Carnes campineiras

P1 – Então para começar eu gostaria que o senhor me dissesse seu nome completo, local e a data de nascimento.

R – Eu sou Hamilton Luiz Lima. Sou de primeiro do quatro de 1950.

P1 – E nasceu onde?

R – Nasci em Fernandópolis, estado de São Paulo.

P1 – Qual o nome dos seus pais?

R – Meu pai se chama Juvenato de Oliveira Lima. E minha mãe, Rosalina Teodoro Lima.

P1 – E a origem da sua família?

R – São mística como os normais. São brasileiros.

P1 – Eles vieram de que região aqui do estado?

R – Região de São Paulo, região de Ribeirão Preto, né, de Guará, Morro Agudo, essa região aí.

P1 – Você se lembra dos seus avós?

R – Muito pouco, mas lembro, sim. Mas lembranças assim, vagas, né? Porque a gente era muito garotinho ainda.

P1 – Sim. Qual era a atividade dos seus avós?

R – Na parte do meu pai, eram músicos, né? Trabalhavam com música. E da parte da minha, ele era, como diz, ele tinha um comércio, que eu me lembro, comércio de empório, né, de secos e molhados, na época.

P1 – Sim. Qual a atividade profissional que os seus pais tinham?

R – Meu pai, em visar que eu comecei a entender da área, meu pai era pecuarista, mexia com terra, com boi. Depois ele começou a trabalhar com carne, um pequeno açougue e foi por aí. Na região do estado de São Paulo, Fernandópolis, Índia Porá, por aí.

P1 – O senhor tem irmãos?

R – Tenho. Somos em cinco.

P1 – São cinco? E eles trabalham na área de comércio também?

R – Trabalham no segmento do meu pai, o mais velho, no caso o segundo e eu, o terceiro.

P1 – Os outros fazem o quê?

R – O caçula, né, dos homens, somos em quatro homens e uma mulher, os três, né, que têm seguimento com a carne e um deles hoje tem uma fazenda em Mato Grosso, que é pecuarista.

P1 – Sim. Então tem uma boa parte da família ligada ao ramo da carne?

R – No ramo da carne. Isso.

P1 – O senhor nasceu em Fernandópolis. Como e quando o senhor veio para Campinas?

R – Eu vim para Campinas em 1970, 20 de janeiro de 1970.

P1 – E por que o senhor veio para cá?

R – Como todo brasileiro, sempre procura o melhor. A gente saiu de uma cidade pequena com o intuito de crescer e fazer alguma coisa para si próprio. E assim foi feito.

P1 – Qual a impressão que o senhor teve de Campinas quando o senhor chegou aqui?

R – Como todo interiorano, que vem, como diz, imigrante, que lá sempre traduz assim, tudo é pequenininho, ele tem uma confusão. Apesar de que Campinas na época era uma maravilha, né? Assim, uma coisa singela, de grande respeito e foi por aí que me agarramos aqui. Por sinal viemos em três.

P1 – Quem eram os outros dois?

R – Seria o mais velho, né, o Wilson. O Ailton seria o segundo. E eu. Nós viemos com destino a São Paulo e paramos aqui e aqui ficamos por algum tempo. Eu fiquei e os outros retornaram.

P1 – O rumo que você tinham era ir para São Paulo?

R – São Paulo, isso.

P1 – Só que você pararam aqui...

R – Paramos aqui e aqui ficamos.

P1 – Agora vamos falar um pouco da infância do senhor. Como era a cidade ou o bairro onde o senhor morava lá em Fernandópolis?

R – Na verdade, eu morava no distrito onde eu nasci, que chamava, chama-se Índia Porã, que é na divisa do estado de São Paulo, perto do Rio Grande. Então lá é uma cidadezinha assim, pacata, pequena. Lá, meu pai, na saída, logo que casou com minha mãe, foram para lá. E lá compraram umas terras e foram ficando por ali, que era uma cidade, realmente, pequena, onde meu pai teve algum titulo de administrador, como diz, de serviço público, né? Que ele chegou a ser sub-delegado, vereador, essas coisas, né, na cidadezinha. Mas é uma cidade bem pequenininha, calma, que até hoje ela ainda é calma, por sinal.

P1 – E o que o senhor gostava de fazer quando era criança, já que era uma cidade tranqüila, pequena, calma?

R – É, antigo, né, falamos antigo, voltando ao passado, onde que uma família igual a nossa, éramos em cinco, todos nós tínhamos uma ocupação. Cada um tinha uma ocupação, né? Que nem, nós tínhamos as terras, os mais velhos cuidavam dos bois, cuidavam dos cavalos. Que nem no meu caso, o terceiro, cuidava do terreno, das galinhas, das cabritas, essas coisas. Vamos dizer, o brinquedo era a escola e tarefa, realmente, corriqueira, que era da época. Era isso aí.

P1 – Sei. Então foi uma infância...

R – Uma infância um pouco árdua, como diz, para hoje era trabalhosa. Então, né, trabalhamos.

P1 – Sim. Então você já teve uma noção desde pequeno do que era o mundo do trabalho?

R – Sim, acho que o fator responsabilidade, né, com as criações, com os deveres do pai, né, que passava automaticamente, o que acontecia? A gente tinha que seguir as normas do que foi dito para o bom desenvolvimento da família.

P1 – E no meio dessas tarefas, porque querendo ou não, vocês eram cinco garotos ali, né?

R – Éramos.

P1 – E um aprontava com outro ali, bagunçava um pouco? Porque uma vida no campo...

R – Normalmente a vida de campo ou do interior, naquela época, era certo de uma hierarquia, vamos dizer, um certo respeito, uma certa regalia, vamos dizer. Onde que não tinha assim muito as brincadeiras como tem hoje, né? As brincadeiras seriam atarefadas, designado a, talvez até, competição de serviços, né? Porque acabava mais cedo, ia, existia um córrego, passava lá, ia se banhar no córrego. Ou ia fazer uma caça. Ia atrás de frutas nativas, tipo gabiroba, marmelo, essas coisas, pitanga. Então era o tipo de brincadeira que era daquela época. Não existia uma coisa, assim, mais fértil, na época.

P1 – Então deu para se divertir?

R – Claro, na época. Todo mundo falando hoje, voltando ao passado, era uma maravilha. Como diz, muita gente não passou o que a gente passou. Como diz, da minha época ou da época dos meus irmãos, vamos dizer, todo mundo que passou por aquela época, hoje pode se considerar um bom cidadão. De grande respeito, que tem disciplina e respeito pelo seu próximo.

P1 – Assim, morando em uma cidade pequena, tendo uma vida rural, uma vida tranqüila, o senhor se lembra de quando alguns de você acompanhavam seus pais quando eles faziam compras, assim?

R – Normalmente seria o mais velho, né, seria uma escala. Então vagamente, aos domingos, que a gente ia à missa, como diz, com aquela família, né, pai, mãe, os irmãos todos, à missa aos domingos. Ou algum casamento, batizado que saíam em grupo, que saiam todos da família. Mas normalmente, isoladamente era difícil.

P1 – Você se lembra da onde os seus pais faziam compras para...?

R – É, opção não tem muita, né, porque, veja bem, Índia Porã como era pequeno, compras maiores seria Fernandópolis, né? Então Fernandópolis o que acontecia? Como todos, final de ano, então aquela história, comprar uma troca de roupa, sapato, essas coisas assim, entendeu? Hoje é diferente, mas antigamente era realmente dessa forma. Então se fazia compra uma vez ou duas vezes no ano, se muito. Então, normalmente a família ia toda na cidade. Vamos dizer, iríamos para Fernandópolis, que é bem próximo, fica a 25 quilômetros. Então ia todo mundo.

P1 – E aí era uma ocasião de festa?

R – Era uma ocasião de festa, que fazia visita aos parentes e comprava, vamos dizer, uma troca de roupa, um presentinho para um afilhado, como diz, essas coisas assim.

P1 – E trazendo para coisas corriqueiras, assim, da sobrevivência da família, tinha algum armazém, alguma vendinha, que seus pais faziam compras?

R – No local sempre teve, vendas, né? Assim, pequenos comércios, tipo o Baiuca, essas coisas, né? Onde teria o básico, arroz, feijão, sal, querosene, essas coisas assim, corda, por exemplo, isso aí.

P1 – E nessa época, assim, alguém da sua família, vocês iam para São Paulo comprar alguma coisa, fazer algumas viagens para São Paulo?

R – Nunca.

P1 – Nunca?

R – Nunca. Uma que era muito dificultuso, né, uma viagem naquela época do interior a capital era muito dificultosa, né? Que era estrada, não era nem rodovia. Era uma estrada. Hoje nós temos várias rodovias, mas na época era terrível.

