Entrevista de Luana da Silva Bezerra
Entrevistadoras Paula Ribeiro / Andreza Dionísio
27/07/2021
Realização: Museu da Pessoa
Projeto: Mulheres da Maré Dignidade Resiliência e Arte
Entrevista número MDRA_HV0004
00:02:48
P/1 - Boa tarde Luana, super obrigada por ter aceitado o convite, para participar do nosso projeto, concedendo seu depoimento de história de vida, trajetória pessoal e profissional, para o nosso trabalho. Meninas, eu agradeço a parceria, muito obrigada. Eu gostaria que você me desse o seu nome completo, local e data de nascimento, por favor!
R - Meu nome é Luana da Silva Bezerra, minha data de nascimento é 07/05/1985, eu sou do Rio de Janeiro.
00:03:30
P/1 - Tem essa história do seu nome?!
R - Eu sei o que não foi. Teoricamente o meu nome ia ser Luanda, era o que minha mãe tinha escolhido para mim, aparentemente, aí minha avó paterna sempre ficou resistindo ao nome, e a gente não sabia exatamente o porquê, isso são histórias e eu confesso que nem sei se isso é verdade, mas existe essa história no entorno do meu nome né. E aí, num certo momento, minha mãe perguntou: “Mas porque Jura?”; O nome da minha avó era Juraci, “Porque que você não quer que ela se chame Luanda? Imagina se ela é lenta e você tem que ficar, ‘anda Luanda, anda…’ ou se os meninos implicam com ela na escola e vão chamar ela de Luanta”. E aí essa coisa ficou, e sei lá porque meu pai decidiu colocar Luana e não Luanda. Confesso que eu não sei se essa história é inventada ou se ela é real, eu sei que tem essas histórias, eu ouço, mas também não tenho a certeza. E eu nunca cheguei a perguntar para a minha avó, pra confirmar isso, mas tem essa brincadeira aí.
E em relação ao sobrenome, quando eu falei fora da entrevista, quase foi Polícia. Porque o pai da minha mãe tem o nome polícia, não existe em lugar nenhum, eu acho! O meu bisavô que era policial em Natal ou o tataravô que era policial, aí todos os filhos ficaram como o ‘filho do policial’, então virou Moisés Polícia, e nome da minha mãe quando foi registrada ficou, Adriana da Silva Polícia, e o nome do meu pai é Paulo Cesar da Silva Bezerra, aí se decidiu entre Polícia e Bezerra, colocar Bezerra, e o Silva ficou pra minha mãe. Apesar do meu pai também ter Silva. Essa é um pouco a história do nome Luana
00:05:51
P/1 - Alguém da família mantém o sobrenome Polícia?
R - Você sabe que não! Ninguém mais, ela não colocou nem em mim e nem em meu irmão. Eu cheguei a desejar mudar de nome artístico. Em um dado momento, uma coreógrafa falou; “porque você não coloca Luana Polícia, que é muito mais forte e tal”, eu fiquei com receio e com medo, apesar de gostar e ser muito grata a família da parte do meu pai, do meu avô, e amar muito meu avô, eu achei que pudesse não pegar muito bem. Ainda mais aqui no Rio, sei lá, pensar que pudesse ser até perigoso pensar em colocar um nome assim. Melhor não….
00:06:37
P/1 - Você tem apelido?
R - Alguns, vários! Acho que o clássico, é Lua, Lú, Luaninha, eu fui muitos anos Luaninha na grupo de hip hop que eu fiz parte. Eu fui Cabritinha pra uma tia avó, Sinha pra uma outra tia, ah sei lá… Lubis pra um amigo de dança, sei lá, tem um monte. Mas normalmente é Lua ou Lú, varia, e esses são específicos de pessoas que têm intimidade, que me chamam assim, mas normalmente é Lua ou Lú.
00:07:20
P/1 - E você curte? Você gosta?
R - Gosto, gosto de todos. Eu sou o tipo de pessoa que já cria uma intimidade forçada, que aquela coisa do carioca, que logo você já fala: “e aí Paulinha, e aí Lua, e aí Bebê”. A gente já quer criar um vínculo com aquela pessoa, e eu super topo, acho super normal e gosto.
00:07:43
P/1 - Você falou de cuidar dos avós, você pode dar os nomes deles, avós maternos e paternos. E se você conhece um pouco a origem da sua família.
