Plano Anual de Atividades 2013 – Pronac 128.976 – Whirlpool
Depoimento de Cleide Barbosa dos Santos Dará
Entrevistada por Márcia Trezza
Joinville, 10/05/2014
Realização Museu da Pessoa
WHLP_HV028_Cleide Barbosa dos Santos Dará
Transcrito por Ana Carolina Ruiz
P/1 – Cleide, nós vamos conversar a entrevista. Qual é o seu nome completo?
R – Cleide Barbosa dos Santos Dará.
P/1 – Onde você nasceu?
R – Eu nasci em Lagoa Grande, Bahia.
P/1 – Quando?
R – 26 do quatro de 1970.
P/1 – Qual o nome dos seus pais?
R – É Adedina Gama dos Santos e Zeferino Barbosa dos Santos.
P/1 – Qual a atividade do seu pai, principal?
R – Ele era marceneiro e carpinteiro.
P/1 – Ele é vivo ainda?
R – Não. Não.
P/1 – Sempre desenvolveu essa atividade?
R – Sim. Sim. Era a profissão dele.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe é dona de casa e costurava também, mas só pra família.
P/1 – Cleide, sua mãe você estava dizendo que era dona de casa.
R – Sim.
P/1 – Mas também?
R – Ela costurava, assim, um pouco, por isso que eu fui pegando as coisas dela. Porque ela de vez em quando estava na máquina e eu sempre estava curiosa ali perto, observando o que ela tava fazendo.
P/1 – Ela costurava pra fora ou só pra família?
R – Mais pra família, mas costurava pras minhas primas, né, minhas tias. Não profissionalmente, assim, pra ganhar dinheiro, mas sempre estava fazendo alguma coisa.
P/1 – Mas não cobrava por este trabalho?
R – Não.
P/1 – E que lembrança você tem do seu pai de quando criança ou jovem?
R – Ah, minha lembrança dele é mais na marcenaria trabalhando. Porque ele era o provedor da casa, então, assim, a parte afetiva ficava mais por conta da minha mãe. Ele só trabalhava. Domingo a domingo.
P/1 – E você se lembra dele trabalhando assim, tem alguma cena assim que você até hoje lembra?
R – Olha, tem várias.
P/1 – Fala pra gente.
R – Tem várias cenas, assim. Eu me lembro dele quando era pequena principalmente porque quando era pequena não tinha esse maquinário todo assim. Ele não tinha. E eu me lembro dele com a enxó tirando as lascas da madeira. Eu me lembro do banco da marcenaria e a gente sempre por perto, eu e meus irmãos.
P/1 – Vocês brincavam com alguma coisa ali na marcenaria?
R – Não porque ele não deixava muito, porque são ferramentas um pouco perigosas. E eu principalmente, né, porque era menina, ele não deixava. Meus irmãos, sim. Meus irmãos desde pequenos ele já levava junto pra aprender.
P/1 – Quantos irmãos homens você tem?
R – Eu tenho cinco irmãos homens.
P/1 – E mulher?
R – Três. Três comigo, né? Tem mais duas e eu.
P/1 – E outras cenas que você falou que se lembra dele na marcenaria?
R – Eu me lembro dele fazendo o trabalho ali dele, lixando, pintando... Envernizando na verdade.
P/1 – Cleide, o que é tirar isso, essas lascas da madeira? Como que é? Tira da madeira bruta?
R – Sim. Antigamente não era como hoje, você achava com toda a facilidade as madeiras já todas beneficiadas. O marceneiro tinha que beneficiar. Aí ele tinha que cortar com uma enxó, uma ferramenta que parece um pequeno machado. Depois passava plaina de mão, tudo era mais braçal, mais manual. Era pouca tecnologia naquela época.
P/1 – E você falou que a parte afetiva ficava mais com a sua mãe. E dela? Que lembranças você tem?
R – Olha, é muita coisa, assim. Eu me lembro dela sempre cuidando da gente. E como eu sou a irmã mais velha sempre ajudando ela, dando suporte, desde muito cedo, né, com os meus irmãos. Porque eu sou a segunda. Tem só o meu irmão mais velho, e das mulheres eu sou a mais velha. Então eu fiquei incumbida a vida inteira de ajudar ela nas tarefas domésticas, de ajudar cuidar dos irmãos, de tudo, né? Desde muito cedo.
P/1 – Vocês moravam mais afastados do Centro ou mais perto?
R – Não. Nós morávamos na cidade.
P/1 – Na cidade. E você disse que ela costurava e você ficava olhando.
R – Sim.
P/1 – Teve alguma situação assim que acontecia sempre de você com ela observando na costura?
R – Não. Sempre tava por perto dela, porque sempre sobrava retalho, aí eu queria aprender a fazer roupa pras minhas bonecas, né? Aí eu já pegava os retalhos que sobravam, que eu via que estavam sobrando ali e já tava juntando as coisas e fazia.
P/1 – Como você fazia?
R – Ah, aprendi sentar na máquina e fazer. Fazia na mão. E quando eu tinha uns dez, onze anos eu fazia roupa pras minhas bonecas e ainda vendia pras minhas amigas, ainda (riso).
P/1 – Inventava o modelo?
R – Inventava.
P/1 – É mesmo?
R – É. Fazia parte das brincadeiras também.
P/1 – Cleide, e ela ensinava você ou você aprendia só de olhar mesmo?
R – Ensinava algumas coisas, mas a maioria era de observar. A maioria das coisas que eu faço foi pela curiosidade e pela observação. E a tentativa, né? Porque você vai fazendo, fazendo até que você alcança ali o que você quer. E eu aprendo mais é minha... Acho que eu sou assim. Eu desde pequena aprendi dessa maneira, mais pela observação e o tentar fazer que até hoje eu funciono assim.
P/1 – Cleide, você com dez anos ou menos já pegava tesoura, agulha?
R – Já. Já. Já desde muito cedo. Aprendi a fazer ponto cruz, né? Aprendi por curiosidade na escola, que a professora passou uma tarefa de Educação para o Lar, só que era pro meu irmão, que era bordar em ponto cruz. Minha mãe ensinando e minha vó ensinando, que ele tinha que concluir esse trabalho, e foi nessa época que eu aprendi a bordar. Era tudo torto assim, mas eu peguei.
P/1 – Que idade você tinha mais ou menos?
R – Nossa, uns oito, nove anos. Aí foi que eu aprendi ponto cruz. Minha mãe me deu uma ajudazinha, minha vó, aí eu peguei a coisa e fui embora.
P/1 – E você disse que na escola você também teve esse trabalho.
R – É. Nós tínhamos Educação para o Lar e Educação Artística na época. Então estimulava isso aí. Educação para o Lar eram as coisas de casa, né? Era aula de etiqueta, era aprender a fazer uma bainha, aprender a pregar botão, aprender a bordar.
P/1 – Os homens também?
R – Sim. Porque era uma matéria pra todos. Tinha as industriais que eram mais voltadas pros meninos, mas nós também participávamos, que era essa parte de marcenaria, dessas coisas.
P/1 – E você começou a estudar logo assim cedo?
R – Sim. Com sete anos eu já entrei na escola.
P/1 – E você tem uma lembrança da escola, de algum professor ou de alguma situação?
R – Nossa, minha lembrança da escola é bem nítida, assim. Desde o primeiro dia de aula assim, porque eu gostava muito.
P/1 – Como foi o primeiro dia?
R – Ah, eu tava muito curiosa. Eu muito, muito curiosa. O primeiro dia foi mais inauguração da escola, teve um evento grande. Eu sei que nós tínhamos que estar todos alinhados, que o uniforme tinha que estar impecável. Eu lembro bem desse dia. Foi um dia muito, muito bom.
P/1 – Alinhados o quê? Um atrás do outro?
R – É. O ruim é que nós ficamos muito tempo de pé. Tinha que ficar lá em pé e ouvir discurso que a gente não entendi a muito bem o que era. Eu não tinha nem sete anos direito, aí foi sofrido mais por isso, porque nós ficamos horas em pé e escutar discurso que criança não tem muito...
P/1 – E professor teve algum assim, durante todo o período de escola que te marcou?
R – Nossa, tem uma professora que ela foi minha professora no primário e até o nível médio, que era a professora Jaílda. E o nome da minha primeira professora, eu lembro que o nome dela era Rosa.
P/1 – E essa Jaílda te marcou por quê?
R – Ah, porque ela acompanhou assim minha fase, porque eu estudei numa escola só. Eu nunca troquei de escola. Entrei na primeira série e até concluir o nível médio eu estudei numa escola só.
P/1 – Como chama a escola?
R – Fundação Bradesco. Estudei na Fundação Bradesco a minha vida toda. A minha segunda escola agora é a faculdade, né? Mas a minha formação toda foi na mesma escola.
P/1 – E essa professora te marcou por quê?
R – Porque eu acho que ela acompanhou assim o nosso crescimento, porque eu entrei lá era muito criança.
P/1 – Mas ela dava aula de que?
R – Antes ela dava aula pra segunda série, se não me engano. Depois ela dava aula de Matemática do primeiro grau e do nível médio também, ela dava aula de Matemática.
P/1 – Então você gosta de Matemática?
R – Gosto.
P/1 – Não foi difícil pra você?
R – Não. Português era pior, a Matemática, não. Matemática é mais exato.
