Entrevista de Márcia de Oliveira
Entrevistada por Pedro Carioca e Lupity Rossetto
São Paulo, 20 de março de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1374
Transcrita por Ian Wapichana
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:15) P1 - Bom, então primeiro a gente começa com uma pergunta muito básica, que é: qual o seu nome, onde você nasceu e a data do seu nascimento.
R - Meu nome é Márcia de Oliveira Rodrigues, nasci no Rio de Janeiro, no dia 22 de dezembro de 1967.
(00:41) P1 - E te contaram como foi seu dia de nascimento?
R - Foi bem conturbado. Coitadinha de mamãe. Eu nasci com fórceps, né? Minha mãe, ela trabalhou até o dia do meu nascimento… minha mãe era manicure, né, e com aquele barrigão imenso, aí começou a passar mal à noite, aí foi pra maternidade no mesmo bairro onde minha família reside, que é em Realengo, eu nasci no hospital do Sase, às dez e meia, mais ou menos, e foi por fórceps. Eu nasci com quatro quilos e alguma coisinha, agora não me recordo, mas foi bem traumático o parto.
(01:37) P1 - Sabe como escolheram seu nome? Qual é a história do seu nome?
R - Nossa, foi, assim, uma confusão! A princípio a minha mãe escolheu (risos) “Gisleda” que era uma mistura de Leda com Gilberto. Aí minha vó falou: “Não, minha filha, pelo amor de Deus, essa menina vai reclamar muito desse nome. Vamos pôr Renata”. Aí minha madrinha falou: “Não, vamos pôr Márcia”. Aí minha vó: “Então vamos colocar Márcia Renata”. Aí acharam melhor fazer um sorteio e, graças a Deus, saiu Márcia. Agradeço muito a minha madrinha por ter escolhido meu nome, porque Gisleda é um pouquinho forte, né? (risos)
(02:22) P1 - Você comentou da sua mãe, qual o nome dela?
R - Leda Geralda de Oliveira Rodrigues.
(02:31) P1 - Como você a descreveria?
R - Ai, a minha mãe… nossa, a minha mãe é tudo na minha vida, né? (risos) Só de falar no nome dela já me emociona. Minha mãe continua sendo uma mulher...
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Entrevistada por Pedro Carioca e Lupity Rossetto
São Paulo, 20 de março de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1374
Transcrita por Ian Wapichana
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:15) P1 - Bom, então primeiro a gente começa com uma pergunta muito básica, que é: qual o seu nome, onde você nasceu e a data do seu nascimento.
R - Meu nome é Márcia de Oliveira Rodrigues, nasci no Rio de Janeiro, no dia 22 de dezembro de 1967.
(00:41) P1 - E te contaram como foi seu dia de nascimento?
R - Foi bem conturbado. Coitadinha de mamãe. Eu nasci com fórceps, né? Minha mãe, ela trabalhou até o dia do meu nascimento… minha mãe era manicure, né, e com aquele barrigão imenso, aí começou a passar mal à noite, aí foi pra maternidade no mesmo bairro onde minha família reside, que é em Realengo, eu nasci no hospital do Sase, às dez e meia, mais ou menos, e foi por fórceps. Eu nasci com quatro quilos e alguma coisinha, agora não me recordo, mas foi bem traumático o parto.
(01:37) P1 - Sabe como escolheram seu nome? Qual é a história do seu nome?
R - Nossa, foi, assim, uma confusão! A princípio a minha mãe escolheu (risos) “Gisleda” que era uma mistura de Leda com Gilberto. Aí minha vó falou: “Não, minha filha, pelo amor de Deus, essa menina vai reclamar muito desse nome. Vamos pôr Renata”. Aí minha madrinha falou: “Não, vamos pôr Márcia”. Aí minha vó: “Então vamos colocar Márcia Renata”. Aí acharam melhor fazer um sorteio e, graças a Deus, saiu Márcia. Agradeço muito a minha madrinha por ter escolhido meu nome, porque Gisleda é um pouquinho forte, né? (risos)
(02:22) P1 - Você comentou da sua mãe, qual o nome dela?
R - Leda Geralda de Oliveira Rodrigues.
(02:31) P1 - Como você a descreveria?
R - Ai, a minha mãe… nossa, a minha mãe é tudo na minha vida, né? (risos) Só de falar no nome dela já me emociona. Minha mãe continua sendo uma mulher muito guerreira, né? Minha mãe tinha um salão de beleza na casa dos meus avós, trabalhava de segunda a segunda. O salão era lotado, ela foi uma das primeiras cabeleireiras do bairro. E aí, após a separação dos meus pais, ela resolveu estudar, então ela foi fazer curso de Auxiliar de Enfermagem, porque ela falava que ela tinha que voltar a estudar, que ela tinha uma filha pra criar, né? E assim foi. Aí ela fez o curso, naquela época não tinha concurso, era indicação, e ela entrou pra um hospital da prefeitura, que é o Salgado Filho, lá no Méier, e mamãe trabalhou esses anos todos até que se aposentou. Morava no Rio e eu aqui em São Paulo. Há uns cinco anos, eu trouxe ela pra morar comigo. Hoje minha mãe tá acamada, né, (choro) mas tô cuidando dela. Gente, tem alguns tópicos que eu vou chorar.
(04:18) P2 - Tudo bem. Fica à vontade.
R - Minha mãe é tudo pra mim. Se hoje eu sou a Márcia que eu sou, eu agradeço a ela. Não desmerecendo meu pai, porque se eu estou nesse mundo, os dois são responsáveis, né? Só que minha mãe assumiu um papel de pai e mãe. Meu pai quando foi embora eu tinha nove anos e ela assumiu. Então, se eu fiz faculdade, agradeço a ela; se eu tenho uma boa educação, agradeço a ela. Meu pai era militar, da polícia militar, mas ele achava que só a pensão era suficiente pra criar um filho. E hoje eu sei muito bem que não é por aí. E minha mãe correndo atrás, trabalhando no hospital, continuou com o salão, pra eu poder estudar. Eu sou filha única. E aí eu passei… a princípio eu queria fazer Odontologia. O primeiro vestibular foi pra odonto, não passei. Naquela época era Cesgranrio, né? Só tinha uma opção, e aí minha opção foi odonto, não passei, minha mãe falou: “Filha, filha de pobre tem que fazer o que dá, então é melhor você fazer enfermagem, porque se você passar pra uma instituição privada, tem como a mãe pagar”. Como eu sempre fui muito obediente, aí eu falei: “Bom, tá bom, mãe. O próximo eu vou fazer enfermagem”. E assim fiz, passei pra uma instituição particular em Petrópolis, Universidade Católica de Petrópolis, e me mudei pra Petrópolis. Então eu estudei lá dois anos, só que a saudade era muito grande e minha mãe sofreu muito com essa distância, apesar de que eu voltava para o Rio todo final de semana, e achei melhor voltar, aí me transferi pra Universidade Gama Filho, onde eu terminei a faculdade. Minha mãe sempre fez tudo, tudo! Como ela trabalhava no salão, muitas freguesas pagavam com joias naquela época, e pra eu estudar, ela começou a penhorar na Caixa Econômica Federal pra poder levantar dinheiro. Então foi mais ou menos um ano assim e depois eu consegui o crédito educativo, consegui uma bolsa de 100%, então terminei minha faculdade com a bolsa. Depois de dois anos, já morava aqui (São Paulo), eu comecei a pagar a minha dívida, né, porque a dívida era minha. E é isso, então, minha mãe é tudo.
(07:39) P1 - Como era essa parte da família materna?
R - Ah, é minha base! Eu nasci em Realengo… então, assim, voltando um pouquinho lá atrás: o meu pai foi jogador de futebol, jogou pelo Flamengo, jogou em Criciúma, só que naquela época o futebol não dava dinheiro. E aí, do Flamengo, ele foi transferido pro Criciúma. Eles já tinham casado e minha mãe foi morar em Criciúma. Minha mãe engravidou em Criciúma. Então quando engravidou lá, ela voltou para o Rio, e aí os meus avós, junto com o meu pai, eles construíram uma casa do lado, no mesmo terreno da minha avó. Então eu nasci em Realengo e me criei em Realengo. Então, a relação com meus avós maternos sempre foi muito forte. Quando meus pais se separaram, aí abriu a casa, então ficou uma casa só, então meu avô praticamente me criou. Meu pai foi um pouquinho ausente, então ele (avô) me criou, ele, minha avó. A minha tia mora no mesmo terreno, minha tia Ivone. Então é uma relação muito grande. Com a família do meu pai, eu também tinha uma relação boa, porque, na separação, as festas foram divididas, então o Natal eu passava com a família do meu pai e o Ano Novo com a família da minha mãe. E aí tinha aquelas Páscoas, então era tudo meio divido. Então eu também tinha um bom relacionamento com a família do meu pai, com a minha avó. Só que a minha avó paterna faleceu muito rápido, meus tios também, que moravam lá, faleceram muito rápido. Mas a minha prima, né, a gente mantém contato até hoje, porque ela também mora aqui em São Paulo. Então, da minha família, tanto materna quanto paterna, a primeira que saiu do Rio, foi a minha prima Kátia, que é jornalista, e ela mora aqui na Aclimação, então a gente tem esse contato sempre. Mas a minha base mesmo, a minha formação familiar é a família da minha mãe.
(10:19) P1 - Você falou da sua tia Ivone…
R - Sim!
(10:22) P1 - É uma tia que é mais representativa…?
R - Das duas partes, eu tenho da minha mãe e tinha também do meu pai, só que minha tia Brandina faleceu [quando] eu tinha acho que uns dois anos… dois anos, não, minto. [Eu tinha] uns doze anos quando ela faleceu, então não tive tanto contato com ela. Mais na infância, mas na fase de adolescente eu já não tive. Agora, minha tia Ivone é a minha segunda mãe, tá sempre aqui em São Paulo, a gente se fala praticamente todos os dias. Eu digo que ela que é responsável de eu entrar para o Candomblé. Eu sempre falo isso, mas, não é bem assim. (risos) Coitada. Mas a nossa ligação é muito forte, parece de vidas passadas, né?
(11:23) P1 - Você trouxe essa questão do Candomblé, e para além da religiosidade, quais os outros costumes familiares que você lembra que são bem presentes?
R - Ah, a gente tinha um costume, né, assim, de se reunir todo final de semana. Então todo final de semana, de domingo, a gente fazia aquela reunião familiar. O meu avô era muito acolhedor. Então, os filhos casaram, mas todo domingo tava todo mundo ali. A gente fazia um lanche, a gente tinha esse contato muito grande. Natal era na minha casa, o Ano Novo também. Eu participei… depois dos meus quatorze anos, eu comecei a participar do Natal também com a minha família materna, até então eu participava na família do meu pai. Aí você vai crescendo, vai criando, né, tem amizades, aí namoradinho… aí eu não queria mais, era esporádico. Era muito forte, era uma casa grande e toda a família ali reunida. Então foram momentos da minha infância, assim, muito bonitos, eu lembro da minha infância, a minha casa lá no Rio muito cheia, com meus primos. Lá no Rio as pessoas são muito acolhedoras, né? Hoje em dia, por conta da violência, as pessoas não ficam mais no portão, mas era esse hábito, a tardezinha por conta do calor, você abria suas portas e ficava no portão conversando, e aí vinha um vizinho e vinha um outro, aí você ficava ali até meia noite, uma hora da manhã. Hoje, infelizmente, já não tem isso por conta da violência, né? Mas eu brincava na rua, eu falo pras minhas filhas: “Vocês não tiveram infância”. A minha infância era na rua, eu brincava de segunda a segunda. Tinha meu compromisso de escola, estudava, chegava da escola tinha meus afazeres e fazia minha lição, quando dava mais ou menos - jantava - setes horas da noite já, a galera já tava toda na rua brincando e isso ia até 21 e trinta. Eles continuavam, mas eu e meu tio mais novo voltávamos pra casa porque meu avô era bravo. (risos) Ele só dava uns gritos, né, e aí a gente já voltava. Isso era de segunda a segunda. Hoje, infelizmente, as crianças não têm essa oportunidade, é tudo tecnologia. Então tive uma infância bem sadia, tenho minhas marcas de infância, joelho ralado, cotovelo. Nossa, aprendi a andar de bicicleta, o vizinho que me ensinava, quantos tombos eu tomei. Então foi uma infância assim, nossa, não sei nem descrever de tão boa, sadia, né? Até hoje meus amigos estão todos no Facebook, a gente se fala, quando eu vou no Rio a gente tenta se reunir. Muito bacana.
(15:09) P1 - Além da bicicleta, você lembra que outras brincadeiras [que] vocês faziam na rua?
R - Vixe! Eram muitas, era andar de bicicleta, era queimado, que aqui as pessoas falam que é queimada, né, mas no Rio é queimado. A rua onde a minha família mora é uma rua principal que passa ônibus, de domingo diminuía o fluxo dos ônibus, então a gente brincava ali, né? Quando vinha ônibus, a gente saía. E aí era isso, era pique-esconde, o que mais? Como era aquele? Maçã, salada mista, né? (risos)
(15:55) P2 - Feira, uva, maçã, salada mista.
R - Isso! Feira, uva, maçã, salada mista! Era, ih, a gente fazia umas brincadeiras, assim, muito legais, de pegar espada de São Jorge, colocar, amarrava, jogava na árvore, e aí quando as pessoas passavam, as pessoas saíam correndo achando que era cobra. Nossa Senhora, era muita coisa: peão, bola de gude. Única coisa que eu não fazia era pipa, eu não sabia soltar pipa, mas o restante a gente fazia tudo. Era vôlei… Tudo! Amarelinha! Essa era nossa brincadeira todos os dias. Ai, coisa boa.