P1 – Não tinha o trem?

R – Não, tinha o trem, mas era Maria Fumaça ainda. Como diz, que ele ia, cortava São Paulo, ia até Presidente Vargas. Na época, era aquele trem, como diz, era um sufoco. Hoje, para nós, vamos dizer, acho que ele morreria. Pessoal de hoje não agüentaria viajar pouco, né, que não conseguiria viajar naquilo. Mas era o veículo que tinha na época. E as jardineiras, né?

P1 – Jardineira?

R – Jardineira, o que seria os ônibus hoje, né? São jardineiras a gasolina. Então era dificultoso. Estradas cheias de obstáculos, que encravava porque não tinha estrada. Hoje, graças a Deus, temos um paraíso, né?

P1 – E, avançando um pouco aqui na entrevista, eu queria que o senhor falasse um pouco da formação. Quando o senhor foi para escola ali, naquele período?

R – Ali, como se diz, antigamente entrava-se com sete a oito anos, né? Quando completava oito anos é que ia para o primeiro ano. Então de sete a oito.

P1 – E existiu alguma, porque o senhor falou assim, que um dos seus avós já trabalhava com comércio; o pai do senhor também trabalhava com comércio. Existia alguma expectativa da sua família, que você viesse a trabalhar com comércio, assim, ou algum tipo de preparo quando você era garoto?

R – Não. Como diz, é um sonho dos pais para os filhos é totalmente, assim, meio, radical, né? Porque os pais, como a família é católica, teve um histórico da família em ingressão de ser padre, essas coisas, nós tínhamos assim, meu pai tinha um sonho para um dos filhos, para fazer ordenação para padre. Eu mesmo seria um deles, que seria, um dos que tinha tudo para ser padre, como você vê. Portanto nada disso aconteceu. Vamos dizer, hoje a gente é católico, como diz, não muito praticante, mas somos católicos de referencial. Inclusive família, estrutura é católica, né?

P1 – Então existia essa expectativa de que fosse padre, mas não que trabalhasse?

R – Não, no comércio não. Porque era totalmente diferente. Quer dizer os pais naquela época, como não tínhamos condições, normalmente, os filhos iam estudar fora. Iam fazer medicina, odontologia, essas coisas, tudo fora do Brasil.

P1 – E nessa fase da juventude do senhor, o senhor saía, se divertia, tendo irmãos mais velhos?

R – Lá o único divertimento, veja bem, isso no interior chamava assim as festas nos compadres, né? Então, veja bem, tinha muita festa de reis, festa de santo, Santo Antônio, São João, essas coisas. Ou casamento, que era esporadicamente, volta e meia, um ano, dois anos saía um casamento. Então eram essas coisas assim. Não que tinham, como diz, clubes que nem tem hoje. Era, como diz, tinha, que nem hoje no interior ainda tem uma pracinha com fut, às vezes tinha uma bandinha tocando, você entendeu? Era isso assim, eram cidades pacatas na época. Era tudo aquilo ali.

P1 – Legal. E você falou que vocês nunca vieram para São Paulo, mas ali dentro da região vocês viajavam, tinham alguma viagem de vez em quando?

R – Ali, assim, como era dificultoso, então Índia Porá, Fernandópolis, Votuporanga é um raio. Vamos dizer, ter 100, 150 km de Fernandópolis, hoje, a regional do interior, que é São José do Rio Preto. Então, vamos dizer, seria uma capital, hoje do interior, seria São José do Rio Preto, da região. Então quando ia a São José do Rio Preto, quando tinha, veja bem, algum tratamento sério, alguma coisa naquela época era São José do Rio Preto. São Paulo era muito difícil.

P1 – Era uma coisa meio longe, assim?

R – Meio longe. Então, veja bem, não é que nem nós falamos em São Paulo, estando em Campinas, São Paulo, vamos dizer, é um bracinho aqui. Vamos dizer, dando um pulinho daqui lá é rapidinho. Então, mas antigamente era muito dificultoso.

P1 – O senhor chegou a andar de trem nessa época?

R – Andava.

P1 – E como que era a experiência do trem para vocês?

R – Para nós era tudo brincadeira, né? Devido a situação, veja bem, não era sempre que acontecia aquilo. Mas pelo menos uma vez no ano acontecia um passeio de trem, essas coisas. Que a gente ia para Votuporanga, na casa dos meus avós, que moravam lá na época. Então você praticamente ia de trem, para não ir de ônibus, porque sofria muito, por causa das estradas que eram muito ruins. Eram estradas mesmo. Para você ter uma idéia as estradas iam cortando as fazendas. Para você ir em determinado lugar tem que abrir as porteiras, aquele negócio, pra jardineira passar. Para você como eram tão precárias as coisas. Mas é o desenvolvimento, né? E naquela época era isso tudo.

P1 – E como era o trem, assim, mesmo, os lugares, assim?

R – O trem era, como se diz, os assentos eram de madeira, que existia uma primeira classe na época, que sempre existiu mordomia. Tinha a primeira classe que era almofadada, até hoje, tinham privilégio. Mas, normalmente, na nossa classe, usavam sempre a classe 2, né? Então era de madeira mesmo.

P1 – E quando o senhor começou a trabalhar?

R – Quando?

P1 – Quando o senhor começou a trabalhar?

R – Eu comecei a trabalhar criança, na verdade. Porque nós não tivemos infância, na verdade, como tem hoje. Mas com a nova lei, essa história toda, vamos dizer, lá para nós começou a andar, cada um na hierarquia dos filhos todo mundo tinha uma ocupação. E tinha que surgir aquilo. No caso, eu passei a minha para o meu irmão caçula, depois determinação para minha irmã, né, vamos dizer, que eram os afazeres da casa, qual? Na época, todos. Na nossa época todos aprenderam prendas domésticas. Todo mundo sabia se virar na cozinha. Todo mundo na época tinha que fazer. Tem que ajudar a mãe, era assim. Que funcionava, aquela brincadeira, então você tem poucas, né, que no caso do riacho, tal, que é um negócio... Mas isso era às vezes até escondido. Por causa que os pais tinham medo de caso de inseto, essas coisas, cobra, essas coisas que era perigoso. E realmente tinha muito.

P1 – Sim. O senhor tem lembranças boas então da infância, assim?

R – A infância, como diz, eu acho que poucas pessoas tiveram assim uma infância real, uma coisa com a natureza. Uma coisa verdadeira, você entendeu? Vamos dizer, você foi criado, realmente, dentro de uma certa disciplina, com uma obrigação, responsabilidade para ser um bom cidadão no futuro.

P1 – Sim. O senhor é comerciante, que nem eu falei agora pouco, o senhor já vem de uma família que tem comerciantes e com que idade você começou atuar efetivamente no comércio, assim?

R – Eu comecei realmente, deveria ter onze anos, doze anos mais ou menos, porque nessa época nós já tínhamos mudado para Votuporanga, que é cidade próxima de Fernandópolis. E meus pais, por ele ser do comércio e a gente também tinha, assim, tipo uma pensão para pouso de boiadeiro, essas coisas, para tropeiro. Então a gente tinha lá e nós tínhamos um açougue, nós tínhamos um bar, que seria tipo no alto da pensão na época, que dava as refeições para o pessoal. E eu trabalhava, na época em um barzinho, bolichinho que tinha entre uma coisa e outra. Já comecei a trabalhar ali no comércio.

P1 – Legal. Você falou que tinha uma pensão, uma pousada para tropeiro. Então você chegou a pegar esse movimento do tropeiro que passa ali com mula, cavalo, etc e tal, vendendo coisa, comprando coisa?

R – Na época, os boiadeiros que, no caso, que vinham de Mato Grosso, que Votuporanga é um setor, que Fernandópolis e Votuporanga desenvolveu, vamos dizer, embarcava os bois ali que vinham aqui para São Paulo os trens, né? Que vinha para Anglo, que vinha para Minerva, Suift, Arno do Brasil da época, né? Então os bois, vinha tocado mil, dois mil bois e ali embarcava tudo nos trens para vir para capital. Então normalmente essa comitiva, eles teriam quinze, vinte peões e eles vinham, normalmente, quando eles vinham tocando esses bois, eles vinham com comitiva própria. Eles vinham fazendo os alimentos deles. Com os tropeiros, né, com a tropa na frente, com o batedor, vinha na frente e vinha já marcando as pousadas, né? Tantas léguas e o boiadeiro ia parando já a comitiva já estava lá esperando o pessoal chegar para descansar e dar o rango.