P/1 – E você tinha amigos na escola?
R – Tinha. Tem uma que nós criamos um vínculo pra sempre, que é a madrinha do meu filho mais velho. Nós estudamos a vida toda juntas, desde a primeira série até o dia da nossa formatura. E ela é madrinha do meu filho mais velho.
P/1 – Como ela chama?
R – Fátima. Maria de Fátima.
P/1 – Fátima. Maria de Fátima. Até o ensino médio você estudou então na sua cidade de origem?
R – Sim. Sim.
P/1 – Você disse que essa cidade é na região do Irecê?
R – É Irecê.
P/1 – Irecê. Mas você falou outro nome da cidade que você nasceu...
R – Ah, é Lagoa Grande, mas não sei se faz parte da mesma região. Acho que não. É um pouco afastado. Porque é sítio, né? É sítio.
P/1 – Entendi. Quando que você mudou do sítio pra cidade, você lembra?
R – Olha, devia ter uns dois, três anos.
P/1 – Então sua infância toda foi em Irecê?
R – Sim. Sim.
P/1 – Até o Ensino Médio.
R – É. Até depois, né? Até depois que eu me casei, que eu só saí de lá depois que eu já tinha os dois meninos, o meu mais novo era bebê de colo. Até depois que eu me formei e me casei.
P/1 – E brincadeiras de criança então lá em Irecê?
R – Nossa, tínhamos muitas. Brincávamos de macaco, não sei como aqui se chama, né? Aqui a gente desenha no chão e pula, que tem as casas lá...
P/1 – Amarelinha.
R – É. Isso.
P/1 – Lá chamava?
R – Macaco. Que pulava com uma perna só (riso). Que tem as fases, né, do jogo. Brincávamos também de pular corda, bambolê, pega-pega, um monte... De roda, né? Que hoje não tem mais. Nós sabíamos várias cantigas de roda, hoje eu nem lembro mais.
P/1 – Nenhuma pra cantar pra gente deixar registrado?
R – Ah, não, né? Não (riso).
P/1 – Assim, não precisa ser muito afinada, não.
R – Não. Eu canto muito mal (riso).
P/1 – Cleide, e vocês brincavam onde?
R – Na frente de casa, que nós chamávamos terreiro. Aí juntava a criançada da vizinhança, porque naquela época não era como hoje. As crianças tinham a liberdade de viver na casa dos vizinhos, então a infância era tudo compartilhado, né? E lá, quando a gente era criança, um vizinho cuidava dos filhos do outro, que era tudo muito junto. Às vezes na hora do almoço, a gente estava tudo na de um ou estava na casa do outro. Então não existia essa divisão. Era um monte de crianças, talvez umas 30, 40, que cada... Minha mãe tem oito, cada vizinho tinha mais ou menos a mesma quantidade, era raro um que tinha um, dois, três, né? E brincávamos todos juntos.
P/1 – Era uma turma grande.
R – Era. Fazíamos... Aprontávamos um monte, né (riso)?
P/1 – Quando você fala terreiro, era na frente de todas as casas?
R – Sim. Na rua, né? Que hoje não tem mais isso. Principalmente à noite, que a gente tinha as obrigações de casa, tinha que ir pra escola, mas à noite a gente quase não via novela, a gente ia brincar na frente de casa, juntava a criançada e ia brincar. Alguns pais sentavam também ali na porta pra ficar olhando, pra ficar de olho um pouco, mas a nossa infância era assim.
P/1 – E vocês que aprontavam muito, você se lembra de uma dessas assim? De uma dessas estripulias.
R – Ah, eu lembro. Eu lembro que o meu irmão escalou um paredão, nós morávamos na casa que o... O oitão da casa, como nós chamamos, que é uma lateral da casa, a casa era antiga, era feita de pedra e era estreito, tinha um corredor assim estreito. Em cima tinha uma madeira e ele e os amigos, eu não subia porque eu era pequena, mas eles colocavam um pé lá, outro cá, iam subindo e se penduravam nessa madeira. Aí ele caiu e quebrou o braço. Isso eu me lembro (riso). Eles faziam bastante arte. Minha mãe tinha um monte de pequeno, tinha o menor aí tinha o leite especial pra dar, e ela guardava e ele roubava e dividia comigo.
P/1 – O mais velho?
R – O mais velho. Aí como eu não podia pegar ele dava um jeito, pegava e dividia.
P/1 – Ainda bem que ele dividia, né, Cleide?
R – É.
P/1 – E a mãe quando descobria?
R – Ih, ficava muito brava (riso). Sobrava pra ele, né?
P/1 – Você disse que tinha essa casa de pedras, como é que chamava esse do lado assim que você chamou?
R – A gente chama lá no Nordeste de oitão.
P/1 – É o muro do lado?
R – É a lateral da casa.
P/1 – E ele colocava um pé em cada parede?
R – Sim. E subia, porque elas não eram juntas, mas o espaço era pequeno assim, era tipo um corredorzinho, como nós éramos pequenos a gente cabia naquele espaço ali.
P/1 – Cleide, como ele chama esse seu irmão?
R – Alcântara.
P/1 – E o nome dos outros?
R – Ah, tem o Alcântara, depois vem eu, depois tem o Edmundo, aí tem a Marta, tem o Magno, tem o Arceno, a Dan, a Mariza e o Cleber. Eu acho que eu não deixei passar nenhum (riso).
P/1 – E você viveu todo esse tempo até depois de casada em Irecê. E quando jovem, como é que vocês se divertiam?
R – Ah, tinha na praça da nossa cidade cada final de semana se juntava todo mundo. Depois da igreja tinha a praça, né? Aí a juventude toda se reunia ali. Era o ponto de encontro de todo mundo. Era sempre na praça. Tinha muita coisa, tinha lanchonete, tinha carrinho de pipoca, de vez em quando tinha shows, alguma coisa. Ia pra igreja, mas a ansiedade era que tinha que terminar a missa logo, né?
P/1 – Pra ir pra praça?
R – Pra ir pra praça.
P/1 – E tinha alguma festa importante assim que todo mundo curtia, gostava?
R – Não. Na nossa região a maior festa que tem é a de São João, mas esse acontecia todo final de semana, porque era cidade pequena, então a praça era o ponto de encontro dos jovens, era ali.
P/1 – E quando tinha festa de São João era lá também?
R - Sim. Aí ela acontecia em alguns pontos, assim, da cidade.
P/1 – Essa festa você tem lembrança forte dessa festa na sua vida?
R – Ah, temos sim. Temos. Eu sinto muita falda disso ainda, porque eu não sei se hoje ainda funciona assim, mas todas as pessoas faziam a fogueira na frente de casa, tinha fogueira em pé.
P/1 – Como assim em pé?
R – É porque é assim, pega uma árvore, uma árvore assim meio verde, corta e você coloca vários brindes e coloca o fogo embaixo, aí a criançada fica esperando a árvore queimar pra cair. Quem pode mais pega. Aí várias casas tinham isso, tinha esse tipo de brincadeira. Faz parte da cultura, né? E o pau de sebo também, que coloca o dinheiro lá em cima.
P/1 – Você chegou a subir alguma vez?
R – Não, porque essa é brincadeira mais de menino, né? Os meninos não davam muita chance pra gente, não. E os pais não deixavam também, porque menina tinha que estar limpinha e arrumadinha (riso). É. O pau de sebo era exclusivo pros meninos. Até a fogueira em pé também porque a gente não se metia muito, porque é quem pode mais, então nós levávamos desvantagem, então não costumava participar, não. Só olhar.
P/1 – A árvore caía?
R – Caía. Tinha dinheiro, tinha muito brinde. Aí os meninos, né, que eles têm mais força física que a gente e era... Aí eles já ficavam esperando, nós já ficávamos pra trás senão a gente levava cotovelada. A gente não se atrevia muito, não.
P/1 – E as comidas?
R – Ah, tem muita comida típica, né? Pamonha, milho, pipoca, canjica. Tem muita coisa, pé de...
P/1 – Os bolos.
R – É. Os bolos, vários tipos de bolo. Comidas típicas das festas juninas, né?
P/1 – Mas era uma festa bem animada pelo jeito?
R – É sim. É bem animada, porque lá se comemora bastante. Na nossa cidade ela começa... Acho que são nove dias.
P/1 – Todas as noites com folia?
R – Sim. É porque tem o dia de... Eu não sei que dia que começa, eu sei que são vários santos. Eu só lembro que tem São Pedro, Santo Antônio e São João. Acho que termina dia de São Pedro, se não me engano, que são vários dias, assim, de santos. Isso aí eu acho que a gente herdou lá da Europa, né, esse costume. Até a do pau de fita, que tem a dança do pau de fita que vai trançando, assim.
P/1 – Tinha também?
R – Tinha. Tinha nas escolas, né?
P/1 – Ah, nas escolas.
R – As quadrilhas.
P/1 – As quadrilhas mais na escola do que fora?
R – Sim, nas escolas. Porque as escolas também faziam festa, né?
P/1 – Fora mesmo já não tinha mais? Quadrilha na rua assim.
R – Tinha. Que tem a praça, eles montam o palco e de vez em quando tinha. Tinha os shows que eles trazem cantores de fora, tudo.
P/1 – Tudo pra festa?
