinto que ambas se agitaram muito nesse tempo, né? Eu me lembro de uma infância assim, em que a gente podia com bem mais tranquilidade estar sem os pais, poder brincar na rua, eu lembro da gente poder, fora as atividades que a gente tinha, tipo, aquelas norteadoras, assim, almoço, janta, banho, tema, a gente estava na rua brincando com os amigos e os pais não estavam preocupados porque sabiam que ali naquele ambiente não ia acontecer nada nas imediações do edifício. Eu lembro até de poder atravessar a rua, ir ao mercadinho do outro lado da rua sem os meus pais também com cuidado e tal, mas não existia uma preocupação com assalto, com violência, né, mas era isso, cuidado com os carros para não ser atropelado, mas não se alguém ia nos assaltar até o mercadinho da esquina. Então, eu sinto que era uma infância bem mais livre, assim, em todos os sentidos e mais tranquila mesmo, lógico, sempre existiu tipos de violência, mas eu não me lembro de ser tão presente o medo como a gente vive hoje, né, medo, eu vejo as crianças especialmente, né, tudo é muito cuidado, é muito trancado, é muito… e isso limita bastante, né, a liberdade ou a experiência, né, de estar livre na rua.
P/1 – E na sua infância, você lembra se o tema da reciclagem, ele era abordado, se tinha uma preocupação ou conversa no sentido de que processo que ia tomar os resíduos e…?
R – Não. Não tinha. Foi muito tempo depois, assim, que eu tomei, já era adolescência que eu comecei a tomar contato com o assunto da reciclagem. Na infância, não lembro assim dos meus pais separarem lixo, no era uma coisa falada e nem… Eu acho que provavelmente nem existia coleta seletiva naquele momento e então, eles, consequentemente, não separavam o lixo. O que eu lembro assim, que não é relacionado exatamente é coleta de lixo, mas meu pai sempre teve uma preocupação grande com a origem dos alimentos, isso sim. Então, ele era aquele cara que lia os rótulos das coisas (risos), até demais assim, né? Só para nos mostrar que tinha conservante não sei o que, conservante não sei o que lá, para dizer: “Isso aqui parece que é uma coisa, mas tem muita coisa aqui que a gente não sabe a proveniência, do quê que vem”, então talvez tivesse muito mais essa coisa ligada, talvez, aos orgânicos, a consumir coisas mais saudáveis, mas a questão do lixo em si, de reciclagem não era presente na infância, eu acho que foi só na adolescência, mesmo, que eu fui começar a tomar contato.
P/1 – E você chegou a brincar ou ter algum brinquedo feito de materiais recicláveis, reaproveitados?
R – Ah, muito! Muito.
P/1 – Como é que era?
R – Na escola se incentivava muito a levar sucata, que a gente chamava no colégio. Então tá, vamos juntar sucata em casa porque a gente vai fazer coisas com sucata. Então, era rolinho do papel higiênico, tubos de coisas, né, de produtos e aí, virava muita coisa, né, virava brinquedo, mesmo, né, desde aqueles telefones sem fio com os tubinhos de rolo de papel higiênico, com os tubos de… A gente furava, experimentava fazer bonecos, experimentava fazer carrinhos com as embalagens. Então, isso eu lembro muito assim, de brincar no colégio com sucata e a sucata virar alguma coisa. Isso sempre. Isso é até legal de perguntar, porque realmente, eu não tinha reavivado ainda que desde cedo, eu tinha tido contato com transformar as coisas e transformar o lixo de alguma forma, mesmo que seja essa pitadinha, assim, já dava para ver que as coisas tinham mais função do que aparentemente parecia. Coisa do imaginário, também, né?
P/1 – Quando você era criança, você queria ser o quê quando crescesse? O quê que você pensava?
R – Olha! Sabe que eu quis ser várias coisas. Uma, teve a minha fase de professora, acho que muito pela minha mãe ser professora e gostar de brincar, de ensinar, sempre gostei, botava as bonecas todas sentadas, ensinava para as bonecas (risos). Pegava, às vezes, as vizinhas mais novinhas e ensinava também, dava aula de ballet, eu voltava do meu ballet e eu queria ensinar o que eu tinha aprendido daí ensinava para as outras crianças. Então, essa coisa do ensinar para mim, acho que de alguma forma, ainda segue presente hoje, mas acabei não seguindo o caminho de ser professora. Professora é um [exemplo] bem claro assim, que eu lembro. Acho até que secretária também teve uma época em que eu adorava, porque era muito cheio de papeis e tinha carimbos e tinha coisas interessantes em cima da mesa, gostava também. Veterinária, eu tive um momento que eu também… Amo bichos, eu sou super... Tenho uma relação muito forte com bichos, mas acabei que não segui nenhuma dessas que era o desejo infantil (risos).
P/1 – E qual que era a sua brincadeira favorita, assim, quando você era criança? O quê que você mais gostava de fazer?
R – Correr. Eu gostava de coisas de ação, assim, gostava de correr, gostava de… E coisas lúdicas: “Imagina que isso e aquilo…”, essas brincadeiras de imaginar e de ação, assim, de isso ser vivido no corpo, assim, de não ser só mental, mas corre para lá e faz isso e daí, representar os personagens, isso eu sempre gostei muito, acho que eram as minhas brincadeiras preferidas, assim, imaginar coisas e viver aquelas coisas de alguma forma com o corpo, assim, eu nunca fui só muito mental, assim, sempre fui de querer vivenciar, passar pelo corpo um pouco as experiências.
P/1 – Qual a primeira lembrança que você tem da escola?
R – Primeira lembrança da escola? Eu acho que era a minha professora do jardim de infância, eu lembro que eu adorava ela, assim, achava ela… Não sei, depois eu me dei conta que a gente só convivia com a mãe, e depois, quando tu vê, tem uma pessoa que é quase como se fosse uma mãe, porque ela vai ficar o dia inteiro contigo, né, e aí, se tu gosta, é quase uma transferência de afeto muito forte assim, como se fosse uma segunda mãe, né? A imagem que eu tenho é essa salinha pequena com essa pessoa na frente que eu gostava muito, assim.
P/1 – E como você ia para a escola? Se deslocava para a escola?
R – Isso é legal, a gente morava na zona sul e os nossos pais quiseram nos colocar numa escola que era do outro lado da cidade, porque eles achavam que era melhor e então, era quase uma mini viagem ir para a escola. Então, a gente ia dormindo no carro, eu e o meu irmão, a gente acordava só para se arrumar, tomar café, “pum”, capotava de novo no carro até chegar lá e então, era sempre essa lembrança de ir dormindo e acordar assim, quando chegava na escola.
P/1 – E além desses momentos que você comentou da sucata e desse trabalho de recreação, o tema da sustentabilidade e tudo que envolve esse tema era tratado de alguma forma dentro da sala de aula, em alguns momentos? Você se lembra disso?