P1 – Nossa, muito legal, né? Porque hoje isso parece uma coisa meio distante, assim.

R – Parece que faz muito tempo, né? Mas foi ontem mesmo.

P1 – Sim. É verdade. O senhor chegou a ver, quando o pessoal chegava tocando essa boiada assim, era uma imagem muito grandiosa?

R – Normalmente era. Imagina você mil bois.

P1 – Mil bois de uma vez?

R – É, de uma vez, tocado. Era uma procissão, era uma convenção de boi.

P1 – Mais ou menos quinze tocadores para tocar o boi?

R – É, quinze. Normalmente teria sido os ponteiros, um, dois de frente, no meio os batedores para não deixar escapar e os da culatra, né? Fora os que já estavam na frente para fazer, normalmente seriam dois, três que iam na frente da comitiva.

P1 – E o senhor começou ali com onze anos?

R – Onze anos, vamos dizer, já estava trabalhando na Baiúca, né, já servindo e já agilizando. A gente já tinha uma noção do comércio já, de comprar e vender. Já estava no sangue já o sistema.

P1 – Baiuca?

R – Baiúca é um boliche, um boteco, hoje, um bar, você entendeu?

P1 – Ah, entendi. Pensei que era o nome do estabelecimento.

R – Não, é uma coisa assim. Que para lá hoje, não chama bar, essas coisas, era um ponto de venda de secos e molhados, então eles falam bolichinho. Uma baiuquinha.

P1 – Um armazenzinho.

R – Um armazenzinho mini, vamos dizer. Um serve alguma coisa. Sempre de dez itens que você precisa tem dois, três que tem, o resto não chegou ainda.

P1 – Muito bom. E o que você fazia ali quando você começou a trabalhar ali? A ocupação mesmo, assim do dia a dia?

R – A ocupação era ajudar minha mãe na preparação dos alimentos, servir mesa, como diz, abastecimento de geladeira, essas coisas. Que naquela época era geladeira a querosene, na época. E ali servia as mesas, tudo ali. Naquela época já tinha uma noção e já tinha um ganho em mim que era o serviço.

P1 – Sim. Já começou a ganhar o seu?

R – Já tinha uns trocadinhos.

P1 – E o que você fazia com seu dinheiro?

R – Hoje em dia teria uma poupança. Na época tinha, mas a gente não tinha noção disso aí, então guardava. Ia guardando ns trocadinhos que era, acho que era cruzeiro, na época ou antes de cruzeiro. Não me lembro do dinheiro na época. Então o que você fazia? Juntava assim uns par de dinheiro, comprava alguma roupa, coisas assim. Mas rua não, né, era preso ali, meu pai não deixava. Era todo mundo no cabresto ali.

P1 – Que eu ia perguntar? Depois dali o senhor foi trabalhar onde? O senhor começou com onze anos, o senhor ficou ali quanto tempo mais ou menos?

R – Onze até quatorze, quinze anos. Quinze anos, viemos para São José do Rio Preto. Ali eu ingressei em um frigorífico de indústria e ali fui me aperfeiçoando na área da carne. Onde eu fiquei de 1966, 67, 68. Em 69, eu fiz o tiro de guerra lá em São José do Rio Preto. Que aconteceu? Nessa época, meus pais de São José do Rio Preto voltaram para Mato Grosso, para frente de onde eu nasci, Aparecida do Taboado. E eu fiquei já, até 1969, realmente em São José do Rio Preto. No final do ano, acertei a baixa do quartel, tudo certinho, fomos para Mato Grosso. Chegamos lá o que aconteceu? A vida estava muito dificultosa. Foi aí que nós imigramos para, viemos para capital. Eu e meus dois irmãos. Aí começou a vida.

P1 – Legal. E uma coisa que eu acho interessante, né, a pessoa que trabalha com carne, com açougue, ela obviamente trabalha com refrigeração, porque tem que conservar, né, porque carne é um material perecível. E agora pouco o senhor me falou que onde o senhor trabalhou, mais adiante, não, no pequeno armazém de vocês era uma geladeira a querosene.

R – Naquela época sim.

P1 – Então era muito difícil ter um material de refrigeração?

R – Depende do custo. Já existia geladeira, mas como a nossa ainda, devido ao custo e Votuporanga era uma cidade assim, a gente estava próximo da Fepasa, né, que era da linha do trem, onde a gente tinha realmente, vamos dizer, retirado. Então naquela época lá não tinha muita luz, sabe? Na nossa casa, por exemplo, não tinha luz elétrica. Então nós tínhamos uma energia, no caso, da geladeira principalmente, seria um quebra galho que seria, da época, que seria a querosene.

P1 – E quando você foi ver uma geladeira elétrica, assim? Você sentiu muita diferença?

R – A diferença, assim, devido a situação, o sistema dela, mas a refrigeração era a mesma, entendeu?

P1 – Jóia. Você falou que foi, nessa outra fase, que mudou de cidade, você foi se aperfeiçoando no trabalho com a carne. Como foi esse aperfeiçoamento?

R – Isso foi ao longo dos anos, né? Foi de 1966, abril de 66, 67, 68 e 69. Eu trabalhava em uma indústria que chamava-se Frigorífico Bandeirantes. Eles industrializavam, os produtos da época. Qual? Mortadela, salames, as conservas de lingüiças, defumados, essas coisas, que abastecia o interior e jamais São Paulo, sempre para o interior. Porque era dificultoso o trânsito ainda em 67. Então era na época. E fiquei toda essa época, vamos dizer, em uma oficina de aprendizagem.

P1 – O frigorífico mantinha uma oficina?

R – Era praticamente o próprio serviço era uma oficina, né? Porque ali a gente, onde a gente veio a aprender realmente o que hoje não aprende.

P1 – Que era?

R – Que era o trabalho. Como diz, hoje você aprende o teórico e não o prático. Você tem noção, hoje, do que é a coisa e não, vamos dizer, a simulação, o trabalho, a disciplina, a responsabilidade, a tarefa para você cumprir, para produzir uma produção dentro do limite de horário, todas aquelas coisas, né? Então você dependia de um certo sistema. Porque hoje você aprende o teórico, o prático só com os anos que você vai aprendendo alguma coisa, que você nunca vai ser um profissional de acordo.

P1 – Sim. E como foi assim, o senhor já tinha uma vivência de comerciante e daí ali foi uma “ocupação mais técnica”, vamos dizer assim.

R – Isso. Isso.

P1 – Que aí que foi passado o conhecimento para o senhor de como...

R – Do comércio e da parte prática, técnica, de conhecimento com a carne.

P1 – Sim. E como foi esse momento para o senhor, assim? Como foi lidar ali com coisa em uma outra esfera?

R – É, hoje, vamos dizer, tudo que você aprende com carinho, com respeito, com aquilo que você está fazendo é de bom porque você está crescendo. Você está podendo aprender que no futuro você passará sempre para alguém, como aconteceu comigo. Nessa passagem, eu tenho certeza que muitas e muitas pessoas aprenderam muito comigo, no meu trabalho.

P1 – O senhor ficou lá no frigorífico Bandeirante de 66 a 69. E isso era na cidade de...?

R – São José do Rio Preto.

P1 – São José do Rio Preto. Todos esse anos, nesses cinco anos, cinco? Não. É, por aí, né?

R – Quatro anos.

P1 – Quatro anos que o senhor ficou lá...

R – Três anos e meio, por aí.

P1 – O que o senhor aprendeu a fazer ali, basicamente, desse trato com a carne?

R – Bom, a parte técnica de conhecimento profissional com a carne, com o que fazer, como conservar, como industrializar essas carnes, o processamento de embutidos de um salame, de uma lingüiça, de uma mortadela, de um presunto. Então aonde que veio acarretar tudo isso aí. E mesmo técnica de resfriamento e conservação dessas carnes.

P1 – Sim. Depois disso você foram para o Mato Grosso?

R – É, logo em seguida foi dado a baixa, que eu estava servindo, estava trabalhando e fazendo o serviço da pátria. A gente foi para Mato grosso, onde reunimos a família novamente. E lá chegando, como não tinha serviço para todo, resolvemos, eu e meus dois irmãos mais velhos, vir para São Paulo. Meu destino era São Paulo. E paramos em Campinas, é o destino, né, estava traçado que ia acontecer aqui. Eu teria que ficar aqui.

P1 – Sim. A gente já vai falar de Campinas. Mas ali no Mato Grosso vocês ficaram em que cidade mesmo?

R – Aparecida do Taboado.

P1 – Aparecida do Taboado. É uma cidade pequena?

R – É uma cidade pequena. É a primeira cidade depois de Santa Fé do Sul. Hoje é a primeira cidade.

