No primeiro ato. A cena é sobre o tempo do nascimento: 15 de agosto de 1945. Como tempo e espaço são crias de um mesmo parto, não há tempo sem espaço: Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Como ato inicial, precisa-se do nome. Afinal tudo começa a existir quando é nomeado: Circe Rosa Fernandes. Esse seria seu nome nesse ato inaugural pelo qual seria registrada em cartório e em batismo. Seria. Sim: Futuro do pretérito do indicativo de ser. Futuro de passado que seria assim nomeado. Mas não foi. Pelo poder que o deus cristão exercia e ainda exerce, o padre responsável pelo ato do registro se recusou. Esse nome, nome de santa não tem. Precisaria ter. Mais um futuro do pretérito do indicativo de precisar. Exercendo seu poder de registrar, decidiu que ela se chamaria Circe Maria Rosa Fernandes. Agora sim, o ato inicial está completo. Em 15 de agosto de 1945 nascia em Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, a menina que se chamaria Circe Maria Rosa Fernandes. Anos depois, em outro ato de nomeação o roteiro precisaria ser atualizado, pois ela teria seu nome alterado para atender às regras da convivência social que definia que a mulher ao se casar precisaria – mais um futuro do pretérito do indicativo de precisar – agregar o nome do esposo. Como se a mulher fosse incompleta, ou ao homem pertencesse, teria que agregar o sobrenome do marido. Por essas convenções, retiraram o Rosa e inseriu-se Bittencourt e dessa forma, nessa cena, o ato foi enredado nomeando-a de Circe Maria Fernandes Bittencourt. Assim ficou. Assim está no passado que é presente, no presente que é passado e num presente que é futuro, perfeito ou imperfeito, do presente do indicativo, direto ou indireto, assim é escrito. Ainda nesse ato inaugural com a trama do nome urdida ao tempo, Circe Bittencourt é professora aposentada pela Universidade de São Paulo.
Enredando ao ato seguinte, ela rememora na representação de suas lembranças, cenas de sua infância. Ocupa...
Continuar leituraNo primeiro ato. A cena é sobre o tempo do nascimento: 15 de agosto de 1945. Como tempo e espaço são crias de um mesmo parto, não há tempo sem espaço: Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Como ato inicial, precisa-se do nome. Afinal tudo começa a existir quando é nomeado: Circe Rosa Fernandes. Esse seria seu nome nesse ato inaugural pelo qual seria registrada em cartório e em batismo. Seria. Sim: Futuro do pretérito do indicativo de ser. Futuro de passado que seria assim nomeado. Mas não foi. Pelo poder que o deus cristão exercia e ainda exerce, o padre responsável pelo ato do registro se recusou. Esse nome, nome de santa não tem. Precisaria ter. Mais um futuro do pretérito do indicativo de precisar. Exercendo seu poder de registrar, decidiu que ela se chamaria Circe Maria Rosa Fernandes. Agora sim, o ato inicial está completo. Em 15 de agosto de 1945 nascia em Ribeirão Preto, no Estado de São Paulo, a menina que se chamaria Circe Maria Rosa Fernandes. Anos depois, em outro ato de nomeação o roteiro precisaria ser atualizado, pois ela teria seu nome alterado para atender às regras da convivência social que definia que a mulher ao se casar precisaria – mais um futuro do pretérito do indicativo de precisar – agregar o nome do esposo. Como se a mulher fosse incompleta, ou ao homem pertencesse, teria que agregar o sobrenome do marido. Por essas convenções, retiraram o Rosa e inseriu-se Bittencourt e dessa forma, nessa cena, o ato foi enredado nomeando-a de Circe Maria Fernandes Bittencourt. Assim ficou. Assim está no passado que é presente, no presente que é passado e num presente que é futuro, perfeito ou imperfeito, do presente do indicativo, direto ou indireto, assim é escrito. Ainda nesse ato inaugural com a trama do nome urdida ao tempo, Circe Bittencourt é professora aposentada pela Universidade de São Paulo.
Enredando ao ato seguinte, ela rememora na representação de suas lembranças, cenas de sua infância. Ocupa lugar central no palco, nesse ato rememorado, as memórias sobre as vivências na fazenda dos avós. Nesse enredo apresentado é encenação é conduzida para as lembranças sobre as tentativas de tirar leite nas vacas, ou colher café nos cafezais da fazenda, mas ambas as tentativas foram sem êxito, ficando apenas como fragmentos de lembranças. Na tessitura da trama tecida no ato da entrevista ela afirma que aquelas atividades rememoradas não eram difíceis.