R – É. Porque na nossa cidade o forte não é carnaval, é festa junina. Carnaval é mais lá na capital, né? Pra gente do interior o forte são as festas de São João.
P/1 – Cleide, e quando que você conheceu o seu marido?
R – Na escola. Ele era inspetor de alunos da minha escola.
P/1 – E como foi esse encontro, esse começo de namoro?
R – Olha, na verdade...
P/1 – Você pode falar?
R – Posso. Na verdade assim, a gente na escola não tinha muita aproximação, porque nem podia, né? Nem podia, porque é uma coisa meio... Ele era inspetor, eu era aluna. Mas era nos encontros da praça mesmo, porque lá todo mundo se reunia e como a gente já se conhecia, já se via da escola, mas na escola era só olhar, não podia se aproximar muito. Nós namoramos acho que dois ou três anos na fase de escola e lá a gente não podia se aproximar muito. Só fora. Claro, né, porque...
P/1 – Você já estava no Ensino Médio?
R – Já.
P/1 – Quando você começou?
R – Sim. Sim. Já.
P/1 – A ficar na paquera.
R – É. Já.
P/1 – E o namoro mesmo começou como? Teve um momento especial?
R – Olha, não lembro tanto, mas acho que foi na praça mesmo que ele ofereceu pra levar em casa, eu estava meio relutante, mas aí coincidiu, resolvi arriscar.
P/1 – Como chama seu marido?
R – Adilson.
P/1 – E você falou que namoraram uns dois, três anos.
R – É. Porque eu acho que quando eu comecei a namorar ele eu tinha 17. É. Foram dois anos. Aí eu me formei com 19, então já tinha um tempinho que a gente namorava.
P/1 – E casaram?
R – Sim.
P/1 – Lá mesmo, né, como você falou.
R – Lá mesmo.
P/1 – E os filhos? Vieram rápido?
R – Sim. O meu filho mais velho eu engravidei no primeiro mês, assim que nós casamos engravidei. Então foi muito rápido.
P/1 – E o outro?
R – O outro tinha quatro anos. O outro tinha três anos... É. Quando ele nasceu, o outro tinha três anos. Foi bem assim, um atrás do outro.
P/1 – Qual o nome deles, Cleide?
R – O mais velho é Alison e o mais novo é Cleison.
P/1 – E você trabalhou durante o período de escola?
R – Trabalhava. Trabalhei de atendente de loja, vendia tecido, tinha outra que era de variedades, assim, trabalhei.
P/1 – Você trabalhou em lojas?
R – Sim.
P/1 – Desde que idade você começou?
R – Acho que eu tinha uns 16 anos quando comecei, que tinha muita vontade de trabalhar fora, né? Mas trabalhar na verdade, a vida inteira mesmo eu já trabalhava. Mas foi nessa idade que eu comecei a trabalhar fora.
P/1 – Trabalhava em casa, né? Ajudando a mãe.
R – Sim. Sim.
P/1 – E aí começou a trabalhar fora, o que você achou assim no começo?
R – Ai, eu achei um pouco difícil, porque aí você já se submete a regras diferentes. Você tem um patrão, você tem que cumprir horário e tudo, você recebe algumas cobranças. E a gente não tinha tantos direitos como nós temos hoje, né? Cidade do interior as coisas são diferentes.
P/1 – Como assim?
R – Não, porque a pessoa que te dá um trabalho, ele manda totalmente. Não segue muito as regras como deve ser. E como a gente também era muito jovem e precisava trabalhar, queria trabalhar. Na verdade nem precisava tanto, mas queria trabalhar, né?
P/1 – E foram duas lojas, né? Mas você se lembra do primeiro cliente ou de um momento marcante?
R – Não. Assim, eu me lembro da época que eu trabalhei assim que a gente tinha uma... Eu lembro mais de amizade que tinha a menina, só que eu não lembro mais o nome, não me ocorre mais o nome dela. Mas que a gente fez assim, amizade, a gente sempre estava junto. Isso eu me lembro.
P/1 – Você acha que você aprendeu alguma coisa, Cleide, nesse trabalho?
R – Sim. Porque o meu primeiro trabalho foi numa loja de tecido, que tem a ver, né? Aí eu aprendi a conhecer mais os tecidos, os nomes dos tecidos principalmente. Foi um contato que eu tive, assim, com mais variedade e que serviu. Serviu muito, né?
P/1 – E depois foi outra, já não era mais tecido?
R – Não. Eles vendiam bastantes variedades de presentes. A moça era professora, ela me conhecia, aí me convidou pra trabalhar lá e eu gostava, era bastante... Tinha bastantes variedades a loja.
P/1 – Assim, você casou e continuou trabalhando?
R – Não. Quando eu me casei, não. Eu não trabalhava mais. Aí quando eu me casei, eu tinha que ajudar o marido. Aí eu vendia roupas. Vendia tudo. Eu nunca fiquei parada. Costurava também alguma coisa, mas aí eu ia buscar numa cidade lá que... Ah, Propriá.
P/1 – O nome da cidade.
R – É Propriá. Eles são fortes assim em bordados, essas coisas. Tipo Ibitinga, São Paulo. Parecido.
P/1 – Você buscava lá pra revender.
R – Sim. Revendia. Revendia essas coisas, cama, mesa, banho, vendia roupa, vendia cosmético. Carregava...
P/1 – Como que você fazia pra vender?
R – Ah, vendia na vizinhança. Eu pegava o filho, pegava a bolsa, colocava do lado e saía pra vender.
P/1 – Você batia nas casas?
R – Sim. Um amigo, né, indica o outro e cidade pequena a gente conhece praticamente todo mundo.
P/1 – Não precisava assim ficar batendo nas casas oferecendo.
R – Não. Não. Já tinha os amigos, os conhecidos e ali a gente ia vender, ia cobrar e vendia de novo. E assim ia, né? E assim ia levando.
P/1 – Roupas também você disse que vendia?
R – Sim.
P/1 – E costurava, você falou que costurava.
R – Sim.
P/1 – Vendia as suas costuras também?
R – É. Geralmente as pessoas vinham encomendar alguma coisa. Que eu fiz enxoval do meu filho e tudo, protetor, essas coisas tudo eu fiz. Já fazia as minhas cortinas, minhas coisas, nunca esperei, sempre tentei fazer e dava certo, as pessoas viam e encomendavam, compravam.
P/1 – E assim, cortar, fazer o molde, como que você aprendeu a fazer essas coisas? Por que você faz o molde?
R – Faço. A minha primeira base disso eu tive lá na própria escola lá onde eu estudei, que era da Fundação Bradesco, e eu fiz um curso básico de corte e costura. Eu já fazia.
P/1 – Ainda antes de casar?
R – Isso. Aí isso me deu mais uma base, né? Porque molde a gente, nessa época que eu costurava roupa, não fazia, porque a minha mãe cortava uma pela outra.
P/1 – Como que fazia pra fazer isso?
R – Só dobra, né? A gente dobra e da própria roupa você faz o molde, que aí já fica padrão, a medida da pessoa.
P/1 – Você não precisa nem desmontar nada da roupa.
R – Não. A gente usa muito assim, principalmente se tu queres uma roupa que você goste, pra ficar no padrão que você quer, uma roupa sua serve de molde, serve de base.
P/1 – Você aprendeu assim?
R – Aprendi assim.
P/1 – Depois na escola é que faz com molde e tudo.
R – É. Molde, pegar as medidas, que já não é mais tanto assim, você usa mais as medidas, né? E a base, a base da roupa e ali você monta o modelo que você quiser.
P/1 – Como é que você foi se desenvolvendo nessa parte assim? Você disse que é muito observadora, nessa parte da costura.
R – Sim. Sim. Eu acho que a vida foi se encaixando disso e pelas necessidades talvez fosse o que era mais fácil... Não o que era mais fácil, eu acho que é o que eu me identifiquei mesmo.
P/1 – Com a costura.
R – É. Sim, que eu sempre me encaixei nesse universo da costura, dos bordados. É uma coisa que sempre me atraiu muito.
P/1 – Você tem prazer em fazer isso ainda, depois de quanto tempo? Faz bastante tempo, né? Desde criança praticamente.
R – É. Teve uma época não, que quando eu me mudei pra cá eu queria fazer alguma coisa diferente, foi quando eu comecei a trabalhar na indústria. Aí foi que eu trabalhei algum tempo e pelo serviço repetitivo acabei tendo algumas complicações. Tive meu porto seguro, a costura. E voltei novamente.
P/1 – Então você chegou a parar total de costurar?
R – Parei porque eu queria mudar, eu queria fazer algo diferente. Estava cansada, achei que aquilo não... Eu não queria mais, queria fazer alguma coisa, experimentar, trabalhar em outro lugar. Achei que também seria melhor financeiramente, mas eu acho que não, acho que foi um erro, que eu devia ter investido em outras coisas, em me qualificar mais, ir atrás, insistir. Porque eu vim de São Paulo pra cá, aí já não tinha aquela clientela, já não tinha o mesmo conhecimento. Eu não me encaixava mais assim, no mercado, ter que ir buscar, né? E uma cidade diferente, de cultura um pouco diferente, aí você fica um pouco retraída. E eu não tinha parente, não tinha conhecido nenhum aqui.
P/1 – Que fábrica você foi trabalhar? Na indústria você disse.