R – Eu acho que eu me lembro do momento que apareceu a Ecologia era o tema, né? Sustentabilidade eu acho que veio depois essa palavra. Mas Ecologia sim, a coisa de cuidar da natureza, de entender o quê que… Eu me lembro de estar muito ligado já a um pouco da escassez, tipo, entender que tinha que cuidar das coisas, porque as coisas acabavam na natureza, elas não eram infinitas. Então, pra mim, acho que essa primeira lembrança que eu tenho assim da ecologia era cuidar porque se a gente não cuidar, vai acabar. E aí, lembro-me disso vir no colégio assim, mas pouco, não tenho, assim, tantas lembranças, eu acredito que hoje, esses temas sejam mais presentes pela realidade, assim, que a gente vem vivendo de ver isso acontecer, naquela época, acho que eram ainda projeções, de um dia talvez, pode faltar água, um dia talvez algumas coisas vão acontecer na natureza. Então, era muito mais um imaginário do que uma realidade, mas lembro, lembro das aulas de Biologia, de Ciências, falar em Ecologia.
P/1 – E como que foi essa fase da sua escolha de que graduação você ia fazer, esse processo assim, da saída da escola para ter que escolher uma profissão?
R – Foi difícil... Foi difícil. Até hoje, eu acho um pouco cruel essa etapa, porque a gente não experimentou coisas para poder decidir, né? O colégio, digamos assim, a escola não é um preparativo, preparatório para ti poder escolher uma profissão de fato, experimenta tipos de conteúdo, mas o que vão vir a serem as profissões mesmo é outra coisa, o que faz no dia a dia, não tem um momento, assim, sei lá, no último ano que tu pode tomar contato com o dia a dia de todas as profissões e aí, tu poder ter a oportunidade de te enxergar fazendo alguma coisa ou não. Então, isso eu sempre achei muito difícil, mas como eu sempre fui muito curiosa, assim, falante, sempre tive muitos amigos, eu saía perguntando, eu me lembro de que eu saía a perguntar assim, para as pessoas, para os mais velhos que já estavam na universidade, o meu irmão como é dois anos mais velho, ele já estava, por exemplo, então eu saía perguntando: “O quê que faz isso, o quê que estuda nisso?”, até entender com o quê que eu me identificava, né? Mas por exemplo, o primeiro vestibular eu fiz para coisas completamente diferentes, né, eu fiz para Comunicação, que foi o que eu acabei entrando e cursando, eu fiz para Engenharia de Alimentos que era um curso novo naquela época, porque eu achei curioso e aí, eu resolvi: “Vou fazer, vou ver também”, e Psicologia que eu cheguei também a entrar em psicologia e aí, depois vi que era Comunicação mesmo que eu queria fazer. Adoro Psicologia até hoje, assim, e acho super útil, se eu tivesse tido folego eu acho que eu teria feito, também, porque acho que usaria bastante, mas acabei seguindo a Comunicação.
P/1 – Quais foram os momentos mais marcantes, assim, da sua vida nesse período?
R – Da faculdade?
P/1 – É, ou da faculdade ou também desse momento de transição do colegial…
R – Eu acho que é a adolescência, um pouco... Me remete muito a um período de adolescência, eu sempre fui muito decidida eu acho, assim, e livre no sentido de… Meus pais eram uma referência, mas eles não eram nunca a minha única referência assim, eu sempre observava muito outros pais de amigos, que eu achava interessante, que tinham vidas completamente diferente dos meus e profissões diferentes, eu observava muito esses amigos mais velhos, os irmãos dos amigos, então eu sempre fui muito observadora assim, dessas realidades e eu acho que eu nunca tive muito medo de experimentar. Então, desde cedo, assim, eu sempre… Hoje, eu escuto as histórias também muito pela visão dos meus pais, que cada vez a gente conversa mais sobre como eles viram também os meus processos, mas é isso, eu sinto que sempre fui muito livre para decidir, experimentar, fazer. Nunca tive muito medo, assim, sempre achei que a vida era assim mesmo, a gente tinha que experimentar. E eles deixaram e hoje eu vejo que eles foram preciosos, assim, nesse sentido de dar esse espaço para experimentar, e eu vejo hoje, comparando com o meu irmão, que ele não teve tanto essa necessidade de experimentar tanto quanto eu, ele já sempre já decidia mais rapidamente o que era e seguia naquele caminho e era aquilo mesmo e tudo bem, e eu meio que saltitante, assim, experimentando muita coisa diferente para ver se eu gostava. Então, essa lembrança é forte, das experimentações, experimentar muita coisa.
P/1 – E como você começou a trabalhar? Como foi o seu primeiro trabalho?
R – Meu primeiro trabalho foi logo no primeiro semestre da faculdade, um estágio como redatora numa agência de propaganda. E como eu estudei Comunicação com ênfase em Publicidade e Propaganda, o caminho, digamos, natural seria trabalhar em agência de propaganda. Então, daí, o meu primeiro estágio foi buscar numa agência e aí também, não sabia… Sempre escrevi naturalmente, então era uma coisa que eu sabia que eu fazia com facilidade. Aí como eu vi na faculdade que existia esse lugar de redator, eu disse: “Ah, pode ser um começo, né?”, aí fui procurar estágio de redatora e aí, nessa agência mesmo, eu fiquei já uns cinco, seis anos e passei por todos os… Eu digo que foi o meu grande estágio, porque daí, eu passei por todos os lugares ali, eu fiz… Fui redatora, depois, fiz direção de arte, depois eu fiz direção de criação, depois eu fiz atendimento aos clientes, descobri no atendimento, uma coisa que eu adorava, porque aí, eu saía de estar sozinha, trabalhando no meu computador para ouvir as pessoas, que é uma coisa que eu gosto muito, de pessoas. Eu acho que eu fiz Comunicação, hoje eu me dou conta, para me comunicar com as pessoas, porque eu adoro pessoas. E aí, quando eu pude sair da sala fechada e ir para o mundo falar com essas pessoas e trazer de volta o que elas queriam para daí, sim, sentar e criar, eu disse: “Ah, disso eu entendo, isso eu gosto, assim”, sei entender as pessoas e trazer de volta, e comecei a perceber o quanto nesse trânsito se perdia muita coisa. Às vezes, chegava para mim, como criadora, coisas que não era o que a pessoa tinha pedido, e aí, quando eu tinha oportunidade de poder ouvir o que a pessoa tinha pedido, era muito mais fácil para eu desenvolver uma criação. Então, ali nessa agência foi uma grande escola.
P/1 – E onde você trabalha atualmente?
