P/1 – Bom, senhor Euclides, primeiro eu queria agradecer a presença do senhor, o senhor disponibilizar um pouquinho do seu tempo para contar a tua história para a gente e, para a gente deixar registrado, queria que o senhor falasse seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Bem, você tem o currículo, em todo caso eu vou falar. Eu nasci na pequena cidade de Minas Gerais, chamada Muzambinho, que foi famosa pelo seu doce de leite. Vim para São Paulo com 17 anos de idade, depois de terminado o ginásio. Naquele tempo eram cinco anos de ginásio, para estudar Engenharia. Mas eu cheguei aqui em São Paulo e entendi que não devia mais depender de meu pai para estudar. Então eu decidi mudar de profissão, em vez de engenheiro, eu estava fazendo pré Engenharia - naquele tempo se fazia dois anos de pré - e arrumei um emprego, e aonde que eu fui empregado, na Rua Santa Rosa. A Rua Santa Rosa existe até hoje, era naquela época centro de comércio e distribuição de cereais e gêneros alimentícios do Brasil. Era uma coisa importantíssima, porque tudo convergia para São Paulo, as estradas de ferro, as poucas rodovias. Então eu me entusiasmei com aquilo e não estudei mais e comecei a trabalhar. E foi aí que eu me meti no comércio e por consequência depois de uns dez anos, as entidades de classe.
P/1 – Senhor Euclides, eu vou querer saber um pouquinho mais depois da tua história em São Paulo, de como começou a tua trajetória no comércio, mas primeiro eu vou voltar um pouco. Conta um pouco para a gente da história da tua família? Como que seus pais se conheceram? O nome dos seus pais?
R – Ah, você quer. Bom antes de tudo, você deve saber que eu sou uma pessoa que adora a família e, respeita a família. Para mim a família é a base. Então, os meus avós são italianos, tanto os de parte de pai, quanto os de parte de mãe. De parte de mãe é Montagnari, que tem até hoje lá na cidade. E por parte de pai, os Carli. Era uma gente extremamente curiosa, eu às vezes fico pensando como é que eles tinham a coragem de no fim do século anterior, do século 19, sair da terra deles e parar em Muzambinho, que ainda tinha índio. Enfrentar uma vida, não sabiam falar a língua, começa por aí, tinham a profissão que não era usual, o meu avô materno era construtor, fazia construção. Eles saíram de lá por motivos que eu não sei bem se só políticos, ou econômico. Talvez os dois. E o meu avô paterno era agrimensor. Mas essa gente sair da Itália, de Lucca, que é na Toscana, e o avô materno na Vêneto, e sair e parar em Muzambinho. Era uma coisa, isso aí é ter uma coragem que não existe. Então eu respeito muito as minhas origens e tenho um orgulho muito grande das minhas origens e procuro transmitir isso para os meus filhos, que eu tenho só dois, um médico e uma arquiteta. Mas aos meus netos eu também faço isso e me sinto bem porque não tem mais ninguém vivo, estão todos mortos, mas é uma maravilha pensar neles.
P/1 – O senhor sabe por que é que eles foram parar em Muzambinho? Qual foi o motivo de escolher Muzambinho? O senhor sabe? O porquê Muzambinho?
R – Que eu sabe, por quê?
P/1 – Porque é que eles escolheram o estado de Minas Gerais? O munícipio de Muzambinho?
R – Ah, é fácil. O meu avô, o paterno, é o seguinte, ele era agrimensor e naquela época as fazendas tinham limites aleatórios, quer dizer, a minha terra vai daqui até aquele ribeirão e depois não sei o que. Então, ele não foi contratado, ele foi requisitado para fazer agrimensura das terras, que eram fazendas muito pequenininhas, dois mil alqueires, três mil alqueires, era uma coisa assim. E o meu avô, agora eu vou entrar em uma particularidade, o materno, esse era Vêneto, era uma gente mais dura. Eram mais duros. O meu bisavô perdeu a senhora dele muito moça, no parto. Meu avô, a mãe morreu no dia do parto. Então ele se aborreceu e saiu, mas ele saiu primeiro para a Alemanha, que naquele tempo não era bem Alemanha, era Áustria-Hungria, era o império, para trabalhar em estradas de ferro. E depois um dia não sei por que cargas d’água, passou lá uma turma de italianos que ia para o Brasil para imigrar. Então ele disse para o meu avô, o meu bisavô, você quer ir para lá? Nós ficamos lá uns meses, depois voltamos. E foi assim que ele veio para cá, mas como construtor, pela experiência que ele tinha. O meu avô no assentamento de trilhos, que naquela a Mogiana estava saindo de Guaxupé, passava por Muzambinho, ia até encontrar a Rede Mineira de Viação, que era lá em Areado, fazia o círculo para ir a Belo Horizonte. Então, é isso. Você vê que tudo tem uma conexão. Agora da personalidade deles, é muito difícil fazer, posso te dizer uma coisa do meu avô, que me contam, eu não conheci porque ele morreu em 1915, operado de apendicite, na cama, no quarto dele, porque não tinha hospital, não tinha nada. Ele morreu de hemorragia. Um pouco antes de morrer, ele convidou o chefe, porque havia um italiano chefe, muito natural vir uma porção de italianos e ter um chefe, e disse: "Compadre vem aqui, eu te chamei para beber uma cerveja com você pela bela garantia de vida que você me deu apresentando esse médico, eu vou morrer". Por aí você vê que gente, hein. E o meu pai era também formidável. Você quer saber de tudo isso mesmo?
P/1 – Então, queria agora exatamente que o senhor falasse um pouquinho dos seus pais.
R – É certo isso?
P/2 – É, ela quer saber a sua história.
R – Até parece novela. É, bom.
P/2 – Não, é porque vão fazer uma biografia...
R – Meu pai era muito sóbrio e muito violento. Ele tinha um negócio muito grande e tal, é aqueles negócios que chega no fim do sábado, vinham todos os trabalhadores de fazenda beber pinga, tudo aquela bagunça. Então ele era um pouco violento. Mas era de um bom senso, uma coisa impressionante. Por volta da quebradeira de 29, que ele perdeu quase tudo, porque ele se meteu em café, né? Começou a comprar café de sociedade com uma pessoa lá da tua terra, de Guaxupé e perderam praticamente tudo. Então no auge dele, que ele estava muito bem de vida, diziam para ele, ele tinha um apelido, velho da Camila, porque ele era o único que nasceu loiro, de olhos azuis e filho da vovó Camila. Então velho da Camila. Todos diziam: "Velho da Camila, é verdade que você tem quinhentos contos?" O conto de réis você nem sabe o que é que é, era muito dinheiro. Então ele falou quanto quinhentos contos era bom, virtude e santidade era metade da metade. Então se estão falando que eu tenho quinhentos contos, metade é duzentos e cinquenta, e a metade, eu devo ter uns 125 mais ou menos. Ele falava, por assim ninguém me pede emprestado. Então uma gente muito boa. E afinal, depois eu consegui trazer eles para São Paulo, minha mãe, meu pai, meus irmãos, todos aqui ficaram, está tudo bem. Aliás eu tenho o último irmão vivo, que nós erámos quatro, dois morreram e esse irmão está na fazenda. Eu tenho o que era fazenda aqui em Capão Bonito, e devo merecer um grau especial. Eu tenho lá 15 alqueires de mato virgem, cercado com arame farpado, ninguém entra para pescar, nem para caçar. Quer dizer, um pouco do oxigênio que você recebe vem de lá, viu? Tá bom? Bom, o que mais é que você quer saber?
P/1 – Senhor Euclides, e esses quatro irmãos, conta um pouquinho como é que foi a infância de vocês? Como é que era a sua casa?
R – Mas que inferno. Bom, isso é revolver um passado hein? Não, a minha infância foi muito normal, meu pai tinha uma propriedade na roça, nós chamávamos, né, tinha na cidade e na roça. Então eu passei muito tempo indo e vindo na roça, por isso que eu sou muito chegado a terra, eu tenho um amor muito forte a terra, por isso eu tenho uma fazenda. E foi uma vida tranquila. Ah, uma coisa interessante, eu fui coroinha. Você sabe o que é coroinha? Sabe o que é? O que é que é coroinha?
P/1 – Conta para a gente. Aí fica registrado.
R – É, a criança até 12 anos veste uma sobrepeliz e ajuda, naquele tempo se ajudava a missa. Hoje não se ajuda mais. Então graças a Deus eu tive uma religiosidade muito forte por causa disso. Porque toda a família era muito religiosa, e o colégio que eu fiz o ginásio era o ginásio de Muzambinho. Era considerado o melhor ginásio do sul de Minas. E fiz lá até o terceiro ano ginasial. Quando houve lá um acidente muito forte, professor matou o diretor, então tive que ir para São Sebastião do Paraíso, em colégio interno. Aí foi uma experiência muito grave para mim porque eu fiquei amarrado. Mas no fim me adaptei também e correu tudo bem, tudo em ordem. Então a infância foi muito feliz, viu? Aliás eu não posso me queixar, eu sou muito feliz.