R – É uma fábrica, eles fazem gaxetas e perfis. Gaxeta são essas borrachas que vão na geladeira. Aí eu soldava aquilo ali.
P/1 – Soldava?
R – É. A gente soldava até pra Whirlpool. Eles fazem peças pra Whirlpool.
P/1 – E você disse que teve problemas depois.
R – Sim. Eu ganhei alguns problemas de lesão por esforço repetitivo.
P/1 – Era puxado.
R – É puxado, né? Que é produção e muito repetitivo, isso te dá problemas.
P/1 – Como era uma rotina, um dia numa fábrica? Porque antes você costurava, fazia um trabalho mais artesanal. Se você puder falar um pouco dessa diferença.
R – Ah, a diferença é muita, porque você faz uma peça, várias peças que não são suas. Não tem nada seu. Você está sendo paga pra fazer aquilo ali, mas de uma forma assim muito impessoal. Aí você tem aquela produção, ali você mistura e o produto industrializado, ele não leva as características da pessoa. Você faz porque você tem necessidade de trabalhar, mas são horas e horas ali numa posição só, fazendo a mesma coisa e é chato. É muito chato que você fica ali, depois você sai só pra almoçar e já volta, aí você tem que cumprir metas, você tem que cumprir produção. É bem ralado, não é como o meu trabalho, né, que eu tenho a liberdade. Eu tive que voltar a fazer por isso, que na minha atual condição... Eu não tinha mais condições de trabalhar num lugar como esse, porque a minha saúde não permitia, porque eu não posso ficar fazendo horas a mesma coisa. Eu com o tempo me adaptei, eu sei o que eu posso e o que eu não posso fazer.
P/1 – Mas você ficou assim por conta do próprio trabalho?
R – Sim.
P/1 – Você não tinha antes esse problema.
R – Não, não.
P/1 – Cleide, voltando agora de quando você saiu de Irecê, foi pra São Paulo a primeira mudança?
R – Sim.
P/1 – Por que vocês se mudaram? Como foi?
R – eu me mudei pra lá porque o meu pai ficou muito doente. Ele teve infarto lá em Irecê ainda. Aí minha mãe foi obrigada a se mudar pra São Paulo porque lá tinha mais recursos, que ele tinha problema no coração. Aí ele se tratava lá no Dante Pazzanese.
P/1 – Vocês já tinham parentes lá?
R – Sim. Tínhamos muitos parentes. Os irmãos da minha mãe já moravam lá há muitos anos, desde antes... Quando eu era criança os meus tios já moravam lá. Tinha muito mais de 20, 30 anos que a família dele morava. Ele tem tios também lá. Tínhamos bastante, temos bastante família. Aí ela foi pra lá pra ele se cuidar melhor, porque em Salvador nós não tínhamos parentes e lá nós tínhamos o amparo, o suporte dos parentes. Ele não pode mais voltar, porque o problema dele não era simples, era bem complicado, bem grave. Ele teve vários infartos, uma vez a minha mãe ligou e pediu para mim, porque não sabia se ele ia escapar. Aí eu não contei conversa. Foi de um dia pra outro, eu comecei a arrumar as minhas coisas pra ir embora e nem perguntei pro meu marido se ele queria me acompanhar ou não. Aí quando ele viu que era sério, que eu ia mesmo, né, porque não tinha como não ir, aí ele resolveu se juntar a mim e fomos embora. Nós ficamos um tempo com a minha mãe, na verdade. A gente não tinha intenção de ficar.
P/1 – Você tinha filho já?
R – Já tinha os dois.
P/1 – E levaram os dois?
R – Sim, levamos os dois. Nós queríamos ficar um tempo pra dar um suporte pra ela, né? Pra dar ajuda. Aí chegamos lá a situação dele era complicada, eu tive que ficar pra ajudar. Aí o meu marido já arrumou emprego e fomos ficando.
P/1 – Ah, porque em Irecê ele trabalhava também?
R – Sim. Meu marido trabalhava na escola, né? Ele trabalhava, mas nessa época...
P/1 – Ainda na escola?
R – Sim. Nessa época ele tinha saído. Tinha saído, aí aproveitamos a oportunidade, também porque ele não tinha vínculo empregatício e nós fomos. Aí lá nós ficamos uns...
P/1 – Aí já foram de mudança?
R – Não. Por isso que tem a foto do batizado que nós voltamos, porque eu não tinha vendido a minha casa, não tinha vendido os meus móveis nada, porque nossa intenção era voltar. Aí ele começou a trabalhar lá e nós fomos ficando até que uma amiga minha deu a ideia de vir pra cá, porque eu queria voltar. Eu queria voltar...
P/1 – Aí ele conseguiu logo um trabalho, o seu marido?
R – Sim. Sim.
P/1 – No que?
R – Ele trabalhava em uma indústria também, na produção. Mas ele é inspetor de aluno, ele não teve muita paciência de esperar oportunidades na área dele, aí ele arrumou na indústria.
P/1 – Indústria de quê? Você lembra?
R – Nossa, eu nem sei qual foi o primeiro emprego dele lá.
P/1 – Tudo bem. Mas foi na indústria?
R – Foi. Não me lembro.
P/1 – Bom, como foi chegar a São Paulo? Você conhecia já?
R – Não. Mas me adaptei depressa.
P/1 – Mas assim, teve algum impacto ou não? A chegada lá.
R – Olha, teve porque assim, quando a gente mora em interior, eu acho que a gente tem uma qualidade de vida boa, a gente não tá acostumada com as dificuldades de uma cidade grande, que é impactante, sim. Você sair de uma cidade onde todo mundo se conhece, que você tem uma liberdade, que seus filhos têm liberdade. Apesar de que viver no nordeste não é um... Principalmente naquela época era difícil, né? No interior que é pouco emprego. Quando ele saiu do trabalho na escola a gente tinha que viver da roça. Lá uma não chove, quando chove é muito bom, quando não chove você não tem nada. É muito complicada a vida da...
P/1 – Vocês chegaram a plantar na sua casa no terreno?
R – É. Ele tinha... Não. Ele tinha roça, né, que é do pai dele. O pai dele tinha muitas terras, aí ele ficou com a... Ele tinha a parte dele. Mas era muito complicado. Muito sofrido. Era muito difícil. Que ele tinha um emprego até razoável, não era tão sofrido, mas pra plantar e esperar a sorte, porque lá é assim. E muito trabalho. É trabalhar embaixo de um sol de 40 graus não é... E eu tinha muita pena dele. Eu não queria isso pra ele. Não é porque ele tinha estudado, ele tinha se preparado, porque naquela época quem tinha nível médio era muito. Hoje não, hoje não faz muita diferença, não, mas naquela época sim. E nós conseguimos terminar e a maioria não tinha isso.
P/1 – Então você disse que tinha um lado da qualidade de vida, mas o outro lado que era em relação ao trabalho, né?
R – Sim.
P/1 – E aí chegando a São Paulo...
R – Ele conseguiu trabalhar, mas a minha mãe morava bem na periferia, assim, e era estranho. Nós achávamos estranho, porque a gente não estava acostumado com aquilo, né? Mas nos adaptamos, porque a maioria das pessoas que vive em comunidade, quem mora fora acha que é um horror, mas ali onde minha mãe morava não. Tinha bons vizinhos.
P/1 – Onde era? Que bairro era?
R – Ah, ela mora... Até hoje ela tem casa lá. É em Diadema, na grande São Paulo. O nome do bairro que ela mora lá é Gazuza. Fica perto ali na divisa de São Bernardo, por ali. Mas tem vizinhos muito bons assim, fiz bastante amizade. De vez em quando vou lá, sinto saudade. Então é uma gente muito boa.
P/1 – Você passou a morar, porque a sua mãe também, seus pais não moravam lá.
R – Na época que eu fui eles já tinham casa. Ele foi obrigado a ficar, né? Meus irmãos foram, minha irmã até ficou comigo na Bahia quando ela foi com o meu pai. E os pequenos também. Depois ela veio e levou uma parte, depois levou outros.
P/1 – Aí foram todos?
R – Foram todos porque ela não tinha mais condição de trazer ele de volta, porque a saúde dele não permitia que ela voltasse e ele era o provedor da casa. Lá tinha como, meu irmão mais velho já era casado, dava um suporte pra ela lá. E os irmãos dela também me ajudavam muito, aí não tinha mais como ela voltar.
P/1 – Então como a família foi toda pra lá...
R – É. Só eu fiquei pra trás.
P/1 – Ah, é?
R – É. Depois que ele ficou muito, muito doente foi que nós resolvemos ir.
P/1 – A família já tinha ido.
R – Já. Eu estava lá sozinha lá.
P/1 – Estava mais agarrada?
R – É. Tava desgarrada.
P/1 – Não, mas agarrada na terra.
R – É. Agarrada na terra, mas desgarrada da família (riso).
P/1 – E aí chegaram, você estava contando, você queria voltar, você não queria continuar em São Paulo.
R – Não. Porque eu analisei muito bem, eu e meu marido, os nossos filhos estavam crescendo, né? O meu mais velho já estava saindo da creche, já estava na primeira série. A gente começou a analisar a realidade da grande São Paulo. Não é fácil, né? Você se depara com coisas, com situação que você não quer que seus filhos vejam isso.
P/1 – Lá em Diadema ainda?
R – Sim.
P/1 – Na comunidade lá?