R - Na parte de pai, os meus avós se chamam Odilon Bezerra e Juraci Bezerra. Por parte de mãe, Moisés Polícia e Cacilda da Silva Brantes, antes ela tinha outro nome, mas agora ela é casada com outro homem, então é assim agora. Minha avó materna vem de Campos, norte Fluminense, meu avô materno é de Natal, meu avô paterno é do Rio Grande do Norte, não me lembro exatamente o nome da cidade, e minha avó é João Pessoa, Bayeux. Eles foram presentes na minha vida, durante muitos anos, até bem pouco tempo. E neste momento, eu agora com 36 anos, só tenho a minha avó materna. Meu avô materno faleceu há alguns anos, uns 6 ou 7 anos, meus avós paternos já faleceram, meu avô primeiro e depois minha avó, isso faz uns 4 anos a minha avó e meu avô talvez uns 5 ou 6 anos.
Acho que a minha memória com eles está ligada diretamente a este espaço, a comunidade da Nova Holanda, onde a gente está agora, que é de onde eu venho. Meu avô paterno veio pra cá por conta da construção da avenida Brasil, logo em seguida minha avó também veio. Eles moraram primeiro na rua 3, que eu acho ser bem aqui atrás, depois passaram a morar na rua J, rua Marcelo Machado, que essa rua de frente onde nós estamos. Foi onde eu morei os primeiros 7 anos da minha vida, de fato as minhas memórias primordiais, as primeiras, estão ligadas a este espaço e essas pessoas. Do trânsito, do final de semana, a escola que eu ia lá do outro lado, está muito ligado a história dos meus avós também, de ter que ir lá visitar minha avó, meu avô, depois visitar minha avó no final de semana, voltar pra casa. Os meus avós moravam, um pouquinho mais pra dentro da rua J, eu meu pai e minha mãe, morávamos mais no comecinho, os trajetos, minhas primeiras memórias de infância saindo daqui, ou circulando neste espaço, tem a ver com eles, porque era eles que me carregavam. Meu avô me carregava muito nas costas, no ombro, eu me lembro muito de ficar na comunidade, de ficar por aqui, em cima dele, a visão de cima, eu tenho muita memória disso. Os meus avós sempre foram muito presentes e carinhosos comigo, então a minha formação está muito ligada a essas pessoas, a importância delas, ou a estrutura que elas me deram. Aos sete anos de idade, o meu pai decidiu que a gente não podia mais morar aqui, porque não era um lugar bom pra mim, pra minha educação, para o que ele achava que era o ideal. E aí aos sete anos, a gente se mudou, eu meu pai e a minha mãe, mas meus avós permaneceram durante muito tempo, e a minha avó inclusive que está viva, ainda mora aqui. Então este espaço sempre foi um lugar que eu pude voltar, então a minha memória mesmo morando em outro lugar, eu morava em Paciência pra ser mais exata, no Cesarinho, na zona oeste do Rio. Todo o final de semana de lei, era certo que na sexta-feira fazia a minha mochila, passava o final de semana aqui, ou eu ficava com a minha avó materna, ou ficava com a minha avó paterna, então fazia esse trânsito. E no domingo, era voltar para casa, pegar o ônibus e ficar duas horas no trânsito sem fim, até a zona oeste pra voltar… Era um lugar, que a gente sempre voltou pra encontrar com eles, sei lá, meus pais sempre foram muito próximos aos seus pais, e o que fez também eu ser muito próxima aos meus avós. São minhas referências primordiais, de me levar ao parque, de me levar a praia, me lembro do meu avô quando trabalhava na Urca, a minha mãe me levava lá pra trabalhar, pra ajudar, pra brincar com ele na verdade, me levava à praia, na Quinta da Boa Vista, a minha vó Juracy me levava muito. O meu avô paterno, trabalhava na escola de surdos e mudos ali em Laranjeiras, como porteiro da escola, ele falava libras e eu ficava fascinada com aquilo, nunca tinha ouvido falar ou nem conhecia alguém que sabia, então era … o meu avô sabe fazer essa coisa, falar com as mão, que eu nem sabia o que era libras né! Tenho memórias com eles, muito fortes. Meu avô sempre cheirava minha testa, toda vez que me encontrava, cheirava minha testa, cheirava, cheirava, cheirava, e inventava um cheiro de alguma coisa: “Hummm que cheiro de seriguela”, inventava uns nomes ou falava frutas que eu não conhecia, eu me escangalhava de rir, amava e abraçava, tenho muitas lembranças felizes dele. São porto seguro mesmo.
00:15:57
P/1 - E em termos de religiosidade? Qual era a religião de origem seguida pela família, pelos avós?