P/1 – Qual é que era a brincadeira preferida do senhor?
R – Hein?
P/1 – Qual era a brincadeira preferida do senhor?
R – Brincadeira?
P/1 – É, do que o senhor gostava de brincar?
R – Haha. (pausa). Posso falar?
P/1 – Claro.
R – Dar trote nos outros. Principalmente por telefone. Mas a freguesia vai diminuindo, diminuindo, então todo mundo já sabe quando é trote e quando não é trote. Perdeu a graça, né? É porque o trote é uma coisa muito interessante, às vezes você dá certos recados que não são trotes, e por isso que eu gosto tanto. Uma coisa que eu detesto, mar. Tenho apartamento em Santos, não vou lá, minha família vai. O que eu adoro, mato. Eu acho que o mar é traiçoeiro, não gosto. Agora o mato, não. O mato se você não vai criar caso com nada, ninguém cria caso com você. Até cobra, se você não pisa nela, ela vai embora, ela tem medo. Porque o homem é horrível, é um animal diferente. Então no mato não há perigo. Agora no mar há perigo. Eu acabo de perder, não sei se vocês viram aí esse acidente em Cancun, um médico e um engenheiro? Morreram. Eles eram doidos, os dois. Mergulhavam, iam, pá, vestia. Foram para lá para mergulhar, e com o técnico, tudo e, não se sabe como, morreram. Morreu o casal e o instrutor também. Então, mar eu não gosto, não faz o meu gênero.
P/1 – E senhor Euclides, agora eu queria que o senhor contasse para a gente, conta um pouquinho da cidade Muzambinho, como é que era a cidade? Como é que era o comércio na cidade?
R – Atual?
P/1 – Não, não. Na sua época de infância.
R – Atual eu não sei. Faz 40 anos que eu não vou lá.
P/1 – Quarenta anos atrás, na sua época de infância. Enquanto o senhor estava crescendo?
R – Não, a cidade era uma cidade pequena, devia ter um 15 mil habitantes. E era como toda cidade mineira, tranquila, uma política horrível, tucano e pica-pau chamava, era a oposição e a situação, né. Meu pai era tucano e meu avô era pica-pau. É uma zona cafeeira por excelência, como Guaxupé. E vivia do café e de gado leiteiro. Com a queda do café ela sofreu muito, mas era uma cidade de uma certa cultura, tinha pessoas, tinha professores muito bons do colégio, então havia um curso de assuntos, de coisa. Inclusive também tinha muita sorte com um padre, não era de Guaxupé, holandês que aprendeu a falar português muito bem. Quer dizer, foi uma cidade que tinha um clube recreativo muito bom, afinal, era uma cidade de razoavelmente um pouco acima do nível geral, vamos dizer, de começo do século 20, né, até 1930. É, sem dúvida, ele mereceu, não é que eu sou otimista não, é a verdade. Ela era chamada Atenas Sul Mineira, quer dizer, tinha reunião de professores. Para você ter uma ideia, no colégio até o terceiro ano ginasial que eu fiz, todo sábado o colégio inteirinho, podia ser quanto? Uns 100, 150 alunos se reuniam em um salão nobre, era o salão do sábado. E do sábado era a sessão, não me lembro se era a sessão social, ou coisa assim, presidido pelo diretor, com o corpo docente todo lá. Primeira coisa, abertura, todo mundo de pé cantando o Hino Nacional. Isso era matemático, todo sábado. Quer dizer isso para mim que tinha quanto? Dez, 12 anos, 13, que ele ficou, né? E inclusive tinha um professor, um negro, pianista, era professor de música. Mas te interessa isso?
P/1 – Pode ficar a vontade.
R – Bom, eu estou ficando muito a vontade, hein? Mas esse professor era muito bom, um senhor negro. Quando abria a sessão solene do sábado, ele então no piano - porque naquele tempo não tinha aparelhagem, alto falante, não tinha nada - o diretor dava a palavra para ele, chegava no piano e ficava de pé na tecla do piano, e tocava o Hino Nacional de pé. E dizia só toco de pé. Quer dizer, são coisas que ficam na vida da gente. Hoje ninguém mais liga, mas tem uma geração minha que tocava o Hino Nacional, cantado por todo mundo de pé. E era normal isso, não era nenhuma vantagem. O Tiro de Guerra, você sabe o que é que é o Tiro de Guerra? Você sabe? Quem não faz o Serviço Militar, porque está em um colégio, então faz, não sei se ainda tem, o Tiro de Guerra. Quer dizer, é instrução militar mais ou menos igual o Exército, com o sargento de primeiro grau, tudo. E dá marcha, batida e coisera toda. Tiro de Guerra, por exemplo, tinha todo mês uma reunião, desfilava pela cidade com fuzil. Era muito bom, viu? Estou lembrando de uma porção de coisa, muito boa. Era uma cidade que dava orgulho, viu? Pena que houve este incidente, né. Houve um desentendimento muito sério, o professor matou o diretor, não sei por quê. E acabou o colégio, o governo fechou o colégio. Só abriu dez anos depois. Aliás, ele logo depois que fechou virou uma sede de batalhão da Polícia Militar mineira. Durante dez anos ficou nisso. Mas é isso, o que mais você quer saber?
P/1 – O senhor lembra do seu primeiro dia de aula? Quando o senhor começou a estudar? As primeiras memórias da escola?
R – Eu já te contei tanto a memória da escola.
P/1 – Mas eu quero saber um pouquinho antes. O senhor falou do ginásio, eu quero saber um pouquinho antes.
R – Bom, naturalmente os professores, vou te falar do ginásio só, né, porque também do primário.
P/1 – Mas do primário também é bacana.
R – Mas do primário eu não tenho uma memória assim.
P/1 – Está ótimo...
R – Eu lembro só da professora que era brava e puxava a orelha da gente com autorização dos pais. Mas o ginásio tinha bons professores, eu me lembro que muita coisa eu aprendi, era muito certo. E tinha uma professora de Ciências, Ciências era Física, Química e História Natural, tudo junto, os primórdios. Muita boa a dona, não tenho dúvida, dona Olga. Essa eu me lembro bem. E tinha um professor de Francês também que era muito bravo. Esse era terrível, ele entrava, quando o professor entrava todo mundo de pé, né? Só depois que ele mandava sentar, a gente sentava. Isso eram todos, é normal. Era uma coisa normal. Lá em São Sebastião do Paraíso, é lá perto de Guaxupé, que eu fui fazer o terceiro, o quarto e o quinto anos ginasiais. Esse era já um outro tipo, era fechado, não era de padre, era civil mesmo. E a cidade era bem maior, São Sebastião era perto de Itaú, todo dia a gente ia visitar a fábrica de cimento Itaú lá perto, ia jogar futebol lá, é vizinha de Batatais. Porque é curioso, Muzambinho, Guaxupé, São Sebastião, tudo é limítrofe de São Paulo. Por exemplo, de Caconde a São Paulo a gente ia a cavalo. Tinha parece que seis quilômetros, ou doze quilômetros assim. Ia a cavalo, ia dançar, e voltava a cavalo. Caconde existe até hoje, é uma grande cidade, né. Então era bom. Bom, que mais? De infância chega?
P/1 – Vou perguntar para o senhor, quais que eram as primeiras matérias, os primeiros interesses do senhor na escola? O que o senhor mais gostava? O senhor começou a pensar na tua vida futura?
R – O meu interesse na matéria?
P/1 – É, o que o senhor...
R – Eu sempre tive uma paixão por Química e Física. Da minha casa, quando eu tinha 14 anos, eu tinha um quarto reservado que eu chamava de laboratório. Então lá eu tinha um laboratório, tudo o que eu aprendia na escola eu repetia lá. Inclusive quase que pus fogo um dia na casa, entende? Eu era chegado mesmo em Química e Física. E depois vim para São Paulo, acabou. Mas era bom, interessante eu chamava o laboratório. A minha mãe falava, um dia você vai explodir isso aí, oh. Eu quis fazer pólvora uma vez, eu li qualquer coisa que chinês é quem inventou a pólvora, que era enxofre, salitre e não sei o que mais. Eram três coisas e não sei como que arrumei as três coisas. E amassei devagarinho para não arrebentar tudo, e ficou um monte assim em cima da coisa. Eu falei, bom vamos ver se acende, peguei um fósforo e, pum pum, aquilo explodiu tudo. Inventei, não inventei, mas eu sei fazer a pólvora. Com 12 anos mais ou menos. Divertido, não?
P/2 – E nessa época de escola, o senhor já pensava em alguma profissão? O senhor pensava o que o senhor gostaria de fazer quando crescesse?