R – É. Na cidade toda, em geral, né? Você vive situações assim que você não... Nós que nascemos no interior é estranho quando os filhos estão crescendo e a própria escola, a convivência, as amizades às vezes corrompem os seus filhos. A gente começou a pesar muito essas coisas, porque chega uma...
P/1 – Qual era a preocupação maior?
R – Tinha muita preocupação que eles se envolvessem em coisas erradas. Até mesmo pela própria influência na escola, que você consegue controlar até certo ponto, mas quando eles entram na fase da adolescência é muito complicado. Aí apesar das dificuldades de se morar no interior do Nordeste, a gente queria arriscar e voltar. Lá eu fiz uma amizade com uma pessoa, até hoje ela mora lá, mas a gente sempre tem esse vínculo, aí ela disse: “Que tal vocês irem conhecer Joinville, Santa Catarina? Minha irmã mora lá. Quem sabe não dá certo vocês irem e gosta e dá certo?”. Aí eu resolvi vir que a irmã dela tinha sofrido acidente e a irmã vinha pra cuidar deles e eu vim junto.
P/1 – Só você?
R – É.
P/1 – Pra conhecer.
R – Pra conhecer. Vim um final de semana, passei a conhecer. Aí quando eu cheguei aqui o cunhado dela já tinha alugado casa pra mim, já tinha arrumado caminhão pra buscar a minha mudança e eu nem sabia (riso).
P/1 – Nossa.
R – Aí eu disse bom, logo que aconteceu tudo isso, que ele se antecipou, aí eu só liguei pro meu marido pra ele arrumar a mudança que a gente tava vindo embora (riso).
P/1 – E tinha algum trabalho aqui possível?
R – Em vista ainda não, mas a gente tinha algumas economias tudo e a vontade, né, de mudar, de arriscar. Nós já tínhamos saído da nossa casa...
P/1 – Que época foi?
R – Noventa... 98... Nossa! Final dos anos 90. É, porque na virada do século a gente já morava aqui.
P/1 – Foi na década de 90.
R – Foi. Foi no final dos anos 90. Acho que 98 ou 99, mais ou menos isso.
P/1 – Como que era a cidade aqui quando você chegou?
R – Eu gostei, ssim. Que Joinville é uma mistura de cidade grande com interior. Que Joinville ainda conserva muito essas características de interior, de cidade do interior, apesar de ser a maior cidade do estado, né? É uma cidade industrializada do estado.
P/1 – Que características são essas que você acha que ela conserva do interior?
R – Ah, dos bairros, das ruas. Não tem muitos prédios assim, é uma cidade grande, até os costumes mesmo das pessoas. As pessoas, a gente acha que as pessoas que têm mais descendência germânica, não sei o que lá, são mais fechadas. Não, pelo contrário. Eu já tinha acostumado com São Paulo, porque lá as pessoas não falam muito com as outras, moram anos do lado e a gente não se conhece, né? Muitas pessoas são assim. E aqui não. Quando nós chegamos, eles queriam saber de onde a gente tinha vindo, queriam conhecer e eu me adaptei depressa. Ele já arrumou emprego também, ele já saiu, já conseguiu emprego, nós alugamos a casa que o rapaz tinha. Aí eu vi que... Pouco tempo depois, a gente com as economias, aí eu falei pra ele: “Nós vamos ter que comprar uma casa, senão nosso dinheiro vai acabar e eu não quero morar de aluguel”. Aí nós compramos um terreno, que nessa época dava pra comprar. Compramos, construímos a casa que era em outro bairro, aí nossa vida foi... Arrumei emprego, na empresa lá onde eu fiquei. Trabalhei em facção de costura.
P/1 – Cleide, lá em São Paulo você chegou a trabalhar?
R – Não. Eu trabalhava só...
P/1 – Fora.
R – Fora, não. Trabalhei só em casa. Lá eu fazia enxovais, né? Enxoval pra bebê. Fazia ponto cruz, fazia bordados. Lá trabalhei só como autônoma, porque as crianças precisavam de mim e eu não achava certo deixar com a minha mãe, porque os filhos são meus. Então enquanto ele trabalhava eu tinha que arrumar uma forma de ajudar, mas sempre foi fazendo... Lá eu escolhi fazer o enxoval e deu pra passar...
P/1 – Vendia?
R – Vendia. Tinha clientela.
P/1 – Pra vizinhança?
R – Até pra pessoas que não eram vizinhos, que sabiam que eu fazia. Tinha pessoas que vinham de longe, né? Eu fazia que até hoje...
P/1 – Como é que elas ficavam sabendo?
R – Boca a boca. Uma vai dizendo pra outra.
P/1 – Pra comprar enxoval de bebê.
R – Sim. Porque eu fazia, né, pra pessoa, a pessoa pedia eu fazia tudo. Fazia os protetores, fazia tudo, a cortina. Tudo.
P/1 – Aí vocês chegaram aqui em Joinville e você disse que foi trabalhar na indústria de novo?
R – É. Porque eu trouxe as minhas máquinas, trouxe tudo, só que eu senti muita dificuldade, porque as pessoas não me conheciam, né?
P/1 – Foi nessa época que você foi pra essa indústria de correias?
R – É. Demorou um pouquinho. Um pouquinho. Até a gente se adaptar demorou um pouco porque as crianças também ainda eram pequenas quando eu cheguei aqui. Então a gente foi se adaptando, depois que a gente já tinha nossa casa. Aí eu tinha máquina e tudo. Até eu tinha uma vizinha que ela falava pra mim que eu estava fazendo a coisa errada, que eu devia investir naquilo que eu sabia. A gente fez uma grande amizade. Ela já é falecida. Era como se fosse uma segunda mãe e ela sempre me dava conselho pra que eu não fosse trabalhar fora, que eu trabalhasse, insistisse, focasse no meu trabalho que uma hora ia dar certo. Mas, sabe, a gente quer fazer, quer ter as nossas experiências de vida. É legal, serve, mas você quer tentar fazer algo diferente. Acho que é natural do ser humano.
P/1 – E você falou que o seu marido arrumou um trabalho rápido. Foi na indústria?
R – Sim.
P/1 – E você ficou quanto tempo trabalhando nessa fábrica?
R – Nossa, acho que uns três anos mais ou menos.
P/1 – As crianças já eram maiorzinhas?
R – Já. Aí nós trabalhávamos em horários diferentes. Como era ali bem próximo do bairro, aí eu trabalhava de manhã e ele trabalhava a tarde. Eles ficavam sozinhos só naquele tempo ali enquanto um chegava e outro saía. E eles já podiam se cuidar, né, já eram maiores. Se cuidar, não, mas já eram maiores.
P/1 – E eles gostaram daqui, os seus filhos?
R – Ah, gostaram. O mais velho estranhou. Eles estranharam quando chegou, porque lá era muito família. E o pequeno também. Eles tavam sempre indo na casa dos tios, tudo, e aqui não tinha aquela família.
P/1 – E você, Cleide, em relação a isso?
R – Olha, eu me adaptei depressa. Eu gostei. Gostei, porque eu tinha mais tranquilidade que eles iam pra escola, que minha preocupação maior não era nem comigo, era com eles, de dar uma qualidade de vida melhor pra eles. Aí eu vi que a cidade oferecia tudo isso, tinha escola perto de casa, levava e buscava. A gente tinha mais aquela sensação de mais segurança, não que aqui tenha segurança toda, mas na época lá, esse tempo todo que a gente mora aqui, na época que eu cheguei tinha mais, né? E o bairro era pequeno, nós morávamos em um bairro muito pequeno também, aí a gente já conhecia as pessoas. Eu me senti bem acolhida na verdade. Nunca tive dificuldade, assim, de me adaptar aqui.
P/1 – Você falou que trouxe as suas máquinas. Você tinha mais de uma máquina de costura?
R – Tinha. Já tinha uma reta e tinha uma Overloque.
P/1 – Os bordados eram todos à mão?
R – Sim. Eu fazia ponto cruz, personalizava em ponto cruz. E eu trouxe as máquinas já com o intuito de trabalhar, continuar trabalhando naquilo que eu sei fazer.
P/1 – E aí você deixou a fábrica por tudo aquilo que você já falou.
R – Sim.
P/1 – E como é que você retomou o seu trabalho mais artesanal?
R – Ah, porque eu sempre tive muita curiosidade, principalmente. Eu gostava de fazer bolsa. As roupas eu faço porque as roupas te dão um resultado financeiro mais rápido, né? Mas o que eu gosto mesmo de fazer são as bolsas. Sempre me identifiquei com isso. Aí a pessoa vinha fazer bainha, fazer uma coisa ou outra, mandava cortar a perna, aí da perna eu já fazia uma bolsa, uma coisa ou outra. Não jogava fora.
P/1 – Foi aqui que começou essa história de fazer a bolsa?
R – Sim. Aqui com o...
P/1 – Você que teve essa ideia ou alguém viu em algum lugar?
R – Não. Eu que comecei a fazer, porque sobrava, né? Sobrava perna, sobrava... Eu me adaptei melhor nas bolsas. Aí muitas pessoas fazem mais a parte de cima, até algumas eu faço assim, mas as que eu faço são mais a parte de baixo. Porque eu me adaptei muito com esse material e é uma pena, às vezes você corta de uma calça seminova, você vai jogar fora. Eu tenho muito isso do reaproveitar, sempre tive.