R – Atualmente foi… dessa agência para cá teve um longo percurso, eu trabalhei daí, depois em algumas agências, aí eu vi que agência não era muito o meu chão, porque começou a ficar um… Era um pique muito acelerado e eu achava que eu já não conseguia fazer as coisas direito, era essa sensação que eu tinha, que no fundo, era profundar as coisas, não tinha espaço para aprofundar nada, né? E o que eu queria era aprofundar as coisas. Aí, eu fui fazer uma experimentação trabalhando com produtoras de vídeo, aí eu fiz direção de arte de cena, eu fiz assistência de direção também por alguns anos, alguns curtas, alguns trabalhos para propaganda também... E aí acabou que, também, era propaganda mesmo de novo, eu disse: “Putz, de novo eu o na propaganda, não é o que eu quero, esse espaço aqui para mim é vazio, a minha criação se esvai, não é aí que eu quero estar”. Aí, foi o meu primeiro momento de empreender, aí eu criei com mais um amigo que também estava nessa mesma insatisfação dele, ele conhecia mais dois amigos também, todos estavam querendo a mesma coisa, a gente criou um estúdio de design gráfico e web quando era o começo da internet e chamava Box3. A ideia era ser, tipo assim, nosso projeto de felicidade, já que a gente estava muito insatisfeito com o mercado em que nós estávamos trabalhando. A gente ia criar um estúdio do nosso jeito. Aí, a gente alugou uma casa, a gente tinha cachorro, a gente tinha churrasqueira, jardim, a gente ia trabalhar de chinelo (risos), porque era a nossa casa, então a gente podia fazer do jeito que a gente queria. Aí começou nós três, aliás, eram quatro no começo, numa salinha, aí da salinha a gente foi aumentando, a gente dividia essa casa com outros escritórios que era a maioria de arquitetos e aí foi aumentando, aumentando, até que a casa virou só nossa e quando a gente viu, a gente tinha vinte e cinco funcionários já e estava rolando super bem. A gente já não tirava mais dinheiro do bolso, a empresa já se pagava, a gente ganhava um salário legal e a gente começou a ser reconhecido no mercado, começaram a aparecer empresas querendo comprar a gente e tal, dai a gente disse: “Opa, tá dando certo essa historia”. Só que à medida que ia dando certo, eu sentia que a gente ia se afastando do nosso objetivo lá inicial, da alma do negócio, né? A gente já não ia mais trabalhar de chinelo (risos), a gente já trabalhava que nem uns loucos, a gente trabalhava virando noite, final de semana… Quando eu comecei a ver que o que eu não gostava nas agências, estava começando a se repetir de novo no lugar que a gente tinha criado e que a gente queria fazer diferente, aí eu comecei a perceber que não era o lugar e nem as pessoas. Era uma forma de trabalhar que eu não acreditava mais. E eu mesma não estava conseguindo mais romper com aquilo mesmo no trabalho que eu tinha inventado – entre aspas – com esses amigos. Então, eu via que era eu que estava insatisfeita de novo, não eles, eles estavam super bem, querendo mais, mais, mais daquilo. E aí, foi o momento que surgiu o meu projeto atual, nesse momento, eu já tinha visto que o que mais me incomodava na propaganda era gastar todo o meu esforço criativo para vender coisas que eu não acreditava ou que na verdade, eu nem conhecia bem, eu não tinha esse tempo de saber que aquilo fazia bem para as pessoas, não fazia bem, se era saudável, se aquilo era verdade, tudo que eles prometiam era verdade, comecei a ver que eu estava ajudando a vender coisas que eu não acreditava e eu não sabia o quê que elas eram exatamente. E aí, essa insatisfação começou a me vir uma vontade de ter uma causa, de ter um propósito, de achar alguma coisa que tivesse mais alma, mesmo. Então, se eu fosse colocar toda a minha energia em alguma coisa de novo, seria alguma coisa que eu acreditasse. E aí, o tema da sustentabilidade apareceu, eu comecei a… A minha vida já respirava isso, então eu ia trabalhar de bicicleta, eu ia à feirinha orgânica comprar os meus alimentos, eu já era vegetariana há alguns anos, eu tinha meus amigos que acreditavam muito nesse life style de vida saudável, a gente pode fazer diferente, né? Eu já separava o meu lixo, eu já tinha toda uma preocupação com o meu microcosmo, com um mundo mais sustentável, e quando eu ia para o trabalho era uma outra coisa. Daí, eu disse: “não, a minha vida agora tem que começar a ser toda uma coisa só, ela tem que conversar, eu tenho que sair de casa e ir trabalhar numa coisa que seja uma extensão disso, né?”. E aí, nisso, eu conheci a Iti que é uma amigona minha e que virou minha sócia nesse novo projeto, ela vinha da Moda, também quis romper com esse caminho tradicional da Moda de trabalhar enfim com fast fashion, moda de passarela, essas coisas e ela foi trabalhar também com reinvenção, então a ideia dela era trabalhar com o guarda-roupa das pessoas para que as pessoas percebessem que elas já têm muita coisa, não precisassem comprar mais e sim, aproveitar mais o que elas já têm, então, ela recriava as peças das pessoas novas para que elas reutilizassem aquilo que elas não estavam usando e quando eu conheci o trabalho dela, disse: “Isso é muito legal, isso que ela faz eu acredito, eu acho bonito, tem a ver com o que eu sinto que a vida pode ser, que a gente pode olhar as coisas por outro ângulo mesmo”, e aí, eu lembrei que muito louco, eu tinha um projeto guardado, literalmente, na gaveta que era de fazer uma bolsa de viagem que eu queria ter para mim e eu não encontrava, que era uma bolsa que não fosse nem uma mala de viagem e nem uma mochila, era uma… Que eu via fora do Brasil, que era uma weekend bag, uma bolsa só para viagem de final de semana, que ela servia como bagagem de mão e tal. E aí eu disse para ela: “Iti, eu tenho um projeto guardado na gaveta. Eu tenho uma vontade de fazer essa bolsa e olhando para o teu trabalho, eu fico pensando que a gente podia fazer essa bolsa de um jeito completamente diferente do que uma forma tradicional, a gente podia inventar um jeito de fazer essa bolsa”, e ela disse: “É, de um jeito sustentável?”, eu disse: “É, de um jeito completamente sustentável. Vamos?”, “Vamos”, e aí, a gente… Isso era num final de semana, na segunda-feira seguinte, a gente já começou a se reunir, a gente se reunia paralelo ao trabalho dela e eu o meu, toda segunda-feira, durante dois anos a gente fez isso concebendo esse projeto novo que a gente ia vir a trabalhar juntas que chamava Vuelo, e hoje chama Revoada que era de criar produtos a partir de resíduos. Então, a gente viu que o que nos unia muito nessa questão da sustentabilidade era nossa preocupação com o lixo. A gente achava que gerava muito lixo e que o lixo, quando a gente olhava, parecia que ainda tinha alguma coisa ali viva, ainda, pulsante como matéria-prima. Então, a gente começou a estudar o resíduo mesmo e achar no resíduo quais seriam as nossas matérias-primas para esse novo projeto. Então aí é que começou o projeto novo que é o que eu estou hoje.
P/1 – E você acha que nessa sua trajetória, você presenciou mudanças e inovações no tratamento dos resíduos durante esse tempo lá atrás até hoje em dia?