R - Minha família paterna sempre foi católica, e minha primeira formação de religiosidade é ligada a este espaço, a essa crença. Me lembro da igreja do final da rua, minha avó ia à missa, ainda na igreja em construção, era só o esqueleto dela e eu me lembro que ela tentava me levar e eu fugia, porque eu não queria ir, porque queria brincar, sei lá, queria fazer qualquer coisa e não ter que ficar parada, sentada, ouvindo o padre falar. Nada contra, mas pra criança isso é meio chato, ela tentava me carregar pro crochê, pro catecismo, e eu sempre metia o pé, fugia, dava um jeito de ir pra outro lugar, sumia, eu estava sempre dando um jeito, mas basicamente eram católicos.
Por parte de mãe, não tínhamos uma religião pré-estabelecida, nada em uma frente tão forte, mas a minha avó depois de uns anos, começou a participar e frequentar, posteriormente até mesmo se converter a Testemunha de Jeová, do qual ela é até hoje. Nunca me interessei em participar, ela tentou também me levar, eu fugia mais ainda, era mais difícil pra mim. Eu achava ainda mais chato, não entendo exatamente o porquê, talvez o espaço me deixasse mais presa, acho que porque o espaço daquela igreja tinha um vão, em algum lugar eu podia olhar coisas, vê coisas diferentes, tinha um lugar específico para as crianças e tinha que estar num silêncio, paradas, então pra mim era muito castrador e eu fugia muito. Hoje em dia ela não me pede, não tem nenhuma questão quanto a isso, ela tentou me carregar um pouco, mas eu sempre fugia.
00:18:31
P/1 - Mas você é ligada hoje em alguma religião? Por exemplo, algum ritual? Você se sente mais próxima hoje de alguma religião?
R - Eu posso dizer que eu sou bem crente, eu creio nas coisas, em muitas coisas, em todas as coisas talvez, universalista. Já fui pra igreja batista, adolescentes, querendo e desejando ir com minhas amigas, antes de começar a dançar, depois adulta frequentei muitos anos o kardecismo, fiquei muito tempo indo em reuniões, levando passe e tal, já me converti ao budismo, budismo de Nichiren, pra ser mais exata. Tive meu Gohonzon, fiz minha conversão inteira, realmente frequentei por três anos o budismo, e nesses últimos quatro, cinco anos talvez, venho me aproximando das religiões de matrizes africanas, tanto na umbanda, quanto no candomblé. Vou às festas, frequento, me alinho, faço jogo, gosto muito das danças, me alinho ao entendimento do mundo, a visão do mundo, a cosmologia yoruba faz muito sentido pra mim, pras minhas referências, pra onde eu que quero olhar. Acho que pra mim faz muito sentido, carregar esse fio de cosmologia de yoruba faz muito mais sentido. Até inclusive dentro da minha percepção de mundo, em relação à arte, ao corpo, que é um lugar que valoriza e prioriza o seu corpo, como meio de conexão com o divino. É através do seu corpo, e pra mim como eu trabalho com o corpo, como pesquisadora do corpo, me fascina muito esse espaço, esse lugar, que é um espaço para você se sentir melhor, ou, mais íntegro. Eu penso que religião é isso, pra te dar integridade, e pra mim faz muito mais sentido, me alinhar e estar conectado à esta religião, eu não sou convertida, não fiz cabeça, não sou raspada, não fiz esse processo, mas me alinho e estudo essa religião.
00:21:37
P/1 - Eu gostaria de voltar um pouco para sua infância e para aquele período, antes dos sete anos, antes de ter se mudado para Paciência. Se você puder contar um pouco, quais são suas memórias? Você falou muito do afeto, das relações familiares, pra gente conhecer um pouco da sua história aqui na Nova Holanda. Quem eram os vizinhos? Como era um pouco a sua casa? Você é filha única? Sua mãe cozinhava, tinha alguma comida que te marcou, na sua infância? Brincadeiras de rua, se você puder rememorar um pouco a sua infância, daqueles sete ou oito anos.
