Projeto Kombiiblioteca
Depoimento de Robinson de Oliveira Padial (Binho)
Entrevistado por José Santos e Jonas Worcman
São Paulo, 16/04/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV003_Robinson de Oliveira Padial (Binho)
Transcrito por Mariana Wolff
P/1 – Binho, então bom dia. Eu queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome? Me chamam de Robinson que diz que quer dizer filho de Robin, mas o meu pai se chamava Joaquim. Robinson de Oliveira Padial.
P/1 – Data e local de nascimento.
R – Nasci ao acaso, no Taboão da Serra, pertinho, era o único lugar ali perto do Campo Limpo que tinha uma maternidade. Taboão da Serra, São Paulo, e foi no dia 27 de novembro de 1964 da era cristã.
P/1 – E qual o nome dos seus pais e qual a atividade deles?
R – Como eu disse, o meu pai se chamava Joaquim Antônio Padial. Minha mãe chamava Hilda Vasconcelos de Oliveira Padial. E a minha mãe trabalhava no hospital, acho que era auxiliar de enfermagem, antes de conhecer o meu pai e o meu pai, ele era mestre de obra, depois foi farmacêutico, foi o primeiro farmacêutico do Campo Limpo, meu pai teve a primeira farmácia do Campo Limpo, não sei se foi o primeiro farmacêutico, mas a primeira farmácia do Campo Limpo meu pai que teve.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho vários! Dentro de casa e fora, extra. Meu pai gostava de namorar.
P/1 – Sei. E você contabiliza então, quantos irmãos?
R – Acho que somos 15 por aí, eu não sei ao certo, né? Assim, em casa, meu pai com a minha mãe são cinco e aí teve os bônus.
P/1 – E você conhece os outros também?
R – Vários! Moraram em casa uma época. Foi meio (risos)… era interessante.
P/1 – Família grande, hein?
R – Um dia chegou um rapaz lá na porta do meu pai e ficou rondando, rondando ali no Campo Limpo, no campinho, ali e esperando o meu pai, que só chegou de tarde, à noitinha. Ele chegou e bateu na porta, ficou esperando, aí quando o meu pai desceu do carro, falou assim: “Oi, boa noite, eu sou fulano de tal, sou Gino, sou seu filho” (risos).
P/1 – E os seus avós, você chegou a conhecer?
R – Eu conheci… não todos, né? Eu tenho um avô que era de raízes mouras aí de Granada, Espanha, não conheci, que era o pai do meu pai. Agora, por parte da minha mãe, avô Pedro, ele morreu quando eu tinha acho que oito anos e foi velado em casa, coisas que hoje não acontece mais nada disso, então para uma criança, aquilo foi um choque ver o seu avô ali, no caixão. E a minha avó também, que era indígena, minha avó Maria, por parte do meu pai, por isso que eu brinco lá que eu me defino árabe, espanholafro, atlante-indígena (risos).
P/1 – E você passou a infância no bairro do Campo Limpo, é isso?
R – Nasci, passei a infância lá.
P/1 – Você podia descrever então, como era o Campo Limpo da sua infância?
P/2 – Fala aquele… Tem um poema que descreve…
R – Posso falar em poema. Agora, depois eu até…
P/1 – Fala em prosa e aí depois…
R – Mas o poema é mais bonito, cara, do que prosa. “Campo Limpo, Taboão”: “Quando nasci, tinha seis anos; No lugar em que nasci, sonhava que era tudo nosso; Tinha os campinhos e os terrenos baldios; Era meu território; Já foi interior; Hoje periferia com as casas cruas; As vacas com tetas gruas não existem mais; A cerca virou muro. Óbvio; A cidade cresce; O muro cresce; Vieram os prédios, as delegacias, os puteiros e as Casas Bahia; Também cresci, fiquei grande; Já não caibo dentro de mim e de tão solitário sou meu próprio vizinho; E de tão solitário sou meu próprio vizinho.”
P/1 – Lindo o poema! Uma boa descrição. O Binho, você consegue descrever como era a casa da sua infância?
R – Consigo! Então, quando eu tinha seis anos no poema, é porque a minha irmã… é mentira, eu tinha cinco, depois eu fui fazer a conta certa, é que poeticamente ficou melhor seis. Mas eu nunca fui bom de matemática também (risos) e a minha irmã ganhou uma vitrolinha, isso em 69. E aquilo marcou a minha vida, marcou ali, dali para trás, eu não consigo lembrar nada, mas aquele fato que se deu um dia, como o Guimarães fala: “Foi um fato que se deu um dia”, o primeiro. Aquele foi o primeiro. Aquela vitrolinha, aí eu lembro dali, daquele aniversário que a minha irmã fez. E o poema termina “de tão solitário sou meu próprio vizinho”, que a minha sobrinha, a Raíssa estava brincando com a Naiana, com a minha filha e eu ia passando assim no quarto para o banheiro e elas estavam brincando de boneca. Aí eu ouvi ela falando assim: “Naiana, como já se viu? Como você vai ser o seu próprio vizinho?” “O quê?”, pensei: ‘essa frase é muito boa, cara!’, aí eu guardei a frase e depois uns anos ou mais tarde, sei lá, eu fiz esse poema aí. Mas faz a pergunta de novo, porque eu…
P/1 – Então, a partir dos seis anos, como é que era essa casa da sua infância?
R – Então, dessa casa, eu consigo lembrar que tinha um quintalzinho, ela ficava na Estrada do Campo Limpo, ali, onde foi; a imobiliária do meu pai foi lá e a farmácia também. A farmácia foi antes, depois teve uma imobiliária. E que hoje é a Casas Bahia, olha só que (risos), onde era isso hoje é Casas Bahia. Então, tinha espaço, eu lembro que não tinha asfalto e era na Estrada do Campo Limpo, mesmo. Depois, a outra casa eu lembro da casa que estava construindo, então, a gente ia às vezes lá e tal. E dessa casa eu lembro mais que a gente mudou para lá também. A gente mudou… poxa, eu acho que foi em 69 mesmo que a gente mudou para essa casa. E dessa casa eu lembro mais que tinha muito espaço ao redor da casa, tanto é que a gente tinha galinhas, criava bode, coisas simples, tinha uma cabritinha, tinha um campinho na frente que era esse campinho mais ou menos que eu falo aí. Então, tinha muito espaço, tinham árvores, eu lembro que a minha infância meio que acabou quando cortaram um pé de abacate que a gente brincava nele e pé de abacate é perigoso, quebra fácil, não é igual ao pé de goiaba que é forte. Então, os moleques sabem todas essas manhas de onde vai subir e onde vai descer. Então, a gente tinha essas brincadeiras ali, que ficava muito à vontade, era uma periferia ainda muito tranquila, muito afastada, mesmo. Hoje é afastado, imagina naquela época o que era! Então era uma infância boa, que o riozinho ainda era rio, né? Ele continua lá, ele está vivo. O rio está lá ainda. Ele está vivo, ele não se perdeu, só que a gente não cuidou dele, não está cuidando, mas um dia pode ser um rio de novo. Ele está lá.
P/1 – E quais eram as suas brincadeiras favoritas quando você era criança?
R – Quando eu era criança, era jogar bola. Eu gostava muito! Porque tinha um campinho em frente de casa, então tinha muito espaço para a gente poder usufruir daquilo tudo ali, então o foco mesmo era a bola. Eu sempre gostei de jogar bola, mas empinava pipa, brincava de pião, de bolinha de gude, essas coisas, mas o que eu mais gostava e corria muito também, tinha muito espaço, muitas árvores, muita coisa. Mas o foco era a bola, eu gostava mesmo.
P/1 – E você jogava de quê?
R – O campo era pequeno, não tinha muita posição, não, andava, às vezes, até de goleiro. Então, ficava para próximo, tinha essas coisas, às vezes, na solidão do campo, voltava da escola, não tinha ninguém para brincar, outros que as mães não deixavam, naquele dia não tinha ninguém, era de gol a gol. Isso também era uma brincadeira muito legal. Então essa era uma brincadeira que quando tinha pouca gente, praticava o jogo quase solitário.
P/1 – E quem eram os seus amigos?
R – Como assim? Eram os meninos da rua, de que a gente visitava, íamos um na casa do outro, era muito mais solto antes, não tinha esse medo da rua que tem hoje. A gente vivia na casa dos amigos, os amigos vinham para casa, molecada… era mais socializada a coisa, hoje parece que está muito restrito muita coisa, cada coisa individual… e na época tinha o dono da bola, mas a bola também era para todo mundo, né? Fazia até vaquinha para se comprar uma bola, para fazer alguma coisa.
P/1 – Quem eram os seus heróis assim, os seus modelos?
R – Na época assim, o meu pai era o meu herói, né? O meu pai, ele começou a fazer, na época, em 60 e alguma coisa, ele começou a filmar, rapaz, ele teve uma época que ele teve um dinheirinho. Aí ele ia começar a fazer um filme, chamava “Mestiço, o Zorro brasileiro”, isso em 60 e pouco. Aí ele começou a ganhar dinheiro com esse negócio de construção que ele começou a fazer umas casas e tal, e aí ele inventou esse negócio aí e tal. E era muito boêmio também, gostava dessas coisas, então ele ia para esses caminhos, né? E o meu pai era herói, muita gente no Campo Limpo lembra dele andando a cavalo, à caráter, ele botava uma mascara do Zorro, botava um revólver e tal, saía pelo bairro. Muita gente conta essa história ainda. Então aí eu começo a olhar para trás e penso: “Puta, como tem coisa do meu pai em mim”, das loucuras de fazer as coisas que ele acreditava, né? Então tem muita coisa do meu pai em mim. Gostava de tocar uma viola, cantar, então…
P/2 – Música nordestina?
R – Não. Ele gostava de música… porque ele era do interior de São Paulo, música raiz caipira. Gostava de música de raiz, então eu ouvi… cresci ouvindo as músicas do meu pai, a gente sempre cantava. Ele sempre gostava, reunia os amigos, a família, quem tivesse. Era uma casa era muito aberta, lá em casa era uma coisa muito aberta, cara. Então, era uma relação assim… e a minha mãe gostava que os amigos vinham para casa, tinha essa liberdade de trazer as pessoas para casa, então era uma casa muito movimentada, muito frequentada de gente, assim.
P/2 – A família tinha uma religião?
R – A minha mãe era católica. Ela levava a gente para a Igreja. A minha mãe tinha, era muito… ela seguia muito assim, a religião.
P/1 – Binho, vamos falar de histórias. Você ouvia historias dos seus pais quando pequeno?
R – Eu ouvia, mas a minha memória é fraca, mas a gente foi criado à base de histórias, né? Eu lembro de um tio que vinha do interior e a gente adorava quando eles se reuniam, a família, porque contavam essas histórias, histórias de assombração, que para a gente era de assombração, que eles viam coisas, cavalos e não sei o que… agora eu não lembro, mas eu lembro que aquelas histórias eram impactantes para a gente, era uma coisa muito boa de viver aquilo e contava a história do trem, da Sorocabana que eles viajavam. Histórias deles, mas isso, infelizmente a minha memória… acho que eu consumi muito flúor e a minha memória, acho que ficou muito… flúor e alumínio, acho que destruiu um pouco, eu preciso recuperar.
P/1 – Mas então havia o costume das histórias e você lembra assim, os primeiros contatos que você teve com livro? Foi na escola, foi em casa?
R – Em casa, a minha mãe sempre… pô, a minha mãe sujou o nome dela para comprar aquela enciclopédia Barsa, cara, coitada, não aguentou pagar, sujou o nome. Então, a minha mãe que iniciou, depois ela comprou a coleção do Jorge Amado, e aí eu lembro que quando… pra gente ter acesso ao livro, tinha que vir aqui em Pinheiros, em uma biblioteca que tinha aqui, onde é a Cetesp, ali, não sei se ainda tem essa biblioteca. A gente tinha que vir aqui. Aí eu lembro que eu peguei um livro, era infanto-juvenil ainda nessa época, devia ter uns 12 anos, 11, talvez “O Segredo de Taquara-póca”, até outro dia, encontrei esse livro, eu falei: “Poxa, precisava ler”, porque eu não lembro quase nada, mas eu lembro do título do livro e eu li, do Monteiro Lobato, né? Aí depois, com 13 anos, eu já trabalhava com o meu pai, meu pai tinha uma loja de vender madeira, porta e janela. Então, aí eu lembro disso, que eu ficava na loja lá, ajudando o meu pai e eu levei esse livro, “Capitães de Areia”, e para mim foi uma porrada: “Como é que pode estar escrito palavrão no livro?” Aquilo foi muito forte para mim. Então aquilo foi ali, deu uma chacoalhada na estrutura e de ver que mundo vibrante tem na literatura, esse outro mundo que a gente, às vezes, não participava, que se passava na Bahia do “Capitães de Areia”, mas o livro começou a impactar. Depois, mais tarde um pouquinho, eu tinha 16 ou 17 anos, a minha irmã estava fazendo faculdade de Psicologia e ela trouxe um livro do Wilhelm Reich, chamava “Escutas a ninguém”, aquele outro livro que também… aquele outra porrada assim, de falar: “Meu Deus, o que é isso?”, um livro que acordou, é um despertar, você vai despertando aos poucos (risos).
P/1 – Mas vamos…
R – Ninguém desperta quando já está acordado, só. Vai despertando…
P/1 – Você disse que essas foram suas primeiras leituras, e os seus primeiros escritos?
R – Eu comecei ler com o futebol, que eu gostava. A minha mãe comprava o “Diário Popular”, então eu queria saber do meu time, que na época era o São Paulo, hoje eu não torço para time nenhum. Para empresa nenhuma, né? Aí eu lia o negócio e tinha lá, o Lourenço… tinham as crônicas do Lourenço Diaféria e tal, eu não lembro de nenhuma assim, mas eu lembro que eu lia as crônicas. Eu comecei ler e aí eu comecei a ler o jornal inteiro, a partir da leitura por causa do futebol, eu comecei a ler, isso foi me interessando mais pela leitura.
P/1 – Não, mas os seus escritos.
R – Não… escrito mesmo não tinha. Eu vim escrever agora, em 95. Depois da biodança, curso de biodança que eu fiz, numa aula de criatividade, que ai eu comecei a despertar. Sempre gostei de ler, mas escrever mesmo, veio mesmo a partir de 95.
P/1 – Então, vamos voltar aqui, vamos falar um pouquinho de escola. Você estudou lá no Campo Limpo, mesmo?
R – Estudei no Campo Limpo, numa escola que se chamava… olha como é… Presidente Kennedy, como o colonialismo está aí até hoje, vibrante.
P/1 – E como foi, tinha algum professor que te marcou, como é que foi o seu período de escola?