P1 – E daí a intenção era ir para São Paulo, vocês pararam no meio do caminho e ficaram em Campinas?

R – Ficamos em Campinas.

P1 – Para você, assim, você veio de uma cidade pequena, foi para Votuporanga, depois foi para São José, depois foi para o Mato Grosso, assim, tem uma trajetória de vida passando por inúmeros lugares. De repente você se vê aqui em Campinas. Como você via Campinas naquela época?

R – Campinas naquela época era tudo medo. Para quem vem do interior é medo. Você estaria em um lugar praticamente estranho, onde não tinha algum parente, que o qual você não tinha muito recurso financeiro e você precisaria arrumar algo para fazer, rápido. E ali foi meio dificultoso mas a gente conseguiu. Por exemplo, eu fiquei. Meus irmãos ficaram só um pedaço e foram embora, não agüentaram. Um foi para São Paulo e outro voltou para o interior.

P1 – Aí você ficou aqui em Campinas se virando sozinho?

R – Eu fiquei. Logo em seguida, eu me casei. Me casei com 21.

P1 – O senhor chegou com 20?

R – Cheguei com 20 anos. Um ano depois casei.

P1 – Quando o senhor chegou aqui em Campinas, o senhor morava onde?

R – Eu cheguei, na verdade, eu fui acolhido pelos parentes nossos, a família foi acolhida, assim, tipo, os primeiros estágios. Depois fomos morar sozinhos, cada um, vamos dizer, nós três arrumamos uma casa e fomos morar. Logo em seguida acho que menos de um ano meus irmãos foram embora e eu fiquei. Nessa época já estava namorando, estava trabalhando em outro frigorífico.

P1 – Que frigorífico era?

R – Frigorífico Macuto na época. Era um frigorífico da cidade na época, no qual eu conheci a moça, é a mãe dos meus filhos e logo tive a oportunidade para casar. Eu falei: “eu vou casar” e pronto, casei. E comecei trabalhando ali.

P1 – E que bairro o senhor morava quando o senhor chegou aqui?

R – Morava no Bonfim, na Erasmo Braga. Aqui, exatamente.

P1 – Exatamente nesse bairro aqui. E como era o bairro assim, nessa época? Campinas era muito diferente de hoje?

R – Não, era o mesmo de hoje. Vamos dizer,os bairros que naquela época eram os centrais, no caso do Bonfim, São Bernardo, o centro que é o mesmo, modificou algumas coisinhas. Lateralmente Cambuí, esse centro aqui, enfim é o mesmo daquela época. Nada mudou. Quer dizer, o que mudou hoje foi o periférico, né? Que hoje abrangeu, ficou enorme, cresceu muito, né?

P1 – O senhor falou que nessa fase, o senhor casou, como foi a vida ali, começando, casadinho novo, jovem, em uma cidade diferente, trabalhando em um novo frigorífico, como é que foi esse momento?

R – Como diz, não dá nem para você contar, porque veja bem, jamais uma pessoa, no caso, veio sem estrutura, casar naquela época foi realmente uma precisão. Surgiu na minha vida a minha esposa, mãe dos meus filhos, no qual não existe, que ela faleceu. Na época para mim foi uma grande saída. Porque a família me acolheu. A família, como diz, me deu o primeiro impulso da minha vida, foi eles que deram para que eu começasse a minha vida de casado. E logo em seguida, eu comecei com meu primeiro açougue.

P1 – O senhor trabalhou então nesse frigorífico Macuto um período curto?

R – Um período curto, um ano, um ano e pouco.

P1 – E como foi abrir o seu primeiro açougue?

R – Meu primeiro, com o grande conhecimento que eu tinha e a oportunidade, eu comecei. Eu comecei em um açougue na avenida Industrial, como eles falavam na época, arrendatário, né, trabalhava comissionado com o dono do açougue. Em caso de 30 dias, ele veio me oferecer e eu comprei o açougue para pagar em parcelas e ali comecei. Com meu conhecimento, com a minha técnica, vamos dizer, desenvolvi o trabalho e fui progredindo.

P1 – Sim. Como era o nome do açougue?

R – São Marcos.

P1 – Açougue São Marcos. Tinha alguma conexão com o Santo mesmo, com o São Marcos?

R – Seria o meu filho, já era nascido, né, o mais velho, o qual eu coloquei devido ao meu filho mais velho. Chama Marcos, né, e eu coloquei. Talvez pode até ter, né?

P1 – Sim, eu achei curioso na hora em que o senhor falou. O açougue era ali na avenida Industrial. Como era a avenida Industrial na época, assim?

R – É um bairro pacato de aposentados, que o qual tinha um frigorífico na época que estava praticamente fechado. Que tinha o matadouro municipal também, na época. Era centro de Campinas, né, praticamente. Um dos bairros centrais. E eu quando comecei, realmente, estava, foi desativado o matadouro municipal, que era na avenida Industrial. Foi desativado um frigorífico que também tinha parte. Que eu fiquei praticamente sozinho no bairro. Então como aquele pessoal, vamos dizer, de pouco recurso, mas me acolhendo. E eu fiquei 14 anos.

P1 – Nossa, 14 anos.

R – Trabalhando lá. Onde construí a minha vida, construí um grande patrimônio lá.

P1 – E eu tiro da minha lembrança mesmo, da minha lembrança pessoal que o açougue, ele é um comércio que ele nasce para ser do bairro mesmo, para atender o bairro. Como que era o seu dia a dia ali, com o seu comércio, tocando um negócio seu, no bairro ali?

R – O meu comércio, veja bem, como a vila era, como diz, um grande esteio de Campinas, vamos dizer, o berço de Campinas, que o qual nasceu, praticamente Campinas nasceu na avenida Industrial. Como diz, seus filhos, netos, vamos dizer, foram para outros bairros, mas nunca abandonaram. Então o que aconteceu? Eu fui fazendo um certo volume de conhecimento familiar que o qual eu trazia os clientes de outros bairros, que seriam os filhos, netos, bisnetos, primo, sogra, você entendeu? Na família é onde que eu fui agregando ao meu trabalho. Então, com o meu auto-atendimento, entendeu? Com o meu conhecimento técnico com relação ao trabalho. Então foi desenvolvendo. Meu açougue era na avenida Industrial, na verdade, mas eu atendia Campinas. Como hoje.

P1 – E nessa época o senhor morava perto do açougue, assim?

R – Não. Eu nunca morei perto do meu estabelecimento. Talvez seja o caso de não querer conciliar as coisas, né, trabalho, casa, vamos dizer, essas coisas aí. Então era assim, eu morava no Parque da Figueira, onde que o qual logo me casei, meu sogro me deu uma casa, mobiliada com a família e falou: “não, você vai iniciar a vida aqui” e aí foi. Eu morava no Parque da Figueira, que hoje é Jardim Europa, né? Então a casa vinha para lá e o açougue era na avenida Industrial. E vamos à batalha.

P1 – Sim. E como, assim, o senhor diferenciava muito, né, o meu local de trabalho, o meu local de viver, o local da minha família. São locais longes, assim, como é que o senhor ia trabalhar?

R – Normalmente era de ônibus. Porque o comércio antes, de bairros, assim, então fechava-se no intervalo do almoço, né, tipo uma hora. Fechava meio dia, uma hora, depois abria só cinco horas da tarde, dezessete horas. Depois trabalhava mais um pedaço. Ainda hoje, até hoje, o pessoal de bairro ainda trabalha quase nesse sistema. Fecha três, quatro horas no meio do dia. Era o tempo de ir almoçar, essas coisas, para ir e voltar, ir em banco, essas coisas.

P1 – Então o horário de funcionamento de vocês naquela época seguia o horário do comércio de bairro, né? Ele funcionava...

R – É, ele funcionava aos pedaços, vamos dizer assim. Abria normalmente sete horas, oito horas, ia até meio dia, treze horas, encerrava. Depois passava aquela pausa do almoço, aí voltava às dezessete horas, normalmente para ficar até as dezenove, vinte horas, por aí.

P1 – Isso é um ritmo meio do interior?

R – Ritmo do interior, vamos dizer, um dia. Hoje não. Hoje os bairros nossos estão desenvolvidos, existe, são situações hoje de localizações, né, onde que tem serviços de banco, tem tudo, centralizou, né? Então o comércio, ele está quase virando vinte e quatro horas, né, dependendo.

P1 – Sim. E como era o comércio ali em volta do senhor naquela época?