(16:53) P2 - Tem alguma história da infância que é inesquecível, marcante pra você?
R - Na minha infância? Olha, eu acho que o que ficou marcante foi a questão da bicicleta. Eu fui uma criança gorda, e aí eu não conseguia equilibrar, né? E aí esse meu vizinho, que é o Gilberto, já falecido, ele, com toda a paciência, me ensinava a andar de bicicleta. E no dia que eu consegui andar de bicicleta, pra mim foi uma realização, porque os meninos… eu tinha uma apelido: era baleia. E os meninos ficavam me chamando de baleia: “Ah, você não vai conseguir, você não vai conseguir”. Mas eu sempre fui muito insistente, eu falei: “Não, eu vou conseguir”. E aí, eu, demorou um pouco… eu, nossa, caí muito. A bicicleta, eu tombava nos muros dos vizinhos, mas eu consegui andar de bicicleta. Então eu acho que na minha infância, o que foi, assim, marcante, positivo, foi a questão da bicicleta. Andava de patins também, foi uma coisa também que tive dificuldade, mas depois eu consegui me controlar, que não era aquele patins de bota, era aquele patins só a parte… a base, né? E aí você tinha um velcro, amarrava assim no tênis, porque a minha mãe não tinha condições de comprar aquele de bota, bonito. Então tive esse. Tive um patinete também, tive um outro, muito interessante, que meu pai me deu… como é o nome? “Skit GT7”, alguma coisa assim. Era um… não sei explicar direito, mas era um pau assim, que aí você tinha uma base, aí você subia ali e ficava pulando, entendeu? Então, imagina, eu gordinha, eu furei muito chão, (risos) mas era legal.
(19:45) P1 - Tem alguma lembrança… você falou de várias reuniões, de lanches, mas alguma coisa da culinária, da comida que você lembra dessa época?
R - Ah, várias, várias que minha vó fazia, né? Minha avó gostava de cozinhar bastante e ela fazia um bolinho, né, de fubá. Eu não lembro bem os ingredientes, mas era um bolinho bem marcante pra família. Então, eu não sei o que ela misturava, mas depois fritava esse bolinho. Então tinha esse… a minha família por parte materna, meu avô era baiano, então a gente se reunia também, assim, de domingo para o almoço e fazia a comida baiana, né? Então também vinha minhas primas da Bahia e aí cozinhavam, chamavam os vizinhos, chamavam a família toda, né, pra comer xinxim, vatapá. E ela fazia de tudo, né? Então, também, marcante. Minha mãe também cozinhava bastante feijoada, né, que é uma comida bem típica do Rio. Que mais? A minha avó fazia um… ela deixava o leite coalhar, né, e fazia um… nossa, esqueci o nome agora. Ia no fogo aquele leite e ficava… nossa, perdi…
(21:34) P2 - Nata?
R - Oi?
(21:35) P2 - Não é nata?
R - Não, não é nata. Tem um nome [específico]. Então, também. Era uma sobremesa pra gente, na verdade, muito gostosa também. E são coisas marcantes, né? Eu tento fazer em casa algumas coisas dar certo e outras não. Por exemplo, final de ano, rabanada, então é típico também do Rio de Janeiro. E tem uns dois anos que eu venho fazendo, até pra mostrar pras minhas filhas: “Olha, isso aqui era um costume da minha família carioca”, já não é tanto aqui de São Paulo. E tô introduzindo, já tem dois anos que eu faço e levo pra família, e o pessoal gosta bastante.
(22:27) P1 - Você falou xinxim?
R - É, xinxim de galinha.
(22:31) P1 - Hum, não conheço.
R - Não? É, xinxim de galinha.
(22:35) P2 - E qual que era seu prato favorito?
R - Da Bahia?
(22:39) P2 - Não, do que a família fazia.
R - Feijoada. Sempre foi. Eu amo feijoada.
(22:57) P1 - Você falou da enfermagem, contou um pouquinho dessa fase, sempre foi algo antes da odontologia também? Quando criança você tinha algum… almejava algo?
R - Não, com a enfermagem não. Na verdade, eu tive várias fases, né? A princípio eu queria ser engenheira eletrônica, e aí eu falei: “Não, engenheira eletrônica? Não sou muito boa em matemática, acho que isso não vai dar certo. Aí, com o tempo, foi passando, passando… eu falei: “Não, acho que vou pra odontologia, né?”. Porque eu tinha ido no dentista e gostei, falei: “Poxa, não doeu, acho que é essa profissão”. E aí tentei, como não consegui, eu entrei na enfermagem por conselho da minha mãe, porque não era minha opção. Só que aqui eu tive oportunidade de entrar na odontologia, eu fiz dois anos de odonto na UNG. Só que eu já estava na enfermagem e eu tive uma professora na UNG que me jogou um balde de gelo. Eu ia de branco, saía do hospital direto pra faculdade e um belo dia ela me perguntou: “Porque você tá de branco?”. Eu falei: “Eu tô de branco porque eu sou enfermeira, né? E eu vim direto”. Aí ela falou: “Mas o que você tá fazendo aqui? Vai investir na sua profissão, odonto não dá nada. Você sabe o valor de uma extração?”. Aí eu fiquei olhando assim, eu falei: “Não, é um sonho meu”, “Não, filha, sonho não enche barriga”. Mas assim mesmo eu continuei, só que eu tive que fazer uma cirurgia, não foi de emergência, mas de uma certa urgência. Eu tinha um mioma muito grande e já estava me incomodando, então eu tinha uma preocupação muito grande de se evoluir para uma patologia mais séria, né? Mais grave. E a minha… e o meu medo era isso dificultar de um dia eu ser mãe, então o que eu fiz? Não, vamos marcar, vamos fazer a cirurgia. E eu estava no período de… já ia entrar no período de prova, mas, era mais importante porque estava me incomodando muito, minha barriga ficou deste tamanho. E aí eu fui fazer a cirurgia, aí fiz, foi bem, bem, tive um mioma de 950 gramas, quase um RN, né? E aí o médico falou: “Você não vai poder fazer muito esforço, você não vai poder andar muito”, e a UNG, ela é uma subida, né? Aí eu falei: “Vou trancar a faculdade”. Aí fui lá e tranquei a faculdade, só que aí eu não voltei mais. Aí eu fui investir na minha profissão, onde eu fiz as especializações, eu comecei com controle de infecção, porque quando eu vim para São Paulo eu vim para trabalhar num hospital, esse hospital público, estadual, porém, tinha, você conseguia entrar por contrato e no mesmo ano que eu entrei, abriu concurso, e aí eu fiz e passei. Aí eu segui minha vida, só que eu entrei pra trabalhar no controle da infecção e, na verdade, eu nem sabia o que era isso, porque na minha formação eu não tive uma base de controle de infecção. Eu sabia que era questão ligada a bactéria; controle mais a fundo, eu não sabia. Só que eu queria o emprego, né? Aí o que eu falei: “Nossa, ótimo, eu…”, “Ah, você sabe o que é?”, “Sei, perfeitamente”. Não sabia. Só que aí eu falei: “Bom, é correr atrás agora pra aprender, né?”, aí fui. Na época, a diretora, ela me aprovou, voltei pro Rio porque tinha que sair em diário oficial, voltei, ainda fiquei uns vinte dias no Rio até sair… Quando saiu, eu voltei de malinha e comecei a trabalhar com controle de infecção, e eu trabalhava oito horas por dia. E aí, com o tempo, fui me aprofundando, aí foi quando eu entrei pra fazer a primeira especialização controle de infecção hospitalar. E dentro do controle, ele é uma área muito abrangente, é uma área que controla o hospital todo. Tudo passa pela Ccih, né? E aí eu fui me aprofundando em outras áreas, né? Aqui em São Paulo eu comecei com um emprego, mas eu cheguei a ter quatro empregos, tudo ligado à enfermagem, né? E com as minhas especializações. Então eu trabalhei numa limpadora, que eu dava consultoria pra limpadora, orientava as meninas quanto à limpeza, técnica da limpeza dentro do hospital, que não é igual a nossa casa. Aí fui fazer Estomaterapia porque eu fui trabalhar num posto de saúde, que eu cuidava de ferida, me encantou, até hoje eu sou apaixonada, mas a vida você vai levando até que cheguei na diretoria, né? Então passei por várias etapas aí. Todas as especializações que eu tenho, eu atuei. Dei aula por seis anos na Uninove, né, e acompanhava estágio, então tem… a profissão me proporcionou muitas realizações, né? Eu falo que… eu tenho um ditado comigo, porém, esse ditado, tô tentando não colocar ele assim muito forte pras minhas filhas. Eu falo que: “A minha profissão, o meu emprego é meu marido”. Eu tenho isso comigo, né? Só que eu tenho tentado não colocar isso, porque não tem nada a ver, né? Mas eu acho que são coisas que a gente traz, muita herança, né, lá de trás você vai formando algumas crenças que, na verdade, não são muito legais, porque acaba atingindo uma outra parte. Mas eu tenho isso comigo e é muito forte, muito forte mesmo. A enfermagem me proporcionou muita coisa na minha vida, muito, muito, muito. Eu sou muito grata a minha mãe por ter tido essa visão. Poderia ter tido na odontologia? Acredito que sim! Porque eu ia correr atrás, talvez fosse um pouquinho mais difícil porque eu não tenho ninguém da minha família dentista, então pra você montar um consultório é bem puxado, né? Você precisa ter recursos, mas nada que você não corresse atrás, não conseguiria. Talvez iria demorar um pouquinho mais que a enfermagem. Mas a enfermagem me proporcionou muita coisa. Se hoje eu tenho a minha casa, agradeço a enfermagem. Todos os bens, né? Não tem… tem sim! Pra mim a minha riqueza é o meu castelo, mas tudo com a minha profissão, não ganhei nada de mão-beijada, tudo meu é muito é, ali, ó, na raça, na luta.
(31:10) P2 - Voltando um pouquinho, na escola, você lembra onde estudou?
R - Ah, lembro. Eu fiz o primário, que foi do primeiro ano à quarta série, na Escola Estadual Baronesa de Saavedra, que é em Realengo mesmo. Do quinto ao oitavo ano, na Escola Estadual Presidente Roosevelt. Do primeiro ano, que aí era o ginásio… ginásio. E aí… porque mudou, né? O primeiro ano, hoje é colegial, né?
(31:58) P2 - Ensino médio.
R - Ensino médio, isso. Então, do primeiro ano até o terceiro ano, eu fiz no Colégio Estadual Duplar Pires de Mello, né? Subtenente Duplar Pires de Mello, lá na vila militar. E a faculdade comecei na Universidade Católica de Petrópolis e depois migrei pra Gama Filho.
(32:30) P2 - Você tem uma referência de alguém marcante dessa época de escola? Um professor, uma pessoa que trabalhava na escola?
R - Ah, marcante? Tenho sim! A professora Conceição, professora Conceição foi minha professora da quarta série, era uma professora muito rígida, muito grandona, sabe? Muito rígida, mas a gente aprendia. E assim, ao mesmo tempo que ela era muito rígida, ela era muito amorosa, né? Então, é uma… uma das, né? Tive outras também que foram marcantes, mas a professora Conceição foi bem importante na minha formação.
(33:21) P2 - Tinha alguma matéria favorita?
R - Matéria favorita…
(33:31) P2 - Ou que gostava mais.
R - Eu gostava de biologia, era uma matéria que me chamava bastante atenção, que eu gostava.
(33:46) P1 - Você tem alguma história ou lembrança marcante desse período da escola?
R - Olha, eu tenho assim, dos amigos, né? Éramos muito unidos. Marcante mesmo já foi no colegial, né? Porque na infância a gente tinha, mas cada um ia pra suas casas com seus pais. No ginásio, eu já era mais adolescente, então ia pra escola sozinha, porque era tudo no mesmo bairro, só o colegial que era na vila militar, são dois bairros do meu, mas o ginásio também ia, não tinha uma ligação tão forte, né? Só com uma que era a Roseli, que a gente ia junto e voltava junto, né? A Roseli, até hoje a gente tem contato, então ela tá no meu Face, a gente se fala. Mas o colegial foi bem unido, que até hoje eu tenho a turma, que é a… que é a… eu tenho um grupo da turma, que é a turma do Duplar, né? Eu tenho um responsável, na verdade, que é o Borman, que é o meu amigo Borman, ele que é o responsável por manter essa turma toda unida. Eu já tenho, minhas colegas tudo que [já] são avós, entendeu? Então assim, e ele mora em Brasília, ele é advogado. Ele é carioca também, mas mora em Brasília, mas ele, que quando eu não falo muito no grupo, já chama: “Porque você não tá falando no grupo?”, “Pô, não tenho tempo, né? Tá corrido, hospital tá corrido”. E ele vai puxando: “Olha gente vamos marcar um encontro, tô indo pro Rio”. Então ele é o responsável por esse grupo, o grupo do Duplar Pires de Mello. Da faculdade, infelizmente são pouquíssimos que eu tenho contato, né? Da Universidade Católica, é a Valnice que mora aqui em São Paulo também. Nós moramos juntas, a Zeni me trouxe pra São Paulo e já morava com a Valnice, então a Valnice mora aqui. E da Gama Filho, eu praticamente não tenho ninguém, ninguém, assim, que a gente mantém contato, são pouquíssimos. Tem algumas que moram aqui, São Paulo, Jaqueline, mas não tem esse contato. Contato mesmo, forte, é com o colegial.
(36:56) P1 - Como foi essa ida pro colégio militar e essas mudanças de colégio?