P/1 – E os detalhes? Como é que você cria?
R – Nossa, aí cada peça é mais ou menos única. Agora eu tenho umas padronizadas, mas o meu trabalho não fica totalmente igual. O trabalho artesanal tem certo padrão, mas... Porque hoje em dia pra você comercializar exige essa padronização, né?
P/1 – Por que exige essa padronização? Como assim? Explica um pouco pra gente.
R – Ah, por questão, assim, mais se você vai vender...
P/1 – Cleide, você falou que pra vender, pra comercializar é interessante ter um padrão.
R – Sim.
P/1 – Fala porque isso, como funciona.
R – Ah, sim. Porque fiz muitas formações, fiz cursos pra ir me aprimorando, ir me aperfeiçoando. Assim, se você quer vender certa escala, como nós temos uma feira que é promovida pelo Sebrae, nós fizemos alguns cursos, aí é interessante que você tenha um padrão, que dá mais profissionalismo aquilo que você faz, do que fazer uma coisa de um jeito, fazer uma coisa do outro. Você tem que estar dentro das medidas e dentro dos padrões de modelagem, do que você fazer as coisas assim de uma forma, como é que eu digo, mais aleatória, sem um olhar mais profissional.
P/1 – E no seu trabalho você acha que facilita ou complica ter esse padrão?
R – Facilita. Facilita porque ele ajuda também na questão de estética também, né? Porque a gente quando é meio cru assim você não tem esse olhar, depois você vai treinando o seu olhar para essas coisas.
P/1 – Por exemplo, eu vejo que suas bolsas têm formatos diferentes.
R – Sim.
P/1 – No que ela é padronizada?
R – Tamanho. O formato também, porque do mesmo formato eu faço dez e elas não podem estar de tamanhos variados, larguras variadas. Na costura também, na altura, no tamanho do zíper, no tamanho das alças. E tem que se adequar também à pessoa, de peso pra carregar, tudo isso tem que ser pensado.
P/1 – E no que dá pra variar, que é bom que fique mais diferente?
R – Ah, mais basicamente nos modelos, né? Nos modelos dá pra variar bastante.
P/1 – E você começou a fazer as bolsas, mas tem outras peças também que você faz.
R – Ah, tenho. Faço bonecas, ainda continuo fazendo os enxovais, mas é mais sob encomenda. E tenho as almofadas também que eu faço, que o meu forte mais são as bolsas e almofadas, que são duas coisas que eu gosto bastante.
P/1 – E vende bastante?
R – Vende. Eu vendo mais almofadas, até mais do que as bolsas.
P/1 –Você foi fazendo, costurando, fazendo as bolsas e aí como é que você fez a sua clientela?
R – Olha, quando eu morava lá no bairro eu tinha bastante clientela, mais de roupa.
P/1 – Dos vizinhos.
R – De roupa. É. Dos vizinhos. Vizinhos até pessoas que vinham de outros bairros tudo, mas que sabia que eu fazia e hoje em dia o trabalho de costureira é muito pouco, quem costura pra pessoa, você vem, traz o tecido. Geralmente eu dava o tecido, né? Eu comprava, trabalhava com bastante malha, a pessoa vinha, escolhia, eu fazia. Tinha até bastante estoque de malha, mas era uma situação que me dava um certo respaldo financeiro, mas me prendia muito. Tinha dia que eu ficava ali, eu tinha meu ateliezinho assim lá no fundo e tinha dia que eu não conseguia ir ao portão, porque as clientes vinham, entravam, saíam, mas eu não ia sequer ao portão. Aquilo ali, não sei, com o tempo parecia que eu estava muito fechada, muito fechada ali e que aquilo não me deixava fazer outras coisas. Aí foi que eu fui numa reunião lá do Consulado e que eu comecei a enxergar novas possibilidades de sair um pouco, entendeu? Que isso tinha que ser realmente uma atividade que me desse prazer, não que começasse a me cansar, que fizesse só por fazer. Porque aí eu acho que você não faz direito quando você faz só por fazer.
P/1 – Você sentia isso ou você aprendeu isso lá?
R – Eu sentia. Não. Eu sentia. Eu sentia, né?
P/1 – E como é que você chegou até o Consulado?
R – Eles fizeram uma reunião lá na associação de moradores e eu fui conhecer. Fui conhecer, aí vi que eles... Eu já fazia algumas bolsas. Eu vendia ali.
P/1 – Você frequentava, você participava da associação dos moradores?
R – Não. Eles avisaram que ia ter essa reunião e do que se tratava, né?
P/1 – Anunciaram como? Que se tratava do que?
R – Que eles apoiavam pessoas que tinham alguma atividade, que eles ampliavam também as tuas possibilidades de venda. Eu já fui mesmo pensando mais nas bolsas, que era o que eu tinha vontade de fazer. Conheci e não saí mais.
P/1 – Aí fizeram a reunião e aí como é que foi?
R – Fizeram a reunião e do bairro lá só eu vinguei.
P/1 – Mais pessoas se interessaram?
R – Tinha. Tinha bastante pessoas.
P/1 – E qual foi a proposta pra vocês? Cleide, a gente estava na reunião com o Consulado e com pessoas lá da associação.
R – É. Do bairro, né? Na verdade as pessoas do bairro.
P/1 – Conta como foi esse processo.
R – Eles queriam fazer uma intervenção no bairro pra dar possibilidade de renda pras mulheres do bairro. Aí fizeram algumas reuniões, mas eu não queria fazer outra coisa diferente, eu queria fazer o que eu já estava fazendo. Eles foram conhecer o meu ateliê, o meu lugar e as outras acho que talvez não ficaram, porque elas não se identificaram muito bem, né? Porque muitos tinham a ideia que o Consulado dava curso de tricô, crochê, que era o que eles faziam antigamente. Hoje em dia eles mudaram, eles dão apoio pra pessoa que já tem um empreendimento, que quer crescer, que quer ampliar, quer ter novas oportunidades, possibilidades de vendas. Eu acho que eu me encaixei mais nesse processo. Eu queria sair um pouco, aí eles me falaram da loja que eles tinham lá dentro da fábrica, aí eu já fui pra lá. Aí já fui conviver com mais mulheres, porque antigamente não, trabalhava ali no meu mundinho sozinha. É uma experiência muito boa, tem seu lado difícil, porque você trabalhar com outras pessoas, com outros seres humanos não é fácil. A convivência, as relações humanas não são fáceis, mas você aprende muito com isso, né? Você briga e discute, alguns aceitam, outros não, mas faz parte da vida. Tudo isso serve. E os anos que eu passei lá na loja, muito, muito bom, me serviu muito. Eles me abriram assim principalmente o olhar. A oportunidade também dos cursos dentro da faculdade, que era uma vontade minha, era um sonho que eu tive que deixar pra trás porque na minha cidade não tinha faculdade. Meus pais não tinham condição de proporcionar isso pra mim, porque nós somos em muitos, né, na verdade. Eles me colocaram lá dentro da faculdade. Claro que nos cursos de extensão, e aquilo eu fui pegando gosto, fui me aprimorando até chegar aqui.
P/1 – Esses cursos eram em qual universidade?
R – É aqui na Univille.
P/1 – São cursos de extensão, você falou.
R – Isso.
P/1 – Que tipo de cursos você teve?
R – Ah, eu tive de Designer. O curso de Designer lá que nós temos até hoje, hoje eu sou bolsista do projeto. É pra melhorar realmente o artesão, a qualidade do produto do artesão. Porque às vezes a pessoa começa meio crua, né? E eles vão te ajudando nisso, a melhorar tua visão, como você embala, como você mostra o teu produto pro consumidor, pra melhorar mesmo a aparência, claro, e valorizar mais o teu produto. Porque enquanto artesão, às vezes a gente se desvaloriza muito e aí a gente aprende a dar valor e saber que o trabalho manual, o trabalho que é feito tem a tua individualidade, a tua história, é diferente de você comprar um lá que veio lá da China, que não tem esse... Como é que eu vou falar? Não tem um pouco da pessoa, né? Não tem história nenhum. Tu comprou lá na loja e acabou. E não, e nós que somos artesãos, cada produto da gente tem uma história de vida, tem muita coisa da gente, que tu compra junto. Acho que esse é o nosso maior diferencial, independente do que o artesão faça.
P/1 – E você acha que essa noção que você acabou de contar pra gente, que é realmente bem bonita, você já tinha essa noção antes ou não?
R – Tinha, mas não era tão lapidada eu acho, né? Tinha, mas não sabia como colocar isso diante das dificuldades de você vender um produto seu. Às vezes tu te desvaloriza um pouco, porque tu achas que um produto lá, por exemplo, uma bolsa industrializada até de algumas marcas famosas tem mais valor que o seu, porque claro que eles têm todo um trabalho por trás de tudo isso até chegar e justifica, alguns valores são justificáveis, mas o teu também é! Apesar de não ser de uma marca famosa, eles têm um nome que eles criaram, que eles investiram, mas você também tem o teu nome e tem a tua história, né? Isso que a gente tenta aprender, que cada dia é um aprendizado.
P/1 – Eu sei que é difícil, mas assim, se você pudesse contar pra gente nessas bolsas, como é que a sua história aparece nelas?