R – O comércio era meio pacato. O comércio onde que existia e existe até hoje o atendimento de uma mercearia onde que se vende verduras, né, com abastecimento do bairro, que ainda tem até hoje na 24 de maio. Uma padaria e pequenos negócios, bares, essas coisas. Na avenida Industrial era assim. Onde tinha uma feira também as quintas-feiras, ali na rua, na rua 24 de maio, né?

P1 – O senhor falou agora pouco que o senhor conseguiu criar uma clientela no bairro, né, porque um açougue sozinho no primeiro momento. E conseguiu trazer gente de outros bairros. Como era a relação com o cliente, assim?

R – Pelo tratamento que o qual a gente aprendeu a dar com a carne, com as pessoas. O relacionamento calórico, como diz, tentar passar o de melhor para o cliente, onde que ele esteja à vontade. Ele levar somente uma coisa, realmente, ele comprou uma coisa que ele vai realmente consumir, de qualidade, de responsabilidade e de gosto, que ele tem o prazer de retornar e passar para os amigos o que é o produto.

P1 – Como muitos comércios, o açougue, ele também tem umas datas especiais, né?

R – Sim.

P1 – E como é lidar com isso? Por exemplo tem uma data forte para alguma coisa, assim?

R – Não, normalmente, veja bem, o meu caso hoje já mudou muito. Antigamente tinha o caso do domingo. Domingo era reunião de famílias, então todo mundo tinha um franguinho, um macarrãozinho, um guaraná, tinha esse negócio. Então quer dizer, vinha um dos filhos, ou os filhos, os irmãos, tios, faziam sempre na casa um do outro ou na matriarca ou do patriarca, no caso, né? Então era aquela festança familiar. Então depois isso foi realmente, isso era aos domingos. Depois vem a época de páscoa, tem a época do natal, passagem de ano, você entendeu? Então isso era um marco, vamos dizer, “não, eu vou comer uma leitoa no Natal. Vou comer um cabritinho na passagem do ano. Vou comer um peru”, quer dizer, sabe aquele negócio, aquilo: “vou fazer nessa época”. Hoje não. Hoje é uma coisa assim, vamos dizer, Natal praticamente todos os dias, de acordo que cada um, se você vê que ele tem condições de comprar e onde comprar, quando comprar. Então hoje é fácil. Então você quer comer uma leitoa, específico, na minha casa tem. Quer dizer, não é o meu caso, são várias lojas hoje que trabalha nesse caso. E mesmo a mentalidade das pessoas, nunca deixam mais para comprar: “não, vou comprar no fim do ano”. Então hoje tem o momento, tem o prazer, então já vai comprar. E mesmo que ele vai fazer isso hoje, ele jamais vai deixar para comprar na antivéspera, ou véspera do natal. Então ele já compra em outubro, sabe, setembro. Ele tem um freezer, ele já guarda. Então não tem aquela corrida mais, aquela loucura, porque eu chego lá muito cedo, aumentar, vamos dizer, parente que chegou de última hora, aquele negócio todo, tem que comprar um pouco mais daquilo que ele já tinha de reserva. Então é isso hoje. Facilitou muito o sistema de abastecimento hoje.

P1 – Isso é da própria estrutura dos frigoríficos que ficaram grandes.

R – Não. Hoje eu acredito que é o próprio consumidor, é a própria situação da evolução dos tempos, que as pessoas vão ficando mais práticas. Hoje para não deixar sempre para última hora, você entendeu? Que nem antes era aquela história, tem dois filés mignon, vamos dizer, eu vendi um boi, só tem dois filés mignon para vender, no caso você quer, ele quer, outro quer, vamos dizer, então você teria que falar: “eu quero um filé mignon, ou quero uma picanha”, então tinha que reservar. Hoje não, fala: “eu quero dez filés mignon, eu quero tanto disso”. Você chega em qualquer loja, principalmente na minha casa eu tenho certeza que eu tenho. Se você chegar lá: “eu quero 50 quilos de filé mignon”, “Perfeitamente, que jeito que o senhor quer?”. É assim que funciona.

P1 – Ainda dá para escolher, né?

R – É, não, “quero de boi, não quero de vaca, quero filé mignon desse tamanho”, entendeu, mesmo as picanhas. Então são várias facilidades hoje. Isso sabe a quem deve? O consumidor.

P1 – O senhor acha, então, que é o consumidor que transforma o comércio?

R – O consumidor, ele transforma o comércio. Porque ele te motiva, ele te multiplica a própria evolução, você entendeu? Onde que você vai na minha loja, você transfere aos outros, os outros vão na minha loja, o que vai acontecer? A minha receita vai aumentar. Eu tenho certeza que você vai vir, ou vai me ligar, que você vai querer a mercadoria e eu tenho que ter ela, se eu quero estabelecer.

P1 – Senhor Hamilton, e quando chega, assim, a gente sabe que o povo brasileiro ele tem os seus determinados costumes. O senhor não trabalha com peixe, trabalha?

R – Alguma coisa.

P1- Alguma coisa. Então quando chega sexta-feira santa, por exemplo, que é meio costume do pessoal comer peixe, não comer carne vermelha. O senhor sente uma mudança ou o senhor nem abre, como é que é isso aí?

R – Veja bem, eu volto a falar questão de disciplina familiar e religião. Eu nunca trabalhei na sexta-feira santa. Nunca. E jamais abri minhas lojas na sexta-feira. Então, meu feriado é sexta-feira santa, Natal e dia primeiro do ano. Embora o comércio hoje, ele está assim, vamos dizer, para ele tanto faz se é sexta-feira santa como domingo de feira ou segunda-feira, para ele tanto faz. Então respeito hoje, o próprio consumidor, vamos dizer, como são diversas religiões que acreditam ou não acreditam, ele acha que deve fazer churrasco na sexta-feira santa. No meu açougue, ele não compra nada. Ele pode ter comprado para comer na sexta-feira, mas no meu ele não compra nada, na sexta-feira, não. Devido a própria situação de respeito. Hoje o comércio, veja bem, é pecado comer carne? Para mim é. Para mim é uma falta de respeito. Todo mundo vê de uma forma. Eu vejo dessa forma, vamos dizer, se eu não dou o direito para você ir no meu açougue na sexta-feira comprar uma picanha, poderia comprar peixe, mas eu abro precedente para aquele que quer comprar uma coisa que eu não quero vender. Esse ano, por exemplo, o nosso comércio abriu, o mercado, ele abriu, o meu ficou fechado.

P1 – Uma outra coisa, o senhor falou do mercado, tal, nesse tempo que o senhor abriu o açougue ali na avenida Industrial, o senhor falou que tinham outros comércios. O senhor tinha amizade ali com os outros comerciantes?

R – Com todos.

P1 – Então, era uma relação fraterna, assim?

R – Embora, como o nosso relacionamento de comerciante é assim, é meio estreito, né, que comércio nós vendemos as mesmas coisas. Por exemplo, eu sou seu amigo, você é meu amigo, mas se um cliente chegar lá e eu puder vender mais barato que você, eu vou vender e vice-versa, você entendeu? Então o comerciante hoje, são amigos na verdade, mas se ele puder vender o peixe dele na frente, ele vende.

P1 – O senhor ainda tem esse açougue da avenida Industrial?

R – Não.

P1 – O senhor vendeu e comprou outro? Como é que foi essa relação?

R – São histórias da elevação da vida, né? Não sei se você quer saber.

P1 – Sim.

R – Mas, como não tenho o estudo completo e eu cresci muito em uma fase que eu não tinha condições de conhecimento financeiro, conhecimento com as pessoas e eu cresci muito, aonde eu vim abrir mais coisas, você entendeu? Entrar em lugares altos, precisava ter uma certa estrutura e eu entrei. Meu patrimônio de repente ele caiu. Acabou. Mas isso, ele é a própria ambição. A própria circunstância, às vezes, que leva uma pessoa a adquirir ou ter alguma coisa que ele não tinha necessidade. Aconteceu comigo. Então eu tinha o meu açougue, que era enorme, reformei do jeito que eu queria, fiz do jeito que eu queria. Então atendia, onde todo meu conhecimento foi desenvolvido ali, e de repente apareceu outro negócio, uma indústria para mim. Depois disso apareceu uma outra coisa que era restaurante parte similares e eu fui agregando tudo isso daí, e sem a estrutura do conhecimento financeiro.

P1 – E daí como foi o salto de se organizar de novo, assim?