R – Como é que é?
P/2 – Na época da escola, quando o senhor estava estudando, o senhor já pensava em alguma profissão? Que o senhor gostaria de seguir quando crescesse?
R – Não tinha, não. Eu não acredito que tenha com certa idade. Você já vai encaminhando para o seu lado profissional quando você já tem um raciocínio perfeito, uma vivência. A gente dizia, eu quero ser doutor, eu quero ser químico, mas isso é era só falar, não tinha nenhuma. Tanto que eu vim estudar para Engenharia e acabei contador, economista e advogado. Depois de comerciante, hein. Agora, você acredita que pode haver com 14, 12, 14 anos uma tendência de aspirar-se a alguma coisa?
P/2 – Acho que depende da matéria que a criança gosta. Se gosta mais de Português, de Matemática. Aí vai pensando o que vai querer ser, né.
R – Bom, a matéria eu já te disse, eu detestava Matemática. Eu achava que Matemática era um atraso de vida. Eu gostava do laboratório, fazer o fogo, destilar. Aquilo para mim era uma delícia. As aulas práticas para mim eram uma delícia. Agora, eu não acredito, eu posso supor que um menino, ou a menina de 12, 13 anos fale por falar, ou porque viu na televisão algum sucesso, aí eu quero ser isso, eu quero ser aquilo. Mas firmar mesmo, lutar por aquilo, é um pouco mais difícil. Não é uma criança que vai fazer isso, não. Precisa ser já uma pessoa bem madura, porque está cada vez mais difícil, né? Eu olho os meus netos, por exemplo, eu fico com pena deles. Eles estão em um mundo de concorrência brutal. Nós não tivemos essa concorrência brutal. Por exemplo, eu entrei em um faculdade de Engenharia fazendo um exame normal, não tinha essa correria de ENEM, não sei o que. Era uma coisa razoável. Aliás, no tempo que eu fiz o pré, era pré Engenharia e pré Medicina, eram os dois só. E o pré Jurídico, que era o de advogado. Eram os três prés. Mas era uma coisa razoável, não havia briga para entrar na faculdade. Porque hoje é um desespero, o jovem fica doido só de pensar em enfrentar. O que não é justo, não. Então eu penso que nessa altura qualquer coisa que vier está bom, viu? Depois com a tecnologia que tem, você acha que precisa raciocinar tanto? Você acha que precisa? Eu acho que a tecnologia está tomando o nosso lugar. Daqui a pouco você não precisa nem ter opinião própria. Apertar o botão, você vai fazer isso, você vai fazer aquilo, está acabado, não é. Muito bem.
P/1 – Então agora senhor Euclides, eu vou querer saber do seu período de faculdade, mas primeiro, o senhor falou que foi difícil ir para o internato. Porque que é que foi difícil? Quais foram as maiores mudanças? Quando o senhor saiu de...
R – Difícil do que? Da faculdade?
P/1 – Não, não. Do internato.
R – Hã.
P/1 – Como é que foi essa saída da cidade para outra cidade, estudar no internato?
R – Bom, você vai acreditar que não foi fácil eu, um rapaz de 16 anos, terminando o ginásio, saí e vim parar aqui em São Paulo. Quando eu cheguei aqui e pela primeira vez fui na Rua Direita, estavam inaugurando um sistema. Quando você vai para o lado direito, você não passa para o esquerdo, tem um que vai, outro que vem. Isso era novidade, não se deve juntar os transeuntes, que era coisa muito interessante. E achava aquilo um absurdo, mas que é que é, parece gado. Então eu tive muito trauma, muita coisa nova, que no fim eu absorvi, e tirei até vantagem. Que comecei a também me formar, realmente. Tanto que larguei Engenharia e nem pensava. Mesmo que ainda você vai ver no currículo, eu com pouca idade, eu ensinava trigonometria e geometria analítica em cursinhos. Mas já com uma certa dificuldade, porque não estava gostando daquilo. Eu estava vendo na Rua Santa Rosa o movimento da venda, o caminhão descarregando, carregando, então aquilo já, aí parei tudo. Aí que eu comecei, falei, bom, eu vou ser contador, porque assim eu me asseguro no emprego. Fui conhecendo a mecânica da coisa. Depois Economia foi consequência, foi luxo. E depois Advocacia foi interesse, porque eu pensei, com o diploma de advogado eu posso levar o meu interesse perante o juiz. O meu. E ninguém sabe melhor o meu problema do que eu. Eu não preciso contar para um advogado o meu problema. Então, eu vou fazer. É isso aí. Só com vocês, né?
P/1 – Pode ficar tranquilo.
R – Senão, o meu neto vai, vô. É porque para o pessoal, os netos, hoje, muita coisa eles não entendem, assim como eu não entendo muita coisa deles.
P/1 – Bom senhor Euclides, a gente está falando da chegada do senhor em São Paulo, em que bairro que o senhor veio morar?
R – Que bairro eu vim morar?
P/1 – Qual região?
R – Bom, isso tem bastante coisa para te falar. Vai começar a falar ou já não?
P/2 – Pode falar.
P/1 – Pode falar. Se quiser já começar a falar do bairro, contar um pouquinho para a gente.
R – Está gravando isso?
P/1 – Está. Está gravando. Pode falar.
R – Bom, então, eu cheguei em São Paulo com 17 anos de idade. E a primeira coisa que eu fui fazer naturalmente é procurar uma pensão para eu morar. Isso atendendo as informações que eu tive com um e com outro. E a pensão que eu encontrei, junto com um amigo meu de perto de Guaxupé, de Monte Santo, nós dois viemos juntos, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 371. Embaixo tinha uma mercearia, em cima tinha então a pensão da dona Maria, uma criatura boníssima. E fiquei lá um certo tempo, mas foi nessa pensão que eu sofri a mutação de engenheiro para comerciante. E tanto que logo que eu comecei a progredir bem e me julguei rico. E sai então da pensão da dona Maria, e fui morar na Avenida Higienópolis, numa pensão que tinha na Avenida Higienópolis. A Avenida Higienópolis tinha um ou dois prédios, não tinha mais nada. A gente pega o bonde, descia ali na Avenida Higienópolis, descendo a avenida e era uma pensão muito melhor, mais luxuosa. Nós todos também já estávamos ganhando muito bem, então, foi quando eu comecei a namorar. Um dos namoros a gente vinha passar aonde? Onde eu moro atualmente, na Praça Buenos Aires. Que a Praça Buenos Aires você sabe onde fica né? É ali. Eu moro em um prédio na praça, Rua Alagoas, 515. Abro o jardim de inverno, tem a praça ali abaixo. Mas naquele tempo a Praça Buenos Aires não tinha cerca, não tinha nada fechado. Era tudo tranquilo, solto, então, eu vinha namorar. Eu vinha com a minha namorada, depois casei com ela. Ali na Praça Buenos Aires. Então eu me lembrei disso por causa do neto, não? Eu um dia falei para o neto, porque eu fui levar ele no colégio, Colégio Sion, e falei assim: "Você acredita, comandante - eu chamo ele de comandante - que eu namorei com a tua vó aqui na praça?", "Ah, não, não é possível", "É, namorei aqui mesmo. E sabe onde eu morei? Onde tem um shopping center hoje". Aquilo ali foi derrubado, era ali que tinha um casarão antigo, muito bom. Eram duas casas e mais alguma coisa, derrubaram tudo e fizeram o shopping center. Era ali que eu morava na pensão. E a gente por farra, ainda tinha muito espírito de porco, então eu estava tentando fazer o CPOR, depois desisti. Então a gente saia, e naquele tempo tinha gente que entregava leite, o leite era em vidro, de boca larga, botava o leite nas casas. E tinha também um padeiro, que botava o pão embrulhadinho, tinha um lugar especial para pôr. Então a gente roubava, acordava quatro horas da manhã para ir lá no exercício em Santana, e bebia o leite ali na Avenida Higienópolis, na esquina da Angélica. Parece mentira, né? Mas o meu neto, não entra na cabeça dele. Não tinha um prédio de apartamento, tinha acho que um prédio. Hoje a gente abre a janela no meu apartamento, é um paliteiro, né. É isso aí, é uma experiência danada viu.
P/1 – Senhor Euclides, o senhor falou para gente que foi na primeira pensão que aconteceu essa mudança da Engenharia, aí que o senhor entrou no comércio. Conta para gente como é que foi a entrada do senhor no comércio, porque é que isso se deu, como que se deu?
R – Então, o começo da vida?
P/1 – Isso.
R – E a escola? No começo.
P/1 – Não, no comércio.
R – Não, mas eu estou te explicando.
P/1 – Ah, tá.