R - Foi tranquilo, foi tranquilo. Por que foi tranquilo? Porque, na verdade, já era uma… eu terminei o primário, então automaticamente todos os coleguinhas que terminaram foram pra mesma escola, era muita coisa mesmo de sistema, nós fomos pra mesma escola. Alguns… a gente tinha contato, mas nem todos ficaram na mesma sala. Quando eu terminei o oitavo, aí um houve uma separação zinha, porque não tinha essa… tinham várias escola do colegial, então alguns foram pro 'Nicarágua" que era uma escola do outro lado de Realengo, outros foram pro Duplar. Apesar de ser na vila militar e tem um nome de um subtenente, era uma escola estadual, e ela era diferenciada, porque ela tava localizada dentro de uma área militar, então pra mim foi ótimo cair ali, e aí conheci vários amigos que são esses amigos que a gente se fala aí na medida do possível, tem uns que falam todos os dias, eu não tenho tempo pra falar todos os dias, então de vez em quando, geralmente de domingo, aí eu falo: “Ó, gente, um ótimo domingo pra vocês”. Mas foi ali que a gente teve realmente essa conexão, e é isso, mas foi tranquilo, foi tranquilo porque sempre tinha alguém da outra escola, né? E aí foi, eu sou uma pessoa que faz amizade muito fácil, faço muito fácil, muito fácil, eu não era assim, eu era tímida, eu era super tímida, eu não sei [se era] porque eu era gordinha, então já sofria aí, alguns… naquela época não tinha bullying, era… a palavra bullying, né? “Ah, você é gordinha, isso…aquilo…”, sabe? Então eu acho que eu me traía um pouquinho, aí depois fui naturalmente emagrecendo, academia… a vaidade também, aí fui emagrecendo, emagrecendo, e aí eu falei: “Hum, tá ficando legal, né?”. Aí pronto, você aumenta o seu leque de amizade. E eu sempre gostei de ter muitos amigos. É claro que com o tempo você vai selecionando. Na adolescência você quer ficar rodeado de amigo porque: “Pô, olha, tem muitos amigos, olha como ela é importante”. Acho que todo mundo passa por isso, essa questão de ter muitos amigos, ser popular. E aí, com o tempo, você vai selecionando, “não é bem isso”, você vai vendo quem realmente são os amigos, e a vida também vai tomando outra proporção, outros caminhos. E é isso.
(40:34) P1 - Saindo agora da infância, um pouquinho pra parte da juventude, que você fala que tinha muitos amigos. E aí, das brincadeiras da rua, uma hora elas param de acontecer…
R - Sim, sim.
(40:50) P1 - E viram saídas e… como foi isso?
R - Nossa, coisa boa. (risos) Eu tenho saudade. Nossa, olha, vou falar, a minha infância e minha adolescência foram muito marcantes, eu ia pra bailinho, hoje… o meu avô era muito rígido por conta do meu pai está distante, então ele assumiu a responsabilidade de pai, de avô e de pai, e a minha mãe também, tanto é que eu falo pra ela até hoje: “Poxa, deixei de fazer tanta coisa porque seu coração nunca pedia, mãe”. Por quê? Porque ela tinha medo de acontecer alguma coisa. Mas eu ia, eu era sócia de um clube, que era o Bangu Atlético Clube, no bairro de Bangu, e tinha matinê, então eu comecei a participar dessas matinês. Eu tinha o quê? Treze, quatorze anos. Começava às quatorze horas e terminava às dezoito. Então eu ia com a minha turma, a turma de Realengo, me juntava com a turma de Padre Miguel e depois com a turma de Bangu, era uma “gangue”. E eu ali, era o máximo. Ó, meu Deus, olha as coisas que eu tô contando… é, faz parte… minha vida, minha história. E aí, a gente pegava o ônibus, o 741, só que a gente não pagava, a gente dava calote, era o maior barato. Então eu ia, essa minha adolescência, foi, era o Bangu e tinha o outro, Casino, que era um clube perto do outro, que era Casino… Não era casino de… né? Mas era baile também. Só que o Bangu era melhor frequentado, eu participava mais do Bangu do que do Casino. Mas, de vez em quando, ia no Casino também. Então minha infância era essa, Bangu, festinha, na casa dos amigos, então a gente organizava, né? Como era? Hi-Five? Me fugiu agora a palavra. Então a gente organizava essa festinha, então cada um, ou dava o dinheiro, o responsável comprava, era suco, refrigerante, água, não entrava bebida alcoólica, né? E salgadinho. Só que tinha uma casa, uma casa que era mais acessível. A mãe do Eduardo era mais maleável e ela também fazia salgadinho pra fora, então a gente sempre… na verdade, na minha casa foi feita uma festa só e mesmo assim quando dava uma certa hora, mandava todo mundo embora. E lá, a gente passava a noite toda, só que depois a gente dormia lá, ela forrava lá o salão pra gente, o… ô, meu Deus do céu! A sala, né, dela, ela forrava, a gente dormia lá, e era o nosso bailinho. Era ótimo! (risos) Ali começou a paquera, começava assim… e é isso! (risos)
(44:52) P1 - E lá no Bangu, como era essa festa?
R - Era com o DJ Marlboro e ele que fazia aquele som. Eu inventava passinho, eu que era a coreógrafa do grupo, aí fazia os passinhos… Era muito Hollywood, era Hollywood com o DJ Marlboro, e ele tocava tanto no Bangu quanto no Casino. E era… a gente, nossa, era todos os domingos. Minha mãe falava: “Não cansa, não?”, “Não, mãe”. Todos os domingos.
(45:45) P2 - Pagava pra entrar?
R - Pagava. Só que eu era sócia, né, então eu pagava era mensal. Mas pagava pra entrar, até pra poder selecionar, né? Mas ficava lotado, lotado. Quatorze, quinze, dezesseis anos. Era muito legal.
(46:10) P1 - Isso foi até qual idade?
R - Ah, foi até uns dezesseis, dezessete anos, por aí. Aí depois comecei a fase do samba, né? Escola de samba. Eu sou sócia-proprietária da Mocidade do Rio, meu pai é um dos fundadores, meu pai… a Mocidade começou com um time de futebol, então como meu pai era cria de Padre Miguel e tinha lá as peladinhas de Padre Miguel, e aí um grupo começou: “Ah, vamos organizar uma escola de samba”. Aí começou a história da Mocidade. Meu pai era um dos fundadores, só que meu pai não gostava de samba, e aí eu fui crescendo, ele tinha o título, ele falou: “Ah, vou passar o título pra você, porque você é que vai”. Então o meu título é 34. Se não for 34, é 35, porque ele tinha um amigo, amigo/irmão, que é Jair, que casou com amiga/irmã da minha mãe, a Letícia, que também era sócio, então passou pro meu tio, que era afilhado do meu tio Jair. Então até hoje eu tenho o título lá, mas quase não vou mais. Eu adotei as escolas de samba daqui de São Paulo, né? Então o último ano que desfilei no Rio foi aquela foto que eu mostrei que foi em 1990… Jamile nasceu em 1995, em setembro… em 1996 foi a última vez que eu desfilei na Mocidade do Rio.
(48:12) P1 - E antes você desfilava sempre?
R - Sempre, desfilava.
(48:14) P1 - Todo ano?
R - Não, eu comecei… na verdade, a minha história com a Mocidade é paixão. Eu comecei a frequentar os ensaios, eu ia [em] todos os ensaios quando o meu avô deixava, também tinha isso. Mas depois fui crescendo, aí já fui tendo um pouquinho de liberdade, então eu ia. Mas desfilar mesmo, minha mãe não deixava eu desfilar. Por quê? Porque meu pai falava que o dia que me encontrasse na avenida iria me colocar dentro do camburão, que é o carro da polícia, e só ia me entregar na quarta feira de cinzas, porque meu pai tirava serviço no sambódromo. E aí minha mãe tinha esse medo, né? Só que no ensaio ele não implicava, ele só não queria que eu desfilasse. E aí a primeira vez que eu desfilei, né, foi quando eu peguei meu dinheirinho e fui lá e comprei minha fantasia, eu já morava em São Paulo. Foi o primeiro ano que eu estava aqui, eu fui lá e comprei a minha fantasia e desfilei, porque meu pai não gostava, falava que não era ambiente, entendeu? Mas eu amava, eu chorava, quando a Mocidade entrava na avenida, eu chorava, chorava, chorava, falava: “Mãe, eu queria tá lá, mãe”. Era uma paixão, até hoje, né? Quando a Mocidade entra na avenida… Eu desfilei esse ano e tava contando… “Preciso [ir] embora que a Mocidade daqui a pouco vai entrar”. E fiquei lá babando, porque é uma coisa, não sei, é inexplicável, sabe? Você fica todo arrepiado, de você chorar. É [a] maior emoção, acredito que é resgate, né, você resgata tudo que você passou lá. Hoje a Mocidade tem outra quadra, mas a quadra boa mesmo era a quadra que tinha na comunidade, vinculada à comunidade, até hoje, né? Todos falam isso. Hoje ela tem outra quadra na Avenida Brasil, mas não é a mesma essência. Então, era assim, uma coisa de louco, de chegar no samba dez horas da noite e sair de lá quando apagava a luz. “Filha, vai embora, né?”. E sambando, sambando, e ia pra casa sambando. Falava: “Nossa, que energia, né? Que energia”. Mas é paixão, né? É paixão.
(51:14) P1 - E a escola de samba aparece com seu pai, né? Mas sua mãe ía, familiares iam?
R - Não! A minha mãe não gostava da Mocidade, a minha mãe é Imperiana. Só que minha mãe gosta do Império, só que ela não gosta do samba, de ir pra quadra de samba. Minha mãe gosta mais de pagode, então quadra mesmo ela não ia. Ela frequentava, ia nos pagode, agora quadra, não. Meu avô, nem pensar, meu avô não ia. Meu avô era de baile. Meu avô foi diretor de um clube que é o (Cli?), que é colado à minha casa lá no Rio, onde eu frequentei também muito. Meu avô chegou a ser diretor deste clube e meu avô gostava de baile, baile de salão. Tanto é que o apelido dele era “Perninha de ouro”, porque ele dançava… agora, minha avó, dona de casa, literalmente. Meu avô, baiano, né, carnaval, adorava carnaval, mas em Salvador. Pegava o aviãozinho dele, ia pra Salvador. “Vó, a senhora não vai?”, “Não, vou não, criança. Deixa João ir”. Eu e minha avó ficávamos em casa. Baile, também, ele ia sozinho, porque ela não gostava. “Perninha de ouro”. (risos)
(52:45) P2 - E como vem essa história do samba, o carnaval de rua, o desfile na sua trajetória?
R - Desde sempre, eu acho que já estava na barriga da minha mãe, já pulava carnaval, né? Amo de paixão. Desde pequenininha, né? Tem até uma foto, eu tenho fotos, menor, já fantasiada, porque a minha mãe é de Realengo e meu pai é de Padre Miguel, é um bairro colado no outro, e os dois bairros tinham coreto, só que o carnaval eu ficava mais na casa da minha avó paterna, meu pai me levava pra lá por conta das minhas primas que, uma, a Joice, morava na zona sul, mas ela ia passar carnaval na zona oeste em Padre Miguel. E a minha prima Cátia morava com a minha avó. Então a gente se fantasiava igual, minha avó levava a gente pro coreto, então tinha lá um espaço que tirava foto das crianças, então eu tenho foto menor do que aquela que eu trouxe, então desde cedo eu fui acostumada a pular carnaval, né? E fui crescendo assim, pulando carnaval, indo pro samba, depois de adolescente na sexta feira, porque no Rio começava a aparecer alguma coisa de carnaval na sexta feira, né? Só que a minha mãe não deixava eu sair de sexta. “Não, carnaval começa amanhã, Márcia, sábado, não sexta”. E eu já queria começar na sexta, e no sábado, eu acordava já cedo, eu já ficava no portão pra ver se ia passar o bate-bola. Não sei se vocês conhecem o bate-bola, que é uma fantasia, é um macacão bem largo, com uma máscara, tinha uma capa, sempre com um tema e bexiga. Essa bexiga, hoje não tem mais, mas era mesmo de bexiga de boi. Eles iam lá no matadouro, lá em Santa Cruz, pra comprar e fazer… fedida, entendeu? Batia e doía na gente, mas hoje não, hoje não tem mais, não tem mais esse tipo de bexiga, tem outra. E eu já ficava ali ansiosa. Então, enquanto pequena, mamãe ainda me controlava, aí quinze, dezesseis anos, aí eu já dava… mais ou menos dez horas, eu falava: “Mãe, agora eu já posso pular carnaval”. Então eu saía às dez horas e eu voltava pra casa às dezoito, dezenove, entendeu? Minha fantasia já estava pronta porque eu confeccionava, eu inventava as fantasia pra depois ir pro baile à noite, entendeu? Era essa rotina, era… quatro, três dias de carnaval assim, pulava, quase não comia, na quarta feira de cinzas tava magra porque não comia de tanta ansiedade de ficar na rua, mas era muito bom o carnaval de rua. Sempre teve violência, mas não é o que está acontecendo hoje, né? Hoje a gente não sabe se… a gente sai de casa, não sabe se volta. E era assim, era: Realengo, Padre Miguel, Bangu… não, Realengo, Padre Miguel, Guilherme da Silveira e Bangu, esse era o nosso roteiro todos os dias. Me fantasiava de Pai João. Pai João era, a gente pegava as roupas dos homens, a calça bem larga, blusão bem largo, pegava fronha, fazia dois buracão aqui, o nariz e a boca, amarrava aqui, com o pauzinho, e ia brincar. Era assim. (risos) Que lembrança boa!