R - Nos primeiros sete anos da minha vida, eu vi esse lugar nascer, a Redes [ da Maré], esse espaço. Porque como eu disse, eu morava aqui em frente, aqui era uma delegacia primeiro, esse espaço, eu me lembro muito disso, essa esquina. Então minha vida foi basicamente nesta rua, nesta rua que é a rua J. Eu sempre fui uma criança muito brincante na rua, então a rua era o meu primeiro espaço, eu acordava queria tomar café e mãe, “beijo e tchau, estou com as meninas”. Aqui era o meu espaço, e a gente podia muito brincar e estar ali livre para circular nesta região, neste quarteirão. Eu era filha única, neste primeiro momento, eu tenho um irmão que nasceu quando eu tinha 10 anos, então meus primeiros 10 anos eu fui filha única, e a maior parte dele eu morava aqui. As minhas amizades eram muito com as meninas daqui, com as crianças daqui, tenho muitas memórias e amigas que moram aqui ainda. Então tem o Peba e a Doca, que são um casal que mora aqui de frente pra Redes [da Maré], literalmente onde tem esse restaurante aqui, são meus tios de consagração. São tios que me abraçaram, porque são da família dos meus tios, irmão do meu pai, os familiares foram se amalgamando, a gente faz isso mesmo, mora perto que namora, que vão se namorando e criando os filhos, tem um pouco dessa coisa. Então a minha memória tem toda a ver com esse espaço que a gente está.
00:24:56
P/1 - Mas o que vocês brincavam? Brincavam na rua? Meninas, meninos, brincavam juntos? Conta como é que era um pouquinho.
R - A gente brincava sempre, todos juntos, como eu era uma menina muito esperta corporalmente, eu acho que isso me dava um vale pra participar das brincadeiras dos meninos, que era de corrida, que era de apostar coisas; brincava de pic esconde, mamãe na lata, garrafão, taco. Nossa, taco, a gente brincava muito de taco, queimado…
00:26:29
P/1 - Como é que era a brincadeira do taco?
R - O taco consiste em duas latas, na minha época eu me lembro muito, eram 2 latas de óleo Soya, era uma lata grande. A gente enchia de água, ou de pedra, ou de terra, amarrava e deixava ela um pouco mais pesada. Não sei se hoje venta tanto, mas na época em noventa e poucos ventava bastante. Então tinha que ter um peso leve nessa garrafa, a gente dava uma boa distância entre uma lata e outra, tinha que ter uma dupla de um lado e uma dupla do outro. Um segura no taco, para proteger a lata, e a sua dupla quer derrubar a lata do opositor que está do outro lado. Então a brincadeira é tentar com uma bola, e a gente brincava tanto com bolinha pequenininha, tanto com bola de futebol, era a bola que tivesse, cada um conseguia alguma coisa. E a ideia era acertar a lata da dupla opositora, então uma vez que a gente joga e não acerta, a brincadeira, a bola vai embora, e as duplas vão brincando.
00:27:46
P/1 - Luana, você pode então, contar um pouco das brincadeiras que marcaram a sua infância, aqui na Nova Holanda?
R - Acho que duas brincadeiras que marcaram muito, era elástico e taco. Bom, elástico, a brincadeira era comprar aqui no armarinho, aqui na frente, catar moedas do vovô, ia no armarinho e comprava uns bons metros, duas pessoas e uma terceira ali brincando, fazendo as coreo, era início de uma brincadeira de coreografia, era muito forte pra mim; entra entra, sai sai, entra entra, sai sai, entra e sai. E eu me lembro muito das cantigas, colocar cadeiras em casa, como eu era filha única, às vezes não podia andar na rua, então colocava duas cadeiras e ficava eu em casa, ou então com a criançada e o taco. A brincadeira do taco também era brincadeira do final de tarde, era clássico.
00:30:17
P/1 - Como que era a brincadeira, mamãe na lata?
R - Como que era essa brincadeira…?!! Eu acho, na minha memória, nossa não estou me lembrando de como era essa brincadeira. Estou confundindo com garrafão. O nome ficou, mas não me lembro como era.
00:31:07
P/1 - Como é que vocês se vestiam na infância, você lembra? As roupas compravam aonde, era roupa feita em casa? Tinha uma costureira?
R - Como minha família era pobre, não tínhamos condições de comprar roupa em loja, eu me lembro muito de doações, tínhamos esse ciclo em casa, de primas mais velhas que doavam para as mais novas, mas a minha mãe, eu me lembro de ir algumas vezes na C&A comprar roupa, ou no centro da cidade, no famoso Saara. O grosso das minhas roupas era do Saara, mas tinha alguma coisa ou outra que era da C&A, tinha alguma outra doação do Bicho Comeu, que era da Xuxa e eu amava, mas basicamente era Saara.
