Minha Casa, Minha Cara, Minha Vida - Cabine São Bernardo do Campo
Depoimento de Aparecida Margarete de Souza
Entrevistada por Márcia Trezza
São Bernardo do Campo, 9 de março de 2014
Realização Museu da Pessoa.
ASP_CB17_Aparecida Margarete de Souza
Transcrito por Iara Gobbo
P/1 – Fala seu nome todo.
R – Aparecida Margarete de Souza.
P/1 – Margarete, você trabalha com o movimento dos catadores....
R – Reciclagem.
P/1 – E você disse que a sua vida toda você trabalhou com isso, viveu. Você quer contar alguma história desde a sua infância?
R – Então, minha história começou eu tinha oito anos de idades dentro do ex-lixão do Alvarenga. De lá pra cá nós trabalhou... Eu tinha a minha família, pai, mãe, irmãos, até que fui crescendo, mas lá dentro do lixão. E nós nunca pensava em nada. Aquilo lá era nossa vida. Mas aí depois entrou um prefeito, não sei nem o nome dele mais, que eu esqueço, aí foi com uma proposta que veio Criança no Lixo Nunca Mais, Lixo e Cidadania, então foi e resgatou a gente do lixão, fechou o lixão. Eu sou uma das moradoras do ex-lixão, que foi pro alojamento do Rudge Ramos. Eu tenho um monte de filho, graças a Deus, Deus me deu um monte. E graças a Deus eu fui começando estudar, meus filhos começando estudar. Aí nós veio pro alojamento, conseguimo vaga nas escolas do Rudge, e a prefeitura sempre ajudando a gente, E graças a Deus, aí arrumou duas casa de reciclagem. Eu trabalhei na reciclagem do Rudge Ramos 11 anos. Hoje eu tô na Refazenda, na Rua Batuíra. Nós participa do Movimento dos Catadores, que é a base. Nossa! E a minha maior alegria é ter saído do lixão, ido pro Rudge Ramos pro alojamento, que era ruim. Mas lá era ruim pra nós, na época, nós não acostumava morar daquele jeito.
P/1 – Como é morar no lixão?
R – Ah, morar no lixão... eu sinto até saudade.
P/1 – Do que que você sente saudade?
R – Porque dá liberdade, liberdade. Porque morar no lixão, a gente tinha muita liberdade. A gente trabalhava pra nós mesmo, cada um pra si e Deus pra todos. Aí que é assim, eu trabalho pra mim. O que eu fizesse era meu, não tinha que repartir com ninguém. O que meu colega fizesse ali era dele. E eu trabalhava, eu com oito ano, fui crescendo, fui mãe de família dentro do lixão.
P/1 – E você disse que os seus pais também trabalhavam no lixão.
R – Minha mãe não trabalhava porque em seguida... O meu pai tinha uma profissão, mas em seguida ele ficou doente, não se movimentava mais. Aí que eu tinha que me desdobrar mesmo, que minha mãe não podia sair de dentro de casa. Aí que eu...
P/1 – Você que começou trabalhar no lixão? Seu pai e sai mãe não?
R – Não. Aí depois minha mãe foi. Depois meu pai melhorou um pouquinho, minha mãe começou ir, mas também não guentava, porque ela também já nasceu com, né, deficiência, não podia trabalhar no meio de nós. Então ficava dentro de casa, eu que ia, dia e noite pra lá.
P/1 – E a casa era perto do lixão?
R – Não. Aí depois de um tempo que minha mãe falou: “Não, eu vou cuidar de você lá dentro, eu quero ficar perto de você”. Eu digo: “Não mãe, pode deixar eu, eu sei me cuidar”. Ela fez um barraco na estrada assim, perto do lixão, e foi morar pra lá. Então da onde ela fez o barraco, ela me olhava trabalhando.
P/1 – Ficou mais sossegada?
R – Ficou mais sossegada e eu fui nessa ilusão do lixão, pra mim tudo era diversão.
P/1 – Conta uma história. Teve alguma coisa engraçada que aconteceu lá que você guarda até hoje?
R – Não, engraçada não teve, não. Teve muito triste (riso).
P/1 – É mesmo? Que foi que aconteceu?
R – Porque lá no lixão é assim: ia lixo de São Paulo na época, né, de todo o município. Entrava muito caminhão mesmo, então a gente já viu gente morrendo. Eu, principalmente eu, já achei criança morta dentro de saco de lixo. Eu pensava que naquele tempo, como eu não tive, né, tempo de brincar, eu era doida por aquelas boneconas. Quando eu puxei pela cabeça, falei: “Achei, achei”, “O que você achou?”, “Uma boneca”. Era de noite. Aí quando nós puxa, aí: “Vem me ajudar a puxar a boneca, vem, vem”, que nós puxamos era uma criança.