Ato seguinte. Mais uma vez, deus se faz presente no enredo. Se ele não se constitui em presente perfeito, ele aparece em um passado indireto, por meio das lembranças das freiras, da escola católica onde estudou. Na sequência do mesmo ato, a rememoração traz para o palco as lembranças das diferentes culturas com as quais ela teve contato por meio da amizade de amigos e amigas descendentes de italianos e japoneses.
Mais um ato. Sua memória vai lançando luz em diferentes espaços por onde ela transitou em São Paulo. Encena no palco, nesse momento as lembranças vividas no e sobre o Bairro Higienópolis. Ao enredo são costuradas as recordações sobre as idas à Consolação, sobre os festivais de músicas assistidos. Não apenas os espaços das cidades por onde viveu e dos bairros onde morou, vão ganhando nomes, na encenação de suas memórias. O tempo também vai sendo esculpido e dependendo da iluminação disponível – ou das lentes de observação – ele não é apenas um figurante, como pode parecer, à primeira vista. Ele é personagem presente em todos os atos. Pelos fios de suas lembranças, o tempo vai sendo cosido ao tecido da memória. Em um dos atos, ela se recorda dos momentos em que pagava “o bonde para ir passear na Paulista”. Se refinarmos a lupa de observação, é possível perceber que o tempo não é apenas um personagem nesse enredo; o tempo é também o maestro da orquestra sinfônica da memória. Assim, nessa trama, tempo e espaço vão costurando suas lembranças e reencontrando e representando pessoas que deixaram traços que o tempo, sempre o tempo, não apaga. Dessa forma, no ato seguinte, ela se recorda de algumas das professoras com as quais estudou. Se lembra da professora de Francês, História e Geografia. Até do professor de Matemática, matéria que não gostava, com seus senos, cossenos e outros acenos; memórias que desafia o poder inexorável do tempo.
Mais um ato. Esse traz as filigranas da tensão sobre as quais foi gestada. A experiência de ficar privada da liberdade durante o período da ditadura deixou marcas que se apresentaram mais de um momento durante a entrevista. Quando rememora os filhos que teve, aciona o tempo da gestação com o tempo da perseguição ditatorial. Naqueles tempos, não era uma boa opção engravidar. A ditadura ia estendendo seus tentáculos, como sementes daninhas, no útero das pessoas que optavam em não ter filhos, dada a perseguição, o encarceramento. Quantos lamentos. Quantas vidas afinal foram atravessadas pela ditadura? E as dificuldades e perspectivas de futuro? Que futuro? Nessa teia de lembranças, a cena é no e sobre seu apartamento. Nesse ato o enredo é sobre a necessidade de acolher. O apartamento foi um palco para acolhida. Foi ponto de apoio, refúgio momento, mas refúgio por algum momento. Foi palco e ponto de apoio para pessoas da universidade que estavam sendo perseguidas. Um porto de paragem, de passagem, transitório, mas um porto assim mesmo. Um porto onde podiam dormir, tomar banho e depois partir. Não diziam nomes, de onde vinham, o que faziam nem para onde iam, recorda ela. Melhor assim.
É como se as luzes precisassem ser apagadas para terminar esse ato e iniciar o próximo. De certa forma as luzes foram apagadas. No ato seguinte se acende uma luz no palco para as lembranças sobre a escolha pela História. Disse sempre ter gostado muito de história. Queria ser professora de História ou de Filosofia. Não sabe exatamente o porquê. Talvez porque teve boas professoras de História e de Filosofia, menciona. Sua professora já tinha ouvido falar de Sergio Buarque, Caio Prado, Celso Furtado, personagens importantes nessa trama. Pelos relatos apresentados, sua professora não apenas tinha ouvido falar daqueles personagens, mas estudado e ensinado sobre eles, também. Na sequência desse mesmo ato, ela relembra que no processo de seleção para ingresso no curso, feita no departamento, o Buarque estava na banca. E essa banca? Deu medo. Todos estavam com medo, tremendo de medo, disse ela.
Novo ato. Ingressou no curso de História em 1964. Ano de ditadura. Essa não teve apenas uma linha dura. Foram várias linhas, todas duras, cortantes, asfixiantes, sufocantes. Em 1967 formou-se em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Como uma espécie de estratégia para arejar o ato encenado pela memória, ela traz ao palco da lembrança o contato com outros estudantes de outros cursos que também deixou marcas pelos poros afetivos de suas recordações. As leituras de Karl Marx, O capital, que tal? e de Adam Smith são rememoradas nesse ato e marcam presença naquele passado e nesse presente, afinal, ela se apresenta também como marxista. São indícios dos vestígios do tempo, das lembranças que ficam, que marcam, que criam e representam histórias e trajetórias nesse palco da memória. Na época revisitada ela também conheceu o outro Buarque, esse o Chico de Holanda. O cantor e compositor que participava dos festivais no teatro Record, olha só! A vida sendo lembrada também pelas experiências musicais em notas afetivas de lembranças que, se não foi em dó maior no acorde musical, foi maior na força com que deixou traços na memória. Uma glória.