Eu como uma criança que não peguei corpo muito nova, eu andava basicamente de shorts só, e sem blusa, até os 12 anos, eu não tinha peitinho, e achava que podia, minha mãe também super liberava. Meu corpo era muito infantil, pequenininha, fininha e tal, eu não peguei corpo logo, de alguma maneira isso me protegeu e também facilitou da minha mãe me deixar livre, andar sem blusa. Naquela época eu não tinha que estar o tempo inteiro arrumada, perfumada, ou com coisas, brincos… o tempo inteiro demonstrando uma feminilidade, eu podia só existir e ser criança. Eu tenho a sensação de que fui criança, você falando assim, me lembro da minha roupa, estar sempre descalça, uma blusinha, um shortinho, muito a vontade pra brincar, pra correr, pra pular, pra se sujar. Eu tenho isso muito forte.
00:33:24
P/1 - Você falou da Xuxa. Na sua infância tinha música? Você via televisão? Você assistia aos programas? Quais são as suas lembranças?
R - Eu tive a minha casa aqui, essa primeira casa, era uma casa que tinha sala, um cômodo X que minha mãe fez de quarto, cozinha e banheiro no final. Era uma casa que só tinha uma parede, que dividia a sala do restante da casa. Eu não tinha quarto, eu dormia com meus pais, na mesma cama, a minha casa era muito simples. Mas a gente tinha televisão, eu me lembro que a gente tinha um rádio, meu pai gostava muito de LP’s, então a gente tinha muitos LP’s, meu pai ia na [ rua ] Teixeira, no final de semana na feira, comprava os LP’s. Eu me lembro muito disso, era uma casa simples, mas nós tínhamos o básico.
Eu via muita televisão, eu acho que a minha geração é muito da televisão, o início muito forte da televisão, a gente pode comprar, as pessoas pobres podiam de alguma maneira comprar televisão, eu acho que estava mais possível, então eu me lembro de acordar tomando café e já vendo Xuxa, era o programa da manhã, depois um pouco de desenho, ou quando eu ia pra escola e voltava e via desenho a tarde. Tinha uma coisa de estar na frente da televisão por muito tempo, eu que não era de ver tanto, gostava de ver desenho e de ver Xuxa, era o meu sagrado de assistir era Pica Pau e o Programa da Xuxa, fora isso eu estava sempre na rua. Minha vó, me colocou um apelido, eu só descobri o significado a pouquíssimo tempo atrás, eu até posso falar disso daqui a pouco, porque tem a ver com criação artística, mas ela me chamava de bandoleira, que é um nome super pejorativo, horrível, pensar que é um nome para pessoas que se prostituem, mas naquele caso, era uma pessoa que estava em qualquer lugar e estava bem. Se minha mãe quisesse me carregar daqui para a casa do meu avô, eu chorava, porque aqui estavam as minhas amigas, eu estava brincando, me divertindo, porque eu estava fazendo alguma coisa muito legal. Me convenceu e a gente ia, quando eu chegava lá, eu não queria ir embora, porque lá estava muito bom, tinha outras crianças, outras primas, outras brincadeiras. Então essa coisa de estar na rua sempre, me sentia muito à vontade de circular, de estar na rua, de brincar na rua. Eu acho que na primeira infância, a rua era o meu lugar, isso é muito forte pra mim.
00:36:58
P/1 - Você ia para um Jardim de Infância, escolinha?
R - Sim. Quando eu tinha quatro anos, eu acho, a minha me colocou numa creche chamada Ledoca, no Parque União, eu me lembro até do trajeto que a gente fazia, eu era muito pequena, e tinha esse espaço de educação, eu acho que não fiquei muito tempo, talvez de quatro à seis anos, quando eu então entrei na primeira série, que já era direto. Eu estudei na Carlos Chagas, era também um trajeto longo, mas me lembro da Ledoca, me lembro desse espaço, eu me lembro que usava saia vermelha, tudo era vermelho, uma boina. Eu até tenho foto da minha turma, do primeiro ano da Ledoca, para mostrar. Que era uma saia vermelha, uma blusa branca com o emblema da escola, uma boina. Eu me lembro que eu amava acordar e ir para a escola, eu amava, adorava, mas depois eu passei a não gostar mais. Eu não gostava muito de estudar, mas neste primeiro momento eu era bem feliz, curtia muito.
00:38:32
P/1 - E a outra escola?
R - A Carlos Chagas eu me lembro bem pouco.
00:39:25
P/1 - Contando um pouquinho das suas memórias da escola Carlos Chagas, de que forma você acha que o ambiente desta escola, já te introduziu de alguma forma em uma atividade artística, de dança, de canto? Se você puder nos contar um pouco, por favor!