R – Tá. Essas minhas bolsas, eu tinha necessidade de criar um produto que tivesse a minha cara, que você olhasse, você soubesse que sou eu que faço e que não foi uma trajetória fácil. Porque eu entrei nesse curso de extensão no primeiro ano, que agora eles estão no quinto ano já na faculdade. Eu achei que quando eu entrasse lá, eles iriam resolver o meu problema. Era essa a ideia que eu tinha, que eu ia melhorar mais eles, eles iam sentar comigo, iam me ajudar a fazer ali, que não é bem assim, né? Eles te dão as ferramentas pra você fazer, não que eles vão fazer. Eles fazem de certa forma que eles te estimulam a criatividade, que uma das funções mesmo do designer é resolver problemas, principalmente de estética, visual e muitos outros que estão por trás disso ali. E eu fui insistindo, fui fazendo, fui fazendo até que um dia a gente precisava participar de uma feira do Sebrae, nós fizemos esse curso um ano, um ano até chegar, aí eles colocaram um designer a nossa disposição pra nos ajudar. Eu já fazia alguma coisa e durante esse curso aí eu peguei assim, eu já fazia, mas eu peguei o fio da meada.
P/1 – E qual foi “o fio da meada”? Como foi?
R – É. Porque nós tínhamos um tema pra trabalhar, principalmente agora que é ano de Copa e tudo, só que isso foi um pouco antes, já era antecipado, você tinha que trabalhar ou a regionalidade, brasilidade, coisas daqui da região que você olhasse e visse que era daqui, que tinha uma característica do Brasil. Tinha que ter essa identidade, eles queriam isso. Eu já fazia algumas coisas, aí eu tive a ideia de introduzir a chita no meu trabalho. Já trabalhava com jeans. Eu já fazia o kilt ali das folhas, mas eu colocava outros elementos que ainda não estavam bem resolvidos. Aí eles me ajudaram nisso, eles: “Que tal você tira os outros elementos, deixa só as folhas?”. Que as folhas lembram, né, a nossa Mata Atlântica, lembra as coisas e nada mais brasileiro do que a chita, que a chita é nossa.
P/1 – E você que teve essa ideia da chita?
R – Sim. Eles só me orientaram que estava no caminho certo. Aí no final do curso, já pra feira eu já tinha uma linha de produção, que também eu fazia uma coisa, fazia outra, mas eu não tinha uma linha de produtos. Eu sabia que tinha que ter, mas até o momento assim eu não tinha sido forçada ainda a tomar essa medida, né? Aí eu fiz a linha das bolsas, da nécessaire, que elas conversam umas com as outras e todas têm a mesma identidade, que é a brasilidade. O kilt ali das folhas é meu porque só eu faço e é uma coisa livre, não é desenhada, eu faço na máquina fazendo ali. Por isso que cada uma é diferente, porque nenhuma aplicação, nenhum dos desenhos ali do kilt é igual ao outro, porque eu não vou conseguir repetir. Olhando, assim, você pensa que é igual, mas não é. E cada folha tem uma medida diferente, tem uma proporção diferente e é isso que faz, elas são o mesmo modelo, mas nenhuma é igual a outra.
P/1 – Você desenha na própria máquina, você já vai desenhando?
R – É. Eu vou costurando na própria máquina, vou fazendo as formas na própria máquina, não desenho.
P/1 – Muito bom. Cleide, em todo esse processo, esse encontro com o Consulado, o que é que mudou pra você assim, tanto no seu trabalho, você já detalhou, mas e como pessoa, como rotina?
R – Nossa, como pessoa muita coisa, né? Porque eu sempre busquei coisas diferentes, principalmente você ampliar a sua visão como pessoa diante do mundo, diante das coisas e quando você retoma isso, quando você faz cursos você vai abrindo mais a sua mente pro mundo em geral, pra família, pra tudo, né? Você aprende até dentro de casa a organizar melhor a sua vida, a lidar mesmo com a família, com o marido, com o filho.
P/1 – Como assim?
R – Que você muda muito. Eu achei que eu mudei bastante nesses anos. Mudei bastante. Eu acho que ainda vou mudar mais. A partir de agora acho que eu vou mudar mais ainda.
P/1 – Por que a partir de agora?
R – Não, porque agora eu comecei, que eu entrei na faculdade depois de tanto tempo, e eu acho que eu já mudei bastante nesse início de ano assim porque é um ambiente que te proporciona isso. A busca, busca pelo conhecimento, a busca pelo entendimento das coisas.
P/1 – Você está fazendo faculdade de que?
R – Design.
P/1 – São quantos anos?
R – São quatro anos. Nesse ano é geral assim porque é mais uma introdução, né? Mas a partir do segundo ano eu vou fazer a minha especialização em moda.
P/1 – E você disse: “Eu já venho mudando com a família”. Essa mudança tá sendo em que?
R – Eu acho que na relação assim com os meus filhos, com o marido. Principalmente com os filhos que eles estão numa fase assim, eles são jovens, e eu achei que eu fosse ser uma mãe... Quando eles eram pequenos, eu achei que fosse ser uma mãe mais possessiva, uma mãe assim mais... Não, e eu tenho essa liberdade assim com eles, tenho essa amizade com eles. Isso também me ajudou na faculdade, porque os meninos são mais ou menos da mesma idade, então não tive esse choque, esse impacto. E a gente consegue conversar de igual pra igual. Às vezes está tudo junto, eu nem percebo assim que a gente tem tanta diferença de gerações, de idade. Eu acho que até eles também, pelo que eu sinto, assim, a gente conversa tão naturalmente que parece que eles também não se tocam que eu tenho idade de ser mãe deles (riso).
P/1 – Na universidade.
R – Sim. Sim.
P/1 – Cleide, e com o marido? Como foi essa mudança?
R – Ele ainda está em fase de adaptação, né? Ele tá em fase de adaptação, porque ele fica meio inseguro, tudo, porque eu sou muito de correr atrás e ele é mais tranquilo. Ele já não sente essa necessidade. A necessidade dele é mais família. Família de tarde e cumprir a parte dele dentro de casa bem. E eu não! Eu já enxergo adiante. Que eu acho que é bom, porque não dá pros dois serem iguais também, tem que ter o equilíbrio das coisas. Aí por enquanto ele ainda está um pouco inseguro, mas com o tempo ele se adapta.
P/1 – Ele tem alguma participação no seu trabalho?
R – Tem, porque ele me ajuda. Se precisar me levar ele leva, ele busca, ele me apoia nas coisas que eu faço. Até na faculdade mesmo, apesar de relutar um pouco, mas ele todo dia vai me buscar, vai buscar o filho, né?
P/1 – Vocês estão juntos na mesma faculdade?
R – É. Na mesma faculdade. Ele está no segundo ano de Publicidade. Quer dizer, ele está no terceiro ano, porque ele fez um ano de Administração, mas ele não se identificou bem, aí ele mudou. Agora ele ama o que faz. Nós vamos juntos e voltamos juntos.
P/1 – Cleide, em relação às outras artesãs? Porque você é uma empreendedora individual, em relação aos outros artesãos, tem alguma relação?
R – Temos. Nós temos uma relação de amizade, assim, muito grande, porque os artesãos de Joinville acho que eu conheço bastante gente, por conta de estar ali junto com o Consulado, por conta de termos associação, que somos em várias.
P/1 – Vocês já constituíram uma associação?
R – Sim. Temos uma associação.
P/1 – E essa associação, por que vocês resolveram ou quem propôs?
R – Ah, quem propôs foi o Consulado, que nós tínhamos que ter uma forma de nos legalizar na verdade, de facilitar nossa venda em feiras, a participação em eventos. Então pra não ficar cada uma no seu quadrado, nós temos que viver em comunidade, eles nos sugeriram a associação. Nossa associação é de artesãs e culinaristas. Tem culinaristas e tem artesãs, que tudo é uma forma de arte, de se expressar. Mesmo na comida, mas tem bastante. O que a gente faz, bordar, tudo, até a parte do design tem a ver com tudo. Eu tenho uma relação muito boa, tenho muitas, muitas amigas. A gente vai fazendo amizade. De vez em quando a gente bate de frente, mas aí volta tudo novamente (riso).
P/1 – Como chama a associação?
R – Arte e Culi.
P/1 – E o seu empreendimento qual é o nome?
R – Manacá em Flor.
P/1 – Você que escolheu esse nome?
R – Sim. Sim, porque eu queria alguma coisa que tivesse a ver com essa minha transição, né? E o Manacá, que aqui também o povo chama de Jacatirão é a mesma. Ele também tem na caatinga. Ele ocorre também na caatinga e aqui também tem. Claro que o de lá é um pouco diferente, mas é da mesma família. Aí fazendo pesquisas, tudo pro nome, que lá na faculdade eles me sugeriram que eu fizesse pesquisa de tudo isso e era uma coisa que sempre me atraía. Porque eu sempre tive isso comigo, eu não queria colocar o do Jacatirão porque Jacatirão é o nome da nossa loja comunitária, é o nome da loja da nossa associação. Mas eu não queria muito fugir disso porque eu sempre... Aí fazendo a pesquisa vi que lá também tinha. Ele é muito parecido, a história dele é parecida com a minha.
P/1 – No que?