R – Teve a primeira professora que era a Marli, a professora no primeiro ano. Foi muito gostoso, daquelas carteirinhas que você sentava em dois, né? E essa escola é onde é hoje o terminal Campo Limpo. Você fazia a primeira série ali, depois você subia para fazer segundo, terceiro, quarto ali na outra parte da escola, que a escola era em dois lugares. Então, o caminho da escola era legal, porque você passava ali, cruzava a estrada do Campo Limpo, naquela época, era estrada de terra ainda, isso foi em 72 e você atravessava, ia todo mundo para a escola caminhando, então você percorria ali… e aquele percurso da escola que a gente… vai, da minha casa lá, eu passava por esse abacateiro, passava por uns trechos, aí tinha uns eucaliptos, as amoras no meio do caminho, que a gente lembra para chegar na escola. Aí era todo um processo até chegar na escola, os amigos que ia encontrando pelo caminho e tal. Então, hoje não tem mais, chega todo mundo de carro, chega tudo de perua escolar e tal. A rua se tornou esse medo que está ai. É diferente, é diferente, não sei. Eu acho que é pior, não é melhor, eu acho que é pior.
P/1 – E Binho, então, você ia a pé para a escola, caminhando, você tinha ai essa turma, todo mundo estudava junto. E você fez o quê? Primeiro e segundo grau no Campo Limpo?
R – Foi. Foi ali, primeiro e segundo grau nessa escola, no Kennedy.
P/1 – Sei. A palavra que a gente mais fala aqui é Campo Limpo, então…
R – Porque eu nasci…
P/1 – Claro! Então, para a pessoa que depois vai ver o seu depoimento, que não é de São Paulo, conta um pouquinho o que é o Campo Limpo dentro do contexto de São Paulo.
R – O Campo Limpo era um bairro que antigamente era no subdistrito de Santo Amaro, aí depois, veio a nova formatação da cidade, ele se tornou um bairro populoso, que engloba até… tem as divisões da subprefeitura, o Capão Redondo também, uma parte dele está dentro do Campo Limpo, por exemplo, então ele é grande, é um território… eu não sei quantas pessoas moram no Campo Limpo, mas é muita gente, é um bairro, tem muitas favelas, ainda e é um bairro bem populoso. Eu não sei hoje a quantas estamos ali. E é um bairro de periferia de São Paulo, ele é colado no Morumbi, tem até alguns que dizem por exemplo: “Morumbi Sul”, a expansão imobiliária, eles dizem Morumbi Sul, mas na verdade, é Campo Limpo, só que os caras para venderem, é mais bonito falarem Morumbi Sul do que você ter o rótulo de Campo Limpo numa estampa imobiliária para vender um apartamento, alguma coisa assim. Então foi se estendendo, o Morumbi foi empurrando o Campo Limpo (risos), mas na verdade, é Campo Limpo.
P/1 – Então, quem mora no Campo Limpo são mais trabalhadores, o perfil da população em termos de trabalho é…
R – No começo ali era assim, interessante, tinha uma colônia japonesa, tinha uma colônia italiana muito forte, os portugueses, então era bem forte e depois, veio mais os nordestinos, pessoal do Nordeste… hoje, acho que é um bairro mais de nordestino, se você for pegar, ou gente que já nasceu aqui, mas que os pais eram nordestinos e tal. Hoje, ele está bem misturado, é bem Brasil mesmo, e de trabalhadores, com certeza era um bairro dormitório, porque lá não tinha nada. Tinha uma indústria química que envenenava o riozinho que a gente tinha lá, muito forte, ninguém aguentava aquele cheiro daquele rio, aquele fedor, vai saber os venenos que jogaram nesse rio, a quantidade de coisas tóxicas que a gente…
P/2 – Era extração química?
R – Era uma indústria química, então eu não sei o que… tinta depois, virou uma coisa horrorosa e aí tinha uma indústria que chamava Metafil, basicamente era isso assim, naquela região ali. E então, não tinha, era um bairro mais de uma população ali que estava para servir mesmo, veio trabalhar, tanto é que as linhas não se comunicavam, eram só centro–bairro, centro–bairro. Não existe quase… mesmo até hoje, os bairros não se falam, parece que é uma politica mesmo de… só tem uma via.
P/1 – Entendi. E falando de trabalho, você disse que você começou a trabalhar cedo, né?
R – Eu trabalhava com o meu pai carregando porta, era moleque e com 13 anos, eu já estava trabalhando, com o meu pai. Aí depois, eu consegui… aí já com 15 anos, eu fui trabalhar numa empresa de office-boy porque as coisas com o meu pai já não estavam legal também, o trabalho dele, aí eu acabei arrumando um outro trabalho.
P/1 – Que era o quê?
R – Era office-boy.
P/1 – Era um office-boy de rua ou mais interno?
R – Interno. Trabalhei numa empresa, mas não quero falar o nome dela, então…
P/1 – Claro! E depois? Como a sua vida segue?
R – Aí então, teve a fase da adolescência, aí eu já estava estudando à noite…
P/2 – O que você queria estudar assim, na época, você tinha sonho?
R – Não tinha, porque você não conseguia ter muito sonho, olha que louco, na periferia você não tem… até isso era muito imitado, não tinham faculdades assim, hoje você fala: “Vou fazer uma faculdade”, porque trabalhava e estudava. Eu queria fazer medicina, mas eu achava que não dava, aí eu falei: “Vou dar um tempo, vou começar a estudar e tal”, mas o ensino noturno numa periferia, você trabalha o dia inteiro e ainda você queria fazer medicina? (risos) É sonhar mesmo! Era ser muito difícil, porque 50 para uma vaga, como é que você vai ter condições de ter essa… então, realmente não tinha a base para isso, faltou a base, para poder fazer essa faculdade. Então, eu acho que… pergunta aí porque senão, eu me…
P/1 – Você está na adolescência, a gente esqueceu essa coisa importantíssima que é você começa a conhecer as meninas, você começou a namorar cedo?
R – Não, acho que fui… não comecei a namorar cedo, naquela época demorava um pouco mais para namorar. Não sei, eu, pelo menos… mas dava uns beijinhos, tinha umas aproximações, tinha… gostava, claro (risos), testosterona, né?
P/1 – Pois é!
R – Estava a mil naquela época.
P/1 – E aí, Binho, antes da gente ir para essa fase adulta, você disse então que o marco da sua memória é a vitrolinha da sua irmã…
R – Certo.
P/1 – Conta mais dela aí porque hoje em dia o jovem não sabe o que é uma vitrola, não sabe o que é disco, é tudo diferente. Por que ela te marcou?
R – É porque a vitrolinha, você colocava um compacto, o disco chamava compacto, que eram os pequenininhos, tem os vinil que é o grandão, os bolachão e tinha os compactos. E aí você colocava aquilo e devia ter… eu lembro de historinhas, de coisas… eu lembro também…
P/1 – Os discos coloridos de historinhas, né?
R – Coloridas de historinhas, isso é importante, imaginação da criança, de você ter esse mundo dos sonhos, do encantado, de outras realidades, né? E aí eu lembro dessa vitrolinha. Então, ela foi importante para mim, acho que por conta do que ela trazia, além da música, mas os disquinhos que contavam as historinhas. E depois, eu lembro também de ter ouvido poesia, algum disco de poesia, não sei se foi do Carlos Drummond também…
P/1 – É porque tem, nessa época tinha, porque a gente tem quase a mesma idade, então tem isso, tinha disco do Drummond, Ferreira Gullar e Vinicius.
R – Olha, que coisa boa…
P/1 – Então, você ouviu o Drummond com aquela voz de taquara rachada dele?
R – Provavelmente eu ouvi. Eu lembro disso. Eu lembro, mas eu não sei em que ano foi, não sei se foi na vitrolinha ou não, porque depois, meu pai comprou um stereo Philips, que era uma caixa de som, deve ter pagado uma fortuna na época, assim, era uma coisa… ficava até no quarto dele, né? (risos) Eu lembro do meu pai, ele atendia assim, porque a casa era marcenaria, onde ele construía as portas, janelas, montava, e aí chegava caminhão de batentes, imagina, de batentes de peroba, cara, olha só! E a gente ajudava, o meu pai foi um dos que ajudou a destruir a floresta do Paraná e do Paraguai (risos), contribuindo para… para as casas nas periferias, né? Ele passou de mestre de obras, depois, acho que ele gostou da coisa e foi fazer… porque ele quebrou na época das inflações altas pra caramba, ele não sabia administrar, tinha a mulherada também (risos), lógico, né? E o meu pai acordava muito tarde. Então, eu lembro que uma vez, ele recebeu um fiscal no quarto dele, cara! (risos) Fiscal da Fazenda que ia lá, certo para receber algum, lógico, mas o meu pai recebeu o fiscal na cama, cara, sempre foi assim. Meu pai era muito assim, nesse aspecto, muito louco. Uma vez, na época, não tinha delegacia, e aí ele recebeu uma intimação, eu não sei porque, ai falou: “Depois eu vou lá, então”, imagina! Falar “Depois eu vou lá” para a polícia? E foi mesmo, não foi na hora não. Depois, ele foi prestar o depoimento que precisava. Então, o meu pai atendia assim, o povo na cama. Mesmo na empresa dele, era dez horas da manhã, ele tava lá respondendo as coisas: “Fulano não sei o que. Precisa de dinheiro para gasolina da caminhonete, tal, tal…”, era assim. Uma empresa totalmente diferente.
P/1 – Então, o seu pai era um cara bem empreendedor, né?
R – Era! Ele tinha umas ideias muito boas. O meu pai mandou uma carta para o presidente da República, cara! Na época, eu acho que era o Médici, Garrastazu Médici, raça ruim! E ele mandou uma carta, porque a ditadura, o que ela fez? A Ditadura se expandiu para as periferias, ela não ficou… a Ditadura na época… ninguém sabia o que era Ditadura na periferia, veio a Ditadura após ditadura, teoricamente. Ela se instalou na periferia com os quarteis, com as bases das que… são mini bases militares que estão ali, foram se instalando, né? E por que eu estou falando isso?
P/1 – Porque o seu pai escreveu uma carta para o Médici.
R – Ah, mandou uma carta para ele, porque ele queria fazer uma empresa, Embravox (risos), eu lembro, Empresa Brasileira não sei o que lá de adubos orgânicos. O meu pai, como ele foi agricultor num período, então ele tinha essa coisa do solo, ele entendia um pouco, foi estudar. Então, ele queria uma agricultura orgânica já naquela época, os adubos. E olha o que virou os adubos hoje, os fertilizantes, né? A gente hoje precisa tomar reposição de iodo, por exemplo, não iodo… chama lugol, não é iodo… iodo inogârnico porque o solo não tem mais, ele só põe NPK, que é nitrogênio, potássio e… é isso daí, nitrogênio, potássio e fósforo?
P/2 – Fósforo.
R – A gente não tem, reposição de iodo e muita gente aí tem problemas de tireoide, disso, daquilo, porque… de próstata, porque falta o iodo, cara. A agricultura mecanizada, você planta dez vezes aquele tomate, dez vezes… dez anos plantando a mesma coisa, o solo já não tem mais, então o meu pai tinha umas ideias malucas, aí ele mandou uma carta, essa carta dele, lá. Eu não sei se eu tenho, mas as minhas irmãs devem ter essa carta. Então, ele tinha umas coisas e começou a… onde era o campinho nosso, ele começou a recolher pintinho morto, (risos) ele fazia o adubo ali, cara, começou, depois a vizinhança começou a reclamar, porque (risos)…
P/1 – Por causa do cheiro…
R – Por causa do cheiro, cara. Ele fazia in loco mesmo ali, (risos) as loucuras dele.
P/1 – Binho, para a gente mudar então de fase…
P/2 – Eu queria perguntar uma coisa antes. Você falou que estavam as bases militares, mas eu queria entender o que realmente foi a Ditadura nessa época na sua vida, assim.
R – Quando eu era… nessa fase da adolescência, eu lembro que o Exército rodava também por ali, mas tinha coisa de: “Moleque pequeno vai levar para o Juizado de Menores”, tudo era Juizado de Menores e você tinha que ter a carteira assinada, com 14 anos ali, você já tinha que ter a carteira assinada, se não tivesse a carteira assinada, os caras te levavam para averiguação, por vadiagem. Então, depois que veio a delegacia, eu lembro que veio o asfalto, depois veio a delegacia perto da onde a gente morava. E aí a gente estava brincando de carrinho de rolimã, olha como as brincadeiras também vão mudando, né? Aí, esse carrinho de rolimã, a gente estava brincando e veio a polícia lá e eu tinha um irmão desses irmãos que a gente falou no começo que veio depois que a gente… o Geraldão, ele estava por ali e aí, a polícia enquadrou a gente e eu lembro que ele falou assim: “Chama o Jesus…”, que era o meu outro irmão por parte de pai também, porque essa coisa é legal, porque a gente foi agregando os irmãos voltaram. Eles eram mais velhos do que nós, esses, mas a gente não conhecia. Depois que apareceram. E aí o Geraldão falou assim: “Chama o Jesus lá que encavalou a marcha”, pô, ele só falava gíria esse meu irmão. Aí as polícias ficaram bravas: “O que é isso? O que você falou marcha?”, encavalou a marcha, cara (risos). Aí ficou por isso, aí os caras queriam levar ele preso, mas ele era muito forte, naquela época ele enfrentava mesmo. Aí veio e começou a aglomerar e tal. Então, a infância foi se acabando também vindo essa repressão, porque a gente não tinha. Então, a Ditadura… depois veio as mortes nas periferias, perseguição, esquadrão da morte. Então, ela se instalou lá, assim, na década de 70, já, essas coisas. Então, a Ditadura, ela foi indo assim, a gente não tinha isso.
P/2 – Esquadrão da morte?
R – Tinha o esquadrão da morte, quer dizer, eram os matadores, na verdade, eram a própria polícia que depois… iam encapuçados e tal, tinha o esquadrão da morte.
P/1 – Anos 70, né?
R – Anos 70. Foi muito…
P/1 – Binho, então aproveitando isso, antes da gente mudar de fase da vida, então conta para o nosso público aqui, como então… vamos dizer assim, depois da escola, como era a vida de um menino na periferia. Como que era a rotina dele? Porque de manhã você ia para a aula…
R – Ah sim! Hã?
P/1 – De manhã ia para a aula, era isso?
R – De manhã, eu ia para a escola, de tarde, ficava solto, ficava livre, né?
P/1 – Fazendo o quê?
R – Na rua, na rua brincando. Na casa dos amigos, mas era mais na rua, porque as mães criavam a molecada solta, então ficava ali, tudo… o meu apelido eu ganhei por causa da minha mãe, de me chamar, que ela tava no campinho, por ali e aí, carinhosamente, ela foi chamando: “Robinho!”, e aí ficou Binho. Foi um apelido que eu ganhei da minha mãe. Então, é um apelido que eu gosto desse presente, porque a minha mãe me deu assim e eu uso. Então, essa infância, esse período de ir para a escola, que também era legal, a gente gostava de ir para a escola e depois, essa brincadeira na rua. A televisão, a gente nem ligava para a televisão, os caras falam de televisão, eu não conheço nada, eu não lembro de por exemplo, os heróis. Eu lembro do Ultraseven talvez, do Ultraman, aqueles desenhos que passavam, mas fora isso, era muito pouco televisão, a gente não tinha tempo para televisão (risos), a gente não tinha tempo para a televisão…
P/1 – Que frase boa, né?