P/1 – Recém nascido?
R – Recém nascida.
P/1 – E você era criança?
R – Eu tinha uns nove pra dez anos na época.
P/1 – E você disse que viu morrer gente no lixão mesmo?
R – No lixão.
P/1 – Mas de doença ou de acidente?
R – De acidente mesmo. Era muito caminhão, então era muita... um querendo pegar mais do que o outro, sabe? Não esperava os “caminhão” despejar. E tinha uma caçamba que ela tinha a boca que um jacaré assim. Eu vi a minha... ela trabalhava com nós, era uma senhora bem escura, o filho dela era até professor na época. Aí quando ela entrou, no que ela pôs a mão pra pegar um papelão, a caçamba fechou, degolou isso aqui. E nós tava tudo ao redor.
P/1 – Não era fácil, né?
R – Ali era luta.
P/1 – São cenas marcantes.
R – Ali era luta de sobrevivente. Quem pudesse mais vivia, quem não pudesse.
P/1 – E vocês pegavam objetos pra?
R – Era material reciclável. Hoje nós entende como material reciclável. Naquele tempo lá era material, vamo trabalhar, quem vai comprar tudo isso aqui. Nós catava de tudo, na época.
P/1 – E vendia ou usava pra vocês?
R – Não, vendia. Agora, não vou falar que nós não usava também, que usa até hoje. Até na reciclagem ainda vai coisa boa.
P/1 – Roupa...
R – Roupas, vai objetos que nem celulares, vai rádio, vai televisão. É assim.
P/1 – E é tudo? E aí vocês iam pegando...
R – É, que desse pra aproveitar, aproveitava. Se não dava, vendia.
P/1 – E pra onde vocês vendiam?
R – Olha, eu tenho comigo, a minha parte, o meu comprador. Eu tenho um comprador que ele morreu, mas o filho dele ainda existe. Tá com depósito lá.
P/1 – É um depósito?
R – É, que agora hoje só compra material reciclado. Hoje compra de nós.
P/2 – Hoje compra da associação, né?
R – É. Então, mas desde a infância eu trabalho com esse negócio. E a minha maior alegria que eu tenho mesmo, é ter estudado meus filhos.
P/1 – Que bom, né? Quanto filhos você tem?
R – Bom, eu tenho uma que... Tem 12, né? Que eu consegui estudar mesmo, até agora no momento, só foi dois.
P/1 – Doze filhos?
R – Que duas desistiu, né?
P/1 – Os doze filhos têm que idade? Assim, o mais velho e o mais novo.
R – A mais velha minha tem... vai fazer agora esse mês, 34.
P/1 – Quantos anos você tem, Margarete?
R – Eu tenho 48.
P/1 – É mesmo? Onde você nasceu?
R – Eu nasci Interior de São Paulo, em Vera Cruz.
P/1 – Em que dia?
R – Vinte e sete de Janeiro de 66.
P/1 – Você disse que não aconteceu nada alegre no lixão.
R – É.
P/1 – Só coisas tristes. Mas tem alguma coisa, assim, que vocês faziam quando eram criança, que pelo menos...
R – É, brincadeira de criança (riso) diverte! E eu pegava, não sei se você lembra... A Rose tá aqui, mas o marido dela também trabalhou com nós, tinha a Vega, que não é esse caminhão de hoje, era diferente. E tinha um rodão que rodava assim, igual fazia concreto. A minha diversão era subir na rabeira dele lá no teto dele lá em cima e falar: “Pilota motorista e vamo pro “Área Verde” (riso). Aí chegava no Área Verde eu descia, quando o outro passava aí pegava rabeira, subia: “Pilota motorista que eu quero chegar no lixão”. Isso era a nossa brincadeira, não era só eu, tinha um monte de menina, e monte de menino.
P/1 – E ele via você?
R – Via. Mas a gente mandava: “Corre, corre”.
P/1 – E vocês estavam onde?
R – Em cima.
P/1 – Na capota?
R – Na capota, lá em cima, nossa diversão era essa.
P/2 – Coisa de criança mesmo, danada.
P/1 – Aventura, uma aventura.
R – É o que nós tinha pra divertir na época, que nós trabalhava eu mesmo, eu, Margarete, de oito ano de idade até meus 20 anos, eu acho que eu trabalhei naquele lixão dia e noite.
P/1 – À noite também?
R – Não saía de lá dentro.
P/1 – Dormia lá?
R – Dormia. Dormia não, nós não dormia. Eu mesmo não dormia. Quando clareava o dia, que nós acabava de trabalhar, tem uma bica que tá até hoje. Tem a chácara lá, que cabou a bica, mas a chácara ta lá ainda, foi cortada tudo em pedacinho, loteada, mas quando eu passo ali eu lembro. Tinha uma bica d’água assim, caía alto assim. Aí eu ia lá de manhã cedo com as minha amiga, nós banhava. Nós tinha short, né, nós “ponhava” um short pra chegar até em casa, chegava em casa, vestia a roupa de trabalho e caía pra dentro do serviço de novo.