(57:21) P1 - Você falou um pouco do carnaval e a gente tava comentando um pouco dos costumes e tudo mais, e aí você comentou um pouquinho do Candomblé também, né?
R - Sim, sim!
(57:31) P1 - Como ele surge e fica?
R - É, o Candomblé na minha família é ancestralidade, é a raiz da minha família. O meu avô paterno, ele era filho de mãe de santo. Eu não conheci a minha bisavó. O meu avô veio da Bahia pra poder… veio pro Rio de Janeiro de navio, e veio pra trabalhar no Rio de Janeiro. Ele conta que quando ele falou pra minha bisavó que ele vinha pro Rio, que ela fechou o corpo dele e falou: “Filho, vai, vai cuidar da sua vida”. E assim ele fez. Passou várias dificuldades até conseguir se firmar no Rio de Janeiro, constituir a família dele, logo conheceu a minha avó, com seis meses eles casaram. A minha avó é do Rio, mas é de uma ilha, Ilha da Marambaia, mas com doze anos, a minha avó já trabalhava numa casa de família tomando conta de criança. E ela foi crescendo, crescendo e conheceu o meu avô. Então, a base da minha família, a questão religiosa é o Candomblé e a Umbanda. O Candomblé pelo meu avô e a Umbanda com a minha avó. Por parte paterna, a minha avó frequentava uma Umbanda branca e o meu pai não gostava, tanto é que teve vários conflitos com a minha mãe por conta disso, porque ele não gostava. E eu fui criada naquele ambiente, indo para a Umbanda, até então, a minha avó frequentava Umbanda, aí a minha mãe também frequentava depois que se separou do meu pai e minha tia também frequentava a Umbanda. Eu já tinha primas que eram do Candomblé, eram feitas no Candomblé, mas, até então, a minha base familiar era umbandista. Até que minha tia Ivone começou a ter problemas psiquiátricos, que na verdade estavam ligados a uma questão religiosa. E aí foi quando ela se iniciou pro Candomblé. Eu tinha nove anos de idade e eu lembro muito bem que minha tia ficou muito doente, ela não aceitava: “Eu gosto da minha Umbanda, eu não quero o Candomblé, não sei o quê”, porque o Candomblé você raspa o cabelo e ela não queria isso, ela tinha medo, enfim, do cabelo não crescer mais. Só que não teve jeito. E eu acompanhei toda essa problemática dentro da família. Quando ela foi levada até o pai de santo que a iniciou, o meu tio voltou com uma lista de material que ele tinha que comprar para poder fazer a iniciação dela. Então eu lembro que qualquer moedinha que eu encontrava, eu dava pro meu tio. Foi uma forma de eu ajudar a minha tia. No dia da iniciação dela, eu nunca tinha ido no Candomblé, foi ali que eu descobri que era aquela religião que eu queria seguir. Eu fiquei encantada. Eu não conseguia tirar os olhos de todo aquele cenário. Era as filhas com aquelas roupas, os santos, o som do atabaque, eu falei: “Meu Deus, que isso? É isso que eu quero”. E sem conhecer…Mas aquilo me chamou uma atenção tão grande, que foi ali que eu descobri que era aquela religião que eu queria seguir. Acompanhei a minha tia durante… quando ela foi pra casa, porque você fica um período de três meses de resguardo que você usa uma joia que a gente chama de Quelê e quando tinha que ir para a roça eu acompanhava ela, com nove anos, eu acompanhava, porque eu queria ficar junto com ela porque a roça era uma coisa deslumbrante, assim, era simples, mas com muita natureza, tinha um pavão maravilhoso, quando eu chegava, eu brincava com ele, ele se abria, sabe? Então aquele… era, assim, uma coisa deslumbrante. E eu fui acompanhando a minha tia, fui acompanhando, fui crescendo, acompanhando… tive um período que eu me afastei um pouco, que aí a gente vê outras questões, aí vem namoradinho… mas sempre, na oportunidade, eu tava sempre com ela, né? Até que chegou a minha hora de se iniciar, me iniciei aqui em São Paulo, aqui em Santo André, por vários motivos, só que não fiquei nessa casa, depois de três anos de iniciação eu voltei pro… fui procurar um pai de santo no Rio, que é o meu Doté até hoje, pai Fred do Ogum, aonde eu fiz a primeira vez que eu precisei de um suporte religioso foi na casa dele, mas ainda eu morava no Rio, mas como eu vim pra São Paulo, comecei a passar muito mal aqui, terminei me iniciando aqui. Mas não me adaptei com a casa e aí fui procurar ele, eu tinha três anos de santo, hoje eu tenho 22 anos de santo e eu tô lá até hoje. Ele já inaugurou a minha casa, eu tenho uma casa de santo em Mairiporã, inaugurou ano passado. E essa é minha trajetória aí, agora eu tô, né, muita resistência, resiliência pra poder tocar minha vida espiritual, né? Ele me deu a chave, porque, até então, ele era o meu suporte, mas agora sou eu. Mas é óbvio que quando eu preciso, tô sempre ligando pra ele. Então, o Candomblé é muito forte na minha família e na minha vida. Minhas filhas são iniciadas também.
(01:04:53) P1 - Você fala dessa vinda pra São Paulo, né? Como foi essa tomada de decisão?
R - É, quando eu terminei a faculdade, terminei em 1992, fiz a graduação direto, não fiz auxiliar, nem técnico, fui pra faculdade direto. E aí, me formei em 1992, minha colação foi em 1993… não…isso… em 1993, em março, abril eu já estava trabalhando numa clínica, então foi bem pouco, não foi muito tempo fora do mercado. Comecei a trabalhar, fiquei um ano mais ou menos naquela época, mesmo… durante a minha trajetória nessa clínica, que é a Pró-Saúde de Bangu, abriu uma cooperativa do Brisola, que era um núcleo de saúde dentro dos Cieps, e aí fizeram uma seleção, aí fui lá e me inscrevi, que o enfermeiro seria responsável por esse núcleo, aí eu entrei, passei, aí eu comecei a trabalhar nesse Cieps. Esse Cieps, questão de valores, pagava muito mais do que a clínica, porque na clínica eu tive que trabalhar à noite, e aí eu fazia muitas vezes uma carga horária muito puxada. Eu falei: “Vou sair da clínica, vou ficar só no Cieps, né?”. E assim eu fiz aí durante um ano e pouco. Só que a cooperativa acabou. Quando a cooperativa acabou, eu falei: “E agora, o que eu vou fazer?”. Porque eu tinha um bom salário, e aí eu comecei a procurar nas clínicas particulares do Rio emprego como enfermeira, mas o salário era sempre muito baixo, muito baixo. Aí eu falei: “Ah, não! Vou fazer salgadinho pra fora que eu vou ganhar muito mais”. E a responsabilidade de um enfermeiro é muito grande. Eu falei: “Não, eu não vou”. E nisso eu fiquei, até que a minha amiga de turma, Zeni, que já morava aqui, porque eu fiz prova no Hospital Universitário, né? HU. Eu fiz prova, não passei, quer dizer…Eu passei na escrita, não passei na entrevista…e as minhas amigas passaram e elas ficaram aqui em São Paulo. Eu falei: “Bom, vou tocar lá no Rio”. Então fiquei no Rio uns dois anos. Quando eu perdi… acabou a cooperativa, eu liguei pras meninas e falei: “Ó, tô desempregada”. E as meninas falaram: “Ah, é? Tá desempregada?”. E aí foi quando a Zeni falou: “Olha, no meu hospital tá precisando de enfermeiro no controle de infecção”. Aí eu falei: “Ah, tá!”. E nessa época eu era noiva, só que eu já tinha terminado o meu noivado, já tinha meses que eu tinha terminado meu noivado. Eu falei: “Bom, já não tenho mais o noivo, eu preciso tocar a minha vida, né?”. Eu fui lá, conversei com a minha mãe: “Mãe, eu tô indo embora pra São Paulo”. Arrumei uma bolsa e vim, passei pra uma entrevista, fui aceita e aí voltei pro Rio e depois retornei e comecei a trabalhar, entendeu? Então ,assim, não foi fácil, não foi fácil, não, a questão do emprego, porque eu vim pra São Paulo praticamente já tinha emprego e tinha onde morar, então não vim me aventurar, né? Morava com as meninas, que eram colegas de turma, ali na Consolação, mas a dificuldade foi a separação, porque eu era muito ligada à minha mãe, a gente dormia no mesmo quarto, na mesma cama, então essa separação foi muito difícil, né? Apesar de ser muito difícil pra mim, foi muito bom, sabe, andar com as minhas pernas, porque a minha mãe era muito protetora, né? Até hoje! Eu tive uma fase aqui que eu tinha que ligar pra minha mãe todos os dias, senão a minha mãe não dormia. Foi em 1997 que eu comprei o primeiro celular, então, antes, era o orelhão, depois que nós compramos um telefone em casa, então isso facilitou, mas, olha, penei, porque eu tinha que arrumar algum lugar pra ligar pra ela, senão ela não dormia, ela não dormia. Então isso aí foi bastante difícil, bastante. Por isso eu ia muito para o Rio, também, nos finais de semana, por conta disso, porque a ligação familiar era muito forte, muito forte. Só que ao mesmo tempo, eu falei: “Eu preciso…”, sabe? Porque tinha hora de que sufocava: “Eu preciso caminhar, preciso tocar a minha vida”. Eu construí a minha trajetória, [pra] não ficar presa naquela situação familiar, porque muitas vezes você não consegue caminhar, porque é tão enraizado que você não consegue, então eu precisei realmente… chegou na hora certa, eu vim pra São Paulo.
(01:11:06) P1 - Você falou do primeiro trabalho… Você lembra o que você começou a fazer com o dinheiro que você começou a ganhar?
R - Ixe! Eu achava que eu estava rica, né? Porque assim, meu primeiro emprego foi como enfermeira. Eu tive o privilégio de estudar e depois trabalhar, eu acho até por ser filha única. Então minha mãe conseguiu apertar um pouquinho, correr atrás pra me dar esse benefício, né? “De primeiro estuda e depois vai trabalhar.” Então, quando eu olhei não acreditei, falei: “Meu Deus, quanto dinheiro”. Só que aí eu não gastei muito, uma coisa que eu fiz, que eu tinha… não sei se aqui em São Paulo… eu acho que até hoje tem essa loja: Cantão, loja Cantão. Lá no Rio, porque eu uma vez andando vi um rapaz com um tênis da Cantão e era o auge. Como eu estudei numa instituição privada, então tinha, era uma mistura, tinha umas pessoas que eram pobres e também tinha as pessoas que tinham o poder aquisitivo melhor, então as meninas, até mesmo da minha sala, iam com a calça da Cantão, eu ficava babando… e com o tênis da Cantão. Eu falava: “Nossa, no dia que eu tiver o meu salário, eu vou comprar uma calça e um tênis da Cantão”, porque eu nem pedia pra minha mãe, era muito caro. E aí foi isso que eu fiz, então o primeiro salário eu comprei uma calça branca pra trabalhar, da Cantão, né, que tinha um corte maravilhoso, e um tênis da Cantão. Então eu comprei um branco, um azul, um verde, entendeu? Comprei várias cores e ajudei em casa. Eu lembro que meu avô queria pintar a casa, e aí fez o orçamento, aí falei: “Vô, pode deixar que a tinta eu compro”, “Não, que isso, não precisa”, “Não, eu vou comprar”. Então fui lá, comprei a tinta, comprei uma mesinha pra colocar a televisão, um rack, que até pouco tempo tinha lá, hoje não… minha mãe deu, e é isso. Então sempre o meu salário era pra ajudar em casa e também pra comprar roupa, não tinha muitos compromissos, o compromisso maior era comigo e ajudava o meu avô e minha mãe, que minha avó era dona de casa. O salário que entrava em casa era do meu avô, do meu tio, que tinha um tio solteiro, meu tio Dirceu, que era militar também, da polícia, e da minha mãe. Aí eu entrei: “Não, tenho que dar minha parte também, não é só gastar”. O meu primeiro emprego foi na clínica, e depois que eu comecei a trabalhar no Cieps, aí que eu me senti, era muito dinheiro: "Ai, meu Deus, o que eu vou fazer com esse dinheiro?”. E não tinha mesmo o que fazer, né? Aí investia na casa, investia… Aí depois perdi o emprego no Cieps, o outro também já tinha pedido demissão, porque, na verdade, como eu nunca tinha trabalhado, aí a louca aqui quis trabalhar em dois, e um à noite. Eu não aguentei, né? Não aguentei, não tinha estrutura pra isso. Porque eu entrava no Cieps, ia para a clínica, dava plantão a noite, da clínica eu voltava pro Cieps, pra depois ir pra casa. Imagina… A noite eu ficava assim… (movimentos com a mão) E não podia dormir, né? Porque até hoje a enfermagem, infelizmente, é desvalorizada, até aí uns anos atrás nós ganhamos o direito de ter a sala de descompressão, onde o enfermeiro - a equipe, não só o enfermeiro -, a equipe tem o seu momento pra poder descansar, né? Infelizmente teve aí o STF que proibiu, porque isso foi uma lei de São Paulo, e aí falou: “Não, tá tudo errado, não são vocês que determinam”. E hoje, apesar de que no hospital que eu tenho tem a sala e eu não vou desfazer, vou manter, porque é importante sim, a enfermagem trabalha 24 horas, a enfermagem precisa daquele momento de sair daquele ambiente de muita tensão e ter aquele momento de descanso. Isso é humanização. Então, mas já proibiram, então tem umas coisinhas que é bem complicada, e aí cabe a quem tá na gerência ter todo um trabalho que favoreça, que traga humanização para os funcionários, então a gente sempre procura fazer isso. Semana da enfermagem, está sempre promovendo uma festinha, ou, um brinde. É motivação, é você motivar. Não é aquela questão: “Ah, você escolheu essa profissão e acabou, vai lá, faz…”, não é assim. Somos todos seres humanos. Então aí, com a pandemia, pelo amor de Deus, foi um caos. Hoje eu tenho funcionários que estão sofrendo com problemas psicológicos por conta da pandemia. Eu até acredito que... São todos. Hoje eu também me pego em alguns momentos com uma ansiedade grande. E eu acredito que eu devo isso à pandemia. Então, eu fazia... sou gerente, não prestava assistência ao paciente, mas eu convivia com aquele meio. Um meio bem, assim, guerra. Assustador. Depois a gente foi se acostumando, mas no início foi punk. Várias vezes eu chegava em casa, ia tomar banho, chorava, chorava, chorava, chorava. E o medo de não voltar pra casa, o medo de contaminar a família. Foi muito, muito difícil. Muito difícil. Não tivemos nenhuma morte de funcionário com Covid no hospital que eu trabalho, mas muitos afastados, inclusive até na família. Tio do meu ex-marido, que trabalha junto comigo, é enfermeiro junto comigo, ficou muito mal, muito mal. Muito mesmo. Mas a gente segurou ele ali. Falava: “Guerreiro, reaja, reaja, reaja, que você não vai sair daqui de outra forma, não. Você vai sair daqui de cadeira de rodas, que andando não dá. Você vai sair de cadeira de rodas”. E assim a gente fez. Mas foi muito, muito complicado.