R – Porque a rua era tão livre, não tinha medo na rua. Então, instalaram o medo, aí você tem medo da televisão, e a rua era tão boa e as conversas que os adultos conversavam quando reunia assim, era tão bom que não tinha sentido assim, a televisão do jeito que ela é, então você percebe que bota o medo da rua para você assistir televisão, o Ibope, porque se a rua… se você tem espaço na rua, as pessoas estão na rua, estão na calçada, estão vivendo, estão livres. A televisão bota todo mundo dentro de casa para assistir ou você vai para o shopping, tem uns espaços reservados para você ir para o shopping para comprar e comprar o que a televisão está anunciando.
P/1 – Binho, olha, nós fizemos um primeiro apanhado muito legal, você já contou um pouco da sua infância, adolescência…
R – Os bailinhos!
P/1 – Bailinhos.
R – Os bailinhos na periferia.
P/1 – Como é que eram os bailinhos?
R – Porque olha que interessante que eu acho, porque nessa fase, 16, 17, a gente fazia os bailinhos na casa, tanto é que a gente falava: “Os bicão”, às vezes, diminuindo a festa do outro, ou de… às vezes, até saía procurando alguma coisa, mas rolava um… as pessoas faziam as festas nas casas: “O bailinho esse final de semana vai ser na casa de fulano, tal”, a gente acabava direcionando, os forrozinhos, a gente já fazia forró, naquela época, a gente fazia… pela influência nordestina que teve… eu tive uma influência muito, na época, de John Travolta, cara, década de 80, o negócio ficou na cabeça assim, era uma coisa já massificada demais. Então, eu sofria aquela influência, eu queria ser o John Travolta, dançar e tal e tal. Mas era dança, na verdade, era corpo, que vinha de fora, de uma influência de fora, né? Depois, a gente quebrou um pouco isso na nossa turma assim, e começou a fazer os nossos forrós, as nossas coisas, com as músicas brasileiras, com as coisas nossas, né? Então a gente conseguiu quebrar. Você falou de influência de professor, tiveram professores importantes na minha época, teve um cara que chamava Gilberto, a gente ia na casa dele, ele morava numa quitinete na Paulista. E ele foi lá, aquele professorsão, de chinelão, barbudão, chegou na escola e começou a dar umas ideias, naquela época, o PT estava surgindo, movimento de greve no ABC, isso foi em 79, 80, por aí. Então, houve uma ruptura, assim para mim, de rechaçar o que vinha de fora, foi minha fase tupiniquim assim, de falar: “Pô, eu preciso ver o que está aqui dentro”, esse despertar para isso, mas não era… era uma forma de resistir também ao imperialismo, cara, na nossa cultura, que era muito marcante nas rádios e em tudo. Então, a gente queria quebrar um pouco ali a partir dessas coisas que a gente foi conhecendo. Esse professor, depois, ele foi vereador, não lembro se ele chegou a ser prefeito de Monte Alto, cara.
P/1 – Monte Alto.
R – É. Depois, ele morreu, uma morte misteriosa, aqui em São Paulo. Eu não sei.
P/1 – Então Binho, olha só, você termina o segundo grau no Campo Limpo…
R – É.
P/1 – E aí, depois que você terminou, o que acontece? O que você vai fazer?
R – Terminou a escola, aí eu fiquei meio na vagabundagem, a faculdade eu não tinha grana para pagar, não tinha grana para ir para a faculdade e naquela época, não tinha faculdade como é hoje, você tinha que estudar numa faculdade pública, ou tinha o Mackenzie também, era muito restrito, as informações não chegavam também, mas não tinha igual é hoje, de você partir para o terceiro grau. Hoje é o terceiro grau, a faculdade seria o terceiro grau, as faculdades ruins que estão por aí também, mas não sei, aí eu fiquei meio trabalhando, aí eu sai desse lugar… eu fiquei três anos trabalhando naquele lugar que eu falei e depois, aí eu fui trabalhar de novo, com o meu pai, a gente consertava janela, persiana. Foi nesse período que eu fiquei um tempo nisso com ele, trabalhando com isso, de novo e então, eu não tinha tempo para ir para… aí não fui para a faculdade, não consegui. Então fiquei ali, vivendo ali, no mesmo lugar. Nesse período, antes desse período, a gente morava numa casa que era nossa, aí o meu pai precisou, nessa doideira dele, ele vendeu a casa e a gente ficou pagando aluguel anos, cara! Isso para a minha mãe foi a morte, da gente ter a nossa casa e depois, precisar vender essa casa e aí não conseguimos ter casa mais nenhuma. O meu pai teve duas mil casas, construiu, comprava e vendia, assim, ele era um mestre de obras, né? Ele e o irmão dele, o meu tio. E aí por esse período, a gente ficou sem casa, tinha que trabalhar mesmo, pagando esse aluguel, até que um dia, a gente teve que sair dessa casa, né? Isso para a minha mãe foi uma derrota na vida dela, da minha mãe. E aí, a gente foi morar de aluguel, começou…
P/1 – No Campo Limpo mesmo?
R – É, no Campo Limpo, mesmo. O Campo Limpo é um destino para mim, parece, é uma coisa que… eu fui, fiquei fora um tempo, mas o Campo Limpo é um destino, minha vida está por ali, né? Eu acho que só saio do Campo Limpo para ir para roça, para morar no meio do mato, assim. Não sei, me parece isso, assim, uma coisa que eu… e foi bom essa raiz, eu ter raiz ali, criar, ter criado essa raiz e ter querido estar pra mim, eu acho que para mim foi importante assim, ter raiz, porque a gente perde, hoje… São Paulo é uma cidade que te atropela o tempo todo e aí parece que eu sentia essa necessidade de ter um chão, de ter uma raiz assim, sempre voar, mas ter um… ser um pouco árvore e ser pássaro, árvore e pássaro, uma coisa assim, ter raiz e ter…
P/1 – Entendi.
P/2 – Eu ia perguntar lá atrás, que eu fiquei curioso que eu não soube como que acabou a história do seu pai com o Médici, naquela empreitada lá…
R – Então, eles não se interessaram pela coisa em si, na época, já não havia o interesse, porque essa indústria de fertilizantes, indústria química é muito forte, é poderosíssima, então ninguém vai querer isso, essa agricultura, ela não interessa para as grandes multinacionais. Então, o Brasil pegou outro caminho, pegou outra via, então o Brasil hoje é uma fazendo do mundo, na verdade, é isso, o Brasil é uma fazenda, assim como a China é a fábrica, o Brasil é a fazenda.
P/1 – Legal. Então Binho, vocês mudam de casa, vão para a casa de aluguel, aí você já está com quantos anos, mais ou menos?
R – Eu não lembro assim, a data eu não tenho, mas…
P/1 – Aproximadamente.
R – Isso foi já década de final de 80, a gente já mudou, já tinha mudado de casa e aí foi para os aluguéis. E o meu poema nasceu numa casa de aluguel, o primeiro poema eu acho que nasceu, numa casa de aluguel, quando eu estava fazendo… aí eu consegui fazer o cursinho, eu fui trabalhar de vender banana. Eu comecei a ganhar uma grana vendendo banana, deu certo umas coisas, aí eu comecei com um carrinho velho, depois consegui comprar uma Kombi, consegui comprar outra Kombi, comprei três Kombis velhas e começamos a vender banana, só que eu tinha um diferencial (risos), eu vendia banana em caixa, eu não vendia banana como uma dúzia, não, nas periferias, era muito mais fácil e tinha um período em que a safra era mais barata, então eu comprava banana em caixa e vendia banana em caixa, pessoal comprava caixa de banana, coisa que não tinha naquela época. Então, acho que por isso que deu certo. Aí eu ganhei um dinheirinho e falei: “Vou estudar”, eu ganhei uma bolsa, que um amigo arrumou pra mim no Anglo e aí eu comecei a estudar. Mas a minha base era muito fraca, eu fiquei estudando dois anos, então eu consegui estudar um ano só e aí o meu pai sublocou a casa, ele fez uns quartinhos na frente da casa, tinha um quintal grande, ele fez uns quartinhos de madeira e começou a alugar, um dia eu cheguei em casa, estava uma pessoa lá querendo matar a outra com uma faca na mão (risos), aí eu fiz o primeiro poema meu, que é assim, nessa briga, nessa discussão, é assim: “Você falou, não falei; você falou, não falei; você falou, não falei; você falou, não falei; cefaleia”, meu primeiro poema.
P/1 – Começou bem.
P/2 – Você falou para alguém isso?
R – Não, eu escrevi só e guardei aquilo. Acho que foi o primeiro…
P/1 – Nossa, entrou com o pé direito na poesia!
P/2 – E nesse período, pelo o que você está contando e pelo o que a gente também viu nas suas fotos, você fez uma grande viagem, assim, né?
R – É, isso foi em 90. Se tiver um marco aí depois, a gente conta.
P/1 – Tá, porque isso, nós estamos nos anos 80. Aí, você está na banana, cursinho, o que vem depois?
R – Banana, cursinho, aí eu não consegui entrar na faculdade, eu queria fazer medicina, né? E aí, eu não consegui, tentei dois anos, aí falei: “Agora não dá, né?”, primeiro ano eu consegui só estudar, aí o segundo ano, eu fui trabalhei e estudei. E depois, aí eu falei: “Agora, tem que…”, aí eu desencanei, eu voltei para a coisa de persianas e janelas que a gente consertava. Aí depois em 89 veio o Collor, aí eu decidi ir embora, falei: “Vou…”, aí eu ganhei um dinheirinho numa festa, falei: “Vou fazer uma festa, um bota-fora”, já namorava com a Suzi, aí ela me ajudou nesse processo e falei: “Vou fazer uma festa, um bota-fora”, aí eu tinha um fusquinha e uma moto, vendi os dois, eu juntei 1456 dólares, era o dinheiro que deu, vendi o fusquinha, a moto e essa festa, esse bota-fora, mas aí veio o Plano Cruzado, ninguém tinha dinheiro, os amigos tudo duro. Eu lembro que eu rasguei… eu não estava com cueca e aí eu comprei uma cueca para cortar ela, falei: “Como é que eu vou fazer um dinheiro?”, os caras cortam a gravata, eu falei: “Vou cortar a cueca”, aí na festa, a gente começou… nesse bota-fora, começamos cortar a cueca, cada um dava um dinheiro e ficava com um pedaço, cada um levava… ganhava um pedacinho da cueca. Aí eu arrecadei esse dinheiro, com a festa, com o fusquinha e com a motinho, 1456 dólares. A passagem, eu acho que eu financiei, tal, comprei uma passagem mais barata e fui embora em 90, para… aí entrou o Collor, falei: “Meu, isso aqui vai ficar esquisito também”, na época, a gente estava com muita esperança de que algo… aí fui embora.
P/1 – Aí você foi então primeiro para onde?
R – Eu desci na Espanha, fiquei 15 dias lá em Barcelona, tentando arrumar um trabalho, tal, não consegui. Aí fui para Itália, lavei carro na Itália, fiquei lá, encontrei uns amigos brasileiros hoje, que eu já conhecia aqui, aí esses caras me acolheram lá uma época. Eu fiquei lá, acho que uns 15 dias lavando carro e tal, aí depois, eu não podia ficar lá, porque eu precisava da permissão do trabalho, aí tive que ir embora. Aí eu lembrei que eu tinha conhecido um cara na fronteira indo da França para Itália, e aí esse cara me acolheu, chama Ezio Sandroni, esse cara me acolheu na casa dele, ele restaurava móveis e tal, aí eu fiquei um tempo trabalhando com ele lá. Aí fiquei dois meses, aí veio a Copa do Mundo, eu estava lá…
P/1 – Espera aí, a Copa de 90 e…?
R – Na Itália, eu estava lá, aí eu fiquei lá na Itália, aí eu me envolvi com uns brasileiros, lá, mas sem grana. Eu dormia na estação de trem em Torino, foi uma viagem louca, eu cheguei a assistir o jogo do Brasil… que o Maradona mandou o Brasil para casa, foi uma tristeza!
P/1 – Um a zero!
R – É. E aí, dali eu fui para… aí eu conheci um cara que falou: “Você está duro, você está ferrado aí, mano, vai para Israel” “Israel?” “É, lá tem Kibbutz, são fazendas socialistas lá e tal” “Mas está longe pra caramba” “Lá você vai aprender inglês”, que eu não falava nada, falei: “Ah, de repente, né?”, aí eu peguei um navio, cara, no dia do jogo, na final da Copa lá, eu estava atravessando a botinha da Itália, aí eu fui para Grécia, fiquei três dias lá na Grécia, dormindo também… primeiro dia, eu cheguei muito cansado, dormi num hotelzinho, aí no segundo dia, que eu já estava legal, dormi na estação de trem, pegava o saco de dormir lá com as baratas, trem passando e aí eu fui lá para… aí eu cheguei no cara e falei assim: “Sou brasileiro e tal, estou conhecendo aqui, estou duro, você não deixa eu entrar não?”, lá na Acrópole, né? Aí o cara: “Vai, vai, vai”, falei que era brasileiro, o cara deixou. Aí falei: “Putz, se eu soubesse desses baratos, mano”, aí depois, eu usei isso, em outro lugar também, na Itália, num museu, antes, que eu queria ter visto uma exposição, falei: “Devia ter…”, aí abria algumas portas por ser brasileiro. Aí eu fui, fiquei na Grécia só dois, três dias, porque eu não tinha dinheiro, então eu tinha que acelerar logo. Aí peguei o navio e fui para Israel. Claro que eu fui o último a entrar no navio, claro que depois lá, a minha bagagem foi revistada mil vezes, tive vários problemas com essa cara de palestino, aqui, mas eu fiquei cinco meses lá. Aí eu ficava no Kibbutz.
P/1 – Em que lugar de Israel, você lembra?
R – Na fronteira com Gaza. Esse Kibbutz era na fronteira, chama Kibbutz Erez, em Ashkelon, na cidade de Sansão e Dalila, lá.
P/1 – Uma fazenda socialista e como era a vida no Kibbutz, assim?
R – A vida, assim, tem um livro “A Revolução dos Bichos”, que fala assim: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros” (risos) Então era isso, a fazendinha lá era isso, era fazenda socialista, mas as diferenças eram gritantes, todo mundo queria ter uma vida assim, mas a frase resumiu, enfim. Mas era legal, porque vinham voluntários de vários lugares, de vários lugares da Europa, do Brasil, da África do Sul, Zimbabwe, alemães, suecos, tinha o lugar dos voluntários, então a gente ficava nesse lugar dos voluntários, então trabalhava no que você se adaptava melhor e tal. Lá tinha uma fábrica de plástico, tinha campo de batata, irrigação, abacate…
P/1 – Você fazia o quê?