P/1 – Nossa. Aí descansar?
R – Não, não descansava não.
P/1 – Mas era um barraco lá, que a sua mãe morava?
R – É, a minha mãe morava assim, tipo beira do lixão. Eu que fiz o barraco dela. Era quatro pau infincado cortando o mato, igual fazer barraco mesmo. Aí pregava umas “tauba”, em cima a gente jogava a tauba e jogava a lona por cima.
P/2 – Não tinha telhado?
R – É. E não entrava uma goteira dentro.
P/1 – É mesmo? Olha!
R – A casa da minha mãe tinha quarto e cozinha, que eu que construí pra ela.
P/1 – Você que construiu todo o barraco?
R – Com a ajuda dos outros, mas eu que pregava prego, eu que subia em cima, sempre eu fui arteira.
P/1 – E depois, agora. Primeiro pra associação, quem organizou a associação?
R – A associação veio ordem lá do...
P/1 – Ministério Público.
R – Ministério: Criança no Lixo Nunca Mais.
P/1 – Entendi.
R – Que até hoje a Rose conhece a minha filha, que hoje é a minha mais velha que tá comigo, que ela tem 22 anos, ela é mãe do meu neto.
P/1 – Ela trabalha no lixão também?
R – Não, meus filho nunca trabalhou no lixão. Eu ia sozinha, deixava meus filho em casa.
P/1 – Entendi.
R – Mas meus filho nunca trabalhou não, porque eu sei que era duro.
P/1 – Entendi.
R – O que eu sofri lá, eu não quero que meus filho nunca passasse.
P/1 – Entendi.
R – E eu levava pra escola, depois eu ia trabalhar. Ainda ia buscar meus filhos. Então a única coisa assim ruim do lixão, que eu lembro até hoje, que eu tenho uma filha vai fazer 21 anos, hoje ela já me deu duas neta. Então na época, a Dalva, você conhece a Dalva? Que dava um apoio pra nós lá. Eu vinha levar ela, tava no prezinho, aí chegava na escola, se tivesse com o pé cheio de barro não podia entrar. Esse foi meu, foi derrota pra mim. Que a gente morava lá na estrada do lixão. Até subir na escola era tudo terra e em dia de chuva que suja o sapato.
P/2 – Muito barro.
R – A professora não deixava a menina entrar. Não era só a minha, de todos que morava lá no redores. Aí eu falei com a Dalva, a Dalva: “Não, vou tomar providência”, que eu não sei se você lembra que foi todos os professores pro Rudge, lá naquele teatro, aí nós metemos a boca lá. Eu fui uma delas que falei: “Se criança não pode entrar dentro de uma escola. Pra entrar na sala de aula tem que tirar o sapato porque tá sujo, então não vem pra escola, vai ficar tudo burro”. Que na minha época que eu estudei, se tivesse com a camisa rasgada aqui, nós dava um nó aqui, a gente entrava.
P/1 – Você estudou Margarete?
R – Eu estudei.
P/1 – Até que ano?
R – Até a quinta série. Eu estudei mais do que na época eu já tava nessa, onde eu entrei.
P/1 – Entendi. Mas tá certo de protestar contra isso, né?
R – Mas hoje eu falo pras minha filha, eu só tenho um filho home hoje, que Deus levou os dois, o mais velho e o mais novo, eu só tenho um. Eu falo: “O que eu fiz, eu não me arrependo, foi muito orgulho, sou catador, carrego aqui no peito o símbolo, sou catadora mesmo. Nasci catadora e quero morrer catadora”. Mesmo se um dia eu sair da casa de reciclagem, eu vou com o carrinho na rua.
P/1 – Você levava as coisas no carrinho?
R – Eu puxei muito tempo. Eu e meu marido.
P/1 – Ah tá, mas aí já não era mais no lixão.
R – Não, no Rudge Ramos, quando nós foi pro alojamento.
P/1 – Você casou onde? Assim, você conheceu ele no lixão?
R – Foi lá no lixão mesmo.
P/1 – É?
R – Nós tá casado vai fazer 22 anos de amigado, não é casado (riso), né?
P/1 – Vinte e dois anos juntos, já? E com ele você tem outros filhos?
R – Tenho, eu tenho seis... A gente perde a conta, não pergunta quantos filhos (risos)!
P/1 – Margarete, e você disse que aí veio essa ordem do Ministério Público, e vocês fizerem a associação ou alguém fez e vocês...
R – Não. Quem fez foi o prefeito no tempo, que era o... Não lembro...