R – Eu ia a escola no curso noturno do pré-Engenharia. E depois me cansei daquilo, viu, e foi aí que eu arrumei o emprego na Rua Santa Rosa. Eu aprendi a escrever, máquina elétrica, levei 15 dias, mas consegui aprender aquilo lá, e fui ganhar o triplo do que eu ganhava ali em um negocinho que tinha lá da pressão, né? Então foi aí que eu me senti rico e mudei. O começo, olha como foi, sabe como começou na Rua Santa Rosa? Na Santa Rosa, você sabe, fica para lá do Tamanduateí. Tamanduateí passa pelo mercado, a Rua Santa Rosa é logo em seguida. Pois bem, eu saia a pé lá da Rua Santa Rosa, passava em uma ponte que tinha atrás do mercado, subia a Ladeira da Memória, e ia até o 371 da avenida. Olha que era, eu calculo, quatro quilômetros. Todo dia almoçava, ia e voltava. Isso que cansou também, entende? Mas foi aí também que depois eu comecei a progredir, o meu patrão era um homem excelente, José Fasciola, cabeça espetacular, pai do Rubens, que subiu na revolução. Rubens que escreve no Estadão aí todo sábado.
P/1 – Marcelo Rubens Paiva?
R – É, e muito bom e logo me fiz procurador da firma. É doido, eu com 18 anos era procurador na firma. Bom, dá licença? Então, foi a época que eu me casei, já casei, já tinha 26 anos, que foi uma das melhores coisas que tive na minha vida, ela já faleceu faz 16 anos. A maldita diabetes, que matou minha mãe também. Com 58 anos a minha mãe faleceu. Naquele tempo era difícil de tratar diabetes, coisa horrível. E a Ada também morreu disso, perdeu uma vista, foi ao Estados Unidos, fez aquela operação que o Tostão fez, mas enfim, perdeu, ficou com uma vista só. E aquele medo de operar catarata e perder a outra vista. Até que um dia foi preciso tomar decisão e graças a Deus ficou. E ela passou o resto da vida fazendo tricô e vendo tudo, até novela. E nesse ponto eu morava na Vila Mariana. E minha casa era muito grande, um casarão enorme. E eu chegava, por exemplo, às cinco horas da tarde, que eu gostava demais da minha mulher, viu. E ela estava lá fazendo coisa e eu olhava o janelão do quarto do meu filho, tinha dois metros e meio e ela abria aquilo, você sabe que não estou mentindo, eu via o sol se pôr no Morumbi, o sol se pondo. Quando eu resolvi vender a casa, já era morta, só com a minha filha, você abria a janela, e tinha um prédio de 20 andares na frente. Eu vendi tudo. Então, foi uma época meio tumultuada, mas foi aí exatamente com o José Fasciola, procurador da firma que eu embalei para os negócios. Sabe, então aí ninguém segura mais. Um pouco de coragem também e estou aposentando e estou satisfeito.
P/1 – E como é que era o trabalho do senhor, o dia-a-dia, as suas primeiras responsabilidades? Logo nesse comecinho? Conta um pouquinho do trabalho do senhor.
R – Como foi o trabalho?
P/1 – É, como é que era o seu dia-a-dia, suas responsabilidades, com o que o senhor mexia?
R – Mas do negócio? Do comércio?
P/1 – Isso, lá no comecinho.
R – Você sabe que o comércio é uma atividade que te absorve. Ou você faz, ou você não faz. Isso desde o dono de botequim, que trabalha, como um alto gerente da coisa. Você ou faz ou não faz. Então o comércio absorve. Houve dias de eu ficar no armazém ou no escritório 14 horas seguidas, sem comer. Que para ver tudo, olhar tudo, e tal. Então é uma fase de consolidação que você precisa ser macho, vamos dizer, senão não aguenta. Mas é aquela história, você recebe um impulso do próprio negócio. Então é seguido, você está sendo impulsionado para frente sem sentir. Ou porque você está contente de ver a coisa crescer, ou porque está contente de ver o resultado. Embora cheio de problemas, xingando, falando o diabo, né. Então foi assim que se cresceu, até que sugerido pelo José Fasciola, que nós acabamos com o atacado, compramos a segunda mercearia de São Paulo. Em São Paulo, em 1949, 50, 51, só tinha duas grandes mercearias. Mas mercearias quase do tamanho de supermercado hoje, um era o, como é que ele chama? Lá na Penha, que hoje o neto dele tem uma grande construtora aí. E a outra era a Casa Ribeirão, na Vila Mariana, ali na coisa. E nós compramos aquilo. Então aquilo foi um desastre porque é varejo, nós estávamos no atacado, passamos para o varejo. Varejo então absorve mais ainda, mas encanta mais. E era uma época, hoje se vai a um supermercado, você não passa de uma mera, você também, um mero empregado do supermercado. Que você tem que pegar o carrinho, andar com aquele carrinho, alguém bater o carrinho na tua perna, você tem que pegar a mercadoria, botar dentro do carrinho, escolher e até chegar na saída. Aí você tira tudo, então você não passa de um empregado. Isso aí não fala para o teu supermercado, senão vão me achar ruim, né. Eu não entro em supermercado, ainda mais depois dessa história da sacola que a minha filha falou, eu acho um absurdo isso, né. E naquele tempo era assim, a madame, a senhora, a freguesa, ela ia a hora que ela quisesse lá na mercearia, você recebia, botava um empregado a disposição dela e ela ia dizendo tudo o que ela queria. E eu pegando tal, tal, tal. Isso geralmente era, as pessoas faziam isso dia 25, até o fim do mês. Eram cinco dias trágicos. Depois mais cinco para separar tudo, então depois que ela tinha tudo aquilo, ficava a equipe depois de fechada às sete horas, para tirar da prateleira, botar nas caixas, separar o que você comprou, o que você quis, para botar nas caminhonetes. Caminhonetes levava na tua casa, chegava lá, você recebia, o empregado tirava e botava aonde ela queria. Então esse era o varejo. E não custava tanto, né? Mas era delicioso, porque as freguesas, geralmente era mulher, agradeciam, eram muito amistosas, perguntavam por família. Era uma espécie de família, uma família extra, mas era uma família. Até que também cansou, cansa, né? Aí então resolvi importação, aí então comecei a importação que é um negócio mais tranquilo e estou nela até hoje. Só que agora eu importo fruta. Que é horrível, porque fruta apodrece e, para você ver o problema da administração pública no Brasil, nós temos a Secretaria da Receita Federal e temos o Ministério da Agricultura. O Ministério da Agricultura tem obrigação legal de zelar pelo o que entra no país, e a Secretaria tem por lei o direito, mas não devia ter, de saber até que horas você vai no banheiro. Daqui a pouco você vai trabalhar para o governo. Então, eu compro uma carreta de fruta lá na Argentina, ou no Chile, ou na França, e essa carreta chega na alfândega. Na alfândega existe lá uma disposição agora que precisa um exame, porque tem uma praga chamada o Brevipalpus chilensis era o nome em Latim, né, não tem alguma coisa assim? Então, mas não pode, é uva, ela não pode ficar parada aqui. Então essa briga tem constantemente. Agora quinta-feira eu vou à Brasília, que eu sou o diretor da Confederação, eu vou deixar um recado para ser tratado com o Ministério da Agricultura e tal. Você tem que ter critério, está certo que você exporta, eu importo sabonete, automóvel, tudo, produtos industrializados, que pode chegar e esperar, ou no máximo você perde a armazenagem, que não é grande. Mas fruta se você vai esperar 60 dias, você vai abrir o container só tem água, apodreceu tudo né? Então, é preciso meter na cabeça dessa gente, que precisa haver critério, não é favorecer ninguém, é critério de apreciação. Então é uma luta que eu vou te contar, viu? Bom, você não está já satisfeita?
P/1 – E antes das frutas, o senhor trabalhou com quais outras importações?
R – Importação.
P/1 – Mas antes de trabalhar com frutas? O senhor sempre trabalhou com frutas, ou trabalhou com?
R – Não, sempre. Houve uma época que eu, que eu sou diretor também do Sindicato Produtos Químicos, que houve uma época, isso logo depois do varejo, o Brasil era muito carente de matéria prima. Matéria prima que hoje praticamente se tem tudo no Brasil, mas vamos dizer o breu, a soda cáustica, a parafina e mais uma série, enxada, arame farpado. Isso tudo o Brasil ele era carente, o que produzia era ruim e pouco. Então a gente importava isso, que era mais produtos químicos. Por exemplo, a parafina, que faz a vela e outras coisas era tudo importado. Então houve um tempo que nós fazíamos isso. Importei produtos que junto com o azeite, o bacalhau, uísque, vinho e tudo, entende? Mas agora não, agora é só fruta. E olha, mais brincadeira do que realmente negócio. Também já não dá mais para você entender certas coisas. A gente tem um espírito mais libertário e eu não posso entender que o poder público tem gerência no teu negócio, ou através de portaria, ou através de fiscal. Tá certo, você existe para cobrar impostos, então você tem que ser limitado a ver se eu paguei o imposto, acabou. Agora como eu faço as coisas que eu crio, tudo, você não tem nada a ver com isso. E aos poucos, isso tudo, olha, por favor, eu acho que eu vou parar de falar, senão daqui a pouco eu começo. Mas o que é que vocês trabalham, para o SESC há muito tempo?