R – Eu por exemplo, passei uma boa parte colhendo abacate, com uma maquininha, aqueles elevadorzinhos, vinha, pegava abacate, era para exportação, então tinha que ter um cuidado para cortar e tal. Às vezes, eu ficava na cozinha, trabalhava na cozinha, trabalhava na jardinagem, cuidando dos espaços. Mas foi muito legal, essa fase também foi legal, porque eu conheci muita gente, depois que eu consegui ir para Inglaterra, a partir daí conhecimento de pessoas, o meu inglês, eu tinha melhorado um pouquinho, porque era muito contato, mas foi legal a fase. A molecada do Kibbutz, eu me dava super bem, com os palestinos eu me dava bem, tanto é que quando eu fui embora, um palestino chegou, me deu um dinheiro deles lá, que valia uma grana, o dinheiro da Jordânia, o cara pegou e me deu para ajudar eu sair de lá. Porque na época, o Saddam Hussein anexou, não sei se invadiu, anexou o Kuait, né? E aí ficou uma tensão quando eu cheguei lá, daí um mês, o Saddam tomou essa atitude, e aí ficou aquela tensão: vai ter guerra, não vai ter guerra, não sei o que… aí eu saí fora. Aí eu depois, trabalhei num outro lugar que chama Moshave, que são as fazendas capitalistas, aí trabalhei lá, envenenando rosas (risos) trabalhava com máscaras e tudo e num campo de tomate. E aí eu trabalhava naquele campo de tomate fibrilando, era um negocinho que você fazia assim, para o pólen da flor do tomate, tal. Aí eu estava lá colhendo tomate um dia, aí de repente, pow! Aí eu olho para cima assim, um F16 cruzando a barreira do som, eu falei: “Meu!”, aquilo mexeu comigo, cara! Pô, eu colhendo tomate, cara e um F16 na minha cabeça! Falei: “Caramba, meu”, tipo: qual é a importância de um cara colhendo tomate enquanto tem um avião, uma tecnologia, sabe, mexeu comigo, né? Aí deu uma vontade de sair dali, daquela disparidade, desse mundo maluco que é! Eu colhendo tomate e um avião cruzando a barreira do som, cara!
P/1 – E dali que você resolveu ir para a Inglaterra?
R – Foi. Aí, a Suzi me mandou cem dólares numa carta, imagina, como é que… o carteiro tem mão de anjo, cara, os caras falam. Eles sabem o que tem dentro do negócio! Me chegou cem dólares! Aí com mais um pouquinho, um amigo meu também tinha traveller cheques, não sei o que, aí eu consegui chegar no… eu fui para o Egito. Eu lembro que a gente foi escoltado. O nosso ônibus, ônibus no era turismo, mas foi escoltado até a fronteira, determinado ponto lá do Canal de Suez, não sei o que, depois, Egito, aí não, mas até lá a gente foi escoltado por uma grande trecho dessa parte que eu não conhecia de Israel, enfim, não sabia nem onde eu estava, sei que eu estava dentro de um ônibus indo para… porque além de eu querer conhecer as pirâmides, era o lugar mais barato para se comprar passagem. Voo mais barato. Aí eu fui para as pirâmides (risos).
P/1 – Que está lá a foto.
R – É, tem a foto que eu fui lá. Aí o cara me convenceu, os árabes são chavequeiros para caramba, o camelo era mais caro, eu queria ir de camelo, aí eu fui num cavalo (risos).
P/1 – Binho, e aí você vai para Inglaterra e da Inglaterra que você volta para o Brasil?
R – É. Eu fiquei dois anos na Inglaterra.
P/1 – Ah, dois anos?
R – Fiquei dois anos. Aí a Suzi foi depois, viu que eu não voltava, porque a ideia era ficar um ano fora, aí ela viu que eu não voltava, aí eu falei: “Vem pra cá”, aí a gente se organizou e ela foi pra lá, porque aí eu já estava lavando prato bem e tal (risos).
P/1 – E você estava em que cidade?
R – Em Londres.
P/1 – E aí a Suzi foi para Londres?
R – Foi para Londres.
P/1 – E vocês ficaram morando juntos?
R – Aí sim, nosso casamento foi aí, de morar junto ali. Mas quando eu cheguei… eu levei um pedaço da cueca, cara! Eu não sabia, eu não lembrava disso! Já tinha rodado, meu! Aí, o cara da imigração, eu fui todo revistado e tudo, em todo lugar eu era revistado, aí revistou toda minha bagagem, tirou tudo, eu enrolei as minhas coisas, estava tudo enroladinho, aí os caras tiravam roupa por roupa e tal. E saiu o pedacinho dessa cueca, foi. Aí o cara pegou o pedaço da cueca e cheirou. Meu, eu por dentro, cara, eu dei essa risada que você deu, Jonas, o cara olhou pra mim assim, tipo: “O que esse cara está rindo?”, eu não falei o que era, mas eu fiquei por dentro rindo ali, vendo aquele oficial ali cheirando a minha cueca, cara, foi muito engraçada essa cena e eu fiquei lá, umas duas horas, até eles me liberarem e aí, eu falei, contei uma mentira para poder ficar, contei uma mentira que eu estava fazendo medicina no Brasil e que aí eu tranquei a matricula e não sei o que, aí contei umas histórias lá. Aí me deixaram ficar, falei: “Vou ficar só uma semana aqui”, fiquei dois anos.
P/1 – A gente tava dizendo então que a Suzi vai para a Inglaterra, mas como ela tem um papel super importante aí na história…
R – Claro!
P/1 – Conta, você conheceu ela onde?
R – No Campo Limpo, num bailinho.
P/1 – Num bailinho? E aí, como foi? Você abordou?
R – Foi assim… engraçado, olha que interessante, eu estudei com a irmã dela desde o primeiro ano, cara, a gente estudou junto, com a irmã. E aí, isso depois, aí teve um bailinho na casa de um professor, Professor Tony e teve uma… eu conheci ela na quermesse, olha que legal, numa quermesse e depois, teve esse bailinho e aí teve uma briga lá, cara, aí a gente aproximou, depois ficou tudo belezinha, aí pegamos na mão e dei um beijinho, começou (risos), aí foi indo as coisas.
P/2 – E era assim que, por exemplo, os meninos chegavam nas meninas, na época, que rolava essa aproximação?
R – Não era tão atirado, era mais difícil (risos), era mais complicado até para chegar no ponto G, dava trabalho!
P/1 – Na hora H, era o ponto G. Mas Binho, então aí, você a conhece e quando você viaja, vocês continuam namorando por carta?
R – Olha que interessante, isso foi… aí depois, a gente namorou uns seis meses, por aí. Aí nos separamos. Ela ficou noiva de um amigo meu, eu fiquei noivo de outra menina, isso foi, foi e aí, depois de uns cinco anos depois de tudo, a gente voltou a namorar, começamos a namorar, tal, acho que deve ter sido 89, 88, acho que 88, não, acho que foi… não lembro, acho que foi 89.
P/1 – E o que ela achou de você viajar para fora sem ela?
R – Ah, foi difícil, na época, mas eu queria, eu tinha uma ânsia de sair fora do Brasil também, conhecer outros lugares, tal, tal. E aí, depois, ela falou: “Já que você vai, vai pelo amor de Deus, vai logo”, e não chegava o dia. Mas a gente foi para Ilha do Mel, fazer a despedida, foi bacana assim, toda essa trajetória, toda essa história aí, escrevia cartas de lá, ela escrevia, porque era difícil se corresponder, não tinha e-mail, não tinha internet, em Israel eu marcava o dia para telefonar para o Brasil e as cartas, a gente tinha direito a quatro cartas por mês, eles davam lá no Kibbutz, então a gente mandava as cartas e tal. Então, ela foi muito importante nesse processo, na minha vida toda, está aí fazendo essa…
P/1 – Então, Binho, você estava em Londres e ela foi?
R – Então, aí a gente combinou: “Então vem, eu não quero voltar agora”, ela trabalhava num banco, aí ela pediu as contas e foi embora para lá.
P/1 – E vocês moravam onde em Londres?
R – Logo que ela chegou, eu morava num quartinho que ela dormia em cima e eu dormia no chão, era muito estreito, na casa de um português, olha, pagava aluguel para um português no Brasil, chegou lá em Londres, fui pagar aluguel para português, oh meu Deus! (risos) E aí eu já estava trabalhando numa pizzaria lá, lavando prato e esse trabalho era exploração pra caramba, eu trabalhava à noite e depois, eu tinha que ir lá na parte da manhã, das dez às onze, eu não lembro, eu lembro que era na parte da manhã, tinha que limpar todo o lugar, era uma exploração danada, cara! E aí, depois, eu consegui um emprego, o meu inglês já foi melhorando, eu estava estudando, tal, o meu inglês estava melhor e depois, eu consegui emprego num lugar que chama Gastronomia Itália em Vitória, lá em Londres e lá era muito legal, porque você falava quatro línguas, cara! Eu não falo quatro línguas, mas eu enrolava quatro línguas, então eu atendia os clientes, como era lugar de italiano, tinham produtos italianos, espanhóis e portugueses e os ingleses iam para lá também na hora do almoço, tal, comer sanduiche (risos), os caras comem sanduiche, cara. E aí atendia um italiano na fila, daqui a pouco, falava inglês com um, aí falava português com alguma pessoa, espanhol, enrolava, até que descobriu que a gente não era: “Ma lui non è italiano” (risos) “Lo non solo italiano, solo brasiliano, catzo”, e aí fiquei nesse trabalho, esse trabalho foi bom, assim, trabalhava muito bem e depois consegui um trabalho também numa discoteca, a gente recolhia copo, limpeza, também, dava uma geral lá, mas eu mais procurava dinheiro no chão da discoteca do que… já tinha as manhas, né?
P/1 – E achava dinheiro?
R – Achava! Às vezes, eu achava o dinheiro que eu ganhava, moedinhas, achava muita grana, assim, já tinha as manhas, começava no palco, estava todo mundo tomando cerveja e tal, aí o pessoal ia para assistir o show, a gente ia perto do caixa, sempre tinham umas moedas caídas, e aí, ganhava dinheiro achando dinheiro, cara, e esse trampo também, nessa discoteca, era uma discoteca que tocava muita música irlandesa também. Aí, eu esqueci o nome dos caras que eu vi lá que fez sucesso, New Modern Army? Você conhece? é uma banda…
P/1 – Não é do tempo dele. Mas Binho, vocês ficaram dois anos lá?
R – Eu fiquei dois anos em ponto.
P/1 – E ela ficou um pouco menos?
R – É. Eu estava com muita saudades do Brasil. Ela ficou um ano e pouco. E aí, a gente trabalhando, a gente trabalhou na American Airlines em Londres, fazendo faxina. E aí, a gente chegou para trabalhar um dia, foi muito engraçado, o supervisor… a moça toda falando inglês com a gente, tal, aí o supervisor… ela: “Vou te apresentar agora o supervisor e tal”, a hora que o cara começou a falar, o supervisor era português, cara. Aí foi legal. Aí trabalhamos nesse lugar também, trabalhamos de faxina, de coisa, assim, arrumava trabalho… aí ela começou a fazer um trampo numas casas de um pessoal lá na Inglaterra, trabalhou muito para judeu lá, e aí ela ganhou um dinheiro legal, em Londres, ela ganhava muito mais que eu assim, trabalhando, fazendo faxina. E eu tinha esses dois trabalhos. E aí, nesse intermédio… lá eu comecei a tocar sanfona, cara! A noite, eu tinha uma folguinha, falei: “Vou fazer um curso”, eu quis aprender a tocar sanfona, comecei aprender ali, a tocar e tal, depois quando chegou aqui, abrimos o bar e aí não deu mais tempo de nada. Aí a minha filha nasceu. Ah, ela ficou grávida lá.
P/1 – Ah tá.
R – Aí, eu falei: “E agora? Vamos ganhar aqui ou vamos ganhar lá?”, aí decidimos ter aqui no Brasil, a nossa filha nasceu aqui e a saudade era muita dos meus pais também, tanto é que no dia em que eu desci no aeroporto, cara, a minha família foi para o aeroporto, todo mundo! Essa emoção eu nunca mais senti. Eu não sabia que o meu corpo tinha aquela emoção de abraçar o meu pai e a minha mãe ali, os familiares, era um êxtase, eu não sabia o que era um êxtase! Ter aquele choro, de alegria com choro, sabe? Foi muito bom ter voltado. Só por aquela emoção já valeu a volta (risos). E aí, nós voltamos por Nova York, porque a gente tinha que trazer muita coisa, aí a gente comprou uma passagem que podia trazer, só que a gente deu azar, a gente foi para Nova York e aí chegou lá, deu uma nevasca lá e tivemos que dormir em Nova York, só que a gente não tinha visto, aí dormimos com policial, com seguranças na porta do quarto, porque a gente não tinha visto, se a gente escapasse dali, eu nem queria ficar nos Estados Unidos, eu estava doido para chegar no Brasil, cara! Foi essa trajetória, ficamos lá, sofremos muito até chegar no Brasil.
P/1 – Aí, foi essa festa na chegada…
R – Foi. Foi essa emoção! De estar pisando aqui de novo, e ter essa coisa, sangue, a terra, Brasil é uma terra muito sagrada, cara, é uma terra muito sagrada, mesmo que a gente vive numa cidade assim, mas a gente está pisando num solo muito sagrado, sem menosprezar os outros lugares, mas isso aqui, eu acho que daqui vai nascer um novo mundo, porque se tudo começou aqui, como o pessoal fala, essa terra aqui é muito antiga, meu! Esse solo… e aí, eu não sei, tem uma coisa mesmo de vibração.
P/1 – E Binho, então olha, agora, já contou muito da sua trajetória de outras coisas, então chegamos no momento de falar um pouco mais aí da coisa da poesia, do sarau, né? Como iniciou?
R – O quê? Iniciou o quê?