P/2 – Maurício Soares.
R – Não lembro o nome dele, mas falo sempre assim: “O véinho”. Então a justiça lá mandou pra ele, aí...
P/1 – Certo.
R – Ordem de fechar o lixão e “Criança no Lixo Nunca Mais”. Aí eu tinha meus filho tudo pequeno na época.
P/1 – E aí você pensou: “Vou fazer o que?”.
R – “Vou fazer o que? Vou comer da onde agora?”
P/1 – E aí, como foi essa mudança?
R – Aí eu fui uma das primeira. Eu e a Simone – você conhece a Simone? Fui uma das primeira a ser resgatada do lixão e foi pro alojamento. Aí depois foi a Luiza, depois a Neise, aí foi vindo.
P/1 – Mas vocês tinham que sobreviver. Como que vocês faziam aí?
R – A prefeitura dava uma cesta básica, aí nós foi cadastrado no bolsa família pra ter uma renda, e aí meu marido pegava o carrinho, quando eu podia ir com ele eu ia, quando eu não podia, ele ia sozinho. Eu ainda tinha que cuidar de casa, levar as criança pra escola que é longe lá onde nós morava, né? A escola era no centro, nós tava retirado. Mas aí eu fui lutando, lutando, aí saiu as duas casa de reciclagem. Uma na Rua Batuíra, ali no Bairro Assunção, e outra lá na Vivaldi.
P/1 – Mas aí com carrinho vocês catavam...
R – E vendia pro ferro velho.
P/1 – Mas catavam na rua?
R – Catava na rua.
P/1 – E você disse que tem essas duas casas de reciclagem. Quem que montou essas casas?
R – Foi o prefeito no tempo, que foi a ordem pra fechar o lixão.
P/1 – Entendi. Aí vocês podiam levar lá pra reciclar.
R – Não, aí não. Nós tinha que sair da rua, parar de trabalhar na rua com carrinho, como o lixão fechou, nós que ia no lixão não podia mais trabalhar na rua com carrinho. Aí meu marido foi lá pro Assunção. Como na época eu tava grávida de uma criança, aí não podia entrar em lugar nenhum. Eu fiquei na fila de espera. Aí quando eu ganhei minha criança, passou um tempo, aí a Sonia Cristina, não sei se você conhece, foi, falou: “Margarete, sua vaga lá em cima foi preenchida porque, né, mas eu tenho outro serviço pra você. Você vai lá pra Vivaldi”. Eu falei: “Eu não quero ir pro Vivaldi, eu quero ficar na turma do lixão”.
P/1 – Vivaldi era o quê?
R – Era só pra catador de rua, e eu queria ficar na turma de catador do lixão. Aí ela falou: “Não, Margarete, você entra lá, depois nós transfere você pra cá”, “Ah, tá bom, então todo lugar é serviço”. Aí fui trabalhar lá.
P/1 – E na oficina de reciclagem, como funciona?
R – Ah, lá é muito gostoso.
P/1 – Mas o lixo quem traz?
R – A prefeitura recolhe no Ecoponto, e hoje já tá com a campanha de porta a porta, em vários bairro aí da São Bernardo, e nós crê, nós tá crente ali, que vai aumentar muito mais nosso material.
P/1 – Então, pra eu entender, não podia ter catador porque é a prefeitura que recolhe o material.
R – Não, naquele tempo...
P/2 – Posso?
R – Pode.
P/2 – Não podia ter catador porque eles tavam sofrendo abusos na rua.
R – É, nós não podia nem entrar numa loja.
P/2 – Não podia entrar. Descriminação, quem era catador era sentido como morador de rua. Então pra criar uma possibilidade de trabalho, foi criada as casas de reciclagem, que essas famílias do lixão e carrinheiros que eram, que eles já estavam cadastrados pela prefeitura pra que não tivesse abuso. Tanto na compra do material, que tava sendo assim, o preço abusivo, e também dignidade, trabalhar com dignidade.
P/1 – Quando que começou essa proposta?
P/2 – Dois mil e um.
P/1 – E aí você agora na oficina você tá achando o que?
R – Nossa, eu amo essa profissão minha.
P/1 – Mas ainda tem os carrinheiros?
R – Ter, tem, hoje em dia ainda tem vários, que a gente não consegue levar lá pra dentro.
P/1 – Ah, mas vocês que tão lá dentro não usam o carrinho porque o material vem com os caminhões da prefeitura?
R – Vem. Isso. Nós não pode pegar nada na rua.
P/1 – Entendi.
R – Nós que tá lá dentro...
P/2 – E tem caminhão próprio também, deles lá.
R – A Prefeitura cede o caminhão, pra nós “ir” buscar em firma, nas empresas, nos geradores, e a prefeitura tem o caminhão deles próprio que já recolhe.