R – Muito, especialmente em Porto Alegre, né, que é a cidade onde o projeto acontece. Porto Alegre, a gente tem essa sorte de estar numa cidade onde ela é exemplo para o Brasil inteiro de como ter uma coleta seletiva profissional que acontece de verdade. Então hoje, a gente tem lá uma coleta… No começo, eu lembro que era uma vez por semana, passava uma coleta seletiva, era quase… Eu brinco que era quase como se tivesse que correr atrás do caminhão da coleta seletiva para entregar o teu lixo, tinha que ter um certo esforço de quem se preocupava em fazer a coleta seletiva. Hoje eu vejo, são todos os dias em todos os bairros, em todas as ruas, passa a coleta seletiva, então não tem desculpa para a gente não separar o lixo, que ele é recolhido facilmente. Ela passa na porta da sua casa, só colocar nas lixeiras corretas, ele vai passar e vai recolher. Eu acho que as unidades de triagem também existiam muito poucas e ao longo do nosso processo, hoje já tem dezoito unidades de triagem lá em Porto Alegre super organizadas, tem uma ONG que chama Mãos Verdes que cuida dessas unidades de triagem. Então, tipo, a gente foi começando a ver que isso estava se organizando, se profissionalizando. Então, eu noto que realmente teve uma evolução muito grande já, especialmente, eu posso falar muito mais de Porto Alegre, que é onde eu convivo com essa realidade diariamente e também, faz parte da minha cadeia produtiva. Hoje, os nossos grandes fornecedores de matéria-prima são as unidades de triagem de lixo e as borracharias e os fabricantes de câmara de pneu, que a gente utiliza como matéria-prima, o nylon de guarda-chuva que vai para o lixo seco, então a gente vai atrás das coletas de lixo para fazer a compra desse nylon e da câmara de pneu porque a gente pega das câmaras que foram descartadas nas borracharias ou as que não passam no controle de qualidade das fábricas. Então, é uma convivência constante, porque eles são os nossos fornecedores de matéria-prima, então fazem parte da nossa equipe de produção, conhecem o nosso trabalho, fazem o que a gente faz. A gente faz questão de ter uma convivência muito próxima de todas essas pessoas que participam dessa cadeia de reciclagem.
P/1 – Você comentou um pouco assim, das motivações que resultaram na criação do Revoada. Eu queria que você comentasse também porque a escolha das câmaras, como é que foi assim, esse recorte que vocês fizeram dentre tantas opções?
R – A gente… O caminho mais fácil para a gente seria com certeza trabalhar com couro, que é o [material] que a maioria das bolsas e acessórios são feitos, especialmente, a gente estando em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, tendo um polo coureiro calçadista ali ao lado, né? Então, era esse o caminho mais fácil, mas a gente não queria esse caminho, primeiro, por achar que não precisava ser couro, que a exploração do couro já é muito grande, né, e a gente… Não faria nenhum sentido a gente fazer o caminho que já está se trilhando há muito tempo. Então, a gente foi buscar no resíduo, e quando a gente olhou no lixo, a gente buscava algo que se assemelhasse ao couro em termos de resistência, flexibilidade, acabamento, possibilidade de costurar, e aí quando a gente viu uma câmara de pneu, aquela coisa emborrachada, aquele aspecto assim, a primeira coisa que a gente olhou… Pra nós, quem olha com olhos… É maluco, né, mas quem tem olhos de criação, assim, olho de design para alguma coisa consegue olhar para uma coisa e enxergar outra. Então, a gente olhou aquilo e achava futurista (risos), a gente olhava aquele aspecto emborrachado, preto, assim, liso e dizia: “Nossa, isso pode ser uma coisa tão futurista”, a gente começou a cortar, ver, e a câmara se apresentou primeiro como um material em potencial pela aparência, foi a primeira coisa, resistência, maleabilidade, né, era impermeável, ainda por cima, tinha uma vantagem em relação ao couro. E o nylon de guarda-chuvas foi quando a gente foi buscar um forro, quando a gente viu que a câmara ia funcionar para o lado externo, a gente precisava de um tecido para o forro e aí, a gente viu que o nylon de guarda-chuva, o que quebrava mesmo nos guarda-chuvas era a ferragem, que estragava, não abria mais, não fechava, mas o tecido estava sempre intacto e os tecidos eram lindos, né, florais, xadrezes, azuis, amarelos e era uma gama de tecidos assim, incríveis. Então, a escolha em primeiro lugar foi ver o potencial desses materiais para o que a gente precisava. E quando a gente foi estudar um pouquinho mais sobre eles, a gente viu que ambos demoram, em média, mais de quinhentos anos para se decompor no ambiente, que é para onde eles iam, para o aterro. Então, a gente reafirmou essa escolha, realmente, se a gente vai estar tirando um passivo desse tamanho do meio ambiente, que é prolongar a vida útil de uma coisa que ia ficar lá mais de quinhentos anos se decompondo no lugar errado, no meio da natureza, é com eles que a gente vai trabalhar. Então, a escolha veio daí.
P/1 – Você pode contar um pouco melhor como que é esse processo de coleta das câmaras?
R – Posso. O processo começou muito intuitivo, assim, a gente não sabia, a gente foi fazendo e depois, a gente foi olhar para ver o quê que a gente tinha feito. Então, primeiro, como os dois materiais eram esses, câmara de pneus e nylon de guarda-chuvas, a gente tinha que entender de onde eles vinham. Então, a gente foi começar a olhar para onde o guarda-chuva ia, e ia para o lixo seco. Aí, começou a ver se ele tinha algum tipo de reciclabilidade, não tinha porque isso é muito legal de saber, nem tudo que é reciclável é reciclado. Só é reciclado aquilo que tem alguém que recicle ou alguém que compre, que tenha um mercado. Então, nem tudo que tem o potencial de ser reciclado é reciclado hoje. Eu diria que a maioria não é, 3% do que é gerado é reciclado. Então, essa é uma ideia errônea que a gente tem, olha um símbolo de reciclável e diz: “Que legal! Isso aqui vai ser reciclado”, não necessariamente, ele pode ser, mas não necessariamente vai ser. Então, a gente começou a ir atrás das unidades de triagem de lixo para entender qual era o ciclo desse guarda-chuva e viu que como ele não tinha compra de nenhum reciclador, ele ia direto para o aterro, ninguém… Ele, simplesmente, era separado entre as coisas que iam para o aterro. Naquele momento ali, o que tinha valor de reciclabilidade era PET, vidro e algumas outras poucas coisas, metais, alguns tipos de metais. O resto, aterro de novo, né? E aí, a gente: “Puxa, esse guarda-chuva vai para o aterro”. Então combinamos com as unidades de triagem que a gente, quinzenalmente, iria passar sempre, começou com duas, depois foi para três, depois foi para quatro, à medida que a nossa produção foi crescendo que a gente ia passar quinzenalmente comprando. Combinou um valor, então o valor que eles recebiam por quilo de PET, a gente resolveu pagar a unidade do guarda-chuva. Então… Porque para nós era super viável e a gente achou um absurdo o preço que eles ganhavam por quilo, era centavos e a gente pensou: “Nossa, a gente nunca compraria um tecido por centavos, né, a gente compraria por muito mais. Então, vamos pagar mais porque para nós vai ser ‘ok’ e para eles vai ser muito melhor”. Então, a gente combinou um preço super justo e nisso a gente teve a aderência deles também, foi um trabalho muito de confiança, também porque eles… Quando chegam duas meninas lá dizendo que vão passar quinzenalmente para comprar guarda-chuva porque vai ser a nossa matéria-prima, para eles é muito estranho, então, até a gente realmente passar muitas vezes, de quinze em quinze dias, e eles acreditarem que isso era real, no inicio foi uma relação de conquistar essa confiança, mesmo. Então, essa é a relação para conseguir o nylon de guarda-chuva com as unidades de triagem. Depois tem a câmara de pneu que a gente começou a ver que elas iam parar nas borracharias, quando os carros trocam ou caminhões trocam a câmara depois que ela fura, a câmara é o que tá dentro do pneu, mas normalmente, fura o pneu e muitas vezes, fura a câmara também. Hoje, até a maioria dos carros já vem sem câmara dentro, ela é usada mais para conserto mesmo. E aí, depois que ela é descartada, ela não tinha uso nenhum, ela era simplesmente um lixo que ficava sendo depositado em pilhas, literalmente, ora da borracharia, porque eles não tinham onde colocar, então ficava a céu aberto, pegando chuva, sujeira, acaba sendo, assim, um foco de bichos, possivelmente, dengue, tal do que qualquer outra coisa. E a gente via que eles não tinham, para onde levar, não sabiam o que fazer e se levavam, com certeza, era para um aterro, ou ficava ali naquela natureza deles, ali, naquele pátio se decompondo. Então, no momento em que a gente aparece querendo comprar