P/2 – A poesia…
R – A poesia veio… primeiro veio o… então, quando eu cheguei, a gente montou um bar, né? E a gente montou um bar em frente a escola que eu estudei. Eu rodei para vários lugares para ver se achava um ponto para abrir um lugar para vender pastel, simples, era uma lanchonete, só que eu sabia assim, que não era só isso, que não era só vender… eu não conseguiria vender só coxinha e pastel. Aí, aos poucos, a gente montou esse espaço, aí começou… a gente abriu esse bar em 93, de cara foi um sucesso o bar, assim! Arrebentou tudo, já deu muito certo e a gente morava num quarto e cozinha lá da minha sogra, que tinha lá, com a minha filha, a filha pequena… a gente montou o bar, daí dez dias, a minha filha nasceu, então para você ver a loucura, tem fotos assim, da Naiana dentro do… a gente pedia para os clientes fazerem silêncio, que a minha filha estava dormindo (risos), olha só que loucura! E aí foi essa loucura. E aí em 95, eu fiz um curso que era biodança. Não, teve 94. Os anos são… aí teve uma morte no bar, mataram um cara lá no nosso espaço e aí, isso mexeu muito assim, a gente sofreu porque o cara tinha história, veio muita polícia perturbar a gente, tal e aí eu falei: “Preciso dar um tempo”, aí veio a Copa do Mundo, você vê, eu nem ligo para futebol, cara, mas eu falei: “Vamos para os Estados Unidos”, falei com a Suzi, aí um amigo estava lá, eu falei… pegamos uma garrafa de vodca, eu nem bebia, nem fui de beber, mas ele bebia, falou: “Faz companhia para mim, vou lá para o consulado, lá, vamos ver se eu consigo um visto”, aí consegui esse visto, eu não tinha grana também para viajar, eu falei: “Vou levar umas muambas”, aí as muambas o que era? Camiseta, boné, dinheiro, levei dinheiro que não valia mais daqui do Brasil, cruzeiro, cruzado, aquelas notas antigas, eu fiz tipo um portfólio, assim, para vender lá, avisava o pessoal que não valia, era só como souvenir, como lembrança. E aí eu consegui o visto, fui lá, os caras pum: “Pode voltar aqui”. Falei: “Nossa meu, que fácil”, eu não tinha nada para conseguir um visto, acho que pelo passaporte que já era antigo, tinham vários carimbos, então talvez tenha sido mais fácil. Aí eu fui para os Estados Unidos de novo, aí fui nessa história aí. Aí, cheguei lá, rodei… eu dormi um dia num albergue em Miami, depois, cara, foi só dormir na casa dos outros, conhecia o povo, foi uma coisa muito louca assim, conhecia mexicano, ia dormir na casa do mexicano, conhecia suíço, ia dormir na casa do suíço e foi uma viagem muito legal, conheci muita gente e aí, como sobrevivia? Vendia os bonés, as camisetas, tudo escondido, porque Estados Unidos era rigoroso e o dinheiro oferecia para os caras, mexicano adorava, cara, mexicano adora o Brasil e eles compravam. Chinês, até chinês, eu fui almoçar num lugar lá, eu falei: “Toma…”, dei de presente, aí o chinês falou: “não, não, não”, foi lá na cozinha, mostrou a nota, aí eles vieram, aí eu dei… aí eles deram nota deles lá, o dólar, no final, almocei de graça.
P/2 – E você vendia por quanto, assim, uma nota?
R – Era souvenir, falava: “Dá uma nota sua”, normalmente a nota era de um dólar, tinha uns que não tinham, trocava até por moeda, e assim eu fiz um bom dinheiro, cara, fazendo essa brincadeira aí.
P/1 – E aí, você fica lá só nesse período da Copa?
R – Não, eu fiquei um período só, fiquei… não, aí foi triste depois, hein! Aí, eu conheci uns mexicanos, os caras queriam me levar para o México de qualquer jeito: “Vamos lá para o México, vamos para o México”, e eu estava indo já para o México, cara, estava indo, porque eu comprei uma passagem stand-by, que você compra e roda… e você tem direito a rodar um mês quantas vezes você quiser, não tinha ainda o 11 de setembro, então você rodava, se eu quisesse morar no avião, de aeroporto a aeroporto… mas quem aguenta aquele…? Lógico que você não vai fazer isso. Aí você tem direito, um mês vence a passagem, um mês você não pode voar mais, na época tinha isso, não sei se ainda… chama stand-by. E aí eu estava já indo, eu vou para o México e estava indo, minha mãe não tava legal, quando eu saí daqui a minha mãe já não estava boa, e aí eu falei: “Não, vou embora para o Brasil”, eu adiantei a volta. Aí eu não fui para o México. Eu voltei, quando eu estava chegando, devia estar em Minas Gerais, sei lá, no voo, a minha mãe falecendo no hospital. Então isso foi muito triste assim, de não estar aqui, diz que ela falou para o meu irmão: “Não vai dar tempo dele chegar”, aí eu fiquei muito sentido por mim, depois, de ter feito isso, de ter isso e tal, mas ao mesmo tempo, a minha mãe, acho que, gostava um pouco dessas loucuras que eu fazia, dessas coisas. Então, não estava ali no físico, mas ela é muito presente na minha vida. Ela e o meu pai, parece que estão sempre juntos assim, estão sempre… eles estão por aí, sabe? Em pensamento, na consciência, em algum lugar, eles estão sempre próximos. As vivências foram muito boas em casa, a nossa vida assim, foi muito afetiva. Então as lembranças são muito boas do meu pai e da minha mãe. Então, eu fiquei sentido por isso, né? De não estar aí, junto com ela nesse momento.
P/1 – Tá, mas aí você chegou…
R – Já estava com o bar, eu continuei, eu pedi só…
P/1 – Você retomou… na verdade, você ficou quanto tempo? Quantos meses fora?
R – Não, um mês. Esse foi só para dar aquela relaxada após esse incidente aí, acidente, dessa fatalidade, sei lá… e aí, a vida retomou, né? Aí, em 95, eu conheci a biodança e numa aula de biodança, que a biodança é um movimento afetivo que trabalha muito as cinco linhas do ser humano, criatividade, sexualidade, transcendência, afetividade, e aí, numa vivencia de criatividade, eu fiz uma poesia lá, tinha que fazer uma poesia para um amigo e tal. Aí eu comecei a escrever a partir dali, fui me encorajando mais e tal, isso em 95. E lá, eles faziam um sarau no final do ano, aí eu participei do sarau e numa dessas… aí eu levei para o bar, eu não lembro se foi em 95 ou 96, a gente não chamava de sarau, chamava de Noite da Vela, que tocava os vinil, os bolachão e entre um intervalo até você trocar o disco, não era o pendrive que é tão rápido, que já toca uma música, você tinha que trocar, escolher a música e tal e alguém sempre falava: “Deixa eu falar uma poesia”, eu lembro disso, do pessoal querendo falar poesia enquanto dava aquele intervalo porque era luz de vela no bar. E aí alguém falava poesia, eu comecei a levar alguma coisa de poesia que eu tinha em casa, comecei a buscar mais e começamos a fazer aí um pouco de poesia, mas não chamávamos de sarau. Quem veio dar o nome de sarau mesmo foi o Marco Pezão e o Sergio Vaz que chegaram depois, isso em 2000, parece. E aí, numa dessas noites da vela, eu falei: “Poxa, a gente podia colocar a poesia em poste”, veio a luz, a sacada que você fez aí, veio a luz, na noite da vela, veio a luz. Aí, eu lembro até hoje eu falando para o meu cunhado isso, meu ex-cunhado, falando: “Poxa, a gente podia colocar a poesia em poste”, aí veio uma eleição, o pessoal da biodança me ajudou, porque eu estava querendo fazer um livro de poesia e tal, aí veio a eleição, a gente arrancava as placas dos políticos das ruas e devolvia, o Maluf tinha aquelas placas enormes, a gente arrancava as placas dos políticos das ruas, pintava elas e devolvia com a poesia. Mas nessa época, eu não conhecia ninguém que escrevia, mas o pessoal… aí essas poesias dessa época eram só minhas, porque eu não tinha conhecimento de outras pessoas que estavam. Mas a partir daí isso foi em 97, a partir desse momento que a gente fazia no bar, na noite da vela e tal, a partir daí, pessoas começaram a se conectar e saber que a gente estava fazendo, estava rolando alguma coisa com a postesia. Então, a postesia foi um embrião assim, que a gente só ia colocando poesia, colocava na periferia, no Campo Limpo, na região e saía colocando pela cidade, vinha até a Paulista colocar, tanto é que as minhas amigas foram atropeladas, a Silmara e a Cris foram atropeladas colocando as placas das postesias, estavam muito alegres, eram muito amigas, muito contentes, só andavam juntas, até no atropelamento, as duas foram juntas. Aí foram para o hospital e aquilo foi um susto muito grande para mim e foi uma coisa muito… um baque para todo mundo, mas elas se recuperaram logo e tal e elas eram minhas parceiras nesse processo aí.
P/2 – Você lembra de alguns poemas que foram para os postes?
R – Lembro. Os poemas eram curtinhos, fazia curtinho por conta do trânsito, mas hoje você pode escrever uma página inteira que o trânsito dá tempo de você ler tudo ali que você… dá tempo, mas naquela época não dava.
P/1 – Fala algum, então.
R – Tinha um que eu fiz, eu acho que é uma síntese, nunca mais vou conseguir fazer um poema assim, que ele é simples: “De ahã em hãm, engole-se muito sapo; ahã, ahã”, era isso. Era um Bashô, haicai assim. Mas eu não conhecia muito de poesia. Depois, eu fui ler Paulo Leminski, e fui ler uma coisa do Bashô, porque o Paulo Leminski traduziu algumas coisas, e aí eu falei: “Isso que eu faço tem a ver um pouquinho”, mas eu não sabia que era haicai, eu fazia curto por conta do…
P/1 – Do espaço.
R – Do espaço e você vê, o cefaleia que é aquele lá que eu falei, o Cefaleia é assim, mas foi aquele só, então eu já tinha um embriãozinho, talvez eu tinha visto alguma coisa, algum poema pequeno de alguém e tal. Mas então surgiu aí, em 97. Aí, dessa passagem, a gente com bar, filha crescendo, a gente trabalhando, tudo, sem muito tempo porque o bar toma muito tempo, é muito trabalho, eu fazia isso nas horas que… e sempre tive gente assim, que nem essas meninas e outras, gente que me apoiou muito nesse processo, teve gente que fez a parte de… as telas pra mim, teve gente que me ajudou muito. Teve gente que saía a noite para colocar, para arrancar, então o Jamaica. O Jamaica, cara, era um cara que não falava nada, quase, tinha um problema de fala, de dicção assim, e ele vivia assim, começou a frequentar o bar e tal, mas era aquele negrão bonito, sabe, vinha todo elegante para o bar. E ele me ajudou muito, cara, nesse processo. Ele já faleceu e foi um cara que me deu muita força, sempre me colocando as postesias e outras pessoas também. Às vezes, saía em caravana, estava lá no bar, uns três carros, assim: “Vamos…”, já deixava as placas por ali e saía nessas loucuras aí. E aí veio 98, eu falei: “Poxa vida, um artista plástico podia colocar”, como tinha a ideia da poesia, falei: “Pô, um artista plástico também”, naquela época, o grafite estava começando ainda, não era tão forte, eu falei: “Pô, um artista plástico podia colocar uma tela nos postes também”, ficou essa ideia na minha cabeça. Aí veio a eleição, pum, arrancava as placas, aí fui numa região ali com os funileiros recolher as tintas que era tinta tóxica, tinta de carro, era uma coisa muito forte. No final, o bar virou uma bagunça, que se a vigilância sanitária fosse lá, Ave Maria, me prendia, saía de lá algemado, porque tinha tinta, muita tinta. E as telas também, o bar era pequeno, mas calcada era grande, era numa esquina grande. E aí a gente fez… o pessoal: “Eu não sei pintar” “Colore aí, põe cor aí”, eu sei que ficou uma exposição de umas 400 e poucas telas, cara, nós pintamos. Várias pessoas. Aí eu dei o nome de Postura, tinha postesia, Postura, pintura nos postes e tal. Essa foi a ideia e postura de atitude, de estar mexendo na estrutura, tirar placa dos políticos e devolver. Então, tinha uma postura também ali, tinha uma coisa por trás disso, de querer mexer nessa estrutura, porque você é massacrado o tempo inteiro, cara, a mídia era muito grande, muito forte e você não poder dizer nada, não poder… então, era uma forma de expressar, devolver para a cidade também esse conhecimento, esse conhecimento sem a propriedade intelectual, sem o direito autoral, essa coisa que nos prende, né? Tudo da humanidade, na verdade, e a gente está preso, a padrões aí… como é que o cara descobre um negócio lá no mato e diz que é dele, cara? É da humanidade, por mais que… não pode ser, é patente, não devia existir patente, para a gente poder ser livre, é isso que está amarrando a gente, a nossa energia livre que está aí engavetado, tudo coisas boas que o homem faz, então eu tinha que devolver também essa parte para o povo. Aí veio a Postura.
P/1 – Postura.
R – Então, e criou-se um caldo cultural na região, as pessoas… e sem falar dos Racionais MCs, o hip hop também, muito forte, autoestima para a periferia, botava o dedo na cara… então, aquele movimento foi muito forte… o hip hop, o rap foi muito forte. Eu não tive quase a influencia do rap, não era a minha influência, mas eu ouvia. Mas tudo aquilo foi importante, tudo isso foi importante, aquilo tocou muita gente, me tocava também, mas não que a minha escrita tenha influência. No sarau tem, tem gente que vai por essa linha, que veio daí, veio dessa fonte, bebeu dessa fonte.
P/2 – Você chegou a conhecê-los? Os Racionais?
R – Não, conhecer não, já tive junto, assim, mas… o Mano Brown, depois quando fechou o bar, um outro bar, ele teve apoio, a gente sabe quem você é, mas não… conheço, ele me conhece, mas não… não somos amigos, assim, gostaria de ser amigo do mano Brown (risos), Mano tchau (som de beijo).
P/1 – E chamava como? Bar do Binho?
R – Virou Bar do Binho. O nome desse bar começou… eu queria chamar de Las Tetas, porque no começo, eu trabalhava com avental que era uma teta, e aí deu logo o ibope do bar assim, tal. Mas a Prefeitura não deixou, tinha que ser… aí eu falei: “Põe qualquer nome”, aí o contador virou ao contrário e botou Satets, ficou feio para caramba. Já que não podia o… e aí era Las tetas, no final, mas no final, ficou Bar do Binho. E aí criou esse caldo cultural ali, aí veio 99, eu lancei o livro Postesia. O pessoal falou: “Por que você não lança o livro das poesias?”, que era ideia também original, depois eu desviei o curso, porque eu achei muito mais importante fazer a postesia e foi realmente, muito mais importante do que o livro e aí em 99, eu lancei o Postesia. Eu vendi um aparelho telefônico que eu tinha… naquela época, se vendia telefone, gente!
P/1 – Valia muito telefone.
R – Mas já estava no final da… mas valia muito, mesmo, tanto é que a gente nunca teve um telefone. Nessa época aí, eu tinha esse telefone e aí consegui com esse telefone, eu dei um dinheiro para um amigo meu que tinha uma gráfica em Campinas, o João e aí ele fez o livro para mim, o Postesia, chegou no dia, na hora, atrasado ainda, eu falei: “Meu Deus do céu, não vai ter livro para lançar”, né?
P/2 – Quantos exemplares você fez?
R – Foram 500 e pouquinho. Mas no dia, foi 150 livros, a gente vendeu.
P/1 – Opa!