P/1 – Só de São Bernardo, né?
R – Só em São Bernardo.
P/1 – E, Margarete, e você tá morando no condomínio agora.
R – Hoje eu tô no condomínio.
P/1 – E como foi essa mudança prá você? Você que tinha a liberdade do lixão, o que que significa pra você morar lá?
R – Olha, eu vou falar bem a verdade. Eu saí do lixão, fui morar no Rudge, nos barraco lá no... Que era barraco mesmo, e era muito pequeno, não cabia minha família tudo, tinha que pôr um por riba do outro, espalhar colchão...
P/1 – No alojamento?
R – Isso. Aí lá eu fiquei dez anos. Isso nós veio do lixão pra ficar seis meses. Eu lembro como se fosse hoje a palavra: “Você vai morar seis mês aqui nesse alojamento, e nós vai levar pra... vai dar uma casinha procê”. Isso foi dez anos! Meus filho cresceu lá dentro. Ficou tudo formadinho lá dentro. Aí belê, aí vai: “Não, nós vai acabar com o alojamento, vai dar o bolsa aluguel”. Vamo embora pro aluguel: “Passa a máquina em cima”. Digo: “Pô, com esse monte de filho que eu tenho, eu sou obrigada a matar um, porque se matar um filho meu, nossa senhora”. Aí falei pro meu marido: “Olha, o negócio é o seguinte, vai arrumar um aluguel”, aí ele foi. Onde ele foi arrumar um aluguel? Lá no Alvarenga, bem da onde nós saímo! Aí consegui um aluguel lá.
P/1 – Porque os moradores é que tinham que arrumar.
R – É.
P/1 – Naquele valor?
R – Naquele valor, só que pra casa que cabia meus filho na época, já tava tudo grande, já não cabia aquele valor que a prefeitura dava, trezentos reais. Uns era 315, o meu nunca foi 315, o meu já foi trezentos redondo. E eu pagava quinhentos.
P/1 – E hoje, da oficina. Daí já tinha a oficina de reciclagem?
R – Já, eu trabalho no Rudge, na época. Aí eu tinha que sair de lá do Alvarenga, com essas criança tudo de ônibus, de madrugada, cinco hora da manhã, pra pôr estudar no Rudge.
P/1 – E você vinha?
R – Vinha.
P/1 – Todo dia?
R – Todo dia. Saía do trabalho, pegava meus filho, vinha pra casa. Pegou fogo no alojamento. A prefeitura foi lá, recolheu nós, pôs nós ali no Ferreira ali, no Esmeralda.
P/2 – Cooperativa Esmeralda.
R – Lá vai nós, queimou tudo, não tinha nada pra carregar mesmo, era só um pouco de roupa que tinha sobrado. Puseram nós no barraco lá. Ali foi tristeza, ali eu não gosto de lembrar, não. Quando eu vou naquela reciclagem, que agora tá de frente, eu falo: “Lugar que eu nunca quero morar”. Nós chegava, nós tinha que lavar banheiro de noite, porque o banheiro era de todo mundo.
P/2 – Comunitário.
R – Ali quem passava, usava. E aí a gente chegava cansado, tinha que lavar roupa, dar banho em criança, pentear criança e ainda tinha que levar banheiro. Era um dia de cada um, quem já tinha chegado. Não, mas era obrigado mesmo. Não era porque tinha que lavar pra usar não. Nós tinha que lavar uma bacia rapidinho ali e usava.
P/1 – Entendi.
R – Ó o tamanho das 12 nas mão dos peão, correndo corredor por corredor. Falava pras minhas filha assim: “Vocês não sai pra fora”. A maioria das minha filha é muié, tudo as minha filha é muié. Eu: “Não, você não vai”. Eu pegava um baldinho desses que vem azeitona, maionese, fazia “Faz xixi aqui filha, a mãe cedo vai jogar fora. Não posso ir lá fora, os home tá armado”. Eu ia fazer o que? Tinha as minha filha, mas olha, a única coisa boa de tudo aquilo, proveito que eu tirei desse lugar, de todos os lugar que eu passei, foi conseguir estudar a minha filha, que hoje ela tá fazendo faculdade.
P/1 – Beleza.
P/2 – Graças a Deus.
P/1 – Que orgulho.
R – Nossa, eu falo pra minha filha: “Fia, eu não credito que eu consegui fazer isso”.
P/1 – Que orgulho.
R – A única que eu consegui.
P/2 – Mas tem tempo pros outros ainda.
R – É, já casaram tudo.
P/2 – Mesmo assim. De repente pode...
P/1 – Mas tão bem casados?
R – Tão, graças a Deus.
P/2 – Felizes?