deles uma coisa que era lixo, sem nenhum valor, pelo contrário, eles queriam se livrar daquele lixo, também foi uma coisa super estranha, tipo: “O quê que vocês querem pagar por isso?”; “Sim, a gente quer pagar por isso porque a gente quer passar quinzenalmente aqui e ter certeza que tu separa pra gente, daí tu separa, já tira dali, dá uma secadinha se der para a gente não levar também super sujo, embarrado e tal, e a gente paga por isso”; “Beleza, então tá, a gente topa”. Então assim, a gente fez a cadeia dos borracheiros. E com o tempo, à medida que foi crescendo a nossa produção, a gente foi ampliando as unidades de triagem e foi, também, fazendo parceria com os fabricantes de câmara de pneu para utilizar as câmaras que não passam no controle de qualidade. Então, esse é só o comecinho, é a nossa captação de matéria-prima, é o que qualquer um faria ligando para um fornecedor falando: “Me manda tantos metros de tecido, me manda tantos metros disso…”, é o nosso preparo de coleta de matéria-prima e é onde a gente já está tendo o maior impacto ambiental e social do projeto. Aí, depois, a gente encaminha para uma lavagem que é uma lavagem industrial com tratamento de água, captação de água da chuva, eles têm vários selos ecológicos para operar. Então, aí esse material é lavado, depois de lavado é que ele vai para o ateliê de produção e, aí sim, é cortado como se fossem tecidos mesmo, com os moldes. É bem mais difícil porque uma câmara é redonda, tem uma área super pequena, mas a gente foi descobrindo, com o tempo, as melhores formas de cortar. Então daí, é um trabalho muito manual, de corte, costura, como se fosse um couro mesmo, sempre estão envolvidas diversas costureiras e dali, sim, que saem os produtos prontos e aí, os produtos todos quando ficam prontos, saem com uma etiqueta contando como eles foram feitos para que não se perca essa história e para que as pessoas saibam que ele não pode voltar a ser lixo facilmente de novo, porque foi de lá que ele veio. Então, quando elas forem se desfazer dos produtos, que elas entrem em contato com a gente para que a gente recolha e dê a destinação correta. E aí, essa destinação é o coprocessamento final mesmo, que aí, vai virar asfalto. Então, esse ciclo começa no asfalto com os caminhões rodando e furando pneu e indo para a borracharia e termina no asfalto de novo quando coprocessa os materiais. A gente, quando olhou para essa história, a gente viu que era um ciclo redondo, não uma produção linear, e a gente estava fazendo um processo de economia circular, só que a gente só foi descobrir isso quando a gente viu que tinham pessoas nos citando como case de economia circular em palestras e tal, e as pessoas começaram: “Sabia que eu uso o caso de vocês para apresentar exemplos de economia circular?”, e a gente: “Nossa, a gente é economia circular”, então o nosso processo sempre foi muito intuitivo, mesmo, mas hoje, a gente entende ele muito mais e acho que hoje, a gente consegue registrar mais essa história também, porque a gente vê que a gente tá causando uma mudança não só ambiental, mas sobretudo, cultural, a gente tá fazendo as coisas de uma outra forma, então hoje a gente tem essa preocupação maior em registrar isso, passar adiante para as universidades que nos procuram querendo fazer trabalhos de faculdade, enfim, levar adiante o que a gente vem fazendo.
P/1 – E como que vocês comercializam os produtos? Como que é essa etapa, assim?
R – Também vai passando por transformações, né? A gente está no terceiro ano de projeto, é um projeto novo ainda, para uma empresa, três anos é o comecinho. Eu diria que depois dos cinco anos que a gente começa a aprender a caminhar, de fato, a gente está tateando, ainda, mas no primeiro ano, a gente fez a venda dos produtos direto no nosso site, venda por e-commerce para o Brasil inteiro, foi bem interessante, foi uma experiência legal assim, de poder ver os nossos produtos chegarem no Brasil nesse formato. Ao mesmo tempo, também, foi uma experiência difícil da gente ver que para alimentar uma venda do e-commerce, tu precisa de muito investimento, lá no estúdio que eu tinha antes, que eu tive essa experiência, uma frase que a gente brincava muito era: “não adianta tu fazer uma festa sem convidar ninguém”, então, ter um site de venda é isso, tu pode ter o site, é lindo, maravilhoso, o produto é ótimo, e as pessoas sabem. A gente viu que esse processo de levar as pessoas para comprar era bastante árduo, tinha que ter bastante investimento. Então foi um ano bacana, de muitos aprendizados com essa venda direta. Depois, apareceram as lojas vendendo no Brasil, em vários lugares diferentes, isso sempre foi muito interessante assim, muita gente acha que a gente é de São Paulo, porque a gente sempre esteve muito presente em São Paulo, no Rio e no nordeste. Claro que no sul também, por a gente ser de lá, mas a gente, facilmente, se espalhou e eu acho que isso tem muito a ver com a inovação do projeto mesmo, quando ele apareceu, as pessoas ficaram realmente curiosas para conhecer e para experimentar os produtos, ver como eles eram de fato, porque isso também é uma peculiaridade de e-commerce, né? Tu não experimentas o produto, ainda mais como é feito de uma forma tão diferente, como são os nossos produtos, mas as pessoas tinham essa curiosidade. Então, a troca de e-mails antes da compra era enorme: “Tem cheiro de borracha?”; “É pesado?”; “é assim, é assado?”, então tinha que contar muito ainda para as pessoas se aproximarem do que era o produto e comprarem. Aí então, o segundo ano já foi e-commerce e mais lojas e aí, aconteceu uma coisa bem diferente que as empresas começaram a nos procurar para querer comprar os nossos produtos em maior quantidade, então, por exemplo, a gente tem uma cadernetinha que é tipo um caderninho de moleskine, aí apareceu uma empresa querendo comprar cento e cinquenta para dar de presente para os seus funcionários. Aí depois outra empresa que queria comprar capas de notebook também para dar de presente para pessoas e nisso, essas compras maiores, que daí não eram um a um mesmo, uma capa para cá, manda uma mochila para lá, manda um bolsa para cá, começou a ser compras em blocos maiores e isso fez com que a gente visse que o impacto que a gente gerava era muito maior nessa hora, porque às vezes, uma produção que a gente levava o mês inteiro para produzir e para ser consumida, a gente gerava para um cliente em duas semanas, produzia, entregava e tinha dado conta de reciclar muito mais câmaras, muito mais guarda-chuvas. Então, aos poucos, a gente começou a incentivar também esse mercado da compra pelas empresas porque a gente viu que era super saudável a gente ser uma alternativa de presente sustentável também, já que tinha aquele boom também de coisas vindas da China, muito baratas e muito descartáveis, a gente viu que também tinha muita gente querendo outras opções e não tinha. Então, a gente começou a aparecer com outra opção também, de um presente que sobretudo, tinha história, isso foi o que as pessoas nos falavam, né: “É bonito, é diferente e tem design e tem uma história por trás”, e aí, a gente… Quanto mais as pessoas nos davam esse retorno, mais a gente aprendeu a valorizar essa história e a contar essa história para que essa história chegasse a qualquer pessoa, então essa nossa preocupação foi sempre muito forte assim, independente de que público a gente vá vender ou em qualquer ponto de venda diferente, vai para uma empresa, vai para uma loja ou vai ser no e-commerce, tem que chegar do mesmo jeito, tem que chegar com a história do que foi produzido e com esse comprometimento da logística reversa que a gente construiu. Essa venda para as empresas começou a ser uma coisa muito interessante e é hoje, eu diria, o nosso principal canal de venda, onde a gente mais trabalha e tem sido o nosso maior número de impacto positivo, também. No ano passado, a gente teve a nossa maior venda, que foi muito legal, para um cliente aqui de São Paulo, que é a Fedex, das entregas internacionais, onde eles nos encomendaram 16.600 produtos. Então foi um momento ápice da nossa história, onde a gente pode empregar pessoas para poder fazer a produção no tempo necessário, a gente pode reciclar três toneladas de câmaras de pneu, três mil e trezentos nylons de guarda-chuvas, foi um história linda, assim, o projeto passou por mais de cem pessoas assim, e a gente pode com muito orgulho contar essa historia para a Fedex também, dizer: “A oportunidade que vocês nos deram foi de gerar isso de impacto positivo”, então hoje as empresas enxergam que é uma parceria, mesmo que a gente faz quando elas encomendam produtos nossos. Não é só o produto que elas levam, mas elas levam todo essa impacto positivo que elas nos oportunizaram gerar, né?