(01:20:00) P1 - Você comentou que hoje você está como gerente lá?
R - É, sou diretora de internação. Toda parte de internação é de minha responsabilidade.
(01:20:12) P1 - E como foi essa trajetória profissional?
R - É, eu entrei no controle de infecção, fiquei 23 anos no controle de infecção, só que já no período do controle, eu já não tinha mais motivação pra trabalhar no controle. Muitos anos também. E por conta de toda uma estrutura da instituição. Porque quando eu entrei, era uma outra gestão, e eu trabalhava com a doutora Adriana, que me ensinou muito contra a infecção, aí depois fui me especializar, e era eu e ela. Depois entrou mais uma enfermeira, só que ela teve um problema com a gerência, que aí já tinha mudado a gestão do hospital, ela teve um problema, e falou: “Aqui eu não fico”. O médico tem uma oportunidade maior do que o enfermeiro, até por conta da carga horária dele. Geralmente os médicos fazem vinte horas semanais ou 24 horas semanais no estado. O enfermeiro faz trinta. Então a gente consegue, no máximo, ter dois empregos. E o outro é freela. E o médico não. O médico consegue ter mais empregos. Então ela falou: “Não, aqui é onde eu ganho menos, então eu vou embora”, aí transferiu o vínculo dela pro Hospital São Paulo. E aí a CCH começou a não ser aquela CCH. Ficamos um bom período sem médico, só na minha responsabilidade, e aí eu comecei a jogar pro universo que eu não estava gostando mais, eu tinha muita coisa ainda pra produzir, eu estava me sentindo improdutiva, estava me sentindo... Eu falei: “Gente, eu ainda tenho muito pra colaborar com a profissão, e isso aqui pra mim está me deixando doente”. E do nada… quer dizer, a gente acha que é do nada, mas toda hora eu falava com eles, a diretora do hospital me chamou na sala dela e falou: “Márcia, eu estou saindo de férias, e aí você vai ficar no meu lugar”. Eu falei: “Eu? Ah, como eu?”. Eu não sou vinculada à enfermagem. Apesar de ser enfermeira, eu sou vinculada à diretoria geral do hospital, porque o meu serviço é um serviço que abrange todas as áreas, então ele é vinculado ao diretor do hospital. E eu nunca vivi a enfermagem aqui nesse hospital. Eu conhecia a enfermagem por conta do meu serviço, que é ligado à enfermagem, mas as particularidades da enfermagem eu não conhecia. Como que eu vou gerenciar a enfermagem? “Não, todos os outros falaram que é você”. Eu falei: “Não, mas dá pra fulana, ciclano…”, “Não, não, Márcia, elas falaram que já ficaram e você nunca ficou”. Eu falei: “Eu nunca fiquei porque não tem nada a ver”. Mas foi a partir daí que eu falei: “Eu não vou deixar mais nenhuma oportunidade na minha vida passar”. Não dei a resposta no mesmo dia, fui pra casa, avaliei, eu falei: “Meu Deus”... eu falei: “Não, Márcia, vai lá e aceita”. E eu fui, voltei no dia seguinte e falei: “Olha, Sandra, eu aceito, só que tem uma condição, nenhum dos supervisores estão de férias”, “Não, quando eu saio, ninguém sai de férias”. Eu falei: “Ok, aí eu fico, porque se eu tiver alguma dificuldade, eles vão me ajudar”. No mesmo dia, chamei todos eles e falei: “Olha, eu vou aceitar porque vocês me indicaram, só que ninguém de férias, entendeu? E todo mundo vai... Vocês vão me ajudar, vocês vão me ensinar”. E assim foi. Só que aí, durante esse período, essa gerente que eu estava substituindo, ela também não estava muito satisfeita, aí entrou uma outra gerente. Convidaram uma outra gerente para ficar no lugar dela, só que essa gerente é minha amiga. Aí, quando ela foi conversar com a diretoria geral, ela passou na minha sala e falou: “Olha, Márcia, está acontecendo isso, isso e isso. A partir do dia tal, eu vou assumir a diretoria da enfermagem. Só que eu falei para o diretor com uma condição, se você vier junto comigo”. Eu falei: “Eu? Não, eu quero voltar para a minha CCH. Apesar de não gostar, mas eu não quero”, porque a enfermagem é o maior número de profissionais dentro de uma instituição, seja ela qual for. Então, eu falei: “Não”. Ela falou: “Não, é você sim”. E aí não teve jeito, ela falou: “Então vou falar para ele que eu não quero, porque você não quer”. E aí eu acabei aceitando, já estava com quinze dias de experiência em relação a... Não experiente - com quinze dias -, mas você já tinha uma noção da responsabilidade de um diretor. E aí eu falei: “Não, tudo bem, eu topo”. E já estou há seis anos na diretoria de internação. Confesso que adoro, a gente trabalha muito com gerenciar conflitos. Você está ali, é como se fosse um RH, então é ali, você chama um, você chama outro, você tem toda uma noção do hospital, você faz todo um planejamento. E eu espero, como é um hospital do Estado, depende muito da política, e mudou há pouco tempo. A secretaria também mudou de coordenador, então nós não sabemos o que vai acontecer com os hospitais, se vai haver mudança. Se houver mudança de diretoria, acaba mudando todas as diretorias. Mas não estou preocupada em relação a isso, eu só não quero sair do Hospital Geral Vila Penteado, porque ali eu comecei, e é ali que eu vou pegar minha bolsinha, meu banquinho e vou para a minha casa, aposentada. (risos) Faltam quatro anos. Então, é isso.
(01:27:53) P1 - E, nessa trajetória toda, você tem alguma lembrança marcante desse lugar da enfermagem? Alguma coisa que te emociona, que você lembra nessa trajetória?
R - Muitas passagens, né? Muitas. Eu tenho o Hospital Penteado como uma extensão da minha casa. Ali é como se eu tivesse nascido para a enfermagem, porque, na verdade, a minha vivência dentro da enfermagem, a minha trajetória começou no Hospital Penteado, porque no Rio foram dois anos. Eu tenho trinta anos de formada, e o restante é tudo no Hospital Penteado. Eu trabalhei em outros, mas o forte mesmo foi o Hospital Penteado. Então, é como se eu tivesse nascido, começasse a engatinhar, e hoje chegar a maioridade onde eu assumi a diretoria. Então, eu tive várias passagens dentro do hospital. Passagens boas, passagens ruins. Muita lembrança de amigos que conviviam ali comigo, e hoje já não estão mais nesse plano. E tem várias histórias dentro do hospital, de amizade, de trabalho. Eu, dentro do hospital, acho que de todo esse meu trabalho dentro do Hospital Penteado, um que eu valorizo muito, muito, porque era junto com o paciente, era estomaterapia. Eu não era da assistência, mas eu cuidava das feridas. Então, tinha todo um fluxo, e eu fazia ambulatório também. Então, vários pacientes que o médico falava, que o médico falava: “Olha, você vai ter que amputar as pernas”. E eu falava: “Não, deixa eu dar uma olhada primeiro”. Eu falei: “Não, como vou amputar? Tem pulso, se tem pulso, dá para cicatrizar”. Então, vários. Demora, não é de um dia para o outro. E ali você vai cuidando, vai cuidando, e não é só da ferida, você tem que olhar o paciente em tudo. E o paciente ir para casa. Tinha uma paciente na UTI, que ela praticamente estava, olha, essa paciente já está desenganada. Eu falei: “É mesmo?”. Nossa! Ela tinha uma deficiência muito grande, uma ferida que abriu tudo. Eu falei: “Não, deixa eu olhar”. Eu olhei e falei: “Dá para colocar um curativo aqui que vai absorver bem esse exsudato”, que a gente fala que é a secreção. Liguei para uma empresa que trabalhava com vac, que é um equipamento, vac, um equipamento e com uma espuma. Aí você coloca a espuma na lesão e aí você liga e ele vai absorvendo essa secreção. E por manter o meio úmido, ele também vai favorecendo o crescimento do tecido. E essa paciente foi embora. Então, eu tenho muitas lembranças do momento da estomaterapia. Porque o controle de infecção, beleza, você atua ali na prevenção. Você, para que não haja a infecção. Quando há infecção, a atuação é do médico. Ele vai avaliar, ele vai entrar com antibiótico. A prevenção, bem, é treinamento. É treinamento, é você treinar a equipe. E a estomaterapia, não, é você meter a mão. Você vê aquele paciente com uma lesão imensa e você ter a oportunidade de ver o paciente ir embora. E a diretoria, eu acho que está fechando o meu ciclo. Eu espero que eu continue na diretoria até o finalzinho, meus quatro anos. Se não for, veja onde eu vou ficar, que do Penteado, eu não saio. Mas é fechar o meu ciclo, porque diretoria é isso, é você gerenciar. É você ver material, ver escala. É um todo, mas você não está ali direto com o paciente. Então, de toda essa minha formação, acho que a estomaterapia me trouxe mais realizações. Já apresentei trabalho em congresso. Então, acho que é o que mais trouxe, não vou falar significado, não é isso, mas acho que uma relevância para a minha formação.
(01:33:55) P2 - Vamos entrar um pouco em relação à Covid. Como foram esses primeiros momentos? Desde entender o que era isso até: “Tá, vamos fazer o quê com isso?”. E o hospital lutando, toda essa relação, das pessoas super confusas, como foi isso?