R – Foi exatamente no período de quando eu comecei e quando parei, deu exatamente uns quatorze anos. Nos últimos anos que eu, vamos dizer, o ano de 82, mais ou menos, eu comecei a me perder, o que eu já tinha feito. Eu tinha esse açougue da 24 de maio, tinha um outro frigorífico que era no Parque dos Eucaliptos e tinha um outro negócio que era um restaurante similares, que atendia indústrias, refeições coletivas. Era um negócio enorme, tinha uma média de 70, 80 funcionários. Começou comigo, mas aí foi o grande salto, eu precisava de alguém para me ajudar. E foi, todos que eu tentei me passaram a perna e eu caí.

P1 – Nossa, complicado.

R – Infelizmente. E recomecei. Depois de tudo recomecei de novo.

P1 – Então, seu Hamilton, eu vou puxar a pergunta para um outro ramo que me chamou atenção. O senhor tem toda essa bagagem, essa experiência, passou por momento de dificuldade, levantou de novo, se recuperou, se recompôs, e o senhor mesmo falou aqui na entrevista que a estrutura, o mercado da carne, ele se desenvolveu muito, né? Como é o dia a dia ali, lidar com tantas diferenças, assim? O senhor mesmo falou agora, se eu pedir filé mignon, eu posso escolher se é de vaca ou se é de boi, posso escolher o corte também dele.

R – Sim.

P1 – Como é lidar com tanta variedade e com o gosto do cliente?

R – Aí que entra o grande conhecimento técnico e a satisfação de ambos, do cliente e do fornecedor, no caso. Porque veja você, eu conheço você, sei o seu gosto, você gosta do filé mignon cortado a medalhão, ele já gosta de um strogonoff. Outro gosta de um filé para fazer um fondue, então, veja bem, então cada é um referencial, cada cliente é um tratamento. Ele gosta de ser tratado daquela forma. Então, na alta escala, fala: “eu quero dez peças de filé mignon de boi”, acima de dois quilos do padrão, eu não posso te mandar ao contrário, eu quero você como cliente, eu tenho que fazer aquilo que você quer. E hoje, o próprio consumidor, por isso que eu falei, o próprio consumidor, ele é o grande responsável hoje de elevar você a ter tantas coisas no mesmo instante. Vamos dizer, poder atender a todos. Da mesma forma e hoje, amanhã e sempre, para você ter continuidade. Então existe o grande conhecimento da pessoa, a parte técnica, portanto.

P1 – O senhor então está lá no balcão, atendendo, cortando a carne, o senhor preza essa relação olho a olho com o cliente?

R – Eu prezo ainda isso, até hoje, o grande respeito. Porque eu falo sempre para os meus colaboradores, eu falo: “olha, cada cidadão que chega aqui, ele é o nosso patrão. Nós devemos respeito com ele, tratamento especial, da forma que tem que ser feito”. Então isso leva a gente a fazer com gosto e satisfação.

P1 – Nessas mudanças, assim, houve muita mudança no mercado da carne, vamos dizer assim, carnes novas, diferentes, de outros bichos?

R – É, no caso hoje, o grande mercado, vamos dizer, ele se tornou exigente. Por quê? Porque são os prazeres. Então hoje a televisão, a mídia, dá uma receita, tipo assim, de jacaré, carne de jacaré. Onde você vai achar? Onde você vai achar um javali ou talvez um leitão a pururuca, talvez um coelho, talvez uma perdiz, uma codorna, um faizão? Você entendeu? Uma carne de vitela? São, vamos dizer, a televisão são vários programas que estão propagando sempre alguma coisa diferente. Então não é só a carne bovina, ou a carne suína ou de aves, você entendeu? O grande mercado é isso aí, você ter a mercadoria e o consumidor sabe que em tal lugar tem.

P1 – Qual a carne que sai mais?

R – A bovina.

P1 – E qual o produto da carne bovina que sai mais?

R – São épocas, né? Então, veja bem, hoje o grande churrasco traduz uma picanha. O grande conhecedor de carne de churrasqueiro, ele leva uma fraldinha ou ele leva uma maminha. “Ah, eu quero um churrasco demorado”, ele leva uma costela, uma ponta de agulha ou uma bisteca ou um __, você entendeu, carne vermelha. Falar: ”o que vai ser? Não, um franguinho, uma coxinha de asa, uma asinha, uma coxa desossada”. Parte para outro campo, que é uma costelinha de porco, uma bar____, uma panceta, tal. São determinadas coisas que, vamos dizer, ele, o consumidor viu e ele quer. E ele vai levar dali e vai propagar que ele comprou ali. Hoje o mercado, o carneiro, o carneiro está vindo com uma boa aceitação, onde existe uma grande degustadora que está aderindo essa situação, por quê? Porque até então as pessoas não conheciam. Carneiro? Não, carneiro é um bicho sagrado. Mas ele está para ser alimento. Então hoje nós deixamos esse lado e estamos consumindo carne de ovelha ou carneiro, né? Então hoje fala assim o mercado: “então o churrasco não é mais só a carne de boi. São várias opções”. Então hoje você faz um churrasco na sua casa dá o de boi, ele faz uma de porco, faz de carneiro, um pouquinho de cada coisa, você entendeu? E assim, o nosso tratamento procura sempre diferencial, né, o que um não faz na loja a gente procura fazer.

P1 – O senhor come carne?

R – Bastante.

P1 – Qual a sua carne predileta?

R – Olha, eu como carne até crua se for o caso. Mas carne para mim, todas são excelentes. Carne, ela tem que conter um pouquinho de gordura, normalmente seria um bife de alcatra ou uma carne de panela, ou a paleta ou a capa de filé, uma coisa assim.

P1 – Nesses anos o senhor aprendeu a sacar o sabor da carne, essa coisa toda assim?

R – O próprio tempo faz a gente apreciar. Existem épocas que você, existem dias que você não está a fim de comer uma carne vermelha. Mas se ela estiver, normalmente você sabe, hoje, o bom prato é na linha dos olhos. Você vai no açougue para comprar: “então, vê uma bisteca de porco”, você chega lá você vê um contra filé bonito, uma gordurinha, tal, um contra filé alto, rosadinho. Os teus olhos faz você mudar de idéia na hora. Você entendeu? Você muda. Ou você leva os dois ou você leva o contra filé, ou alcatra, ou talvez uma carne de panela ou uma outra coisa assim, similar. Você não leva aquilo que você foi buscar. Então está na linha dos olhos.

P1 – O cliente compra com o olho?

R – Também. Hoje, infelizmente, nós somos consumistas, por quê? Você tem que chegar em um lugar, deparar com o que? Com alguma atração, com alguma coisa que você não tinha visto, ou chega lá, você fala: “puxa vida! Que carne linda. Olha que carne maravilhosa”. Olha isso, olha aquilo, você entendeu? Então você acaba comprando na linha dos olhos. Mesma coisa o cliente do mercado hoje. Por que existe o mercado? O mercado é, também são os auto-serviços. Você vê tudo em auto-serviço, em alta escala, na linha do gol, né, na linha dos olhos. Você chega ali, você fica abismado com tanto tipo de mercadoria. Às vezes uma mercadoria de quatro ou cinco firmas, vários preços. Você pesquisa ali na hora, mas você não foi lá para comprar aquilo e você acaba comprando.

P1 – A venda mexe com os desejos das pessoas, né?

R – Exatamente. E a satisfação do consumista. Às vezes ele comprar tudo isso daí. E, às vezes, ele acaba se iludindo em comprar.

P1 – O açougue do senhor é a Campineira?

R – Isso.

P1 – O senhor está com ele há quanto tempo?

R – Vinte anos.

P1 – Vinte anos? No mesmo lugar?

R – No mesmo lugar.

P1 – Então, obviamente, o senhor acaba criando relações de amizade, conhecer outros comerciantes em volta. Nesses 20 anos tem outros comerciantes que o senhor poderia indicar para esse projeto de memória, para falar do comércio de Campinas como o senhor está falando?

R – Tem.

P1 – Tem? Quem o senhor indicaria?

R – Tem o meu primo.

P1 – Seu primo? Qual é o comércio dele?

R – É Espetinhos da Mamãe, pedaço de carne da Mamãe, é Benedito de Oliveira Lima.

P1 – Jóia.

R – Porque eu tenho certeza que ele também nasceu, praticamente a família, foi eles que agregamos a nós quando chegamos aqui. Então, a verdade é uma só, é que você falou assim: “qual o relacionamento que existe entre”, no mercado nós somos cinco lojas trabalhando no mesmo estilo, é, como diz, tudo se copia, cada um vai assimilando e vai arrumando para quem? Quanto a esposa... Mas preparar para quem? Para você quando você chega em casa. É a mesma coisa a loja, nós preparamos para quem? Para o consumidor, para o cliente. Para ele chegar lá ver o que? Deparar com coisas bonitas, coisas frescas, um ambiente gostoso, agradável, onde ele ia buscar uma caixetinha de ovo, chega lá ele leva outra coisa.