P/1 – Além de todas essas histórias que você já me contou, tem alguma história marcante, assim, que tenha um significado especial para você do seu envolvimento nessa cadeia?
R – Tem muitas histórias marcantes (risos).
P/1 – Quer me contar alguma?
R – Eu acho que até me emociono só de pensar. Porque conviver com essas pessoas (choro) que catam o nosso lixo todos os dias, uma coisa que a gente não quer nem olhar, né? A gente pega o nosso lixo, joga no lixo e aquilo teve um fim para nós, vai embora, sai dos nossos olhos, e quando a gente chega todo dia num barracão de unidade de triagem de lixo e vê aquelas pessoas maravilhosas catando o nosso lixo, cantando, rindo, brincando no meio de uma coisa que é suja, que tem um cheiro… É difícil de estar dentro de um barracão de reciclagem, o cheiro é muito forte de lixo, as pessoas até hoje, tem gente que não separa bem o lixo, então vai comida, vai coisa misturada, vai bicho morto, às vezes. E eles têm uma alegria em fazer esse trabalho que para nós é um aprendizado, assim, constante. Cada vez que a gente chega lá e vê que é possível fazer diferente, que é possível ter alegria nas pequenas coisas assim, eu diria que a gente aprende muito mais com eles do que eles com a gente, sabe? E a gente aprendeu isso, eu acho que a gente aprendeu que o nosso lugar é esse, o nosso lugar é estar no meio deles, mesmo, quando a gente está lá, a gente está no meio das esteiras, a gente ajuda a separar, a gente fica do lado perguntando: “Mas quando encontra isso, faz o quê?”, se deixar, a gente pega a luva e vai separar junto, assim. E são figuras maravilhosas, tem travesti, tem mãe de família, tem adolescente, tem homens, tem negros, tem brancos, tem tudo, sabe? E eles são uma família, literalmente, ali eles... Tem uma hora que é o lanche, vai todo mundo lanchar, comer junto, quando a gente está lá, a gente leva lanche para sentar com eles e comer junto também. Quando a gente tem coisas para dar de presente, a gente dá de presente e olhar para trás e ver que há três anos, a gente convive com algumas dessas figuras, já, todos os dias quase das nossas vidas e aprende muito com eles, é um prazer assim, é um prazer sair de uma sala fechada e viver, de fato, sabe, e viver dessa cadeia que a gente não quer olhar, sabe, e eu acho que isso é um privilegio. É um privilegio poder trabalhar com o lado B das coisas, sabe? A gente vê… E a gente brinca que a gente sai de uma foto com o copo de champanhe na mão num loja brindando que os produtos chegaram e vai com a mesma facilidade para uma unidade de triagem separar lixo e a gente põe a mão na massa seguidamente, a gente chega lá, eles não terminaram de preparar a nossa leva de guarda-chuvas, a gente senta com eles, tomamos um chimarrão e continua separando. Então, acho que essa é a grande história para mim, assim, aprender com os borracheiros, é aprender com os catadores de lixo, alegria da vida, mesmo, porque eu vejo que a gente reclama muito de barriga cheia, literalmente, então, eu aprendo muito essa simplicidade com eles toda vez que eu estou lá, eu faço questão de beber um pouquinho dessa fonte, assim, do que é a vida mesmo, que ela pode ser muito simples, muito alegre, com pouca coisa, né?
P/1 – Queria que você comentasse um pouco… você pode falar mais um pouquinho sobre a relação design e lixo, como que vocês…
R – Isso é muito legal. Eu acho que esse é outro pulo do gato desse projeto, também. Eu acho que a grande surpresa das pessoas quando viram o nosso primeiro lançamento de produtos foi essa, foi de dizer: “Nossa, são produtos bonitos, tem design, tem qualidade e vieram do lixo”, e acho que esse foi o nosso principal paradigma que a gente queria quebrar, que era mostrar que o design sustentável, o design correto, assim, sustentavelmente correto, ele poderia ir muito além da ecobag, que era o que a gente mais vivenciava até ali, um produto sustentável era uma ecobag, begezinha, feita daquele linhozinho e tal, super bacana até hoje, uma presença super importante, mas é possível ter design para resíduo, é possível a gente pegar uma matéria-prima que estava no lixo e dar uma vida para ela nobre, com design. Então, eu acho que o design tem muito a aprender ainda olhando na verdade para o redesign. Olhando para a reinvenção, que eu acho que essa foi a nossa fonte, onde a gente foi beber, a gente foi olhar para o que era possível ser redesenhado, ser revisto. Então eu acho que o design tem esse papel ainda muito legal, mais do que criar novas coisas, eu acho que o design pode olhar para recriar o que já existe porque no momento em que a gente tá vivendo, no mundo de excessos, a gente tem fabricado muito, a gente está em um momento muito materialista, muito consumista da nossa vida e então, se a gente for olhar a gente não tem uma escassez de coisas, a gente tem um excesso de coisas, assim como a gente tem um excesso de lixo. Então, se o design se ocupar um pouco do excesso e recriar esse excesso, eu acho que o design vai cumprir uma função muito bacana, e eu acho que foi o que a gente experimentou usar essa ferramenta que para nós era fácil, assim, a gente sabia lidar com as ferramentas do design, mas a gente foi descobrir como utilizar isso olhando para resíduo, olhando para renovar a vida de uma coisa que era uma câmara e poderia virara uma bolsa e era um guarda-chuva e poderia virar uma bolsa também.