P/2 – Não, é nesse projeto só. E para falar um pouquinho sobre isso também, a frutas que o senhor importa, uma vez aqui no Brasil, como é que ela é distribuída? Ela vai para o Ceagesp? Ela vai para uma outra central? Como é que ela é distribuída?
R – O ciclo econômico? Vamos falar de país, de Argentina, Chile, não de porto marítimo. Eu importo uma carreta frigorificada de maçã, tenho um fornecedor lá na Argentina, no Rio Negro, vamos dizer, conheço há muitos anos, ele manda essa… vai a Foz do Iguaçu. Em Foz do Iguaçu é processado o desembaraço, paga-se o imposto, paga-se o que deve e essa carreta vem para o Ceasa, ou vai diretamente para o cliente que comprou de mim, para Bauru, para Araraquara, para Rio Preto, conforme a potência do coiso. Aí essa carreta é descarregada, cada carreta traz 1130 caixas de maçã, vai para o frigorífico lá dentro do Ceasa. Tem um frigorífico, ela é guardada. E ali ela é exposta. Vai o feirante, vai o consumidor, vai o hotel, vai provavelmente um parente seu que gosta de fazer compra à varejo lá na hora, quer comprar caixa fechada. Ou então ali depois de estar essa mercadoria tranquila, porque ela deve ter 24, 48 horas de tranquilidade. Ela é vendida por aí, eu vendo dessas mil e tantos eu vendo 200 caixas para o Rio de Janeiro. Então tenho fregueses já cadastrados, ele encosta o caminhão no Ceasa, carrega as 200 caixas e vai embora, assim. Esse é o atacado. Atacado e varejo, porque se você quiser ir lá e dizer, comprar uma caixa disso. Não pode comprar uma dúzia que tem que abrir a caixa, não tem jeito né? Então é esse o ciclo. Tanto faz vir por terra, que tem Foz do Iguaçu, tem Santa Catarina, tem no Rio Grande do Sul. São os portos secos que a gente chama. E tem o porto de Santos, que é o que vem dos Estados Unidos, vem da França, que agora daqui a pouco vai começar a vir da França, da Espanha, a fruta. E fruta é uma coisa que você trabalha fora de estação, da tua estação. Então se você quer comer uma maçã boa no Brasil, você tem que comer até maio mais ou menos, junho. Porque ela foi retirada do pé, colocada no frio, e está bem. Agora se ela foi conservada em atmosfera controlada, que é um sistema moderníssimo de colher, ela pode ir até dezembro. Mas se você vai comer essa fruta em dezembro, ela é massuda, não tem tanto sabor. Então é sempre procurar, acabou a safra do hemisfério sul, Argentina, África do Sul, Chile, a safra aqui começa. Europa, começa Estados Unidos, Austrália, China, aí então se tem a guerra do preço, qualidade, o prazo, o tempo que tem de transit time, que a gente chama, o tempo de trânsito do navio. Você tem que coordenar tudo isso, para você receber uma fruta boa. E tem fruto que você pode trazer em container. Eu não estou falando demais não?
P/1 – Não, pode falar.
R – Tem fruto que você pode trazer em container frigorificado, excelente, não tem problema que a fruta é posta lá praticamente no pomar. Do pomar vai para o galpão, e já vai frigorificado, porque frigorífico é interno. E vai para o navio. Então essa fruta chega linda, mas é por navio. Outra por caminhão. Agora tem fruta que tem que vir de avião. Por exemplo, você daqui a pouco vai, nós estamos tentando fazer um negócio de cereja com a Espanha, que cereja é uma fruta muito delicada e precisa ver se ela tem o que nós chamamos aguante, se ela aguenta pelo menos três, quatro dias, uma semana. Então, põe no avião, por exemplo, o avião sai de Madrid meia noite, chega aqui ela é desembaraçada e já vai direto para o frio, então é 48 horas, está tudo resolvido. O navio demora 12, 14 dias. O caminhão demora uma semana. Agora também é só cereja atualmente que trafega por avião. Semente, o aspargo. O aspargo do Peru também vem de avião. Mas é um transporte caro. Por exemplo, eu recebi hoje uma cotação da Espanha, o frete de uma caixa de cinco quilos é 3,3 euros. Você multiplica, dá mais de quatro dólares por caixa. Por caixa, hein. Caixinha de cinco quilos, quer dizer quase um dólar por quilo. Então você precisa ver se convém trazer, porque também vai ficar em um preço que não se vai vender a vontade. Vai ser muito difícil vender, então você tem que em vez de trabalhar mil, trabalhar duzentos, experimentalmente. E é um problema, é gostoso. Se você está interessada.
P/1 – O senhor contou para a gente desses processos, também da atmosfera congelada, enfim, dessa sua trajetória trabalhando com a importação de fruta, eu queria que o senhor falasse para a gente as principais mudanças que o senhor acompanhou nesse processo de importação das frutas durante seu tempo trabalhando com isso.
R – Mudança maior eu cantei para você. Que era a maneira como nós servíamos no varejo e a maneira que você vai no supermercado. Mas a verdade é o seguinte, de um modo geral, não entrando em particularidades, a economia mudou muito, talvez tenha até evoluído. Não é mais uma economia de principiante, a produção decuplicou de tudo. Hoje você vê, a minha mãe tinha uma geladeirinha com uma pedra de gelo que levava uma por semana, e botava lá e tal. E você tem o frigorífico, tem frigorífico em casa. Então a economia hoje é completamente diferente, e eu acredito que até muito melhor, porque dá mais proveito. Há menos prejuízo, há menos perda. Então a produção que já decuplicou, dura mais. É verdade que está acumulado de imposto, está acumulado de custo. Geladeira para funcionar tem luz, tem tudo isso, é um conjunto. Mas de certa forma, ela se tornou um pouco mais competitiva, tem uma competição muito grande. Eu me preocupo muito com isso, porque eu talvez ache que não deveria ter tanta competição. Não só sobre o aspecto comercial, como o aspecto pessoal também. Essa guerra para entrar na faculdade, esse desespero da mocidade, será que isso, porque eu tive um caso aí, de um filho de um amigo meu, ele teve um breakdown por causa de uma faculdade de Direito. O homem é bastante inteligente para ter arrumado alguma coisa que suprisse essas dificuldades, que desse maior tranquilidade. Você já imaginou quantos gênios se perdem com essa guerra? Será que eu entro? Será que eu não entro? Será que tirei nota? Eu acredito que a perda de gênios é enorme, eu não posso quantificar, evidentemente, mas acho que a metade se perde, ou desiste, ou fica revoltado. Serve ao contrário, trabalha contra. Então é isso que eu acho. Quando eu tinha 17 anos, que eu sempre fui um ledor demais, eu me lembro que tinha um professor, eu tenho até um livrinho assinado por ele, e eu já tinha lido duzentos livros no quinto ano ginasial. Não é vantagem, não estou contando vantagem, estou dizendo para você ver que… Em 1940, quer dizer, eu deveria ter 27 anos, eu li um livro que eu tenho até hoje, do James ___1’08’’39’’’____, é um filósofo americano, eu me encantei com ele porque americano não dá filósofo, não é possível, pode dar um técnico, mas filósofo não. Então ele me impressionou muito pelo seguinte, ele em 1940, olha que são 70 anos atrás, ele dizia que o progresso tecnológico estava avançando de uma certa maneira que estava anulando as personalidades. Naquela época, fechei o livro, mas de vez em quando lia. O que é que está acontecendo hoje? O excesso de tecnologia tá anulando o homem. Eu quando estudava trigonometria no meu tempo, para calcular o seno ou cosseno, a tangente ou a cotangente de um ângulo, para resolver um problema, eu tinha que ir a tábula de logaritmos para fazer os cálculos e chegar à conclusão. Hoje o meu neto aperta o botão na maquininha, cotangente de 90 graus, xis, pronto acabou. Quer dizer, a capacidade de raciocínio é muito menor. Isso é uma anulação da personalidade. Ficou fácil demais da conta. Então isto está acontecendo com o comércio, aí vem os problemas. Quer dizer, a sacola, problema de sacola, isso foi no dia que foi comprado, mas foi sugerido porque custa caro, dá trabalho, vamos passar isso para a consumidora, o consumidor, fica mais simples. Porque disse que é poluidora. Como poluidora? E o resto tudo não polui também? Porque tanta coisa é posta em sacola de plástico, só porque é mercadoria de supermercado, é que está? Então de certa forma isso é preocupante, há excesso de tecnologia, está provocando a nulidade ou defasagem? Ele não falava assim, ele dizia assim, progresso da técnica está em uma velocidade xis, e o progresso da espiritualidade e da inteligência está em um de 20 menos xis. Então, o gap, a diferença, que o americano gosta muito de falar os gaps, né, vai ficando cada vez maior. Onde é que vai parar isso? Daqui a pouco você fica nulo, ou não? O que é que você acha?