R – E autógrafos, um autografo que quando acabou, eu tava morto, exausto, porque para cada um… eram amigos, não é ninguém que vai no lançamento do livro do Binho, alguém que não se conhecia, entendeu? Eram os amigos, as pessoas que frequentavam, então você conhecia quem estava comprando. Eu tinha uma história, então cada qual eu tinha uma dedicatória, realmente, um valor que era importante para mim e para a pessoa que estava… e aí foi um sucesso assim de vendas (risos). Então, esse caldo cultural criou coisa na região, com tudo isso, né, rodando. E o pessoal: “Ah, tem alguém que faz”, tem um cara, o Levy – Levy, onde você tiver, meu amor, sumiu esse cara da minha vida, era um artista plástico – ele viu a placa na rua, ele desceu do ônibus e falou: “O que é aquilo?”, ele viu a postesia, ele morava no Caxingui, aí ele falou: “Meu Deus, o que é isso?”, mas não tem endereço, não tinha nada, era uma poesia, tinha lá “Postesia” e estava lá Binho, mas não tinha referência nenhuma de nada, como é que ele ia? Aí passou um ano, sei lá, ele conversando num bar em Pinheiros, aqui, com um cara, falando da história: “Pô, eu vi umas placas assim…”, aí um cara que era professor lá, falou: “Pô, eu conheço esse cara", é o Binho, tal, tal, tal”, no outro dia, ele baixou lá para me conhecer, para pedir autorização das poesias para ele, que estava pintando uns quadros com as poesias. E aí eu e o Levy, a gente ficou amigo, eu tenho quadro dele lá em casa, hoje, é um puta artista, mas ele está sumido da minha vida, nunca mais eu vi, eu não consigo achar ele. E aí tem essas histórias, a postesia criou essas coisas e ela foi um embrião… até hoje, o pessoal lembra… hoje o pessoal que não me conhecia: “Mas você era aquele cara da postesia?” Gente que frequentava sarau, começou a frequentar o sarau, ela foi importante, o Ferréz falou pra mim também que ele viu as postesias, que ele ia, ele falou: “Pode ser que de repente, isso possa ter me influenciado a alguma coisa”, ele deu uma dica pra mim. A gente é amigo e tal e aí foi importante para algumas pessoas, ver aquela ação naquela época. A postesia para mim foi um grande catalisador desse sarau, dessas coisas que estão rolando hoje, ela foi muito importante. Teve um tempo que eu achava que não tinha nada a ver, mas hoje eu vejo que vendo assim, a história, contando, ver como é contada, poxa, são degraus. Eu precisei passar por ali, precisou existir aquilo, eu precisei estar com o bar para poder acontecer essas coisas todas. O bar foi um grande catalisador de conhecer esse monte de pessoas, aí veio o movimento cultural que a gente fazia reggae, então criou um caldo cultural ali. Na esquina do bar, quando a gente fazia os reggae, eram mil pessoas na rua, sabe o que é isso?
P/1 – Mil?
R – Mil, mil pessoas na rua, cara! Era uma loucura. Isso já em 99, 2000.
P/1 – Binho, e que esquina que é essa?
R – Esse daí, desse primeiro bar… eu sempre estive nas esquinas, caras, olha só as encruzilhadas, né? A força, a energia das encruzilhadas é… isso foi na Francisco Peixoto, que é a rua da Escola Presidente Kennedy com a Miguel Goncalves Correia, que é onde eu vivi a minha vida, estudei nessa escola. Acabei fazendo história ali, depois.
P/2 – E quando foi que ganhou o nome Sarau do Binho?
R – Sarau do Binho veio em 2004. Porque esse bar, depois, teve… então, foi muito sucesso no bar, teve muito movimento e é periferia, cara, então é embaçado você fazer… imagina mil pessoas na rua! Então tivemos umas coisas lá que aconteceram de ter muitos problemas, aí o bar foi fechado também, aí foi tudo…
P/2 – Quer contar?
P/1 – Conta, conta!
R – Então, desses reggae aí, depois, teve um dia lá que deram um tiro, um menino morreu, graças a Deus fora do bar, assim. Até não era nem no bar, mas como era o movimento grande, as pessoas ficavam na rua, e aí teve isso. Aí veio todo mundo, veio polícia, veio Prefeitura, veio todos os órgãos que podiam e aí fechou, não teve condições de… nem a dona do imóvel queria mais alugar para nós porque a pressão foi muito grande. Mas também, pô, você faz um negócio desse, movimenta gente e não tem ninguém que te ajuda! “Pô, está acontecendo alguma coisa ali, vamos ver, os jovens estão na rua, estão ali, o quê que dá para ajudar aqui? O que dá para fazer?”, pô, quem é que faz uma reunião que põe mil pessoas na rua, cara? Precisava ter um apoio pra isso, não um apoio financeiro, enfim, olhar isso. Como lá, por exemplo, a molecada tinha as bicicletas, uma rua que enchia de bicicleta, mas não podia, o que ele fazem? Olha que movimento bonito! Esse monte de bicicleta está fazendo… vai lá, reprime, acaba com o negócio. Pô, uma ação que está ali acontecendo, vamos ver no que dá para ajudar aqui nesse processo, né? Acha mais fácil sempre reprimir do que viabilizar, o povo na rua é perigoso.
P/2 – Mas esse é o bar que teve todo o movimento, que…
R – Não, aí então eu fechei esse bar. Aí nesse interim, eu fiquei nove meses entre abrir um bar e outro. Aí, eu fiz nesse meio, a gente fazia bolo pra vender, fazia umas tortinhas, a coisa não estava indo muito certo, né? Aí um dia, a gente deixou num lugar, os bolos encheram de formiga, eu falei: “Ah não, vamos fazer outra coisa”, aí montamos o bar de novo. Mas antes de abrir o bar, eu fiz uma viagem, que eu queria conhecer o… eu fui no Centro Cultural e aí eu fui visitar lá e na época, eles estavam reformando e estava chovendo numa estante próximo ao livro do Manoel de Barros e eu quis roubar aquele livro, era um livro não sei se é “Arranjo para a subida do pássaro”, eu não lembro do nome do livro agora, eu sei que ele estava autografado pra um cara que… eu também não sabia, que era o Sérgio Milliet, que a biblioteca, depois eu vi… ele é um critico…
P/1 – É o nome dele?
R – É o nome dele, né? Eu nem frequentava o Centro Cultural, aquele dia eu fui para lá e tal. E aí eu quis roubar o livro: ‘vou roubar esse livro’, aí não roubei o livro, fui lá, ajeitei ele certinho, botei ele longe de onde estava respingando, arrumei aquela prateleira que estava respingando e naquela noite eu não consegui dormir, cara. Aí eu comecei a ficar pensando no Manoel de Barros, eu estava apaixonado pelo Manoel de Barros. Aí eu falei: “Puta merda…”, porque eu já tinha escrito para ele, eu tinha mandado acho que o livro “Postesias” para ele, eu pedi para editora, a editora encaminhou e aí, veio o endereço dele, pelo endereço dele, depois eu escrevi… ah, vou contando torto, porque eu não me lembro das datas, como diz o Riobaldo, ele que fala isso, quando ele está narrando pra alguém lá no Grande Sertão, ele vai… e aí o Manoel de Barros escreveu de volta, que ele botou um poema lá: “Nossa adorei esse poema, a TV não vai conseguir fazer isso em mil…”, fez o maior elogio para o poema, cara, que eu tinha feito para um menino, amigo nosso, que tinha tentado se suicidar. Aí eu escrevi um poema, o Manoel elogiou esse poema, eu enfim, falei pra Suzi… aí já é outra história, eu queria conhecer, eu escrevi uma carta para o Manoel, falei com a Suzi, estava deixando ela no ponto de ônibus, falei: “Suzi, eu queria falar uma coisa para você”, ela falou: “O que é?”, aí eu falei: “É sobre o Manoel” “Manoel? Que Manoel?” “Manoel de Barros, tal”, a gente tava sem grana, enfim, moral da história, fiz uma faixa, escrevi uma carta, fiz uma faixa, pedi para um amigo meu, ele me deixou na Castelo Branco: “Aceito carona, rumo ao poeta Manoel de Barros”. Enfim, aí eu não consegui, voltei para São Paulo, não conseguia carona, passei lá a noite, aí tinha um cara lá, conheci um cara, eu estava dormindo assim, no final do posto de gasolina assim, acordei às quatro horas da manhã, mais ou menos, com um cara armando uma rede em cima de mim, cara, o posto é grande, tinha um monte de lugar, o cara armando uma rede em cima de você? Aí acordei assim: “Preciso ficar esperto”. Aí conheci o cara e tal, resumindo, o cara foi embora, ele falou: “Não, pode deixar que eu conheço os caminhoneiros”, comprei o marmitex, dividi com ele e o cara foi embora, aí eu me senti abandonado. Olha que louco! Eu já estava sozinho na história, mas eu me senti abandonado por aquela situação. Aí eu não conseguia carona, voltei para São Paulo, peguei um ônibus com os familiares dos presos que era muito mais barato, consegui e aí eu fui, desci em Araçatuba, que eu tinha uns primos lá, aí de lá, eu fiquei lá, os meus primos conseguiram uma carona, aí eu fui com o Paco, que era o motorista, ele me deixou dormir na casa dele, no outro dia, a gente teve que levantar cedo, falou: “Vou te deixar perto de um ponto de ônibus que vai até a cidade”, aí ele me deixou, só que no meio do caminho, até chegar no ponto de ônibus, eu vi umas formiguinhas, assim, passando e falei: “Nossa…”, e eu tava impregnado de Manoel de Barros, eu levei fone de ouvido e eu ouvia Manoel de Barros, as poesias dele, e livro e tal. Então eu cheguei… poroso de Manoel de Barros, tudo, minha consciência… era Manoel de Barros. E aí, me veio um poema, eu vou falar o poema agora, aí quando eu voltei eu fiz o poema, mas é assim… eu vi aquelas formiguinhas, eu me achei muito grande diante daquelas formigas. É assim: “Voltando de Manoel de Barros: Até onde eu quero ir com minha incompletude; Até a meia noite de um rio? Até quando um homem aguenta de não morrer? Em mim o silêncio faz a festa; Sou cheio de dentros; Sou tão de misericórdia quanto de petição; E de eu ser assim tão ermo me destaco da paisagem; E dá gosto de haver-se estado gente um dia; E dá gosto de haver-se estado gente um dia; Quanto mais pra dentro o demônio me combina; Mais me amplia para Deus; Sei que a ninguém pode acontecer isso; Mas eu chuvo no meu ser”. Eu mudei esse poema depois da ayahuasca, mas isso já é em 2013, vamos voltar para lá…
P/1 – Você está olhando a formiga…
R – Eu troquei, eu falava “Quanto mais pra dentro Deus me combina; Mais me amplia para o demônio”, poeticamente talvez ficaria mais bonito, mas poeticamente hoje, eu acho mais bonito ao contrário, do jeito que agora é.
P/1 – Mas então, você tava olhando a formiga, fez o poema e ainda estava muito longe de chegar lá em Campo Grande?
R – Não, já estava em Campo Grande, só que o caminhão não podia entrar, então por isso que ele me deixou ali. Aí eu fui até um ponto de ônibus, ele me deixou a uns dois quilômetros, daí eu peguei pelo endereço, para casa do Manoel. Mas o Manoel não sabia que eu ia. Quando eu escrevi a carta daqui de São Paulo, eu escrevi uma carta de amor, praticamente, aí eu escrevi assim: “Estou indo Manoel, estou indo”, assim e fui. Aí quando cheguei em Araçatuba, aí eu mandei outra carta pra ele, porque demorou, é um processo longo para chegar, até eu consegui a carona e tudo… aí quando eu cheguei lá, mas não foi assim, primeiro, eu fui, vi a casa, tudo, não consegui bater na hora, era muita emoção. Aí, eu fui para a esquina, respirei, gravei… eu acho que eu tinha um… eu já perdi isso aí, mas eu gravei aquele sentimento, aquela emoção, aquelas coisas que eu estava sentindo ali, antes de chegar na casa. E aí depois, eu tomei coragem e fui. E aí alguém atendeu e depois chamou ele, aí ele veio, me recebeu, falou: “Rapaz, você deu muita sorte”, essas foram as palavras dele: “Cheguei hoje cedo do Pantanal”(risos), aí me convidou para entrar, passei o dia com ele lá, almoçamos juntos. Aí eu falei do Bernardo, o Bernardo da Mata, falam que é o alter ego, do Manoel, aí ele falou: “Você quer conhecer o Bernardo?” “Claro que eu quero”, aí o filho dele, o Pedro me levou para conhecer… me levou num asilo, para conhecer o Bernardo, que era aquele ser angelical, inocente que ele fala, os passarinhos vinham pousar nele, de tanta pureza que tinha o Bernardo. E você acha que eu não quero conhecer um cara desse? Aí eu fui conhecer o Bernardo. Então foi assim… passei no dia, conversamos um monte de coisa, me levou, falou: “Você veio de tão longe, vou levar você para conhecer a Toca”, que é o quartinho dele, onde ele escrevia, diz que ele ficava das sete da manhã até o meio-dia escrevendo lá, ele disse que só saía dali… ele falou que era muito transpiração, que era mais transpiração do que escrever. Aí passamos o dia, falamos de Guimarães Rosa, falamos de tanta coisa, de Padre Vieira, ele falou: “Você tem que ler o Padre Vieira, Machado de Assis, tem que ler Machado de Assis”, deu conselhos: “Muda o seu nome pra… usa o seu nome mesmo, não usa o apelido”, mas ele não sabia a dinâmica da periferia, o Binho, essa coisa de referência do apelido na periferia, ainda mais um apelido quando vem dado pela mãe, pelo carinho, né? Então, por isso que eu uso, talvez um dia eu siga o conselho do Manoel.
P/1 – Então uma experiência marcante, né?
R – Foi. O Manoel foi para mim, um sonho, assim! Um outro cara que eu queria ter feito uma loucura dessa era João do Vale. João do Vale para mim, também, é uma referência assim, da música brasileira, um cara que eu queria conhecer. E o Manoel, aconteceu uma coisa muito interessante, eu não podia ficar lá, ele falou: “Vou fazer o seguinte, eu vou te dar um dinheiro para você ir para um hotel”, eu falei: “Não, Manoel, o que eu vim fazer, eu vim aqui, já está cumprida a minha missão, eu vim aqui para te conhecer, para ter esse momento. Daqui, eu estou voltando já”, aí o filho dele foi, depois, me levou para a rodoviária, cheguei lá, eu tomei cerveja, nem bebia, eu estava tão… sabe, contente com aquela situação de ter realizado aquele sonho, né? Aí, depois consegui outra carona, aí eu vim com outro caminhão depois de Araçatuba para cá, o Vitor e foi legal, porque eu contei a história, aí depois colocava no rádio, passava para todos os caminhoneiros a história do poeta que conhecia o Manoel de Barros, eles não conheciam também, mas acharam a história legal e passaram para os caminhoneiros, para eu falar com os caras, (risos) foi legal isso aí.
P/2 – E aí, você voltou e virou Sarau do Binho?
R – Aí abrimos outro bar, aí não teve mais jeito, a situação, as formigas no bolo. Aí abrimos outro bar lá no Campo Limpo, também, na esquina lá, aí já perto da faculdade, onde era a Uniban. E aí, ficamos quase dez anos, também. De 2004 a 2012, não, oito, oito anos. Um bar foi dez anos, o outro… aí fiquei nove meses, aí abrimos o outro.