P/1 – Como você acha que os atos de repensar, reutilizar e reciclar mudaram a sua vida e a vida das pessoas que estão ao seu redor, assim, diariamente?
R – Acho que totalmente. Totalmente. Hoje a gente vive a vida de um jeito completamente diferente a partir desse projeto e eu acho que a gente contamina muito isso para as pessoas que estão a nossa volta, desde as pessoas que compram os nossos produtos, as pessoas que trabalham com a gente, de mostrar que tudo pode ter um novo olhar, né? A gente está acostumado a ver as coisas com aquelas funções, com aquele olhar, mas quando a gente olha, a gente pode repensar tudo. Então, esse compromisso da gente estar entendendo da onde vem e para onde vai. Eu acho que é fundamental. Então, hoje, a gente tem uma preocupação muito grande, eu tenho na minha vida, sei que a Iti tem, que as meninas que trabalham com a gente tem, a minha família acabou pegando cada vez mais, os nossos “vuelistas” que são as pessoas que compram os nossos produtos, empresas que trabalham com a gente, que é essa coisa, pega qualquer coisa e dizer: “Isso aqui veio da onde? É feito do que? E vai para onde?”, e então, se a gente aprender só esse pensamento, ele vai nos levar muito longe já, porque tudo começou em algum lugar e é feito de algum material que é bom ou ruim para isso ou para aquilo, que foi feito de uma forma justa ou não justa, saudável ou não saudável e vai ter um fim, ele não vai terminar quando tu botar no lixo, o lixo não é o fim das coisas. Eu brinco: “Para onde vão as coisas, se o mundo… A gente põe fora onde? Onde é que é o fora?”, não tem fora. Então, se a gente pensar também para onde isso vai, a gente vai começar a fazer essa trajetória de um jeito muito mais saudável, possivelmente, consumir menos, consumir as coisas certas, as coisas mais saudáveis, para mim, o certo é o saudável, para todo mundo, para quem tesava na cadeia produzindo, para quem vai realmente consumir aquilo, que aquilo traga potência de vida e não o contrário, e que isso vai poder ter um fim que seja, não prejudique ninguém. Então, ou que seja um fim que isso vai virar nutriente na terra ou que isso seja um fim que vai ser decomposto e retrabalhado, né, então hoje a gente olha muito para isso assim, quais são os ciclos saudáveis de produção. Então, como que a gente cria uma coisa para que o fim dela também seja saudável, acho que é o grande aprendizado.
P/1 – E qual o tamanho da empresa hoje em dia assim?
R – Hoje, eu acho que o nosso impacto é muito maior do que o nosso tamanho. A gente é bem micro e acho que a gente vai continuar sendo micro por muito tempo. Então, a gente começou os nossos dois primeiros anos foi só eu e a Iti, duas meninas trabalhando, fazendo todas as frentes, então a gente dividia assim, metade dos papeis eram meus, metade dos papeis eram dela, então, desde comunicação, produção, parte comercial, tudo, parte financeira, então a gente dividiu e foi aprendendo, o que a gente não sabia, a gente foi aprendendo sempre buscando ajuda, a gente sempre gostou de trabalhar em rede, então, a gente nunca… O sozinha nunca foi sozinha. Então, a gente sempre buscou alguém que entendesse melhor disso para nos ensinar, alguém que entendesse melhor daquilo para nos ajudar a fazer, né, mas oficialmente, nós duas durante dois anos, aí agora somos cinco, também mulheres, a Vuelo tem esse caráter meio feminino, assim, a gente até adora a possibilidade de que entre um menino também para dar uma equilibrada (risos), mas naturalmente, são hoje cinco mulheres fazendo a Revoada que até pouco tempo chamava Vuelo e então, uma rede muito grande, ano passado, a gente passou a integrar a Rede Yunus Social Business, mundial, então foi outra descoberta muito marcante na nossa história. A gente estava lá em Porto Alegre fazendo o nosso trabalho, que gerava já uma certa visibilidade nacional, mas a gente se sentia muito sozinha estar lá fazendo esse trabalho e aí, em 2015, a gente soube que existia a Yunus no Brasil, que não era só lá em Bangladesh, mas que tinha uma unidade no Brasil e que eles estavam selecionando projetos que tivessem algum impacto social para acelerar. Aí, de oitenta projetos inscritos em 2015, a Vuelo foi um dos escolhidos, ficaram seis e a gente ficou três meses aqui em São Paulo sendo acelerados pela Yunus, junto com outras empresas sociais, aí foi o momento que a gente descobriu que a gente era uma empresa social, a gente não sabia, oficialmente, e a gente aprendeu então o que era uma empresa social e como a gente podia crescer como uma empresa social para gerar cada vez mais impacto positivo. Então, ali foi uma escola, foi praticamente fazer uma faculdade de empresa social em três meses, super inspirador, a gente teve a sorte de conhecer o professor Yunus que veio de Bangladesh num desses momentos, conhecer os acelerados e um mestre assim, uma pessoa inspiradora, conhecer outros projetos, então a gente já passou a não se sentir mais sozinha lá no sul do Brasil, a gente passou a se sentir como parte de uma rede que está espalhada pelo Brasil, que está espalhada pelo mundo, isso nos deu uma forca tremenda, assim, e poder contar com essa rede também, né, então hoje a gente sabe com quem trocar também, escrever, pedir desde uma informação prática: “Vocês já fizeram esse tipo de ficha, documento? Pode nos mandar um modelo?”, ou: “Vocês conhecem alguém que faça, produza”, então hoje a gente se usa muito como rede, não só no Brasil, mas fora do Brasil, então a gente sente que esse momento de mudar de Vuelo para Revoada foi justamente aumentar o bando de pássaros, mesmo, literalmente. Porque a gente não se sente mais voando sozinho, a gente se sente voando em bando, mesmo, e um bando que tem bastante força no Brasil e no mundo.
P/1 – Eu tô caminhando para o bloco das perguntas conclusivas, você quer fazer alguma colocação antes?
P/2 – Se você puder falar um pouquinho… você falou meio por cima de que produtos que vocês fazem. Falar mais dos produtos que vocês fazem…
P/1 – Além das bolsas, né?