R - Foi assustador. Foi assustador quando começou. Nós tivemos um caso, foi um caso, que desse um caso todo mundo ficou em alerta: “Tomara que não chegue no Estado, seja um caso isolado”. E depois do Carnaval - porque teve o Carnaval -, que o negócio começou a disseminar. E aí o Estado começou a se mobilizar e encaminhar informes para o hospital falando do Covid. Todo mundo ficou meio assustado: “Mas o que é isso? Como que a gente vai cuidar?”, até chegar o primeiro caso no hospital. Chegou um rapaz, morador da região, até conhecido de umas diretoras, com uma falta de ar muito grave, muita tosse. E, até então, a gente ficava: “Será que é? Não é?”. E, até então, era uma infecção respiratória. E começamos a tratar como infecção respiratória. Até que chegou um outro caso, que era uma voluntária do hospital, também com os mesmos sintomas. E ali a gente despertou, falou: “Opa, provavelmente deve ser esse Covid”. E aí a gente já, imediatamente, na época, a diretora do PS (Pronto Socorro), a doutora (Aira Mara?), falou: “Vamos começar a organizar o nosso PS para atender Covid”. Então foi uma correria pra deixar uma área para atender Covid, uma área com pacientes sem sintomas respiratórios, né? E assim a gente começou. E todo mundo de cabelo em pé, porque: “Meu Deus, vou tratar com o quê? O que a gente faz? Quais são as medidas de, o equipamento de proteção individual? Quais são as medidas que a gente tem que adotar?”. Então, tudo muito novo. E aí começamos. No mesmo dia, teve que entubar os dois. Então, assim, a evolução [foi] muito rápida. O paciente chegava andando e, em poucas horas, o paciente estava entubado. Uma coisa de louco! E entrava em contato com a secretaria, entrava em contato com os infectos: “O que a gente faz?”. Até que o Hospital Penteado tornou-se um hospital de referência, então o nosso hospital ficou referência de Covid. Foi quando terminou a maternidade do hospital, o berçário do hospital foi... todo esse serviço foi transferido pra um outro hospital e nós transformamos o hospital só de Covid, com exceção, que o hospital é referência de queimados, então não deu pra desativar o queimados, porque dentro da Grande São Paulo são poucos hospitais que são referência de queimados, então não dava durante mexer com queimado. Então deixamos o queimado bem isolado. Então, os funcionários do queimado não iam para as outras áreas, pra preservar aqueles pacientes portadores de queimadura. E o hospital todo virou um hospital referência de Covid. Sabe, e muitos casos! Aí começou também, os funcionários. Aí logo no início, ainda tínhamos a maternidade, e a nossa maternidade estava em reforma e nós montamos uma maternidade próxima do pronto socorro. Ainda, já com essa onda de Covid, a gente não desativou a maternidade. Por quê? É uma região que… o hospital absorve muita gestante, então isso ia impactar muito no atendimento delas. Só que ainda era um caso aqui, um caso ali; era um caso isolado. Só que a gestante também tinha risco de trazer Covid: ou já entrar com Covid ou adquirir o Covid. A gente tinha todo, né, máscara, álcool em gel, mas, enfim. E aí um belo dia uma funcionária da maternidade começou a passar mal. Aí a enfermeira de lá me ligou: “Márcia, a funcionária tal não tá se sentindo bem”. Eu falei: “Quais são os sintomas?”, “Não, tá tossindo muito”. Eu falei: “Ó, já tira ela da unidade, já pede pra passar no Sesmt (Serviço Especializado em Segurança e Medicina do Trabalho), que é a nossa medicina do trabalho, e provavelmente o médico vai pedir para colher exame”, e foi isso que aconteceu. Só que isso, ela já tinha trabalhado quase metade do plantão. De tardezinha, já tinha uma outra funcionária já tossindo. Eu falei: “Também tira e manda”. Eu falei: “Meu Deus, eu vou ter problema”. Aí no dia seguinte, eu falei assim: “Olha, todos os funcionários que tiveram contato com as duas, vai colher todo mundo o Covid”. E aí foi aqueles funcionários todos. Pra minha surpresa: todos positivos. E aí foi, assim, um dos momentos bem... um dos momentos, não, acho que foi o momento pior. E aí eu falei: “E agora, o que fazer?”. Aí liguei para o diretor da… liguei para a minha diretora para comunicar, liguei para o diretor da divisão médica - isso era uma sexta-feira - e ele falou: “Márcia, reúne todo mundo amanhã, entendeu, porque é todo mundo de atestado e já vai entrar com a medicação”. E para comunicar a eles? Aí eu liguei para a enfermeira, que também estava com Covid, todo o plantão, porque a enfermagem são quatro plantões, né, que trabalha de doze por 36, a maioria. Liguei para ela e falei: “Olha, aconteceu isso, isso, isso, isso”, ela se desesperou. Ela e eu, inclusive. “Você, então, amanhã, esteja no hospital, tal, tal, eu vou estar lá, o diretor da divisão médica [também]”, e assim foi. Quando eu cheguei no hospital, que eu vi toda a equipe se abraçando, nossa, eu falei: “Meu Deus, vão morrer todos”. Naquela hora, eu passei, eu não quis falar com ninguém, ninguém, porque a minha sensação era: “Eu vou perder todos esses funcionários”, entendeu? E foram para casa… você vai contaminar os filhos, o marido. Não gosto nem de lembrar muito. E aí, falei com eles assim, passei, aí eu já me direcionei lá para o ambulatório, aí foram chegando, chegando, cada um passando com o médico, eu preenchendo o atestado lá, ajudando ele, e ele carimbando aquela coisa toda, e fazendo… prescrevendo. E, graças a Deus, se trataram, ninguém faleceu. Aí o serviço não parou. Aí, o que eu tive que fazer? Ver, levantar quais são os funcionários que já tinham trabalhado em maternidade, para o serviço não parar. E assim foi, o serviço não parou. Então esse foi um marco bem importante, e a questão também do enfermeiro Wilson, que foi também bem tenso. Porque o Wilson, ele tem comorbidade, ele é hipertenso, ele é diabético, e quando ele precisou, assim, a gente fez uma loucura: nós não levamos ele para a UTI, porque a UTI era terceirizada, e nós não conhecíamos a fundo os profissionais, então o médico falou: “Não, vamos segurar ele aqui na enfermaria, 24 horas a gente em cima dele”. E assim a gente fez, deixou ele na enfermaria. Tinha hora que ele falava: “Me entuba!”. E todo mundo: “Não, não, não! Porque se entubar, você não sai”. Então, pronava, ele agoniado em pronação, porque é ruim mesmo. E ali foi, batalhando, batalhando, batalhando, batalhando. Muito choro! A gente se abraçava e falava: “Meu Deus, a gente vai perder ele”. Mas está aí, para contar a história, está lá no Penteado, meu supervisor, trabalha junto comigo. E eu falei: “Cara, você tem que agradecer muito mesmo”, porque a gente pensou, mesmo, de perder ele. Depois virou famoso, porque foi para o Facebook, foi o segundo a tomar a vacina, deu entrevista na Globo. (risos)
(01:45:10) P2 - Foi o primeiro homem a tomar a vacina.
R - É, o primeiro homem a tomar a vacina, aí deu entrevista na Globo. Mas a gente teve muitas passagens bem comoventes, sabe? De você perder… entrar pai, mãe e filho e morrer os três. Ou morrer o pai e a mãe, e como você vai dar notícia para o filho? Ou vice-versa. Muitos casos. Essa senhora mesmo, a voluntária, era a voluntária mais alegre do hospital, falava com todo mundo. A dona Inês foi uma perda também, assim, bem… sabe? Muito difícil. E vários, né? Muitas passagens. E não podia ter visita, então a gente muitas vezes usava o nosso celular para poder falar com a família. Boletim médico: aquela família toda lá embaixo, para poder ter o boletim médico. E muitos saíam chorando, porque o ente querido tinha falecido. Nós tivemos um momento também, o nosso necrotério é pequeno, tivemos um momento que tivemos que fechar um outro espaço para poder acondicionar todos os corpos. Nossa, nunca tinha vivido isso. Eu falei: “Gente”... aí o meu diretor na época falava: “É guerra! É guerra, gente, é guerra!”, e realmente foi uma guerra. Por um outro lado, a população se solidarizou muito, aí você tem o extremo, e muitas doações. A princípio, a gente não tinha muita máscara, então em vários locais eu levava máscara, face shield, vários, o pessoal confeccionava em casa para levar aos hospitais. Pizza! Todas as pizzarias mandavam pizzas e pizzas para a gente. Nossa, teve esse lado de humanização. Flores, ganhamos flores, sabe? Bolo, jantares. Tudo isso nos confortava também. Foi um conforto para a gente, porque a maioria dos profissionais estavam em casa, em home office, mas a saúde estava lá na boca do furacão. Então foi um momento que a enfermagem foi muito valorizada. Falavam muito: “Não, a enfermagem aqui está lá 24 horas com paciente. Enfermagem, enfermagem, enfermagem”. E nós da enfermagem pensamos: “Poxa, acho que agora vai, as pessoas vão ver a enfermagem com outro olhar, um profissional que é extremamente importante dentro de uma instituição”. Só que a pandemia acabou e volta tudo: “Enfermagem é isso, enfermagem é aquilo”, perde essa descompressão. E é isso. Mas foi um momento de aprendizado para alguns. Acredito que muitos se conscientizaram, acredito que tenha melhorado a sua vida, se tornou uma pessoa melhor. E [para] outros, a gente vê que não teve nenhum significado tudo isso que aconteceu, milhares de pessoas morreram, sem classe social, sem cor. Então, era rico, era pobre, era branco, era preto, todo mundo morrendo. É óbvio que a gente sabe que a classe menos privilegiada foi mais acometida pelas condições de moradia, mas todos [foram afetados]. A gente tem aí na televisão, artistas que morreram. E é isso, é um aprendizado para o resto da vida. Quem esteve ali perto, até mesmo aqueles que não presenciaram o dia a dia de um hospital, mas sofreram com isso. O fato de você ficar preso em casa, como se fosse um presídio, você não pode ir ali na rua, isso também trouxe muitos problemas psicológicos. Muitos, muitos. Então, todos, todos nós sofremos com a pandemia. Uns muito, outros menos, mas todos. Eu falo que eu não tinha ansiedade e, ultimamente, eu venho tendo alguns sintomas de ansiedade. E eu acredito que foi aí no período de muita tensão. Então chega uma hora que isso vai trazer algum problema para você. Era um momento de muita tensão, muito corre-corre, muitos desafios. E chega uma hora que... e eu acredito, sim, que foi da pandemia. Eu tenho funcionários que estão afastados até hoje, tenho mais ou menos 43 funcionários afastados. Saíram antes da pandemia porque tinha comorbidade e não voltaram. E outros que trabalharam e também estão afastados por psiquiatria, que não... aí desenvolveram síndrome de pânico. E muitos você vê, está lá trabalhando, mas você percebe que não é 100%, ficou com alguma sequela. Principalmente aqueles que tiveram Covid. Eu tenho vários. Nenhum dos que... nenhum funcionário morreu por Covid nesse período. Eu tive falecimento de funcionário, mas foi por uma outra patologia. Mas aqueles que tiveram Covid, eles ficaram com problema cardíaco. Então, tem problemas psicológicos. Alguma coisinha eles adquiriram, porque o Covid mexe com toda a estrutura. Eu não tive Covid, não. Eu fiquei e trabalhei o tempo todo. Não estava na assistência, mas eu andava o hospital todo. Todo, ia lá, conversava com os funcionários, ficava perto deles, mas não tive. Ia no pronto-socorro, aquela loucura, gente tossindo… não tive. Na minha casa, ninguém teve. Ninguém. Tenho uma mãe de oitenta e poucos anos, acamada. portadora de mal de Parkinson, hipotireoidismo: não teve. Aí… não tenho explicação. (risos)
(01:54:28) P1 - Hoje... e lá hoje moram você, sua mãe?
R - Eu, minha mãe e minhas duas filhas. Eu tenho uma filha de dezessete anos, que é a Jamile. E tem a Gabriela, de onze anos. Fui casada há quinze anos, tem dois anos que eu me separei. E hoje vive eu, mamãe e minhas duas filhas. E o cachorro, o Capa. Não posso esquecer dele, (risos) é o meu protetor.
(01:55:06) P1 - Você comentou lá atrás que estava noiva e terminou seu noivado.
R - É. Aí eu fui noiva, lá atrás. Terminei meu noivado e vim para São Paulo. E aqui eu conheci o meu ex-marido, o Roberto. Conheci trabalhando. Nessa época, eu trabalhava na CCH e mais a comissão de curativo, pela estomaterapia. E eu montava tipo um simpósio… era jornada! Jornada de ferida no hospital. E aí eu trazia o pessoal dos postos para poder participar, alguns hospitais da região. E o Roberto, ele trabalhava numa empresa, e aí ele foi nessa... a colega dele da empresa era uma das palestrantes, aí ele foi. E a gente tinha uma amiga em comum também, a Cristiana. Aí ele foi, a gente se conheceu. Mas depois de um ano… foi quando a gente manteve, conheceu ali. Depois de um ano que a gente começou a namorar. Então foi tudo muito rápido. Namoramos, já casamos, já tive filho. Tudo assim muito rápido. Eu já tinha 37 anos, na verdade. E eu falei: “Não posso perder a oportunidade, (risos) então vamos lá”. Mas ficamos quinze anos casados e tivemos nossas filhas. Então, sou muito grata a ele por esses quinze anos de convívio, pelas minhas filhas. E, infelizmente, ou felizmente, o ciclo fechou ali. Mas somos, não vou dizer que somos amigos, mas a gente tem um bom convívio.
(01:57:12) P1 - Como foi ser mãe?
R - Ser mãe? Nossa, era a minha realização! Eu já tinha... quando eu tive o mioma, né, foi... eu vim pra cá em 1995. Eu acho que foi em... eu entrei em 1997, no odonto, acho que em 1998. Foi quando eu - 1998 ou 1999 - descobri que tinha o mioma. E como foi um mioma muito grande… o médico mesmo não falou isso pra mim. Ele falou: “Olha, agora já pode ter filho, que só foi a remoção do mioma, então foi uma miomectomia. Preservei seu útero, tá bacana”. Mas a minha colega, que morava comigo, enfermeira também no hospital, ela falava: “Não, ele falou que não ia poder ter filho”. E eu tinha aquela coisa comigo: “Poxa vida, eu quero ser mãe”. E aí, quando eu engravidei, eu falei: “Nossa, eu engravidei!”. Então, assim, pra mim foi um dos melhores momentos da minha vida. Vi a barriga crescer, falei: “Poxa, tô gerando”. Só que eu tive problema na gravidez: minha pressão começou a aumentar, e a minha filha nasceu de sete meses. Nasceu de sete meses, ficou internada quinze dias, mas logo ela se recuperou. E a segunda gestação foi uma surpresa, porque eu achava, com 37 anos, que eu só ia ter a Jamile. Eu já estava até fora do padrão, apesar de que agora as mulheres estão tendo bebê com 53, com 57, né? Tem a Cláudia Raia. E eu falei: “Bom, tá bom a Jamile, fui agraciada”. Seis anos depois, vem a Gabriela. Eu com 43 anos. A minha mãe quase morreu, porque ela desesperou por conta do primeiro. Ela teve que vir do Rio pra ficar comigo. E aí, quando eu engravidei da Gabriela, eu falei: “Mãe, eu não esperava. Pra mim, eu não ia ter mais filho. Agora, vamos embora, vamos tocar o barco”. Tive problemas novamente. (risos) Com seis meses, eu fui afastada do meu serviço e fiquei em repouso absoluto. Com seis meses, entrei de licença-saúde. E aí, quando eu completei sete meses, a Gabriela nasceu também. Só que o da Gabriela foi um pouquinho mais puxado. A Gabriela, eu... todas as duas são cesáreas. A Gabriela, o médico deixou uma artéria, ele não fez a anastomose, ele não suturou, não ligou e ficou babando e quando a equipe, a enfermeira, me levou pro banheiro, com muita dor, quando eu levantei, aquela PUF! Aquele sangue, as hemorragias, eu falei: “Gente, isso não está normal”. Na primeira cesárea saiu um pouco aquele tampão, mas é muito sangue! “Não, está normal. É impressão sua.”, “Não, não está normal”. E uma dor! E aí minha barriga começou a inchar. Não podia tocar! Aí eu falei: “Gente, eu estou com muita dor”. Aí uma madrugada, parecia que eu... parece que eu morri. Eu entrei num buraco, era um buraco negro e aí ali eu despertei e falei: “Meu Deus, onde que eu estou?”. Parece que eu voltei. Eu voltei e eu falei: “Gente, está acontecendo alguma coisa comigo”, aí eu desmaiei. Quando eu desmaiei, aí chamaram o médico. Aí chamaram o médico, ele falou: “Liga para o médico que operou”. Aí ele falou: “Não, entra com a medicação tal e deixa ela em jejum, porque ela vai fazer uma”... acho que foi uma ressonância que eu fiz. Aí me levaram de manhã cedo e aí viram que tinha uma artéria. Aí eu entrei com Síndrome de Hellp. Síndrome de Hellp é quando os órgãos vitais vão perdendo a sua função. Aí fiquei demasiada, fiquei bem… não foi fácil. E dona Gabriela, na UTI, que é prematura, aí ela teve também uma meningite e ficou 45 dias internada. Eu com uma semana falei: “Gente, não aguento mais ficar aqui. Eu vou enlouquecer. Me dá alta”, “Não, mas não…”, “Não, me dá alta, porque não aguento mais ficar”. Aí eu tive alta, mas fui me recuperando. E aí todo dia eu ia visitar a Gabriela. Aí um dia antes do meu aniversário, ela teve alta. Dia 21 de dezembro, ela teve alta. Aí eu trouxe ela para casa e passou o primeiro Natal conosco. Porque a minha preocupação [era]: “Meu Deus, vou passar o Natal no hospital”. Então, assim, sou mãe babona, mas brigo também. Mas sou bem babona! Minhas filhas são meu tudo. Até falei: “Filha, vocês não querem ir comigo [à entrevista]?”, “Não”, “Tá bom”. Então, ficaram estudando, porque o Jamile já está na fase de prestar vestibular. Mas é o meu, sei lá, meu sentido de vida. São elas.