P/1 – (Risos).
R – O que é que você acha?
P/2 – Concordo em partes.
R – É?
P/2 – Concordo em partes. Falando ainda um pouquinho sobre a distribuição da fruta aqui no Brasil, gostaria que o senhor falasse para a gente a importância da instalação do Ceagesp. Como é que transformou a importação para o comércio?
R – O Ceagesp é absolutamente imprescindível. Tem um erro de formação, como tudo em São Paulo: aquele que foi projetado pensando que era grande demais, hoje é pequeno demais. Então o que é que acontece, aquilo que lá está é imutável, ninguém pode mexer naquilo. Só o custo de demolir já é uma barbaridade, embora o terreno valha absurdo. Então, o que foi construído, é como a Via Anchieta, quando o Adhemar de Barros fez a Via Anchieta, eu fui um dos caras, falei, esse cara é louco, que é que ele vai fazer uma estrada desse custo. Então, o Ceagesp quando o Adhemar fez, foi o Adhemar também, né? Não me lembro. Era enorme, era grande. Hoje você vai lá em um terça-feira de manhã, você vê que aquilo lá é pequeno. A carreta maior que existia na época que ele foi feito, era de dez toneladas, não era carreta, era o… chamava aquele caminhão duplo. Hoje para uma carreta de 30 toneladas para manobrar, para encostar é um tremendo… O que eu sempre pensei, o Ceagesp é intocável, isso eu falei com o Governador Alckmin, não nessa gestão dele, na anterior. Que estavam falando que precisava acabar com o Ceasa e fazer outra coisa, outra o que. Eu fui contra, eu disse absolutamente Governador, o que tem que ser feito é o contrário, você tem que fazer outras unidades menores em diversos pontos de referência. Naquela época o Anel Rodoviário estava começando. Falei, vai ter um Anel Rodoviário? Faça em cima do Anel Rodoviário vários Ceasas, não do tamanho desse, um pouco menor. Ou onde for caber, faz outro tamanho. Porque o problema, está superlotado, e qual é, você fala, bom, está superlotado, e daí? Bem, tem problema de droga lá dentro, é horrível, e não é por causa de comerciante, vendedor de fruta, não. É por causa de gente que se agregou, é por causa do volume de gente que tem. Problema de ordem antiga. Tem menina de 12 anos se vendendo, para caminhoneiro do interior ali na cara da gente. Dá vontade de bater. E acha que está tudo muito bem, está tudo muito certo. É o grande problema, essa é a minha opinião, o Ceasa é intocável, mas ficou pequeno demais. Ou São Paulo cresceu demais. Eu não sei. E não está se providenciando nada para curar.
P/1 – Só um momentinho que...
R – ... esse livro?
P/2 – Olha, provavelmente vai ser no ano que vem, no começo do ano que vem. É o prazo que nós estamos nos dando. Nós vamos trabalhar nele o ano inteiro.
R – Bom, logo que ficar pronto o Galina vai me mandar.
P/2 – O senhor como depoente, o senhor ganha um com certeza.
R – Você sabe que eu pago, eu que assino os pagamentos por vocês.
P/2 – Ah, é?
R – Não é o Abraão, não.
P/1 – Isso aí é importante.
R – Eu sei quanto vocês cobram, tudo isso aí.
P/1 – Bom, senhor Euclides, conta para gente um pouquinho da sua equipe lá no Ceagesp, como que funciona a operação? Quantas pessoas são que trabalham com o senhor?
R – Mas isso não é muito importante, viu, eu acho que eu já tive mais de 40 empregados e hoje eu tenho praticamente cinco, seis, porque o meu tipo de negócio é outro. Então isso, número de empregados, agora o que eu movimento aí é grande. Porque é esse o defeito da economia. A economia se desfocou, então você pode ser uma coisa muito importante da economia e não exerce, por exemplo, você não atende empregos. Você não depende de empregos, uma parte porque o computador, o Skype, as comunicações, tudo, tirou a secretária, tirou o datilógrafo, tirou uma porção de gente, né? Eu aperto um botão, eu ligo com a França e vou, você vai embarcar ou não vai embarcar? Ele, não, não pode, que eu não. Então coisa que há muitos anos você passava um telegrama, o telegrama chegava lá dois dias depois, ele dois dias depois chegava aqui, você ia buscar na Rua 15 de Novembro. Depois disso teve o telex, que já ficou mais rápido, então foi diminuindo, as pessoas. Será que isso é bom?
P/1 – E a relação com os países da sua operação? Quais os países que o senhor trabalha? Como é que é a relação com eles? Como é que se dá o contato? Fala um pouquinho para a gente. O senhor falou Argentina, Chile.
R – Bom, hoje não é mais importante você conhecer pessoalmente nem chileno, nem argentino, nem nada. Sabe por quê? Se eu pedir o currículo meu, você vai ficar sabendo detalhe da minha vida, é só ler. E não demorou cinco minutos. A mesma coisa que eu quero saber, o fulano de tal é o diretor da exportadora tal, do Rio Negro, depois de quinze minutos eu tenho tudo aqui na minha mão. Então diminui tudo isso aqui, quer dizer, a presença talvez seja necessária para um contato inicial, de confiança, principalmente no meu negócio. A confiança é muito importante, por uma razão muito simples porque é de muito risco o negócio. Não é negócio que não oferece risco, não é um risco moderado. É um risco que pode perder a mercadoria, então o primeiro contato e ainda é um negócio que depende muito da palavra, tanto que você vai achar estranho, no meu negócio não tem nada escrito. Eu faço o pedido, assino, mando. Eu só falo no Skype, olha, embarca isso. Ele embarca e sabe que só um acidente é que pode perturbar. Também está mudando, porque tem muito malandro no circuito. É o laranja, é aquele que encontrou uma forma de registrar uma firma lá em Foz de Iguaçu e que recebe a mercadoria por canoa. O rio que atravessa canoa de noite, e vem aqui vender por 20% mais barato do que eu. Tem isso tudo? Tem. Mas também é limitada, não perturba.
P/1 – E como que se dá esse primeiro contato? O senhor vai atrás de novos parceiros? Eles oferecem? O senhor recebe muitas ofertas? Como que acontece isso?
R – Como acontece?
P/1 – É.
R – Com estranho?
P/1 – É, na hora de fechar um novo negócio, uma nova parceria.
R – Por exemplo, quando a gente tem que acertar as contas, fim de safra, ou eu vou lá, ou ele vem cá. Então eu sei, por exemplo, que o europeu é doido por uma carne, então a gente vai em um restaurante, come uma carne, etc. É, isso é normal em tudo, né? Você quando tem um cliente muito importante que não sou eu, você também tem que.
P/1 – Mas o senhor sempre trabalha com as mesmas frutas, ou o senhor as vezes acrescenta uma nova fruta? Como que funciona isso?
R – Não, a fruta pode variar qualidade, por exemplo, você tem uva, a uva dez anos atrás era a uva branca e uva escura. Hoje você tem a uva black… tem vários tipos de uva, mas é sempre a mesma uva. Quer dizer, a mesma fruta, mas a qualidade, o gosto, tudo é diferente. Varia muito isso, paladar. Mas a fruta é a maçã, a pera, a uva, o pêssego, a nectarina, há anos que são essas. É melancia, que eu não trabalho, eu não trabalho com fruta nacional, só estrangeira. Entende? Fruta é fruta. Que aliás é a coisa mais valiosa que tem como alimentação na minha opinião é a fruta, viu. Não tem dúvida. Agora, depois que os japoneses começaram a plantar fruta, olha eu vou te contar, caqui quando eu era criança, era proibido comer, porque era adstringente, você comia a boca fazia assim, né. Hoje você vê, o caqui é uma maravilha. Japonês quem inventou. E quantos tipos de cabeça-de-negro, de amora. O japonês criou uma série de variações em uma fruta. O pé da fruta praticamente é o mesmo, ou então enxerto, para você ver, nectarina não existia. Mas existia o pêssego e existia a outra… Cruzaram as duas, fizeram um enxerto, deu a nectarina, que é uma delícia também.
P/1 – Senhor Euclides, o senhor falou que tem cinco funcionários. Qual é que é a função de cada um deles? Como que está dividido a distribuição do trabalho?