R – Que ele também ocorre lá, mas tem aqui também. Tem essa transição da caatinga pra Mata Atlântica. Foi a minha! Aí eu me identifiquei muito, disse: “Pronto. É esse aqui”. Pra não ficar só Manacá nós colocamos Manacá em flor por causa das flores, porque o meu trabalho tem muito a ver com isso, puxa muito pra isso. Deu tudo certo, falta ainda trabalhar uma parte da minha identidade visual, mas isso aí nós temos um tempinho pra isso.
P/1 – Em relação à renda, Cleide, pra família, tem algum retorno, ainda não?
R – Olha, agora, nesse momento está um pouco complicado por causa disso, né? Porque eu comecei a estudar, então o meu trabalho ficou um pouco assim... E porque nós tínhamos a loja da associação e ela foi fechada durante um tempo, porque nós ganhamos um projeto aí do BNDES, então a gente teve que sair da outra loja que nós pagávamos aluguel, que era muito caro. A gente não tinha condição de estar bancando. Por conta dessa mudança, que foram alguns meses, aí todas nós ficamos um pouco desfalcadas, mas agora que vai reabrir, né, a gente está cheia de expectativa.
P/1 – Cleide, você também tem outra atividade que é dos biscoitos.
R – Ah, sim. Que eu tenho um grupo, que nós fizemos uns biscoitos, porque tenho uma amiga que ela faz um biscoito que é bem tradicional aqui da região, que são os biscoitos de melado. Poucas pessoas fazem da maneira que nós fazemos, que ele é bem fininho, é crocante e tem as características das tradições locais daqui, mais germânicas, né? Imagina, nordestina fazendo biscoito de alemão (riso). Aí esses biscoitos são vendidos mais decorados. Eles fazem toda uma parte estética ali pra vender.
P/1 – Que já é tradição também?
R – Sim. Os biscoitos pintados são muito fortes aqui da região sul, né? Aí as meninas começaram a fazer, e eu comecei... Eu nunca tinha pintado biscoitos. Isso é bem recente, nós começamos no final do ano passado. E essa amiga ficou doente, ela não tinha mais condição de fazer uma produção assim. Aí nós fizemos, participamos de uma feira, vendemos tudo. Foi muito bem aceito.
P/1 – Nós?
R – O grupo.
P/1 – O grupo da associação?
R – O grupo das bolachas. Nem todas que fazem as bolachas estão na associação. Apenas duas, eu e a Carmem. Só nós duas fazemos parte. Aí recebemos uma demanda lá do projeto que elas queriam biscoito com a logo do projeto. Nós nunca tínhamos feito um biscoito personalizado. Mas como eu sou muito metida em tudo (riso), que durante um ano eu fiz um curso de gastronomia também, fazia o de design e fazia o de gastronomia junto. Por curiosidade também eu fiz, aí a professora pediu essa demanda que iam receber uns convidados de fora e ela queria dar, que era tudo voltado pra área da gastronomia, ela queria dar um biscoito com a logo do projeto. Nós corremos atrás pra fazer o biscoito e deu super certo. Foi uma trabalheira, foi teste daqui, teste dali. A partir daí nós começamos, participamos de feira, vendemos tudo. No Natal a gente não deu conta de produzir.
P/1 – E você faz a pintura, não a massa?
R – Não. A massa quem faz é outra colega, mas quando eu tenho tempo assim disponível, a gente ajuda a esticar, ajuda a colocar no forno, mas a parte de pintura fica mais comigo pela facilidade que eu tenho com o design, com essas coisas que eu já tenho um tempo e pelas habilidades manuais mesmo que a gente adquire como artesã. Aí eu não encontrei dificuldade nenhuma.
P/1 – São em quantas que fazem os biscoitos?
R – Nós somos em cinco.
P/1 – E quando tem essas feiras?
R – Sim. Aí nós participamos.
P/1 – Pensando na comercialização, teve alguma mudança nesse sentido?
R – Sim.
P/1 – Com o Consulado.
R – Sim. Teve, né? O Consulado nos ajudou a abrir muitas portas, porque a gente já participa de feiras fora daqui.
P/1 – Antes você não participava de feiras?
R – Não. Não porque aí acho que a gente não tinha essa capacitação pra participar. E também eu não tinha essa segurança e não sabia que caminhos percorrer até chegar lá. Eles ajudaram a guiar pra tudo isso, a minha mudança mesmo foi a partir de quando eu entrei lá, que abriram, assim. os horizontes, ampliou tudo, né? A visão. Eu acho que eu mudei muito. Acho, não, tenho certeza: é isso que eu buscava. Apesar de ter tanto trabalho, de ser uma vida bem corrida, mas eu gosto. Gosto muito. Não gosto de estar nada parada nem me acomodar. Não sou uma pessoa acomodada. Disse que baiano é muito calmo, não é o meu caso (riso).
P/1 – Cleide, qual o seu maior sonho agora?
R – Meu sonho é me formar, né? Agora mesmo, o que eu planejei – mas nunca as coisas acontecem como a gente planeja – eu queria muito que esse dia de fazer a minha graduação chegasse. Eu queria ter um respaldo pra me dedicar realmente aos estudos, que esses quatro anos fossem anos que eu me dedicasse a mim mais. Claro que o meu trabalho também, mas que eu não precisasse tanto dele, que ficasse mais fácil a minha interação com a faculdade, com os trabalhos, que exige muito. Mas, como a gente estava construindo a casa, tudo, então não teve como ter reserva de nada, isso complica um pouco, mas não me preocupa tanto, porque a gente sabe que tem capacidade pra trabalhar e a gente chega lá. Mas o meu sonho mais era esse, ter tranquilidade nessa fase da minha vida pra fazer aquilo que eu sempre quis, que eu tive vontade. Mas tudo bem.
P/1 – Essa casa é que vocês construíram, né?
R – Sim. Aí não é fácil (riso). Não é fácil. Com muito trabalho, com muita luta ainda não tá pronta. Falta bastante coisa, mas aí eu não podia esperar que terminasse tudo pra que eu fizesse. Eu acho que eu já tinha esperado demais.
P/1 – Muito bom, Cleide. Nós estamos terminando, você quer falar mais alguma coisa sobre o trabalho, sobre a sua própria vida, como está sendo registrada essa história?
R – Sobre a minha própria vida?
P/1 – Ou o trabalho.
R – Não. Eu acho que eu tenho mais que agradecer, não tenho nada do que me queixar, porque as coisas que aconteceram de ruim, que não foram positivas, mas eu dei um jeito de trazer isso pro lado positivo da minha vida. Claro que não é tudo mil maravilhas, você encontra muitas dificuldades, que não foi fácil chegar até aqui, encontrei muitas barreiras. Muitas.
P/1 – Quais?
R – Principalmente por você vir de fora. Por você fazer um trabalho que se equipare a outras pessoas que estão aqui, às vezes elas não aceitam bem quando elas não te conhecem. Tem esse estranhamento do diferente, né? Tem. Ainda mais que eu moro num estado onde eu sou, claro, sou minoria. Sou mulher, sou negra e nordestina. Então são coisas que não são fáceis de você transpor e de você mostrar que você é capaz, que você pode e que você não tem diferença nenhuma, você é um ser humano igual a qualquer outro. Eu tive muita dificuldade nessa parte, mas que eu soube esperar e que eu soube mostrar quem eu sou, né? O tempo se encarrega dessas coisas.
P/1 – E você também.
R – É. E eu também. Porque eu não baixo a cabeça, quando a pessoa me diz não, e eu entendo o porquê ela me disse não; mas daqui a pouco ela está me dizendo sim, porque com as minhas atitudes, com a minha maneira de ser a gente mostra quem a gente é. Não precisa estar discutindo nem batendo de frente. Nem sempre as palavras são bem colocadas, dependendo do momento (riso). E é isso.
P/1 – O que você achou de contar a sua história?
R – Muito bom. Pra gente se lembrar de coisas que você nem lembrava mais e você não enxergava, assim, né? Você enxerga ela em fases assim muito divididas. E tem uma pessoa também que é bem importante assim, eu acho, ela vem me ajudando muito nisso aí que é a minha parceira, amiga e que eu gosto, tenho grande admiração por ela, que é a professora Rita. Ela é coordenadora lá dos projetos e que a gente está sempre lado a lado ali trabalhando juntas, fazendo as coisas e é minha grande inspiradora, e ela não deixa ali, ela tá sempre me puxando.
P/1 – De onde ela é?
R – Ela eu acho que é gaúcha, mas ela é professora na faculdade. Ela dá aula de História da Arte e eu não sei qual outra matéria que ela dá também. Mas eu sei que ela dá outras matérias, mas é uma pessoa também que ela faz muita coisa assim nessa área, sabe, do artesanato, do resgate do artesanato e de mudar, de colocar o design nisso e de ajudar, porque o nosso projeto lá tem um monte de gente. Porque eu sou bolsista do projeto de design e de gastronomia que também é ela que é coordenadora. São dois. Por isso que eu falo, os artesãos daqui e até de outra cidade eu conheço bastante, porque todos eles passam por nós, né?
P/1 – Por essa coordenação dela?
R – Sim. Tem outros professores, mas ela é a coordenadora.
P/1 – Muito bom. Então pra nós também foi um grande prazer viu, Cleide.
R – Obrigada.
P/1 – Obrigada.
R – Obrigada a vocês.
FINAL DA ENTREVISTA
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