P/2 – É, E o que vocês fazem com as sobras… e depois, outra coisa, você tinha comentado comigo sobre a forma que os fabricantes produzem que mudou…
R – Ah tá, desse projeto novo! Tá. Então sobre os produtos, a gente optou sempre por fazer acessórios de moda. Então hoje, a gente faz mochilas, bolsas, carteiras, cases de notebook e a gente também faz produtos menores que é para usar as aparas do que a gente… Do que sobra da nossa própria produção, né? Então, como a nossa preocupação é justamente gerenciar os resíduos, então nossa produção também gera resíduos, então a gente começou a ver que se a gente criasse produtos menores era uma forma de a gente consumir os nossos resíduos. Então, a gente faz então, chaveiros, porta-passaportes, mini carteirinhas, que é para conseguir pegar esse aproveitamento de pedaços menores. O que a gente não consome que ainda é muito pequenininho, a gente tenta fazer parcerias com outros projetos que consumam, então, por exemplo, tem uma pessoa que a gente conheceu que faz design de joias, de bijuterias com câmaras de pneu, coisas muito bonitas, colares, brincos e ela usa partes bem pequenas, então, em seguida, a gente fornece para ela essas aparas pequenas para ela testar e fazer os produtos dela. Universidade também, a gente também tem uma relação muito legal com várias universidades, então, alunos de design, a gente tem projetos, tem uma universidade especifica que é a Unisinos que a gente tem um projeto já há dois anos que os alunos de design de produto fazem o projeto deles com inspiração na Vuelo. A gente já deixa sacos de resíduos também separados para eles para que seja o trabalho deles de mão na massa lá, na hora de produzir os produtos com os nossos resíduos. Então, a gente sempre busca dar uma destinação. Eu acho que a grande evolução do nosso projeto nesse tempo de três anos foi se dar conta que os produtos, eles são a ponta do iceberg do que a gente faz, que na verdade, o que a gente movimenta de grande valor é essa cadeia produtiva da forma que a gente organizou que gera esses diversos impactos positivos, e como a gente começou a ter essa relação não só com cliente direto, com lojas mas também com as empresas e com as industrias, a gente viu que as indústrias, em geral, de “n” tipos de materiais geram muito resíduo e a destinação desses resíduos nem sempre é a mais inteligente, na maioria das vezes, não é. Muitas vezes, ainda é aterro ou são queimas que geram gases que são poluentes. Já se evoluiu bastante, mas não se evoluiu ainda o suficiente para poder dar destinações mais inteligentes para esses resíduos. Então, a gente pensou um projeto novo que a gente vem trabalhando agora que chama Projeto Ação Reinvenção, onde a gente não trabalha só com o final da cadeia produtiva que é lá quando já virou resíduo, mas a gente tá propondo trabalhar com o começo da cadeia produtiva das indústrias que é pegar o que eles geram de resíduo na boca da máquina lá, que é matéria-prima resíduo, em fazer um processo circular de produção com eles, um protótipo de como seria esse processo para que aquele resíduo vire de novo, produto. Então, as indústrias, pelo o que a gente tem visto, como elas têm um processo linear de produção, elas estão sempre fazendo o mesmo processo, nas esteiras. É difícil para que elas parem e processem de uma outra forma, então esse resíduo é mais fácil, por incrível que pareça, elas pagarem uma destinação do que elas pensarem em como introduzir ele de novo na cadeia. Então, a gente oferece essa transferência, digamos, de conhecimento que a gente teve nesses três anos de parar e pensar como podem ser novas cadeias a partir de resíduo e a gente senta com eles e faz um processo de co-criação, pega tudo que eles já aprenderam em relação ao que eles fazem, com certeza, eles sabem muito melhor do que nós e a gente traz o que a gente aprendeu e se propõe a pegar esse projeto na mão e dizer: “Vamos fazer produtos com esses resíduos de vocês”, então esse Projeto Ação Reinvenção tá começando, a gente já tá com algumas industrias em via de começarem o projeto com a gente e vai ser muito legal, porque a gente vai trabalhar com outros materiais, que não só o nylon de guarda-chuvas e a câmara de pneus, então a gente vai poder trabalhar mesmo é com essa solução de design de produto a partir de resíduo, e acho que a gente vai gerar bastante impacto já fazendo que esse resíduo nem percorra nenhum caminho, ele já nem saia de lá, ele já se transforma de novo lá dentro. Então, acho que essa é a grande novidade que a gente vem aí, acho que muito inspirado por esse trabalho com a Yunus, que era de olhar para o cenário que a gente tinha e ver como a gente podia em todas as pontas causar mais impacto positivo. E com as indústrias, certamente, a gente vai poder causar bastante impacto positivo.
P/1 – A gente tá caminhando já para o final da nossa conversa. Eu queria saber para você, quais são as coisas mais importantes hoje em dia, na sua vida, assim, no geral? Quais são os seus sonhos?
R – Olha, eu tenho… Eu acho que o meu maior sonho é que as pessoas despertem, que as pessoas despertem para o que é a vida, de fato. Eu acho que a gente está muito adormecido, eu acho que a gente está perdendo os nossos valores, perdendo o que de fato é a raiz da vida. E eu acho que a vida, ela tem que ser potencializadora da vida e se a gente anda potencializando outras coisas que não geram vida, tem alguma coisa errada. E eu acho que então, nesse cenário que a gente vive, de muita violência, de muita desigualdade social, de muito lixo, de muita dificuldade, e não só nas pessoas que têm uma… Vivem numa classe mais baixa, mas a gente vê que todo mundo tá enfrentando em diferentes níveis, muitas dificuldades. De alguma forma, eu diria que as pessoas estão pouco felizes hoje, então eu gostaria muito que a gente olhasse para isso e entendesse porquê que isso está nos acontecendo, eu acho que a gente tem que rever algumas coisas, talvez, a gente não esteja dando valor para as coisas simples que todos temos, que estão aí disponíveis, que é a vida, que é a natureza, que são as relações, que é o amor, que é o afeto e eu acho que se a gente tivesse se nutrindo muito mais disso, talvez, a gente não tivesse com essa sensação de infelicidade que a gente está. Porque a gente está, talvez, tentando preencher a vida com o que é vazio de sentido, e a, a gente sente essa sensação de vazio muito fortemente. Então, eu sinto que de alguma forma é o que eu tento fazer hoje pelo meu trabalho, pelas minhas relações, pela minha espiritualidade, é tentar eu beber dessa fonte e fortalecer isso em mim para que eu possa, de alguma forma, irradiar para os outros e contaminar isso para os outros também, para que as pessoas despertem.
P/1 – Como foi contar a sua história para a gente, hoje?
R – Foi uma delicia (risos). Emocionante, eu sou uma chorona em potencial, eu me emociono muito com a vida, com as histórias, com as pessoas, eu acho a vida muito emocionante, assim. A gente poder estar vivo aqui fazendo esse monte de coisas, né, eu acho muito emocionante. E é um prazer, um prazer contar as historias, né, quando vocês fizeram o convite, eu fiquei impressionada que existisse um museu de história de pessoas e de história oral de pessoas. Então, lembrei muito da contação de historias, mesmo, até quando a Lila me ligou, eu brinquei com ela: “Eu tô no meio de uma contação de histórias”, e na verdade, era uma história de áudio que a gente estava ouvindo, eu e as crianças, filhos do meu namorado e estava todo mundo parado na sala ouvindo aquela história. E a Lila estava me convidando para contar a minha história e eu disse: “Isso me diz respeito, mesmo, eu gosto de historias”, então contar a minha história, a história da Iti, a história da Alice, da Silvia, de todos os catadores de lixo, de todos os borracheiros, de todas essas empresas que estão apostando na gente, é contar a história de pessoas que estão aí trambalhando para um mundo diferente, para mim é um prazer assim, sou só uma transmissora dessa história que é minha e é de muita gente também.
P/1 – Ótimo.
R – Agradeço muito, obrigada.
P/1 – A gente que agradece. Obrigada pela atenção, pelo seu tempo, por tudo.
R – Obrigada vocês.
FINAL DA ENTREVISTA
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