R – Tem um gerente de fruta, um gerente de vendas, que é o mais importante. E tem quatro ou cinco atendentes que carregam a fruta. Por exemplo, você vai lá e compra dez caixas de maçã, ele abre o frio, pega a fruta, traz nos carrinhos e põe no teu caminhão. É isso aí. Agora no escritório tem a secretária, tem o office boy, tem quatro, cinco também. Isso é suficiente. Já teve armazém com 40 empregados. Dez motoristas, dez viaturas, mas era diferente, você precisava carregar um caminhão para levar a mercadoria em São Bernardo, por exemplo, para um freguês que está em São Bernardo. Você tinha que levar lá para ele. Hoje não tem mais isso. Vai mudando.
P/2 – E como é que esse cliente de São Bernardo vai conseguir a fruta dele?
R – Hein?
P/1 – Como é que agora é feito a entrega para São Bernardo? Não é mais o senhor que manda? Como é que ele consegue a fruta?
R – Não, isso é, geralmente ele vem aí e compra. Porque também, o sistema do comprador também mudou muito. O sistema hoje do comprador comum é o do feirante antigo. O feirante antigo, eu tinha grandes amigos, a gente tinha arroz, feijão, batata, uísque, vinho, tudo lá no armazém. O feirante terminava a feira à uma hora, duas horas da tarde, e ia para a Rua Santa Rosa. Ia no meu armazém, no armazém do outro, pesquisar. Aí ele escolhia, eu quero tantos sacos desse arroz, eu quero tantos sacos de feijão, uísque eles não tomam. Aí vinham fregueses diferentes, porque eram barracas diferentes. Hoje é mais ou menos a mesma coisa, mas o comprador não vem mais, ele vai aonde quer ou então por computador ele pede, quando são marcas conhecidas, quando é tudo. E aí nesse caso você contrata um terceirizado que leva a mercadoria lá, você não precisa mais ter aquele problema de caminhão, ajudante de caminhão, motorista, avó do motorista, a mulher do motorista, que fica doente sempre e ele falha.
P/1 – Senhor Euclides, o senhor sente alguma diferença entre as exigências dos clientes de antigamente para os clientes de hoje? Mudou alguma coisa?
R – Não, na essência não. Olha, o que não mudou na minha opinião é o relacionamento do patrão e do empregado. O patrão que é uma porcentagem enorme, eu já te disse que fez alguma coisa, esse tem um tratamento diferente, ele respeita o empregado. Não é uma indústria com três mil empregados que ninguém conhece ninguém. Geralmente o comerciante, a parte do supermercado que deve ter muita gente, né? O comerciante normal geralmente tem poucos empregados e tem um relacionamento pleno, não tem problema. Se bem que antigamente, o patrão era convidado a ser padrinho do filho, padrinho da moça que ia casar, levava tudo. Hoje não tem mais isso. Mas o relacionamento é bom.
P/1 – Em relação as frutas, os clientes passaram a ter mais exigências, em relação as frutas?
R – Como fruta?
P/1 – A qualidade das frutas? Não sei. A variedade?
R – A qualidade ou a variedade?
P/1 – As duas coisas.
R – Hoje você, vou ser bem claro com você. Porcaria você não vende mais. Ou você vende uma coisa com qualidade ou não tenha. Porque se você vende uma coisa de péssima qualidade, olha, hoje já não existe mais coisa de péssima qualidade, não tem. Que a conservação é tão boa, em matéria de fruta eu estou falando que tudo o que você oferece tem que ter qualidade. Se não tiver qualidade é melhor não pensar em matéria de fruta. E vou te dizer, a qualidade é ótima, não tem dúvida nenhuma. Seja fruta de caroço que a gente chama, ou fruta de suco. Você vê, tudo, a melancia você não vê como é gostosa e como é bonita, tudo isso? O consumo é muito grande, a produção não está atendendo o consumo. Não dá para apodrecer.
P/2 – A maior parte dos seus clientes hoje, quem são eles? É o pessoal da indústria? São supermercados? São as pessoas que vão comprar para consumo próprio ali no Ceagesp? Quem é a maior parte dos seus clientes hoje?
R – A freguesia maior na minha opinião ainda é a feira. Em São Paulo, na capital ainda é a feira. Porque a feira tem uma rotação muito grande, coisa que os empórios não têm, coisa que o supermercado é bitolado. O supermercado você tem uma variedade enorme de coisas, você entra no supermercado e tem vontade de comprar de tudo. Mas a feira dá uma circulação violenta da mercadoria, ela as vezes leva em um caminhão dele, arma a barraca, quando ele chega no fim do dia, ele não tem mais nada. Então ele imediatamente vai, e aí te dá rotação, quer dizer, não tem problema de capital de giro. Que ele vai esperar receber para te pagar, ele geralmente quando vai lá, quanto é isso aí? Eu quero pagar. Ou é cheque, ou é cartão, ele liquida na hora. É um comércio de liquidação imediata. Então isso dá um giro fabuloso, é mais do que um banco. Na minha opinião, isso é particular. E outra, os pequenos, os médios estabelecimentos, não os grandes, nem os pequenininhos. Mas o médio que geralmente é o marido, a mulher, o filho, tal que vão lá, carregam no seu carro, pagam e saem. Esse dá muito bem. Isso em matéria de fruta, flor é diferente, peixe é diferente. É outro tipo. Como é que fala? Essa abóbora, melancia, tudo tem outro tipo de negócio também, né? Cada um tem o seu. Também o feirante que vai atrás da fruta estrangeira, não vai atrás da melancia.
P/1 – Agora eu vou perguntar um pouquinho para o senhor sobre os sindicatos. Queria que o senhor falasse, o senhor participa, tem algum sindicato de importadores? Ou até o sindicato dos seus clientes? O senhor lida com...
R – Eu presido o Sindicato do Comércio Atacadista de Frutas. E sou o delegado do Sindicato do Comércio Atacadista de Gêneros Alimentícios.
P/1 – Fala um pouquinho dos dois para gente.
R – Então, eu estou inteiramente a vontade para falar sobre tudo isso. Ah, uma coisa que eu esqueci, que você nem perguntou, eu fui Secretário de Abastecimento do Governo do Colasuonno. Então eu tentei imprimir na administração do Prefeito Colasuonno, empresariado. Eu acho que eu sempre disse para ele, você que é prefeito, você precisa ser um empresário, você precisa saber o que o teu freguês quer e o que você tem para vender. Você deve ter coisa muito boa para vender para a tua freguesia, que é o voto, tudo isso, né. Eu vou só te dizer dois fatos que caracterizaram a minha administração, houve uma época de safra de laranja, que deu laranja até em pé de abacaxi, viu, uma coisa impressionante. E houve uma grita, vai perder tudo, o pessoal de Limeira, que naquele tempo era o foco da coisa, vieram lá no meu gabinete e falaram: "Olha, está assim, assim, será que o governo não pode ajudar nós?", eu falei: "o governo não ajuda ninguém, você esqueça disso." Mas o que é que, eu falei assim, dá a laranja para o povo comer, ué. Você está acostumado a vender a dez, põe a cinco. Mas você vende o triplo. Você ganha a mesma coisa. Resultado, falei com o Miguel Colasuonno e falei assim: "Olha, não vamos liberar durante 30 dias todos os pontos da capital de São Paulo, onde couber um caminhão pode pôr esse caminhão para vender laranja para a população a preço de xis. Quanto é que você pode vender laranja?", "Ah, nós vendemos um saquinho.", falei: "Não, o menor preço, hein", não me lembro mais quanto. Se fosse dez reais, era dois. Resolveu o problema, não jogou nada fora. Então eu falei para o Miguel, está vendo, isso é ser empresário. Se você vai resolver isso através de decreto e parecer, você não vai fazer nada. Você tem que tomar a decisão e limpar a área. Outra coisa, um grupo de engenheiros, deve ser funcionário público, resolveram fechar o mercadão. O mercado tem que virar um ponto de turismo só, então vai tirar tudo dali. E a reunião dos Secretários lá no Ibirapuera eu estou sentado, estou ouvindo, eu não entendo de engenharia, eu não sei de nada. Aí me deu a palavra, falei assim: "Bom, eu quero saber em primeiro lugar, fecha o mercado e onde vai abrir outro mercado? Porque é preciso por mercado. O mercado é, ou mal ou bem, é necessário. Então quero saber, se vocês vão acabar com o mercado, o que é que vai ficar no lugar para fazer o mesmo trabalho?", "Ah, isso não tem importância." Palavra de honra, eu falei assim: "Bom, senhor Prefeito, o senhor vai me dar licença porque eu vou me retirar da reunião, aqui ninguém entende de abastecimento. Vocês quando sentam na mesa de manhã e tomam café e tomam não sei o que, o senhor não sabe como isso chega na vossa mesa. O dia que vocês souberem como isso chega aí vocês podem falar." E fui embora. Acabou a ideia, viu. O mercado está aberto até hoje. Só que fizeram turismo, né. Estão vendendo pastel de que? Pastel de bacalhau? Está bom, agora chega, né? Olha moça, você é saca-rolhas. Você também. Você sabe o que é saca-rolha, né?