R – Uma foi buscar um lá no interior. Casou e foi embora pro interior. Já trouxe de lá um namorado, foi passear e trouxe de lá, arrumou filho e já foi embora. Agora já me deu outra neta. Agora casou mesmo no papel. Agora tem a Pamela, né, que você conhece. Também não fala em estudo pra ela não, pelo amor de Deus, ela bate em nós. “Não estudei nada, não gosto, não fala comigo que eu não quero saber de escola, não”.
P/2 – Margarete, mas teve uma mudança na sua vida vim pro apartamento?
R – Ai Rose, você tinha que tocar nesse assunto mesmo?
P/1 – Nós tamos esperando. Eu já perguntei e você saiu pra outro assunto.
R – É que eu...
P/2 – Você fala se você quiser.
R – Não Rose, é assim, é bom. Meus filho mesmo gosta demais daqui, mas eu não me adapto. Eu, pessoa, eu. Que pra mim a favela vai tá... Isso aqui é uma favela em pé, gente, não muda. Só pôs um em riba do outro.
P/1 – O que que não muda pra você?
R – A favela.
P/1 – Mas o que que é a favela?
R – Favela? A senhora não conhece favela?
P/1 – Mas porque pra mim, o que que eu quero dizer? Pra mim olhar pra favela e olhar pros prédios, eu vejo diferença.
R – Não tem, não tem.
P/1 – Então, no que que não muda?
R – Não tem, por causa que é assim, eu vou explicar, mandar bem como eu falo no serviço, vou mandar um papo reto. Não muda. Quem nasceu pra morar, ser favelento, vai ser favelento, dona, não muda. Porque a gente tenta mudar a vida da gente, né, mas tem pessoa que não muda. Quem nasceu ali, vai morar ali. Tem gente que é assim: Eu sou assim, vou ficar assim”, não quer crescer.
P/1 – Mas o prédio, a moradia...
R – A moradia pra mim, assim, é bom. A moradia sim.
P/2 – De tudo que você passou, hoje você vê um avanço?
R – Um avanço. Porque eu falo pros meus filhos: “Eu lutei muito, foi muitos anos pra mim tá aqui hoje. Isso aqui não é meu, isso aqui vai ser de vocês, vocês têm que cuidar, porque eu não vou viver pro resto da vida”. Eu falo pros meus filho. Um dia me dá um “peripaqui”, quem vai ser responsável? Meus filho. Que eu nem quero que meu marido seja. Um dia também, pode levantar asa e voar e deixar as criança. Criança modo de falar, não tem nenhum pequenininho, né? A minha caçula tem 16 anos. Mas assim, eu vejo assim, foi um avanço pra muitos, mas pra outros não. A Rose entende o que eu to falando.
P/1 – A moradia, deixa eu entender. A moradia tem diferença ou não?
R – Tem, tem muita diferença, é lógico, muita diferença.
P/1 – Qual?
R – Assim, porque a gente morar no barraco, um passava, esbarrava, outro ia e tacava fogo, né, hoje em dia não. Vai tacar fogo aonde? No cimento?
P/1 – Entendi.
R – Entendeu?
P/2 – Você tem hoje uma estrutura.
R – Nós tem. Eu aprendi assim, que hoje nós tem um argumento. Isso nós chama argumento, que nós pode falar: “Isso aqui é meu. Eu lutei pra ter isso aqui. Foi muitos anos”, mas nós não pode bater muito porque nós não tem escritura ainda não. Enquanto não chegar esse papel, não posso bater muito assim, né? Mas foi muita luta pra nós tá aqui. Essa aqui é prova, fizemos uma comissão, eu fui lá e bati o pé, falei: “Não, basta. Daqui a pouco vou morrer, vocês vai dar apartamento pra quem? Que depois que eu morrer, você não vai dar pra ninguém, que meu nome é que ta aí. Aí meus filho vai ficar jogado na rua?”. Foi aí que o senhor prefeito, né, que diz que é prefeito, fizemos a reunião lá, eles decidiu jogar nós pra cá, mas tá bom.
P/1 – Como que você, você ouvi assim que “esse apartamento pra nós é um argumento”.
R – É um argumento.
P/1 – Como assim?
R – Um argumento é assim, que a gente lutou tanto, sofreu tanto, principalmente quem trabalhou dentro de um lixão, que nem eu, desde pequena. E a prefeitura sempre falando: “Você vai ter sua casa”, e meus filho tudo crescendo. Já vim pra cá, tudo carregava a mudança nas costa já! Eu mesmo não pus a mão em nada, só fui lá, assinei o papel e fiquei olhando de longe. Que eles mesmo carregou as coisa deles, eles mesmo arrumou o quarto deles. A minha caçula tem 16 anos, e é maior do que eu.
P/1 – Agora você diz que mudou a construção, mas o que não mudou? Fala um pouquinho mais.