P/1 – Então, fazendo a cronologia, o Sarau do Binho começa no antigo…
R – É, o embrião, o sarau com toda essa situação… mas não chamávamos de sarau…
P/1 – Ele é chamado de sarau só no segundo bar?
R – É, a gente fez sarau esporádico lá no outro, aí sim: “O Sarau tal”, já conhecia pela biodança, né?
P/1 – Então Binho, quando o sarau então foi implementado?
R – Em 2004. Em 2004, eu abri o bar acho que em abril ou março, tem a data lá, 1º de abril, abri o bar, dia da mentira! Parecia mentira, né? Foi 1º de abril a inauguração do novo bar, de 2004 e aí em maio já começamos a fazer sarau. Aí, batido, toda segunda-feira, que aí já se conhecia muita gente, já tinham os poetas e tudo, né?
P/1 – Então, conta para quem não conhece como é que era uma noite lá no Sarau do Binho, como é que funcionava? Como é que começava? Como é que terminava?
R – O Sarau começava (risos), começamos a fazer o sarau e ele foi tendo… eu escolhi até a segunda-feira, que era um dia tranquilo, que falei: “Pô, quero um dia para poesia, pessoal vem que dá pra…”. Mas ele foi se tornando um sucesso tão grande que era o dia mais movimentado do bar. A gente não esperava que fosse, é uma coisa sem muita pretensão mesmo. Já existia a Cooperifa nessa época, muita gente da Cooperifa também… eu também estava lá, no começo da Cooperifa eu estava, junto com o Pezão, com o Sérgio, a gente fazia o sarau, o Sérgio convidava, o Pezão… o Pezão, olha que interessante, ele foi o primeiro cara que fotografou a postesia, cara, ele botou a foto num jornalzinho que ele editava, que aliás, que ele trabalhava, então aí depois, um tempo depois, a gente juntos fazendo essas coisas aí. Aí, o Sarau começou sem muita pretensão, fazia poesia ali e tal. Aí depois, incorporamos algumas músicas, o pessoal vinha com música também e foi tendo aí… 2004, 2005 e aí foi até 2012. Em 2005, 2006, 2005, eu participei de uma caminhada em Minas, eu e o Wagnão, um amigo nosso aí que tinha uma banda chamada Banda Preto Soul, e a Suzi foi também, a Naiana, só que elas não caminharam, caminharam alguns trechinhos, era 200 quilômetros de caminhada, chamava Caminho da Luz, em Minas Gerais. Quando eu voltei, isso foi em 2005, aí em 2006, eu fui para Cordisburgo, que era 50 anos do Grande Sertão, 50 anos? Tá certo isso?
P/1 – Não, 50 anos foi agora. Deve ter sido uma outra data.
R – Ele lançou em 60 e… o Grande Sertão, ele lançou... bem, tudo bem, eu sei que foi 50 anos do… aí depois, a vida continuou, sarau, esse monte de coisa e eu queria fazer uma caminhada pela América Latina, eu e o Serginho Poeta. Aí em 2007, nós lançamos o livro “Donde Miras”, que era dois poetas e um caminho pela Edições Toró do Allan da Rosa. E aí eu falei: ”Pô, Serginho, a gente pode…”, esse foi em 24 de junho de 2007, o lançamento do Donde Miras, aí eu querendo conhecer a América Latina, aí falei: “Vamos fazer o seguinte…”, inspirado lá no… não sei se o Serginho já restava inspirado na história do Che Guevara, lá, e aí eu falei assim: “Vamos caminhando”, ele falou: “Não, vamos de bicicleta e tal para dar um rolê”, falei: “Não, vamos andando que todo mundo pode ir com a gente”, e comecei a botar pilha no povo, mas eu não acreditava muito, esse Binho está louco, como é que vai sair daqui andando, porque a ideia era daqui até… a ideia original era chegar no México um dia, eu pensava, até no muro assim, aquele murão que está lá, o Muro da Vergonha, né? Que faz fronteira com o México, seria muito simbólico você andar uma América Latina todinha e chegar lá num muro daquele, tem um muro em terra de mexicanos, dos atlantes lá, os astecas, os maias. Aí depois o sonho foi diminuindo, vamos fazer o que dá para fazer, bom, vamos fazer o seguinte: “Vamos até Curitiba, fazendo sarau isso, não era só caminhar”. A ideia era fazer sarau. “Vamos até Curitiba, se a gente chegar em Curitiba, um dia a gente chega no Chile”, pô, daqui a Curitiba, pelo caminho que a gente fez, deu quase 550 quilômetros, o Chile eu não sei quantos quilômetros tem, mas dá para ir, a gente chegou em Curitiba, era só continuar a estrada, vão bora, larga tudo para lá. Enfim, aí fomos. Chegou em janeiro, comecei a falar, aí outras pessoas do sarau começaram a se juntar, tinha um pessoal da Brava, também ajudou a gente, pessoal do teatro e começamos a trabalhar e o pessoal ali, todo mundo do sarau, gente que não era também e vamos, e o pessoal começou a acreditar: “Esses caras vão mesmo, esse cara é doido!” Aí, uma data, me veio uma data na cabeça assim, meio que sei lá, 5 de janeiro, que era uma data também que dava para ir todo mundo, por causa de férias e tal. Aí, fomos até Curitiba fazendo sarau, de cidade em cidade, assim nasceu o Donde Miras. Mas isso só foi possível por conta do sarau, de já ter existido o sarau, uma epopeia isso aí e fomos, chegamos em Curitiba em 33 pessoas.
P/1 – Em quantos dias?
R – Trinta e três pessoas, em um mês, que a gente não ia só caminhando, a gente parava na cidade, conhecia os artistas locais, os que dava para conhecer, sem produção, sem nada. A gente saiu daqui de São Paulo. A gente tinha lugar para ficar até Juquitiba, mais ou menos. Então aí, o pessoal que ficou que ajudava também já tentando fazer com as outras prefeituras e tal, então a gente ia numa cidade, ia falando para a outra e tal. Assim que a gente chegou em Curitiba. Passamos em aldeias, em quilombos, que eu tinha um sonho de fazer um pouco essa matriz brasileira, essa coisa dos quilombos, das aldeias e do caminho Peabiru, que era o caminho dos antigos, dos indígenas que tinham por aí.
P/1 – Esse era o projeto lá do Donde Miras?
R – Do Donde Miras.
P/1 – Tá. E isso foi então… só para ter na cronologia, isso foi no ano de…?
R – Dois mil e oito.
P/1 – Dois mil e oito. Mas o sarau começa então, oficialmente, em 200 e?
R – Quatro.
P/1 – Então, nós já estamos falando de 11 anos de atividade, aí, de sarau.
P/2 – Sarau dito com esse nome, né, porque…
P/1 – Sim, com esse nome.
R – Sim, sim.
P/1 – E aí para quem nunca foi num sarau seu, conta assim, como é que é o cotidiano no sarau? Como ele começa, o que rola?
R – O sarau, a ideia é pegar um pouco de cada um, do que está aqui dentro, dessa criatividade que todo mundo tem, basta a pessoa observar um pouco nela mesma e começar a trabalhar isso. Isso aí é um dom que já veio, todos nós temos. E a ideia é essa pessoa se expressar, porque eu sempre acreditei que o caminho da criatividade é o caminho que vai nos livrar do mal. Então, quando o sujeito consegue se expressar; ah, o nosso palco, por acaso tinha um palquinho, assim, 20 centímetros do chão, mas o cara subir naquele palquinho ali, para recitar uma poesia tremendo, pra mim, eu ganhava a noite! Isso, todos começaram assim, tremendo, com um papelzinho na mão, muitos de guardanapo ali, ou de algum livro de poesia que a gente levava e um de ver o outro, se espelhar, se espelhar no outro. Como eu cresci com a poesia com o sarau, com as pessoas do sarau! Eu fui um privilegiado, muito, porque cada um que veio trouxe algo e isso me cresceu. E até hoje eu faço, porque cada vez, é um crescimento. É um crescimento espiritual, um crescimento intelectual, um crescimento como pessoa, como melhorar, a gente melhora. A gente vai se enxergando melhor, vai compreendendo melhor o outro também. A partir do outro… o outro revela… o outro me revela.
P/1 – E tem alguma segunda-feira, assim, marcante?
R – É difícil falar, porque é incrível. Cada sarau foi um sarau, cada sarau teve o seu… gente que veio, gente que veio de longe, cachorros que passaram por lá, muitos cachorros. Muitos cachorros passaram pelo sarau, eu não sei o que tinha ali, que os cachorros protegiam a gente. Tinha cachorro que ele sabia que o cara não estava em sintonia com o sarau. Se chegava um bêbado lá, meio trançando, que já veio de outro lugar ou alguém que destoava, o cachorro latia para a pessoa. E ele frequentava o sarau toda segunda-feira, cara! Esse cachorro ficou um tempo com a gente, cara! Um tempo, assim, frequentando. Puxa vida, falar assim…
P/2 – Teve dos índios também, né?
R – Esse agora, já, o sarau xamânico, né? A gente fez um sarau xamânico, primeiro sarau xamânico, no Sarau do Binho, que a gente fez, que convidou o Mário, que é um dirigente lá da Ayahuasca e os índios Fulni-ô juntos para fazer esse primeiro sarau xamânico. Então, o sarau tem essa característica, ele pega de todas as fontes da expressão humana mesmo, o que cada um pode trazer, contribuir ali. Mas o que vale assim… e hoje, eu torço muito por isso ainda, a gente está fazendo no Clariô que é muito legal e tem o sarau da praça do Campo Limpo também que a gente faz…
P/2 – Mas conta porque vocês estão fazendo lá e não mais no…
R – Sim, sim! Então, você falou de segundas-feiras, ah, eu não vou lembrar de coisa assim, teve gente que ficou pelado, porque a gente acho que fazia parte da poesia, performance. Teve gente que surtou, teve gente que entrou ensanguentado dentro do bar, vindo de outra treta e na hora do sarau assim, um japonês massa, todo… teve gente que foi roubada e o assalto parou no meio… teve duas vezes, cara, esse caso. Que uma foi com o meu cunhado, os caras enquadraram ele aqui no Eldorado, levou ele lá pro João XXIII, no meio do caminho, ele deitado atrás do banco assim, no passageiro, lá atrás, os caras com um revólver na cabeça dele, ele começou a conversar com os caras e acho que os caras pararam no posto de gasolina, ele era taxista e aí o cara… ele falou do Campo Limpo, aí o cara falou: “Campo Limpo? Mas quem você conhece no Campo Limpo?” “Eu conheço fulano e o meu cunhado tem um bar lá” “Quem é o seu cunhado?” “O Binho” “O Binho?”, parou o assalto, parou o assalto no meio, devolveu o dinheiro dele, que eles tinham pegado, ele falou assim: “Só leva nós até ali”, deixou os caras lá num lugar… passado uma hora, umas duas horas, eles se encontraram lá no bar. Primeiro o cara falou assim: “Binho, desculpa aí, a gente pegou o seu cunhado”, eu nem sabia que o cara era ladrão. Falou assim: “Binho, desculpa aí, a gente pegou seu cunhado, mas ele está aí, está de boa e tal”, o meu cunhado não sabia o que fazer quando me viu para agradecer (risos). Então tem essas histórias malucas.
P/1 – E todo mundo dos poetas já estiveram no Sarau do Binho?
R – Eu acho que sim, espero que não, também, né? Muitos não foram ainda, muitos não foram. Espero que venham todos, e a gente faça essa ponte, essa ponte entre as pessoas, o afeto, o que vale é o amor, a gente faz isso para estar com as pessoas, na verdade. Eu acho que o sarau é desculpa para a gente estar com as pessoas e a gente quer isso, esse encontro da poesia, do afeto, do abraço. Eu carreguei muito da biodança para o sarau, assim, que a biodança treina a gente para os abraços, mas treina não é uma coisa automática, é ver o abraço como essa troca mesmo, de humano, que a gente… esse potencial que tem, essa energia que tem e é difícil um sarau que a gente não termina num abraço assim, sempre roda também, quando dá, sempre a gente faz roda, pega na mão, está junto, fazer a coisa junto porque muitas vezes, a palavra, ela… como que é? Ela nos amarra, a palavra é muito forte, né? A palavra é sagrada, até, né? A gente devia falar muito pouco, até (risos), a gente devia falar muito pouco.
P/2 – Então assim, para quem está assistindo em 2095 essa entrevista (risos)…
R – Foi um fato que se deu um dia…
P/2 – Só para saber assim, que tem muita história mesmo, que graças a Deus, a gente tem a oportunidade, como a gente está fazendo o Projeto Kombiblioteca, cujo nome também, o criador é o Binho que está dando a entrevista aqui, eu descobri depois, mas vai ter uma segunda parte da entrevista, que ele vai contar a história inteira do sarau, da bicicloteca, dos outros projetos dentro da Kombi, assim, mas…
R – Eu reativei a bicicloteca ontem, cara!
P/2 – Aproveita e quer contar da bicicloteca?
R – Não sei, tem tempo aí?
P/1 – Tem. Conta um pouquinho aí da…
R – Vou falar do fechamento do bar…
P/1 – Fechamento do bar.
R – E aí…
P/2 – Bicicloteca e mais uma coisa.
R – Então, passou esse processo da caminhada, nós já fizemos quatro caminhadas, inclusive essa semana morreu o escritor Eduardo Galeano, que ele foi o primeiro… essa primeira caminhada, eu quis fazer ela com o mote da América Latina, mesmo. Então, a gente… falei com os amigos, pessoal, a gente foi lendo trechos do “Veias Abertas da América Latina”, que a gente não sabe, essa América, não sabe como é que é o processo histórico de exploração, ninguém sabe nada disso, e a “Veias Abertas da América Latina”, o Eduardo Galeano dá um show. Tanto é que o Chavez deu de presente para o Obama, né, um livro “Veias Abertas da América Latina”(risos). E aí a gente lia trechos nessa caminhada. Aí teve a segunda caminhada que foi a rota guarani, desse povo guarani maravilhoso, que resiste e tem aldeias aqui em São Paulo, eles levaram a gente, foram oito guaranis, 56 pessoas na trilha, cara! De Parelheiros até Itanhaém, a gente foi em 12 horas com esses guaranis, porque eu quis aprender um pouco… a ideia do Donde Miras era essa, conhecer um pouco de cada língua da América Latina, um pouco de guarani, um pouco de aimará, quíchua, mapuche, enfim, outras línguas que estão aí, náuatle, um pouquinho de cada uma. Então, eu fui tentar aprender guarani um pouco, aí essa foi a minha aproximação. Então, teve a rota caipira, que a gente foi até Botucatu. Já teve a do Pré-Sal, então nós já fizemos quatro caminhas e espero que o próximo seja em cima do grande sertão, que o meu sonho é fazer um pouco trechos do grande sertão, porque hoje está cheio de eucaliptos e acabou com tudo! Me dirige aí, qual é a outra…?
P/1 – A transição do sarau no bar para as suas outras ações sem bar.