(02:04:00) P1 - Você falou um pouco dessa coisa que ela está estudando já. E hoje, como é que é o dia a dia da casa?
R - Eu acordo às cinco e meia da manhã, porque eu sou daquela mãe babona, né, que faz o lanche natural. Faço o suquinho natural e faço o lanchinho. Então eu acordo às cinco e meia, aí chamo as meninas. Elas já deixam o despertador, mas muitas vezes não funciona. Aí chamo as meninas, elas vão se arrumar, né, não arrumo mais ninguém. Gabriela já tem uns três anos aí [que] já se arruma sozinha, então eu arrumava a Gabriela. E, com isso, eu estou preparando o café delas e mais o lanche da escola. E o transporte passa por volta das seis e quinze, né, ele está passando. Eu moro num sobrado, aí eu desço, vou levar elas até a porta, entregar ao tio Maxi. E aí volto, preparo o café da minha mãe, né, tomo meu banho - muitas vezes minha mãe ainda está dormindo -, e eu tenho uma moça que trabalha comigo. Geralmente eu já dou o café para minha mãe, enquanto isso ela está chegando. Aí eu já estou pronta e vou trabalhar. Chego por volta de umas seis e meia, sete horas [da noite]. E aí tomo meu banho, vou ver como é que está a janta. Muitas vezes dou uma melhorada na janta e vou ficar um pouquinho com a minha mãe, mas já caindo de sono. Dou uma estudada na religião, às vezes entro no Instagram para estar alimentando com algum conteúdo. Ou faço, muitas vezes, quando eu coloco minhas filhas na perua, volto, aí dou uma olhada no Instagram. Geralmente é Instagram, e no TikTok. Agora eu tenho o TikTok. Coloco algum conteúdo da religião. No meu Facebook eu coloco mais coisas minhas. E é isso. Aí, à noite, depois, eu vou descansar. Eu assisto um pouquinho de televisão e vou descansar. Então essa é a minha rotina. Final de semana, a minha rotina muda um pouquinho. Eu tenho um calendário da religião, da minha roça. Então quando tem função lá eu já saio cedo, vou para lá. Muitas vezes vou no sábado, volto no domingo. Ou vou no domingo, volto no domingo mesmo. Mas aí eu tenho a Lia que toma conta da minha mãe. A minha mãe não anda mais e aí ela toma conta. Então é assim, a minha vida, a Lia para mim é meu porto seguro. Então eu consigo fazer muita coisa porque eu tenho a Lia que me ajuda. Então quando eu preciso… hoje não, porque as meninas estão em casa. Então, não sei qual o horário, mas ela já deve ter ido embora, mas a Jamile está em casa, dá o remédio para a minha mãe, [aí é] tranquilo. Mas quando eu preciso de final de semana, então, ela está sempre disponível para ajudar. Aí também ou eu pago em dinheiro, ou eu pago em folga. Então deixo bem… não tem nada a ver com a função dela na minha casa, porque ela é registrada. Quando ela faz esse serviço para mim, de tomar conta, aí vira uma cuidadora, eu pago a parte ou dou em folga. Aí negocio com ela. Então é isso. Mas não deixo de fazer as coisas que eu quero não. Claro que eu não consigo fazer tudo, mas não deixo não. Amanhã mesmo estou na Alesp pela religião. Aí, uma das meninas vai ficar com a minha mãe. Então procuro sempre estar envolvida nos lugares, porque é uma coisa que me faz bem. Eu gosto de movimento.
(02:08:46) P2 - Você falou que as pessoas têm se solidarizado um pouco mais depois da Covid. Você contou um pouco sobre o projeto que você tem na casa, que é de apadrinhamento. Como é esse projeto?
R - O projeto surgiu antes da pandemia. Eu tinha uma necessidade de trabalhar com o social. Eu acho que é uma falha da minha religião em relação a esses projetos. Claro que tem muitos sacerdotes que trabalham com a sua comunidade, mas eu acho que a gente poderia estar fazendo mais. Eu sempre quis trabalhar com isso, levar não só alimento, mas a cultura também para a comunidade. Eu tive a oportunidade de ajudar uma mãe de santo lá em Salvador, que é a Gaiaku Sinay. Ela tem um projeto de distribuição de quentinhas para os moradores de área livre. Eu falei: “Poxa vida, eu gostaria de estar fazendo isso, mas eu não tenho estrutura para fazer, não tenho pessoas para me apoiar”. E não dá para você fazer sozinho. O que eu fiz? Comecei a ajudar, colaborava financeiramente com o projeto dela. Até que um dia juntei alguns filhos de santo e falei: “A gente precisa fazer isso. Eu estou ajudando uma mãe de santo que é lá de Salvador. E aqui em São Paulo?”, que a gente sabe, a gente vai na Praça da Sé. E agora, então, está espalhado, em todos os lugares você tem morador de área livre. E aí eu falei: “Vamos fazer aqui”, aí eu comecei a fazer quentinha. E assim, Facebook: “Gente, me ajuda aí [com] um quilo de feijão, um quilo de arroz”, então vamos. E consegui fazer o primeiro. Então eu fiz acho que três ou quatro vezes até que entrou a pandemia. Quando entrou a pandemia, eu falei: “Bom, não dá para a gente ir para a rua. Vou ficar muito exposta e também quem está junto comigo”. Eu falei: “Mas eu não quero parar”. Aí eu falei: “Bom, o que eu vou fazer? Eu vou começar a pedir os alimentos e vou distribuir cesta básica”. Só que aí já é um outro público, porque o morador não tem fogão: como que ele vai cozinhar? E hoje, a minha roça, que é ali no bairro Mato Dentro, em Mairiporã, o forte ali, a economia daquela região também ficou fragilizada com a pandemia, porque ali é pesqueiro, é pousada e as pessoas ficaram desempregadas. Aí eu falei: “Bom, então o que eu vou arrecadar, eu vou levar para Mairiporã”. Então, na época, eu cadastrei quase vinte famílias. Tinha mês que eu até distribuía mais, que era conforme o que eu recebia. E comecei a fazer isso. Então, praticamente, foram quase dois anos distribuindo alimentos. Só que concomitante, eu vi aquelas crianças de Mairiporã, eu olhava aquelas crianças e falava: “Meu Deus, eu preciso fazer algo para aquelas crianças”, porque os pais, sem condições, por conta [que] não tinham mais emprego, todo mundo desempregado. 90% das famílias que eu cadastrei, que eles trabalhavam ali mesmo. E as crianças, eu falei: “Eu preciso fazer algo”. Aí já estava próximo do Natal, eu falei: “Vou fazer um apadrinhamento de Natal”. Então eu cadastrei, o primeiro apadrinhamento, 35 crianças. Então eu fiz esse apadrinhamento. O que consta esse kit? É roupa, sapato e brinquedo. Então eu consegui apadrinhar 35 crianças. Esse já é o terceiro ano, o ano passado foi o terceiro ano. O segundo ano, eu apadrinhei cinquenta, e o ano passado eu apadrinhei setenta crianças. [Eram] só setenta crianças, [mas], na verdade, no dia da festa, tinham oitenta e poucas crianças. Então, tinham duas famílias que não conseguiram fazer, eles perderam o dia do cadastro. E também não me procuraram. Só que no dia da festa eles chegaram lá. E aí eu falei: “Meu Deus, e agora? O que eu faço?”. Cheio! Duas famílias cheias de criancinhas. E eu falei: “Mas não tem brinquedo, não tem roupa, não tem nada. Só a festa”. Aí eu conversei com as mães, e eu falei: “Olha, infelizmente não tem, porque todas essas crianças que estão aqui, elas fizeram um cadastro, então todos aqueles brinquedos que estão ali já têm dono, as sacolinhas já têm dono. Mas você se importa de você ficar, as crianças vão brincar, vão comer”, porque tinha muita coisa, bolo, refrigerante, sorvete, salgadinho, docinho. “Não, não, a gente vai ficar sim”. Só que aí, de repente, chegou a minha cunhada, que trouxe uma sacola, que uma amiga nossa da família mandou nove brinquedinhos avulsos, porque ela falou: “E se chegar alguma criança?”. Nove. E eu tinha, na verdade, entre as duas famílias, tinham doze ou treze crianças. Só que foi surgindo, foi surgindo, foi surgindo brinquedo que deu para dar brinquedo para todo mundo. Só não deu a roupa e o sapato. Eu acredito que para esse ano vai chegar a cem. Então eu tenho esse projeto, que eu chamo de Projeto Girassol, que é o apadrinhamento do Natal, e esse ano eu lancei o apadrinhamento de Páscoa. Então eu tenho 35 crianças, que eu ainda estou correndo atrás de padrinhos. Eu já tenho 22 crianças apadrinhadas, então já tenho, estou com a metade já apadrinhadas. Mas muitos já falam: “Márcia, eu quero. Estou esperando o pagamento”. Falei: “Está ótimo”. Só que eu tenho uma lista de espera. Tenho uma lista, porque eu tenho um grupo com as mães. E no dia da festa do Natal, eu falei para as mães: “Não saiam do grupo, porque provavelmente eu vou fazer outros apadrinhamentos”. Só que muitas saíram, e quando eu lancei, elas não estavam no grupo. Então eu falei: “Gente, como é uma coisa nova, e eu não sei se as pessoas vão aderir, então eu só vou manter as crianças que as mães estão aqui”, então foram 35 crianças. Só que o boca a boca, uma foi falando para a outra: “Olha, mãe Márcia vai dar chocolate”, e aí o meu telefone não para. “Mãe Márcia, não…”, “Não, por que você saiu do grupo? Agora eu vou colocar seu filho na lista de espera. Se eu tiver mais padrinho, aí eu vou comunicando”. Por quê? É o medo também de não conseguir e [não] se apadrinhar, porque só nesse grupo eu tinha setenta crianças. Setenta crianças. Então, assim, mais da metade não vão ganhar, infelizmente. Agora, se eu conseguir mais, é óbvio, eu vou chamando, e aí a gente vai distribuindo. Entendeu? Então, por enquanto, são esses dois projetos que eu tenho com criança. A princípio, eu queria manter a questão da cesta básica, mas eu tive algumas decepções com a cesta básica, com os adultos, e aí eu achei melhor direcionar o meu projeto com criança, porque criança é verdadeira, criança é espontânea: E eu falei: “Acho que o retorno vai ser bem melhor”, como é no dia do apadrinhamento. Nossa, aquela, você vê a alegria das crianças, o agradecimento, o reconhecimento. Hoje eu passo lá na comunidade, o pessoal: “Oi, tia Márcia!”. Nossa, isso me fortalece, sabe? E infelizmente com adulto, eu dava a cesta básica, eles vendiam a cesta básica, sabe? E aí é muito decepcionante. Mas, enfim, tudo que a gente faz, a gente também não pode pensar se vai dar certo ou não, acho que o que importa é a sua intenção, e minha intenção era essa: entregar a cesta básica para alimentar aquela família. Se ele vendia ou não, aí já não... então, eu tenho outros projetos que estão em mente com as crianças, mas eu preciso ter também estrutura. Eu ainda não tenho estrutura para desenvolver mais projetos. Então eu quero levar a cultura… uma coisa que foi muito marcante, eu sou associada… não sou associada. Eu participo também de um instituto, que é o Intecab São Paulo, e participo lá, uma participação bem singela, mas que já me trouxe um benefício muito grande. E ela também, a Ebomi Conceição, ela distribui alimentos, ela tem, já é fixo, toda a última terça-feira do mês ela distribui ali na rodoviária do Tietê. Inclusive, esse agora, dia 27, eu vou estar lá junto com ela doando sapatos. E ela, quando soube do apadrinhamento, ela falou: “Olha, Márcia, eu vou te dar os livros. Eu ganhei muitos livros, para você levar”. E aí, eu levei esses livros, deixei lá numa mesinha, que era para dar para cada um. E confesso, que eu até falei: “Será que eles vão querer ler?”. Nossa, foi uma surpresa para mim! Quando as crianças viram os livros, nossa, já foram pegando, sentando, já lendo. Eu falei: “Olha que bacana”. Então, eu quero levar também a leitura para eles; quem sabe um teatro, uma apresentação de teatro. Minha cabeça não para… ai, tem muita coisa para fazer.