P/2 – Sim. A gente vai perguntar um pouquinho da sua parte de vida pessoal.
P/1 – Só para a gente encerrar sua história. É rapidinho. Tá bom? Aí eu queria que o senhor contasse um pouquinho hoje, a gente já sabe da tua atividade atual, mas fala um pouquinho do que o senhor gosta de fazer?
R – Fala mais devagar.
P/1 – Como é que é o dia-a-dia do senhor? O que o senhor gosta de fazer nas horas de lazer? O senhor falou dos seus filhos?
R – Como pessoa humana?
P/1 – Isso.
R – Porque é que você quer saber da minha pessoa?
P/2 – Fazer um fechamento, para completar essa história do senhor.
R – Bom, olha meu filho, eu já tive muito hobby, mantenho um, que é colecionar moedas, moeda brasileira. Tenho até hoje, mas não ligo muito. Segundo hobby meu é leitura, porque na minha idade eu já não tolero televisão, porque outro dia eu estava vendo uma televisão, outro dia não, o ano passado, junto com a minha netinha que tinha oito anos. Estava um filme interessante lá, mas de repente uma cena de sexo explícito. Eu não vou olhar mais essa porcaria aí. Então geralmente eu não vejo televisão. Vejo filme na televisão. Outra coisa que eu gosto muito, você vai achar graça, é rezar, viu? Gosto de rezar. Eu acho que paz é só rezando, viu. E não importa se é reza do Papa, ou reza de coisa, coisa que eu invento está bom. Eu gostava demais de fazenda, ia toda semana para lá, mas a idade também já está me tornando um pouco devagar, sabe, comodista. É isso só, no mais. É porque também viajar eu viajei muito com a minha mulher, com a minha esposa. Depois que ela morreu também desapareceu, não tenho. E até hoje não casei, apesar de que a fila está grande ainda, atrás.
P/1 – E o senhor sente falta daquele trabalho que o senhor fazia lá no começo, nas mercearias?
R – Não. Mas eu não tenho pelo seguinte, porque eu tenho um sistema, eu deito às dez horas, sistematicamente. Tenho ou não visita eu deito às dez horas. A não ser um acidente e tal, né. Acordo às quatro e meia da manhã, faço ginástica, faço minhas orações, geralmente acordo com fome porque eu não janto, e depois vou para o escritório. E trabalho sistematicamente, sete, oito horas por dia, fora os dias que o Abraão vai viajar e eu sou obrigado a vir aqui, ou que o Galina me manda as pastas, tem em cima lá do coiso duas pastas desse tamanho para assinar. Então eu tenho ocupação. Do trabalho eu não sinto diferença não, e acho bom trabalhar. Trabalhar é uma coisa muito boa.
P/2 – O senhor já falou que as suas filhas não são comerciantes, elas não trabalham nessa área. Mas o senhor gostaria, quando eles eram criança, o senhor gostaria que eles tivessem se encaminhado para isso? Que eles assumissem a sua importadora no futuro?
R – Quando criança? Se eu tive a ideia?
P/1 – Você gostaria que seus filhos também se dedicassem ao comércio? Assumissem a sua importadora?
R – E o meu pai tinha um grande comércio, eu estava lá como criança, mas não. Que pergunta interessante viu? Eu não assim, eu só comecei a me encantar com comércio com 17 anos. Agora eu sempre me encantei com trabalho, entendeu, eu sempre gostei de ver movimento. Tanto no esporte, na natação. Talvez seja isso aquela mexida do comércio, carrega o caminhão, briga, aquilo lá me encantou, tomou conta de mim.
P/2 – Como é que o senhor vê o futuro da sua empresa? O que você imagina para o futuro da sua empresa?
R – Ah, o futuro é um. Olha, que futuro eu posso ter, o meu filho é médico, médico muito bom, conceituado e gosta de Medicina. A minha filha é arquiteta profissional, gosta muito de desenho. Nunca foram na minha firma, ou iam lá para me buscar, ou coisa que o valha. Não tem nenhum espírito de comércio, não tem de jeito nenhum. Então minha firma chegou aí, eu morri, tem o meu testamento, fecha e tchau. A fazenda é, se eles não quiserem, vendem, os imóveis vendem se não quiser. Agora, eu cumpri a minha missão, não quero nem saber. Eu não estou preocupado com a minha firma.
P/1 – Senhor Euclides, quais foram os seus maiores aprendizados, as suas maiores missões durante essa tua trajetória no comércio?
R – Na trajetória do comércio? Uma coisa que eu me vanglorio, e vou falar só uma. Vocês são muito criança e não sabem, mas houve uma época, no tempo que o Jânio Quadros era Governador do Estado de São Paulo pela primeira vez, ele era um homem irascível, difícil. Mas o chefe de gabinete dele, o doutor, não me lembro o nome, era muito meu amigo, porque era advogado da nossa firma. Ele e o professor Soares de Faria, que era o professor da faculdade, eram os dois e o filho do professor, que era o Abel. Então, ele foi, e houve uma crise, não sei se vocês já ouviram falar, do cancro cítrico. Já ouviu falar. Então era um negócio muito sério, estava dando cancro cítrico nos laranjais de uma tal maneira que ia acabar com a laranja no Brasil, principalmente no Estado de São Paulo. E era uma coisa difícil de acreditar, mas eu tinha um amigo que tinha uma fazenda aqui perto de Araraquara, uma fazenda muito grande, eu perguntei para ele, falei assim: "Escuta, é verdade?", "É verdade, infelizmente eu estou ameaçado de perder muito porque é uma praga que você não pode imaginar, se você pega um galho infectado e leva em um laranjal, em três, quatro dias está tudo tomado, vai acabar". Eu era presidente do Sindicato do Comércio Atacadista de Gêneros Alimentícios, eu falei: "Olha, você me garante que é isso mesmo, rapaz?" Telefonei para aquela que era secretária do Jânio, a Kalime, famosa Kalime. Doutora Kalime, a senhora não me conhece, eu sou o Presidente do Sindicato, aquela farofa toda e eu precisava falar com o, como é que fala? Ele era chefe de gabinete, o vice, né? Foi presidente do centro acadêmico da faculdade de Direito, nem me lembro o nome dele. "Ah, você quer vir agora?", eu falei "Vou, ele está aí?", "Está". Ele estava esperando a mim na porta. Eu era freguês dele, cliente. "Está acontecendo um negócio muito sério, você já ouviu falar nessa cancro cítrico?" A economia do Brasil que hoje se exporta suco, milhões de dólares, se acontecesse o que iria acontecer naquela época nós não estaríamos exportando. Porque a laranja tinha desaparecido do Brasil. Contei a história para ele, tudo. Ele me olhou assim: "Olha, você é da Santa Rosa hein", eu falei: "Não, o negócio é sério". Como é que ele chamava gente? Puxa vida. Eu falei: "Não, o negócio é sério, quem me falou é pessoa de confiança, se você quiser", "Mas é um negócio tão grave assim?", falei: "É", ele falou: "Não tem luz, espera um pouquinho". O Palácio do Governo era aqui na Duque de Caxias, né. "Vem cá, está o Jânio", "Muito prazer, não conhecia". Então ele começou falar com o Jânio: "Jânio, tá acontecendo isso", eles eram muito amigos, não o Governador. "Jânio, o negócio é sério, o Euclides aqui é sério, não está brincando". Aí ele falou assim: "Moço, me conta então essa história", eu falei: "Se o senhor permite eu falar tudo o que eu sei." E falei para ele mesmo. Ele falou: "Mas é possível que acabe a minha laranja?", eu falei: "é possível não, é certo", ele falou: "O que é que é que os senhores acham que, porque eu falei, não sou eu, que eu não planto laranjeira, estão dizendo que onde tiver a praga, queima. Queimar a laranjeira? Vocês estão loucos", eu falei: "É o único remédio". Ele pegou, ficou assim, por isso que eu gostava muito do Jânio, viu, não tinha amizade com ele. Ficou assim parado: "Mas isso é verdade, senhor?", eu falei: "É verdade, o negócio é sério. É muito sério, não é brincadeira, não." Ele falou: "Eu vou confiar em você hein, se o negócio é tão sério assim, vai influenciar a economia do estado e eu sou responsável por essa economia. Eu vou tomar uma decisão, se não tiver certa, você que vai pagar." Apontando para mim assim. Falei: "Eu assumo a responsabilidade." E você sabe, ele mandou queimar vários laranjais em pontos, o diabo do homem era duro, viu. E cumpriu, falou viu. Era fogo, não tinha outro jeito, tem que queimar. Perca quem perder, mas é o único jeito de parar. E foi o que salvou. Disso eu me vanglorio, está bom? Porque você pode exportar laranja hoje por minha causa. Bom, chega, né?
P/1 – Está ótimo. Muito obrigada viu.
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