P1 – Na Campineira vocês começaram com quantos funcionários?

R – São fases, né?

P1 – Sim. Mas bem no comecinho, quando começou.

R – No começo tinha, no comecinho eram em oito. Chegou a trabalhar em quinze. Hoje trabalhamos em seis. Então são fases. Então hoje você fala: “por quê?”. Olha, Campinas nessa época era açougue e mercado. Depois, hoje, existem os supermercados, existem os hipermercados, existe os vinte e quatro horas.

P1 – Shoppings.

R – Shoppings, você entendeu? Então o que aconteceu? Campinas diversificou. Campinas cresceu. Campinas ficou exigente demais. Então não tem necessidade mais de você ligar para mim, falar: “me guarda uma picanha para mim, que eu vou buscar, vai acabar”. Mentira, não tem problema. Não é no meu, qualquer lugar que você vá, se o padrão do comércio é bom, ele tem estoque. Então o cliente chega lá, ele nunca tem, sempre tem. Você como meu amigo, chega lá, você quer um filé mignon, quer fazer um strogonoff, ele falo: “olha, Marcelo, eu não tenho um filé mignon”, devido essa situação real. Mas vou te arrumar uma outra carne”, uma explicação técnica, um conhecimento profissional, e você leva, beleza. Você não vai apanhar da mulher.

P1 – Muito bom. O senhor falou desse negócio da ausência, a gente sabe que no passado, devido aos planos econômicos, mil coisas, teve momentos de ausência da carne. O senhor passou por isso?

R – Passei.

P1 – Como é que foi lidar com isso?

R – Aí você fala assim: “bom, isso não veio de nós, veio de cima”, está certo? O grande trunfo disso daí o que era? Realmente o inflacionário. Existe muita carne, preço barato. Inflacionou para sumir. Sumiu a carne, não é isso? Tivemos em 76. Tivemos em 86, 72. Tudo essa época que lembra o que aconteceu. A penúltima, não sei quando vai ser a última, foi em 86, quando houve aquela situação, do quê? A carne era um x, não tinha carne, os pecuaristas não vendiam para os frigoríficos, o frigorífico não podia vender para fulano, mas “existia uma pequena vazão”. Essa pequena vazão era dos grandes, entendeu? Onde que eles ganhariam vendendo essa carne no câmbio, muito caro. Muito caro não, a carne no preço real. Então hoje é uma coisa que se fala da qualidade do boi, o boi de pasto, o boi rastreado, o boi confinado, né? Cada um tem um custo, então o preço da carne teria que ser diferente. A mesma coisa que falar: “fui lá, comprei carne de vaca e comprei carne de boi, mas qual a diferença?” Não, carne bovina. Mas a qualidade de quem conhece sabe que está errado. Comprei contra filé, paguei doze reais e comprei contra filé, paguei seis.

P1 – Qual a origem desse boi? Qual a origem desse trabalho?

R – É, um é o feminino, inferior, qualidade inferior de carne, que você satisfez o financeiro. E o outro comprou qualidade e pagou aquilo que de gosto.

P1 – Como era ver isso aí, porque fazia muita fila, as pessoas iam muito atrás, como era?

R – Na época era porque não tinha, então como foi feito um tabelamento de carne na época, o qual eu não estava no mercado naquela época, mas era feito um tabelamento de carne, vamos dizer, se meu comércio estivesse aberto eu teria que vender toda a carne naquele preço. Então as portas eram fechadas ou abriam com outras coisas que não estavam na tabela e venderia ela no preço do câmbio. Se você queria uma carne diferente para você, você teria que pagar por fora.

P1 – Sim. Prosseguindo aqui ainda na entrevista, falando do mercado, da vivência, do açougue, falando da vivência do senhor lá dentro, assim, qual que são as demandas maiores do consumidor do senhor?

R – Bom, hoje, se você imaginar que são muitos comerciantes e muito consumidores, mas todos lutam atrás do financeiro. Então se você vai comprar uma carne hoje, você tem uma receita para gastar. Você precisa comprar dez quilos de carne, você vai consumir, o teu dinheiro no meu açougue, por exemplo, compra cinco quilos, então você vai bater em outra porta. Pesquisa. Vai comprar sete no outro e você acaba chegando em um que você compra dez. Aí você comprou os dez quilos de carne. Quando você deparar com a própria situação, você foi enganado. Porque você comprou gato por lebre, não é mercadoria que você está acostumado a comprar. É inferior, a carne é mal limpa, mal trabalhada, talvez de péssima qualidade. É o que está acontecendo hoje. Então hoje, atrás do barato sai caro, porque se a pessoa não ficar esperta, porque o fulano vende mais barato, aí entra a pergunta. Então existe a pergunta: carne de boi, a carne de vaca ou similar, ou de um outro animal, que tem. Se a carne real custa doze porque ele está vendendo a seis ou cinco ou quatro? E está dando prêmios ainda. Então isso está acontecendo em Campinas. Então o consumidor que conhece a mercadoria, que vá em um lugar desses, ele vai uma ou duas vezes. Agora se em uma ele é enganado, ele nunca mais volta. E pode ter certeza, um cliente que entra em uma loja, ele é cliente, ele trouxe dez amigos dele. Ele vai embora talvez leva trinta.

P1 – Vinte anos só ali na Campineira. Mas o senhor já tem uma história de antes disso. Mudou muito o maquinário, a maneira de trabalhar ali, atrás do balcão?

R – O maquinário é o mesmo. Mudou o quê? O sistema com a carne. Que ali, se você voltar ao passado, ao meio do passado, e o presente, você vai ver que antigamente, os açougues, eles pegavam as carnes, cortavam pedaço. Então as mulheres em casa, as mães, as avós, que fazia? Tinha que lidar com aquilo ali, um puta trabalho para saber o que vai fazer. Com o passar do tempo começou a cortar carne em peças, sem osso. A carne, vamos dizer, tipo alcatra. Porque alcatra é uma carne que divide em três partes, quatro, cinco partes. Aí você fala: “mas eu conheço alcatra”. Mas existem os cortes. Aí você fala: “De onde saiu a maminha? De onde saiu a picanha? De onde saiu o miolo da alcatra? De onde saiu a rolha? De onde saiu uma castanha que tem em cima da picanha?”. Você fala, mas tudo isso era tudo comprado como alcatra só. Coxão mole também, vamos dizer, antigamente cortava coxão mole no núcleo, ele trabalhava com ante-costo, tudo, vamos dizer, com aranha, tudo aquelas carnes. Hoje em dia você fala: “o que é aranha?”. Não, aranha é o núcleo da carne que era uma parte do coxão mole, que ela isoladamente, por causa da técnica, hoje, de desenvolvimento é só comprar ela. Uma carne pesa 200 gramas. Ah, perinha do coxão mole, a capa do coxão mole, quer dizer, entendeu, meio do coxão mole. Então você fala assim, como é que ainda hoje o cliente chega no açougue, fala assim: “Hamilton”, eu sei que você vai comprar carne para trinta dias. Então você sabe, você traz a sua lista de compras, você tem carne vermelha, carne branca, carne suína, lingüiça, embutidos e tal e tal. Então, veja bem, a tua esposa fez lá o cardápio seus lá, vou precisar de dois quilos de alcatra em quatro pacotinhos, com tantos bifes. Eu preciso de carne moída, dois quilos, em tantos pacotinhos. Eu preciso de um lagarto. Eu preciso de uma bisteca, eu preciso de um lombo, eu preciso de um pedaço de pernil, de uma costelinha. Preciso de um filezinho de frango, uma coxa, tal e vai embora. Preciso da lingüiça, do bacon, tudo isso você vem lá e passa para mim. Ou por telefone ou você está com tempo, no domingo, sem fazer nada, você vai lá e aguarda, vamos fazer o serviço para você. Tem diferencial? Tem. Qualquer lugar que faz? Não. Você entendeu? Então, hoje, o que eu faço no meu açougue? Então, meu vizinho passa a fazer, o outro passou a fazer e o outro passou a fazer. Por quê? Porque todo mundo, hoje, quer o prático, quer o fácil, quer o maleável, vamos dizer, que você chega em casa não vai dar trabalho para sua esposa ou mesmo para você. Chega lá, já está com a etiquetinha, você vai lá e põe no freezer lá, porque está sabendo do cardápio dela, o segmento das carnes que ela vai tirar do freezer. E assim vai por diante. Imagina que você vai lá me comprar dez quilos de carne, “eu quero três de boi, dois de porco, cinco de frango, dois de lingüiça, não sei que”, chega lá quatro, cinco pacotes, chega lá em casa, aí tua esposa vai ter que ir lá, repartir as porções tudo, para guardar.