(02:21:55) P1 - Deixa eu comentar um pouquinho… mas, fazendo o gancho com essa coisa da sua cabeça, que não para e tal, quais você acha que são os seus sonhos daqui em diante? Qual tipo de legado você gostaria de deixar?
R - Olha, o meu sonho hoje, na verdade, está ligado à minha religião. Eu acredito que da profissão, eu já colaborei com a profissão. Ainda tenho quatro anos para colaborar. Deixo um legado sim na profissão, [de] amigas enfermeiras que foram para a estomaterapia através das minhas orientações, do trabalho desenvolvido dentro da instituição. Então, hoje, eu não atuo mais na estomaterapia, mas nós temos a enfermeira Sidneia, que foi uma das que eu falei: “Você tem perfil, você gosta de lesão, vai lá, se especializa” e hoje ela está de frente na estomaterapia do Hospital Penteado. Inclusive vai participar de um congresso internacional, levando um trabalho do Hospital Penteado. Então deixo sim um legado. Do controle de infecção, também deixo. Tem a enfermeira Eliana, que passou comigo, hoje continua lá na comissão de curativo, desenvolvendo o trabalho dela. Agora, a religião ainda, para mim, é um desafio, apesar de ter 22 anos de iniciada, mas… tenho filhos iniciados, mas hoje não estão comigo, cada um com seus motivos. Você construir uma casa de candomblé não é fácil, você não administra sozinho, você precisa de ter várias pessoas ao seu redor e pessoas que estejam na mesma sintonia que a sua, no caso do sacerdote, que enxerguem a religião com os mesmos (primas?) e com os mesmos objetivos. É difícil. Hoje eu tenho junto comigo o meu ogã, que é o ogã Avni, que é o alabia da minha casa, ele é meu parente, é meu primo, e eu tenho a minha filha, a Jamile também, que é iniciada, como também é o meu braço direito. Tenho o ogã Cauê, que tem oito anos, que é o bajigan da minha casa, já tem uma missão grande dentro da casa. A minha filha Gabriela ainda não despertou para a religião, então eu espero que um dia ela desperte, que ela também é iniciada. E eu estou aos pouquinhos montando a minha família de axé. Eu tenho alguns filhos no Rio, mas não estão aqui próximos. Quando eu faço algo maior, aí eles vêm para cá. Mas a casa de santo não pode funcionar a cada três meses, uma casa de santo tem que funcionar, de preferência, todos os dias. Hoje eu não tenho essa disponibilidade, porque eu ainda trabalho. Então, por isso que eu falo que o que eu enxergo para o meu futuro é a minha casa de santo, é eu me dedicar à minha casa de santo. Depois que eu me aposentar, é óbvio. Hoje, eu contribuo pouco com a casa. Eu poderia estar muito mais. Uma que é a distância também, acaba favorecendo isso. Eu moro na Freguesia do Ó e a roça é em Mairiporã, então é distante. Mas eu procuro ir pelo menos duas vezes no mês lá, ou até dou uma passada. Vou lá ver como é que está. Mas função mesmo, duas vezes no mês e isso é pouco para quem está começando. Isso é bom para quem já tem a sua estrutura, mas quem não tem: é o dia a dia. Porque as pessoas vão vendo: “Olha, ali tem uma casa de santo, eu preciso de um auxílio, de uma orientação”. Então, hoje, eu ainda não consigo fazer isso. O que eu projeto para o meu futuro é a minha casa de santo bem estruturada, com os meus filhos. Eu sempre falo: eu não quero quantidade, eu quero qualidade. É óbvio que cada um tem a sua personalidade, mas que venha para somar. Todo mundo tem seus problemas, isso é natural - seus defeitos -, mas que venha para somar. E é isso que eu pretendo. Quando as minhas filhas estiverem, Jamile, se Deus quiser, no ano que vem, já vai estar na faculdade, a Gabriela vai demorar um pouquinho, mas quando elas estiverem já pegando o rumo, eu pego a minha malinha e vou morar em Mairiporã, entendeu? Porque eu adoro lá, sabe, é pé no chão, ar puro, você acorda com o som dos pássaros, é borboleta passando para lá, para cá. Quer dizer, a gente não tem isso na cidade. Tem tudo que é tipo de bicho, tem cobra, tem sapo, tem tudo, (risos) mas dá para conviver. Então é isso, o meu futuro é a minha religião. E aos pouquinhos eu acho que estou fazendo uma boa caminhada para chegar onde eu quero. Aos pouquinhos. Sabe, eu nunca tive pressa na minha vida, nunca. Nunca fui… “Ai, não quero fazer isso assim”, eu sempre procurei fazer no momento certo. E claro, sempre de olho em tudo, observando os sinais, as oportunidades. E as coisas estão fluindo. Então, acho que é isso. Para o futuro, é a minha casa, é a minha religião. É deixar um legado na minha religião, que é uma religião que eu amo de paixão, é uma religião que as pessoas têm muita discriminação, porque as pessoas não conhecem a religião. Então, as pessoas... gente ruim tem em todas as religiões, mas a essência do candomblé é de uma grandeza muito grande - olha a redundância -, de uma grandeza, de uma beleza. E é isso. Eu, quando entrei no hospital, eu ainda não era iniciada, só que eu já tinha, já sabia o que eu queria. O sangue de candomblecista já corre acho que desde o meu nascimento. E aí eu comecei a observar algumas pessoas no hospital com alguns preconceitos. E, até então, algumas sabiam que eu frequentava, mas não era iniciada. Quando eu saí, para me iniciar, eu tinha o cabelo por aqui, todo enroladinho, e eu voltei simplesmente careca. Então, foi um boom no hospital: “Márcia, o que aconteceu?”. Para alguns eu falei, para outros eu omiti, falei que tinha passado um produto, porque eu faço permanente afro, e tinha caído. Só que, com o tempo, aquilo começou a me incomodar, essa negação da religião para algumas pessoas. Eu falei: “Ué, espera aí. Se você foi lá, fez seu santo, e você se diz candomblecista, como é que você vai falar para a pessoa que você caiu seu cabelo? Ou você é ou você não é. Então, você não tem que se esconder. Você está renegando o que você passou e a sua ancestralidade”. Então, a partir daí, eu comecei a falar: “Não, eu fiz santo”, “É o quê? Você fez santo?”, “É sim, fiz santo”. E assim foi. E hoje, o hospital - como eu falei, eu tenho 22 anos de iniciada - todo sabe que eu sou candomblecista, que eu tenho uma casa de santo. Fiz feijoada, um pagode com feijoada para levantar um dinheiro, os evangélicos foram, comeram da feijoada. E de boa, por quê? Porque eu sempre passo para eles a essência da religião. E muitos já bateram lá na minha porta pedindo uma receitinha de banho, e eu dou numa boa: “Você vai fazer isso, isso, isso”. Entendeu? Então, é isso. A religião, para mim, candomblé, faz parte da minha vida. E é esse legado que eu quero deixar para os meus e aqueles que me cercam: conhecer realmente a essência do candomblé. Amanhã estarei na Alesp, que nós ganhamos. Dia 21 de março é o dia... a partir desse ano é o Dia Internacional da Matriz Africana. Então, vou sair mais cedo, já comuniquei a minha diretora. Estarei lá na Alesp para vibrar essa vitória, porque cada dia é uma vitória.
(02:33:39) P2 - Você queria finalizar com alguma palavra, algum agradecimento, alguma coisa?
R - Eu só tenho que agradecer. Eu tenho que agradecer a minha vida, agradecer a todos aqueles que me cercam, agradecer aos meus pais, todas aquelas pessoas que passaram por mim, aquelas que estão e aquelas que vão estar junto comigo. Eu falo que eu sou uma pessoa abençoada. Problemas, todos têm, mas eu acho que eu tenho o mínimo do mínimo do mínimo do problema. Eu tenho mais benefícios, mais riquezas na minha vida do que problemas. Então, eu tenho família, eu tenho profissão, eu tenho uma religião. Quer dizer, eu tenho tudo. Então, é isso: gratidão. Gratidão pelas oportunidades que estão surgindo, umas surpresas que estão entrando no meu caminho, inclusive essa, de estar aqui falando um pouquinho de mim, da minha história. E é isso. É o universo conspirando sempre a favor. É o universo conspirando sempre a favor. Agradeço às minhas entidades, meus guardiões, a minha mãe Oxum por toda essa abertura, esse caminho que ela está traçando para mim. E eu sou grata. Agradeço imensamente a vocês por essa oportunidade de estar aqui. E agradecer ao universo. Gratidão, gratidão, gratidão.
(02:35:31) P2 - Gratidão a você por deixar a gente ouvir um pouco da sua história, a gente se entregar e fazer parte desse contexto. Obrigada de verdade pela oportunidade. Obrigada.
R - Eu que agradeço, gente. Vocês não sabem o quanto esse momento de estar falando da minha vida, porque a gente não para para pensar esses 55 anos, quantas coisas que a gente passa, quantas coisas que eu passei para estar aqui hoje contando um pouco da minha história. Sem palavras. Gratidão.
(02:36:28) P1 - Você comentou um pouquinho, mas como foi para você contar a sua história hoje e relembrar esses momentos?
R - Olha, emoção, né? Eu me controlei bastante para não chorar, porque é um resgate. E aí estou contando a minha história, veio a imagem da minha avó, a imagem do meu avô, a imagem do meu pai. São pessoas que não estão mais aqui. Do meu tio Ivan, do meu tio Dirceu. Me fez lembrar de quanto a minha família era volumosa e hoje é a minoria, mas é o ciclo da vida, né? Eu sou a neta mais velha e eu sou tipo mãezona. É engraçado que os meus tios, quando eles queriam fazer alguma coisa, ligavam para mim para perguntar o que eu achava. “Eu sou pequenininha perto de vocês, vocês são meus tios”, e eu aprendi isso na terapia. Sou muito grata à terapia, que me abriu muito essa minha consciência. Aprendi muito. Mas por quê? Porque eles me têm como uma pessoa muito forte, e eu não sou tão forte assim, tenho minhas fragilidades. E aí me fez relembrar a minha infância, correndo ali pela rua, caindo, me machucando, sendo acolhida pelos vizinhos. Lembrei do quintal da minha casa com muita gente, meus primos, porque eu sou filha única, mas morava o meu tio Wilson - que é mais novo, mas a gente foi criado como irmãos -, meus primos Marcelo, Márcio e Renata. Então o quintal era grande e a gente brincava ali. Família, meus tios casaram, estão nas reuniões, aquele quintal cheio. E ontem, a minha tia Ivone, essa que eu sou muito ligada, teve um problema de saúde. Minha prima me ligou dizendo que ela não estava bem. E essa minha prima tem uma filha, ela é solteira e mora com o meu tio, marido da minha tia Ivone. E ela me ligando, falando: “Nossa, não estou aguentando”. Eu falei: “Mas você tem mais dois irmãos. Você não pode segurar tudo para você, você tem que dividir. Eu não posso, porque eu sou filha única, mas você tem dois irmãos, então você liga para eles”. Mas eu não aguentei, eu liguei. Quer dizer, não liguei, mandei uma mensagem. Não demorou muito, os dois me ligaram: “Márcia, eu estou indo para lá”. E o outro: “Márcia, eu estou trabalhando, só saio às 22 horas”, “Ok”. E eu falei para eles: “Gente, vocês hoje são poucos, (choro) então vocês têm que se unir, porque hoje, nessa casa aí, só tem cinco pessoas”, porque os meninos casaram e cada um foi tocar a sua vida. É o natural, é o natural. O importante é uma convivência boa com todos. Então, esse choro é de saudade, de saudade. Ai, não é fácil, não. (risos) Não é, não é. Não é fácil, não.
(02:41:42) P2 - Fique à vontade para falar o que você quizer. _____, mandar um beijo para alguém, alguma coisa. A última coisa que eu você queira falar, que saia na entrevista.
R - Não, é... Só tenho que agradecer, como eu já falei. Mandar um beijo para todos, para toda a minha família, minhas filhas. Amo de paixão. Acho que uma coisa bem importante é a família do meu ex-marido. Nós nos separamos, mas não me separei da família, então eu tenho eles como a minha família. Me acolheram, me acolhem, não largam minha mão. E eu já falei também que eu não largo a mão deles. Então eu acredito que é uma ligação espiritual com todos eles. Então, minha gratidão a toda a família. Família Castro, família Pádua, todos, todos que fazem parte da família, que tem vários agregados também na família. E é uma relação muito bonita, é uma relação muito sincera, muito rica essa relação com a família. Eu não me sinto sozinha em São Paulo. Apesar de ter uma prima aqui, mas o meu suporte é a família do meu ex-marido. O que eu precisar, eles estão ali à disposição. Então, tenho muito que agradecer a cada um da família. E um beijo para todos!
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