Mais um ato. As lembranças do Colégio de Aplicação da USP no processo de formação inicial também são chamadas ao palco. Tem lugar nesse enredo e são acionadas. Ela também ressalta a preparação para a docência na escola pública. Era essa a meta. O foco. O objetivo. Ser professora na escola pública que era valorizada, respeitada, desejada, requisitada. Mas em 1961, houve um golpe, disse. O golpe foi destinar todo o dinheiro público para a educação privada, por meio das brechas presentes na LDB, rememora a professora. No ano seguinte à conclusão do curso, a repressão é elevada a máxima potência pelo regime ditatorial. Essa experiência parece um personagem com vida própria, talvez pelas marcas deixadas, pelos afetos vilipendiados, pelas vidas ceifadas. Da mesma maneira que os personagens precisam da fala no enredo, suas memórias precisam aqui encenar com as mesmas palavras: “Começa mesmo a perseguição em sessenta e nove. No movimento estudantil, que eles entram com tudo. O Colégio de Aplicação da USP foi fechado pela polícia. Prenderam estudante, prenderam aluno, arrebentaram com a escola”, relembra a professora Circe. Foram tempos difíceis. Tempos de invasão. Tempos de perseguição. Tempos de prisão. Tempo em que a ditadura tentou tirar da escola, sua aplicação, sua função, tentando deixar a escola sem ação, sem aplicar, sem aplicação.
Próximo ato. Os desafios para se formar a atuar na profissão. Sobre esses desafios ela relembra os diálogos e trocas com Elza Nadai, personagem presente na encenação da vida vivida sobre o ensino de História. Ela relembra as disciplinas de Prática de Ensino, que depois passaram a se chamar Metodologia de Ensino, e as experiências Estágio Curricular.
Ato seguinte: a pesquisa no e sobre o ensino de História. Estimulada a lembrar as pesquisas no e sobre o ensino de história, ela rememora sua ida à França, como traço marcante. Relembra o contato com o Institut National de Recherche Pédagogique (INRP) e os diálogos com André Chervel. Também foi naquele instituto que ela conheceu Alain Choppin. “[...] aí o Choppin fazia história do livro, mas ele era literato, ele não vinha da história, ele já estava virando historiador, mas ele era literato. Então nesse período eu comecei a ler também outros autores ingleses, o Ivor Goodson, [...] era um deles, o David Hamilton era outro deles, eram historiadores ingleses que faziam história da educação. [...]. Eles se tornam historiadores dentro da História das disciplinas, mas a formação deles não é de historiador. Então eu digo assim, não tinha ninguém de História, fazendo pesquisa de ensino de História”. Com essas experiências, destaca a professora Circe, ela começou a refletir, no diálogo com Alain Choppin, a temática do livro didático. Quando ela voltou ao Brasil, quando os tempos se arejaram, junto com Elza Nadai, começaram a desenvolver pesquisas e orientar na área do ensino de História. A “Elza já era doutora [...], aí ela começou a ter coragem de começar a orientar na área de Ensino de História”, rememora ela.
Desdobramento do ato anterior. A professora Circe ressalta seu alinhamento à perspectiva teórica de André Chervel no trato e na defesa do conhecimento escolar não ser apreendido como um saber inferior àquele produzido na academia e o conhecimento produzido pela historiografia precisa cegar à sociedade e o caminho é pelo conhecimento histórico escolar. A preocupação com a interlocução entre os saberes produzidos (seja na academia ou na escola) e os sujeitos envolvidos (sejam os professores da universidade ou da educação básica), se apresenta como elemento central no enredo tecido pela professora Circe, sobre o qual precisamos estar atentos e atentas. As reflexões que ficam limitadas aos muros da academia, perdem sua vitalidade, porque trancafiadas, não têm serventia. Assim, ressalta ela, “[...] Porque também nós temos que saber, a nossa pesquisa está servindo para quem ler?”.
Ato final dessa crônica. Como desfecho e clímax do enredo apresentado ela destaca a necessidade do diálogo entre os saberes produzidos, incluindo os saberes sobre o ensino de história. Saberes que não transitam pela e para a escola, pela e para a aula de História onde se encontram centenas de professores e milhares de jovens em fase de escolarização, parece ser um saber amorfo. É no máximo um figurante, cujo figurino está desbotado e empoeirado. Assim, ela reforça que “a gente tem que dialogar, estar dialogando com os com os professores que estão em ação. E estão na rede, e estão dando aula [...].”
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