R – Então, aí por a gente estar com o bar e o microfone ser aberto, o poder locar mais próximo é a subprefeitura, então a gente foi perseguido, o espaço lá, tanto é que a gente começou fazer, aí eu não quis colocar a faixinha do vereador, não quis apoiar aquele vereador e a gente sofreu consequências por conta disso. Aí depois, fecharam o bar, fui condenado, até, pela Justiça, porque a gente insistiu em trabalhar e eu fui condenado, tive que pagar 150 horas de… era mil reais ou 150 horas, eu falei: “Ah, vou… já faço tanto trampo, mesmo, né?”, mais um, mas foi tanta burocracia para fazer isso aí. Eu queria fazer sarau na escola, cheguei numa escola perto de casa que tinha convênio lá com os caras, a diretora mandou alguém lá, não me recebeu, eu insisti, aí depois ela me recebeu já com o carimbo na mão: não atende às necessidades da escola. Eu não quis me mexer, nem nada, mas assinou atestado de sei lá, burrice, de incompetência, de não vivência da parte dela, da coisa que acontece ao redor, né? E eu cheguei na escola, vi lá: “Sarau do Binho”, num grafite, poesia, Sarau do Binho, né? Cheguei e encontrei um professor que me conhecia, falei: “Puta, aqui vai ser legal, né?”, mas na hora que eu subi a escada… mas vamos voltando. Isso foi recente. Aí, o bar foi perseguido e fecharam, realmente o bar. Não tive condições, recebemos duas multas, fizemos uma campanha no cartaz, o pessoal ajudou a pagar essas multas, foram 12 mil reais de multa, depois teve uma outra…
P/1 – Ah, você fez um crowdfunding no cartaz para pagar a multa?
R – Para pagar as multas. Foi bravo demais, eu não tinha condições de pagar, fechou assim, de uma hora pra outra. De um dia para o outro, eu tive que…
P/2 – Porque vocês não colocaram placa do vereador, foi isso?
R – Claro que não foi isso, né, eles não… jamais…
P/1 – Era o momento do Kassab, né?
R – Foi. Mas o primeiro momento que deu assim, ou deve ter tido uma reclamação, eles foram lá, multa! Eu tive dentro da Prefeitura, o cara falou pra mim assim, antes, falou pra mim: “Você está disposto a vender sua alma para o diabo?”, falou isso pra mim, cara! Eu fiquei desconcertado, eu não sabia, eu falei: “Meu Deus, o que esse cara está falando comigo?”, aí eu não falei nada, ele falou: “Mesmo assim, eu vou dar uma olhada na papelada”, não, não, eu falei: “Mas como assim?”, queria saber, eu pensei: ‘ou é dinheiro ou é voto’, e foi voto, na verdade, era voto. E aí ele foi lá, ficou uns dez minutos, acho que foi tomar um cafezinho, voltou, falou: “Puxa, seu caso está difícil, hein? Infelizmente, eu não vou poder fazer nada”. E aí, os alvarás estão aí, eu brinco até, falo: “Brasil não tem alvará de funcionamento para funcionar do jeito que funciona”, e é o único bar da região… todos, 98% não tem alvará…
P/1 – Mas foram pegar o seu?
R – O meu, o meu, eles queriam o meu alvará.
P/2 – Coincidência!
R – Coincidência, né? O meu alvará de funcionamento!
P/2 – Você lembra algum trecho daquele poema sobre isso?
R – Não, não lembro. “Era um bar que queria ser um bar…”, puxa vida, mas depois…
P/1 – Na segunda rodada, vocês gravam, né?
R – Aí fechou o bar, mas nesse meio, a gente inventou a bicicloteca. A bicicloteca eu inventei na caminhada. Tava em Mongaguá, eu falei… eu tinha levado uns livros daqui, falei: “Como é que eu vou fazer?”, queria aproximar mais as pessoas. Aí a gente ia com a bicicleta. Comprei uma bicicleta por 39 reais em Mongaguá e a gente… isso no trecho da caminhada, essa até Cananeia, a gente foi andando até Cananeia e aí colocava na bicicleta os livros e batia palma nas casas, oferendo os livros e já avisando que ia ter um sarau à noite. Aí nasceu a bicicloteca, nessa caminhada. Aí quando eu voltei, falei: “Puxa, mas dá um projeto fazer isso”, aí mandei um projeto para o VAI, que o VAI foi um projeto muito importante que deu apoio para muita gente na periferia, chegou pouco dinheiro e aí o pessoal fez a evolução assim com isso. E a gente conseguiu e fizemos a bicicloteca na região do Campo Limpo, assim nasceu a bicicloteca. Depois, outra pessoa viu, ouviu… também começou a fazer aí acho que no Centro, tal, e o cara também chamava Robinson, cara, olha que louco! Então, aí fechou o bar em 2012, eu fiquei meio perdidão, sem muito saber o que fazer, aí a Suzi começou a trabalhar bastante com essa coisa de mandar a divulgação do sarau, porque acabou tendo o nome também, e depois, os caras me chamaram lá na sub lá, que era época de eleição, eles ficaram, meu, porque deu ibope, sabe? Aí eles chamaram para fazer um acordo assim, meio… eu pensei: “O quê? Fazer acordo com esses caras?”, falei: “Deixa quieto”, falaram: “Arruma um canto e aí a gente acelera o processo”, tal. Eu não quis não, eu falei: “Deixa quieto”. E aí fechou, eu fiquei assim, aí começamos a fazer sarau itinerante em vários lugares, e aí hoje, a gente faz no Espaço Clariô de Teatro, em escolas, em praças, aí estou com esses projetos aí…
P/1 – Quantos anos você está fazendo nesse formato?
R – O sarau?
P/1 – É, itinerante.
R – Fechou o bar, eu comecei já. Começamos, o bar fechou em junho, eu acho de 2012, depois a gente abriu… eu fiquei ainda uns quatro meses… três meses pagando aluguel, cara, pra poder ver se eu conseguia reverter a situação e hoje, lá é um bar. Nós não podíamos e hoje tem outro bar lá.
P/1 – E em qual esquina que foi esse bar? Você falou do primeiro a esquina.
R – O nome da rua? Ixi, é Coronel Souza Ferraz com… esqueci o outro nome, bem na estrada do Campo Limpo, ali do lado da Anhanguera, ali, da faculdade.
P/1 – E Binho, e que lugares você já foi agora, no itinerante? Você falou escolas, o que mais?
R – Com o sarau?
P/1 – É.
R – A gente já fez até dentro de presídio, já fez em praça pública, a gente faz também. Em escolas, bibliotecas, que a gente faz. Fizemos até dentro de ônibus, já, sarau. Assim, nesses lugares, onde às vezes, dá para fazer, a gente se reúne e… em casas de pessoas, também, garagem…
P/2 – Você fez um sarau com os índios quando você quis aprender uma língua indígena…
R – Já fizemos sarau com… como é que chamou? O primeiro… eu fiz sarau lá na aldeia indígena, com os guaranis, Futsarau, olha que doideira. Nós fomos jogar bola, marcamos um jogo com eles, com os guaranis, deu 3 a 6 o jogo, cara! Que legal! Jogo de compadre, né? Só que a gente saiu perdendo no sarau, né? Eles são muito mais lindos do que nós, muito! A hora que aquelas crianças começam a cantar, os guaranis, é de uma ancestralidade, de uma coisa linda! Então a gente saiu perdendo no sarau, porque eles são muito mais bonitos do que nós.
P/1 – Faz agora as perguntas de finalização.
P/2 – Você disse que… eu lembro até, vamos dizer, eu estou frequentando muito a poesia, no ano passado você fez 50 anos, eu até lembro que teve, nossa, um grande evento, todo mundo comentando assim: “Cinquenta anos do Binho”, assim, e aí chegando aqui, você falou: “Não, mas agora eu acabo de renascer com aquela história do fígado”, que você vivenciou na Ayahuasca, assim, queria que você contasse essa historia, porque foi muito marcante, assim.
R – É, esse período aí, eu tive pedra na vesícula e aí eu comecei a pesquisar as coisas, mas até eu descobri que era pedra na vesícula, que o problema estava no fígado, que no sei o que, demorou. Eu fui por outros caminhos, né? Eu tenho pavor assim de pensar que o médico vai abrir… aí, eu fui estudar e tal e descobri. Aí, eu comecei a fazer tratamento natural, tirar as pedras naturalmente e aí eu fui fazer as limpezas e quando eu estou quase no final, agora, de todas as limpezas, que eu já fiz 20 limpezas, tirando as pedras.
P/2 – Tirou quantas pedras?
R – Foram muitas, já, já tirei mais de mil e 200 pedras, é uma fábrica, uma pedreira! Aí eu vivenciei na Ayahuasca, uma coisa muito linda, por uma indução xamânica, que eles falam, eu fui vivenciando com a música, sob o efeito da Ayahuasca, faz uma indução que você vai numa montanha e você vê três índios, e depois dos índios tem a fogueira… eu não consegui ver a fogueira, mas os três índios estavam lá, né? Mas é uma coisa… eu estou contando resumido aqui, mas é um processo. Aí você vai, cada índio daquele tem uma coisa para te falar, o índio te fala e não sei o quê, aí nisso tem a música, você vai dançar, eu dancei muito com esses índios lá naquela fogueira, naquela montanha. Só que depois, tem mais um topo para você subir. E naquela montanha ainda tinha um círculo de pedra, para você ver o círculo de pedra. Aí quando ele falou assim, na indução: “Você entra nesse círculo”, eu não sabia o que tinha nesse círculo de pedra. Quando eu entrei naquele círculo, veio um índio desses e me veio com uma coisa e falou assim: “O seu fígado de volta”, foi um processo que eu estava em fase terminal desse ciclo e me vem… eu chorava, chorava de alegria, foi um outro êxtase de gratidão, de gratidão assim, de estar nesse mundo, e de ter passado por isso tudo, dessa doença, de ter percorrido esse caminho, porque isso está me levando a estudar muito, agora, eu estou fazendo homeopatia. Então, descobrir isso, né, descobri uma coisa que eu gosto muito, que é esse caminho, dessa medicina, dessas coisas bonitas que tem aí, né? Então, essa vivência foi muito profunda para mim, assim, é reveladora, né? Então, eu tive marcas muito importantes de viagens, de pessoas, de Suzi, de Naiana, da minha filha, foi um presente que a gente ganhou. Hoje, ela está trabalhando com os guaranis, cara. Ela foi aprender um dia numa aula, de bobeira comigo, falei: “Você não quer ir comigo, aprender?”, ela tinha acho que 14 anos, sei lá. E foi numa aula de guarani com o catalão que ensinava guarani…
P/1 – Que legal! Binho, muita coisa, uma entrevista não dá conta de tanta coisa, mas a gente já viu como é rica aí a sua trajetória…
R – Não falei nem de Guimaraes Rosa, ainda, pô!
P/1 – Pois é, mas você está convidado para vir numa outra rodada aqui, para fazer um segundo tempo e eu queria terminar, então essa rodada, te fazendo essa pergunta: como é que você vê hoje o movimento sarau fervilhando, tendo não sei quantos saraus por dia, essa movimentação toda? E você, que veio lá de trás, fazendo parte aí desse movimento pioneiro.
R – Bom, eu fico agradecido, de ter podido participar disso, porque foi um movimento de muita gente, veio antes, depois dessa Ditadura que acabou, oficial (risos), a não oficial continuou e aí, teve também aberturas para que isso acontecesse, são ONGs que foram trabalhar em periferias, gente que foi criando, teve o movimento que eu falei do hip hop foi muito importante, a música popular brasileira, e a mais popular também, acho que tudo isso teve lá, sei lá, Plínio Marcos, João Antônio, caras tão importantes, Lima Barreto, tanta gente, Carlinhos de Jesus, o Teatro Negro, Solange Trindade, foram referencias que tudo contribuiu para isso, né? E a gente hoje faz parte desse movimento ali de sarau. E hoje, eu fico feliz de ir às escolas, e às vezes, eu estou caminhando pelo Campo Limpo, eu estou encontrando a molecada e aí cumprimentam e falam alguma coisa e tal e aí você já vê que é pelo sarau, molecada já conhece a gente pelo sarau, pela poesia, né? Então, eu acho que é um movimento bonito que você está se ajudando, no sentido desse crescimento e está vindo com essas… o sarau é muito importante pelas informações que ele traz, que tudo é informação não mundo, né? Tudo! Nossas células são informação, tudo o que a gente recebe, a luz, tudo… você está a informação, homeopatia você tem a informação daquilo. Então, essas informações chegando, a gente está num momento de despertar mais profundo, hoje, né? Eu acho que o tempo mesmo das trevas, lógico, os trevosos estão aí, o mal está aí, mas com a internet, ainda, veio muita coisa que está aí despertando nas pessoas. Eu acho que é um novo tempo, apesar de que você olha dos lados, se você assistir televisão, você não acredita no mundo, mas se você não assistir, você começa a acreditar nas pessoas, porque lá eles detonam a gente, lá eles te põem para baixo, lá é a caixinha de mensagens dele. Hoje, você assiste o Jornal Nacional, a televisão, se você assistir olhando com a ótica assim: qual é a ordem do dia?
P/1 – É verdade.
P/2 – Aproveitando, já que você está de frente para uma câmera, falando da televisão, como você diria que foi contar a sua história aqui no Museu da Pessoa?
R – Ah bom, é reviver, é ver a importância que tem essa coisa do… a gente está falando do movimento sarau, que traz aí todas as expressões, que no sarau cabe todas as expressões que o homem pode colocar, é praticamente uma bienal dentro do… cada sarau tem uma vivencia de artes plásticas, de vivência de corpo, de capoeira, de vivência da música, do teatro, das artes plásticas, então assim, tem tudo, do grafite. Isso só tem a engrandecer e você vê os artistas estudando, sabe, o cara do teatro, ele quer fazer música, ele quer aprender um batuque, ele quer fazer outra coisa. Então, dar essa importância aqui hoje, falando… dando esse depoimento da minha história, dessa contribuição, dessa parte da minha vida, porque hoje eu estou Binho, né, amanhã, sei lá, eu quero dar entrevista daqui 50 de novo, né? E vou chegar lá, vou chegar, ganhei um fígado novo, pô! Eu vou chegar, vamos lá. Mas a gente tem que chegar… posso dar esse recado, ainda, fazer por onde, fazer por onde, é cuidando da espiritualidade nossa, não usando flúor na água, evitar os transgênicos ao máximo, não comer as porcarias que estão dando pra gente, estão envenenando a gente, a gente está tomando remédio que vem na nossa água. Então, escapar por isso, escapar pela alimentação da mandioca, pelas raízes, olha que presente que os índios deram pra gente, nós estamos aí comendo mandioca e talvez, essa vai ser a nossa salvação, de comer mandioca ainda hoje, que as multinacionais não botaram o dedo, ainda, eu acho. Então, pela comida.
P/1 – Então, muito obrigado aí pela sua entrevista.
R – Eu que agradeço estar aqui. Arigatô, namastê.
FINAL DA ENTREVISTA
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