P1 – Sim. O cliente do senhor é fiel?

R – A gente acha assim, se ele está em condições financeiras de ir comprar lá, ele vai. Se está menos um pouquinho, então veja bem, como são itens, tal, comércio e tal, se foi no Extra, por exemplo, você entra no meu açougue só para comprar frango. Você chega no Extra, por exemplo, tem uma promoção lá, tem um kit de frango lá, inteiro, sabe o que vai acontecer, não? Você vai comprar o frango lá. Mas tem essa grande percentagem da freguesia, hoje sempre tem aquele que deixa de ir no mercado, deixa a carne lá do mercado e vai comprar a carne lá. Mas ele não vai comprar a carne do mês, ele vai comprar a carne, às vezes, do domingo, final de semana, para um churrasco, você está entendendo?

P1 – Sim.

R – Daquele que ele não perguntou quanto é, porque ele sabe o diferencial da carne de boi, da carne de etc, etc.

P1 – Qual a maior dificuldade que o senhor enfrentou no comércio?

R – Às vezes, da lealdade, né? Com relação ao cliente, você acreditar que ele realmente, ele vai, vamos dizer, foi na segunda, ele volta na terça e na quarta-feira. E você abastece e você espera e ele não vem. Então isso você fala: “puxa, eu imaginei”, tipo um movimento, né? A movimentação. Hoje, como já é tanto tempo, então a gente já tem uma linhagem. Vamos dizer, eu comprei carne para abastecimento hoje para acabar hoje, segunda compro mais. Não, já não posso fazer isso. Então a gente leva no limite.

P1 – Como o senhor já teve uma vivência de comércio pequeno, comércio mediano e comércio maior, assim, e ainda mantém aquela questão de tratar o cliente o olho a olho e ainda mais que é com carne, o senhor trabalha com item de primeira necessidade, que é alimentação, sobrevivência. O senhor conseguiu estabelecer relação, assim, de a pessoa pede fiado, ou o senhor faz crediário, alguma coisa assim do gênero?

R – Bom, hoje, o cliente, como eu falei, né, o cliente ele tem autodomínio em cima do comerciante. Existem pessoas de todas as espécies. O cara que é aproveitador, o cara honesto e o cara, como diz, sacana, aquele que vai te ludibriar, te passar para trás. Então, hoje, como a história é olho no olho, então você vai ver no dia a dia, vamos dizer. O cara chega, abre um crediário, como? Tipo assim, você compra carne comigo há um mês, dois meses, talvez três meses. Um dia você ficou me devendo, tipo, 50 reais. Depois passou um tempo você vem me paga aqueles 50 e compra mais uma. Depois ele, passado mais um pouco, ele fala: “vou levar para ficar aí pendurado. Depois eu venho e pago”, você entendeu? No fim, nunca é saudável. Algum dia você vai deixar de ir no açougue, porque você não tem como pagar e você não vai ter como comprar a carne. Aí você vai comprar no vizinho ou vai mudar de lugar. Sabe quem facilitou, não? Fui eu. Então hoje você perguntou se eu vendo, hoje, comércio, com as vendas de cartões, hoje praticamente um crediário que a gente tem com as redes, o consumidor, então, diminuiu um pouquinho. Mas, como são 20 anos existe uma grande quantidade de pessoas não cadastradas que compram lá depois. Então as pessoas são cadastradas porque elas estão sempre ali, mas dentro desse povo, você sabe, quem vende fiado hoje é um grande risco, como eu acabei de falar.

P1 – O senhor falou das maquininhas, dos cartões, mudou muita coisa quando essas maquininhas entraram no mercado?

R – O grande golpe ainda é do cheque, né? Porque o cheque quando existia hombridade e respeito era bom, depois que ele passou a trabalhar de outra forma, né, que todo mundo tem um talão de cheque, emite cheque e o banco não paga, então acabou o respeito. Então hoje, o comércio que trabalha com as redes, né, então hoje um visa, um master, um dinners, um redeshop, todas essas linhas são viáveis, a gente paga por isso, mas é uma venda garantida.

P1 – Na opinião do senhor, 20 anos ali, trabalhando no balcão, com carne, correndo para lá e para cá, pensando o comércio, olhando o cliente no olho. Qual é o segredo do ponto de vista do senhor para um comércio ser bem sucedido?

R – Bom, eu não tenho muito o que falar nessa área, porque veja bem, eu sou vidente com uma história real. Hoje eu sei que existem muitas técnicas novas com relação a lojas que abrem, com relação, vamos dizer, do patrão estar presente ou não. Então ele monta pontos de venda, hoje, que embora nem os funcionários não sabem nem quem é o patrão. Que isso se torna, veja bem, uma certa segurança com relação de vendas a crédito, ao peito, ao prego, né, que a gente fala, pagar depois. Então pára aí, você entende? Embora ele adote um sistema, que tem muitos hoje, trabalha nessa nova geração, né? É outro sistema. Mesmo funcional, companheirismo, essas coisas não tem. Vamos dizer, patrão é fulano, o gerente é ele, os encarregados é aquele, braçais, serviçais são esses e pronto. É uma coisa fria. Você vai em uma loja dessas, como diz, normalmente o gerente, ele tem que ser muito ativo, porque senão a gente fica frio. É um lugar que você vai porque você precisa comprar alguma coisa, senão você não vai. Se depender de você voltar lá é muito difícil, você entendeu? Eu acredito que a maior parte são assim.

P1 – Sim. O senhor sente diferença de quando o senhor começou atuar no comércio de Campinas, para o comércio hoje?

R – Olha, é uma boa pergunta. Nessa jornada, eu hoje, eu tenho certeza, se tiver de abrir alguma coisa, eu abria na forma do comércio atuante. Porque ele é muito desgastante, sacrificante, o meu sistema, do olho no olho, de abrir e fechar, de acompanhar, de comprar e vender, de você estar a par de todas as situações, de cada consumidor, das famílias, das pessoas, você entendeu? Então hoje, você vive só para o comércio. Porque você tem assim, uma vida muito cansativa, desgastante. Você levanta às cinco horas da manhã, acorda, prepara, seis e meia você já está ali. Você passa o dia inteiro, doze, treze horas, quatorze horas, almoça ali e está ali. São anos.

P1 – Sim. Que lição de vida o senhor tirou dessa experiência toda?

R – Bem, com relação a minha vida da qual nós chegamos a falar, mas da minha família, eu tenho meus filhos, que o qual eu nunca, jamais, queria que eles fizessem o segmento meu, da forma. Eu queria que eles fizessem de uma outra forma. Tivessem uma boa faculdade, talvez um bom comércio, talvez o próprio de carne. Mas infelizmente eu não consegui tê-los da forma que eu queria. Hoje eu tenho ainda três filhos que trabalham comigo, duas filhas e um filho, que eles vão passar o resto da vida e não vão fazer o que eu faço, da forma que eu faço. E os outros estão tentando fazer e não vão conseguir por causa do respeito e as condições da disciplina que o comércio precisa, isso, da forma que eu toco. Como as demais pessoas que eu conheço que abre e fecha comércio.

P1 – Sim. O que o senhor acha do SESC estar investindo nesse projeto de memória? De documentar a vida de pessoas como o senhor que fizeram a história do comércio e ao mesmo tempo a história de Campinas?

R – Olha, é um bom andamento que, veja bem, nós estamos todos aqui de passagem, está certo? Alguém amanhã vai ter que falar: “olha, eu conheci aquele senhor”, como várias pessoas, são muitas pessoas, que vão ver essa reportagem, vão ter acesso e falar: “eu conheci e eu convivi com ele essa parte”, entendeu? É uma boa iniciativa, porque que nem eu falei hoje, uma pessoa que o qual foi-se embora desse mundo hoje, que o qual trabalhou talvez da forma que eu trabalho, mas vamos dizer, mas em uma outra atividade, que seria com carnes mais assadas, né? Que ele também era essa mesma história minha. É ele e o cliente e os seus funcionários ali, mas coordenação dele, com tratamento todos iguais.

P1 – O que o senhor achou de dar essa entrevista?

R – Olha, para mim, é uma satisfação enorme, um presente de Deus. Essas coisas mesmo que eu quisesse, talvez ficaria um pouco caro para mim, pessoal, e talvez não seria dessa forma, publicamente, uma coisa para Campinas e para o Brasil.

P1 – OK. Muito obrigado.

R – Imagina.

P1 – Ficamos muito contentes.

R – Obrigado.