R – Ah, o que não muda, eu não sei não. Pensa comigo, eu, comigo, vou falar, mas eu penso comigo: Quem acostuma a morar em favela, sempre vai pensar que aqui é uma favela.
P/2 – Tem essa concepção?
P/1 – E?
R – Aí vai lá, que nem, eu escuto todo dia isso aí: “Isso aqui é uma favela em pé”.
P/1 – E se a pessoa acha que aquilo é uma favela, qual o jeito dela com aquele espaço?
R – Aí que eu não sei, eu não sei o pensamento do outro.
P/1 – Não, mas assim, o que você vê eles fazendo...
R – Eu acho assim, porque eu não conhecia aqui. Conheci no dia que começou as reunião pra cá, que nós nem sabia, os prédio já tava pronto, né, Rose? Aí que eu fui conhecer o local, porque se eu tivesse conhecido eu não tinha vindo não.
P/1 – Por quê? Eu só queria só entender isso.
R – Tinha não. Porque já tinha uma turma aqui que já veio de longos tempos, que a gente conhece, da Naval.
P/1 – Entendi.
R – A Naval taí. Aí nós veio se misturar com quem a gente nunca viu. Por isso lembra, na reunião falei: “Rose, a gente pode montar uma comissão só do prédio da gente que morava no alojamento?”. Pra que? Beleza, não tem confusão lá.
P/1 – Conseguiram morar num prédio só?
R – Conseguiram, tudo num prédio só. Só que umas duas que saiu fora, que a Simone...
P/1 – Aí fica mais fácil.
R – É, ficou.
P/2 – A convivência ficou melhor?
R – É, que todo mundo já morava ali, parede no meio um do outro, uns ficou em cima, ficou embaixo, mas todo mundo conhece todo mundo. No nosso prédio ali, eu gosto. Agora, eu fico lá de cima — que eu escolhi logo em cima — eu fico da minha janela... Eu tô lá, minha filha saiu, “Mãe, tá chamando a senhora”, falei: “Fala pra Rose que eu saí”, ela falou: “É pra agora que ela tá chamando a senhora”, falei: “Fala pra ela que eu saí”, “Não, a Rose quer falar com a senhora agora”. As menina tudo conhece. “Ah, eu tenho que ir mesmo”. Aí eu saí: “Que foi Rose?”, “É agora, seu nome já tá lá”, eu digo: “Ai meu Senhor, eu tenho que ir, meu Deus do céu, tenho que ir mesmo”. É assim, com quem a gente conhece, já vem de lá, é uma boa. Agora a gente passa coisa na mão dos outro por aí que a gente nunca viu, não sabe de onde veio.
P/1 – Entendi.
R – Entendeu? Então por isso que muita gente não entende a vida da gente. Não sabe de onde a gente vem. Não é porque hoje eu tô com essa calça, que já não usei pior do que isso. Hoje tem gente aí com tênis de mil real, mas não sabe de onde vem também, o que faz na vida. Pra mim não importa. Eu falo pros meus filho: “Vocês usa o que vocês tem e nós vai levar a vida assim. O dia que você tiver arroz pra comer, tá bom. O dia que não tiver, come a farinha com ovo”. Eu não gosto, Rose, eu não gosto que meus filho vai na porta de alguém pedir meia colher de sal. Espera eu chegar do serviço pra mim resolver. Porque eu fui criada assim, eduquei eles assim. E por favor, eu tenho um magrinho lá em casa, magrinho demais.
P/1 – Magrinho?
R – É, magrinho.
P/2 – É, parece um touro.
R – É assim que eu ensino meus filho. Pra mim não importa o que o vizinho falou, o que o vizinho comeu, eu quero saber é dentro de casa, eu educo meus filho assim. Então a minha maior riqueza nesse aproveito todo, desse giro que eu dei na vida, hoje eu tô conseguindo não, ela tá conseguindo com o suor dela. Que minha filha é professora, ela tem 19 anos, ela chama Jaqueline. Então, ela mesmo foi lá, arrumou um serviço pra ela, já tem dois anos. Ela dá aula aqui no Seleta e lá no Rudge, no Pequeno Cidadão de lá do Rudge. Conhece aonde é?
P/1 – Sim.
R – Então, ela dá aula de física e ela tá fazendo a faculdade de física. Só ela falou pra mim que vai trancar. Não tem nem um mês que tá estudando ainda, “Mãe do céu, tem que trancar minha faculdade”. Eu digo: “Não”! “Meu salário não cobre a faculdade”. Então eu digo: “Oxe, a sua chefe não quer que você estuda? Então manda eles dá um jeito, que tem bolsa pra isso”. Só que a Uniban não tem bolsa que cobre lá, no Pequeno Cidadão. Falei pra ela: “Deixa que a mãe conhece muita gente, a mãe vai dar um giro no mundo”. E a maior riqueza é ver meus filho bem. De tudo o que eu sofri, de tudo o que eu passei no mundo, a riqueza minha maior é ter feito meus filho gente.
P/1 – Parabéns.
P/2 – Tem uma coisa que ela não falou. Quando vocês viajaram, que vocês foram lá no Planalto, lá em Brasília.
P/1 – Quem que foi?
R – Fui eu. O movimento, né, eu sozinha não fui, o movimento. Eu não entrei lá... Eu já fiz muitas viagem!
P/1 – É?
R – Essa camisa mesmo é do movimento, mas é do encontro de mulheres no Paraná.
P/1 – E você já foi pra lá?
R – Já. Duas, três vez, no encontro de mulheres.
P/1 – Que beleza.
R – Mas é assim, é um movimento, não é eu! Aí nós tem o movimento de catador.
P/1 – O que foi assim esse movimento fez de importante pra tua opinião e pra você?
R – O Movimento Nacional dos Catadores, ele é assim, é uma fortaleza pra todos. Não pra São Bernardo, não pra Diadema, que parece que tá tudo... É Diadema, São Bernardo, o grande ABC, é tudo envolvido. Então nós tá tudo ali, e quando se junta todo mundo é pra discutir. É a cidadania, é a catação, é tudo. É prefeitura. Nós não precisa ir na prefeitura resolver nossas coisa. Se a prefeitura não resolve pra nós, nós vai lá e resolve.
P/1 – O movimento?
R – Nós, o movimento, que aí vai mais de trezentas mil pessoa, é movimento. No tempo do Lula, tem o almoço do catador. Já ouviu falar do almoço do catador com o Lula? Sempre participo.
P/1 – É mesmo?
R – Só não fui agora com a Dilma, porque eu tava fazendo outro atividade. Mas gente lá da base foi. É um almoço, que eles fala, almoço com catador, né, mas é assim, Brasil. Catador vindo da Argentina, vem de tudo quanto é canto, então nós tá tudo ali junto, e naquele dia tá reunido. Em Brasília, nós vai em Brasília? Não vai. Margarete, eu não vou como Margarete, eu vou como movimento.
P/1 – Você já foi pra Brasília?
R – Já, várias vezes. E participo das conversa, dou minha opinião, recebo opinião. Muito bom mesmo, adoro.
P/1 – Você acha que é um movimento que faz acontecer, que tem movimento que não é tão movimento?
R – É, tem movimento que a gente vê por aí que não entrosa. Mas o movimento dos catador, se entrosa muito bem. É ali que a gente faz nossa roda de conversa, nós decide o que nós quer pra nós. Porque o catador quer o que? Olha, nós quer isso, isso e isso. Já tem lá o menino que trabalha com, não é? Que nós fala o maior lá do...
P/1 – O maior do movimento?
R – É. Ele tem cadeira lá, junto com a Dilma, ele tem cadeira lá dentro.
P/1 – Mas ele é também do Movimento?
R – É do Movimento.
P/1 – Mas ele era catador?
R – É catador. Ele é catador, mas ele é de São Paulo.
P/1 – Como ele chama?
R – Ai meu Deus, eu esqueço o nome dos meninos…
P/1 – Não precisa falar.
R – É que eu esqueço mesmo. Mas ele tem a cadeira lá dentro. Ele senta naquela mesa junto com a Dilma, que antigamente era o Lula, hoje é a Dilma. Ele tem a vaga dele lá dentro. Nós escreve o que nós quer e manda pra lá, ele vai lá e leva. Não é o que ele quer, é o que nós queremos como catadores.
P/1 – Muito bom. Parabéns, viu Margarete.
R – Eu amo essa luta minha. Ninguém me vê com outra camisa, eu tenho várias.
P/2 – É isso mesmo, por isso eu falei: “Vai com a camisa”.
R – Ichi, eu só não durmo com ela porque eu não posso. Eu tenho várias coisas, mas não dá pra falar hoje, não.
P/1 – Olha Margarete, nós estamos terminando. Essa tua história, pelo menos esse pedacinho, foi muito importante a gente registrar. Eu agradeço, viu, é um presente pra nós sua história. Parabéns.
R – Obrigada.
P/1 – Desde os oito anos na luta. Vai ver que desde antes!
R – Já tem foto minha com essa história. Já teve trabalho lá onde eu trabalho, hoje ele tá em Diadema. Como é nome dele? É um japonês lá.
P/1 – Já tem foto?
R – Tem, já teve história, já jogou pra tudo quanto é lado.
P/1 – Que bom. Mas agora você contou um pouco mais dela, da sua vida. Parabéns mais uma vez. Obrigada.
R – Obrigada vocês.
FINAL DA ENTREVISTA
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