R - Eu passei bem pouco tempo nessa escola, como eu já disse, eu saí daqui da Maré aos sete, então eu só fiz a primeira série nela, e me lembro bem pouco dela. Eu me lembro mais do trajeto, do que estar na escola em si, eu só passei um ano nela, não tenho nenhuma memória ou algo tão forte pra dizer sobre ela, mas me lembro da distância. Como a gente morava aqui, tinha que ir até a avenida Brasil, atravessar a Passarela 10, que onde nós estamos, e ainda andar mais um tanto. Eu me lembro desse trajeto ser muito longo, me lembro do meu pai desejar uma bicicleta, ele comprou uma bicicleta na feira pra ir me levar, tinha essa coisa do trajeto. Me lembro que o meu primeiro acidente, meu primeiro gesso, foi por conta da escola, porque eu estava indo pra escola e eu enfiei o pé na roda, meu pé torceu e meu pai me trouxe de volta, ele ficou super nervoso achando que a culpa fosse dele, engessei a perna, fiquei um dia sem ir pra escola… essa memória dessa escola é bem curta, não me lembro nada da escola em si. No ano seguinte eu fui morar em Paciência, no Cesarinho, pra ser mais específica.
00:41:16
P/1 - Cesarinho é um conjunto habitacional?
R - Não, era um bairro, que faz parte de Paciência, que faz parte de Campo Grande. Era um conjunto de casas normal, não era conjunto habitacional e nem de apartamentos, eram bairros e eu também não sei o porquê de ser Cesarinho e Cesarão, essa história eu não sei. Aí eu fiz a segunda, a terceira e a quarta série, numa escola, e do outro lado da calçada era o ginásio, na minha época era ginásio. Aí na quinta série eu conheci uma menina, chamada Renata, que me convidou pra fazer uma aula de dança, de Street Dance, naquela época em Campo Grande, a gente tinha a camisa do colégio, que a gente podia entrar de graça, tinha esse passe, ainda não tinha a história do cartão e nada disso, a gente só entrava por trás. Aí eu fui fazer essa aula de Street Dance, foi onde a arte entrou na minha vida. Nessas duas escolas, da segunda até a oitava série, eram escolas que eram muito boas de bairro. Que a diretora da segunda e quarta série, Escola Vivaldo Ramos de Vasconcelos, o nome da diretora era Patrícia. E eu me lembro da Patrícia, porque ela morava no entorno, eu sempre encontrava com ela, minha mãe encontrava ela na padaria, então era um colégio de bairro, e ela era uma mulher muito ativa na comunidade. Então a gente tinha projetos de reflorestamento, a gente fazia limpeza da quadra, limpeza da escola. Os próprios alunos, as próprias crianças, claro que orientado por uma professora, tinha danças, tinha concursos de canção. Me lembro de ter as grandes festas, dia do índigena, dia das mães, sempre fazia uma dança, sempre tinha uma prenda, sempre tinha um concurso de alguma coisa, tinha uma veia artística ali que já tentava estimular a gente. Da quinta à oitava, na outra escola, que se chama Republica Arabe da Siria, o nome da diretora era Mirian Alves, lá nós tínhamos muito concursos também, me lembro que tinha até um palco, a gente fazia uma apresentação de dança, quem gostava de música tocava música, quem gostava de dançar dançava, sempre tinha alguma coisa, e teve essa menina, que nem morava ali naquele conjunto, ela morava próxima, num bairro próximo que chama Divinéia, e ela estudava nesta escola e me convidou, era minha amiga de sala e me convidou, pra fazer essa aula de Street Dance, e foi aí que a arte e a dança apareceu pra mim. Apesar de a minha mãe já me estimular a dançar, eu me lembro muito de concursos aqui no [ rua] Miolo, na [ rua] Teixeira com o Miolo, nessa rua aqui de trás, tinha uma vez por ano um palco e tinha concurso. Então era gente cantando, poesia, música, tocando violão, dançando, me lembro da minha mãe. Eu devia ter uns 4 anos, minha mãe inventou que tinha uma coreografia da Xuxa, que eu sabia, e ela prontamente; “Luana tem que entrar nesse negócio”. Eu me lembro de ter feito, eu acho que não ganhei na época, não me lembro do resultado, mas me lembro de dançar, de ser estimulada, a estar num espaço de dança. Eu acho que minha mãe sempre viu que eu tinha uma facilidade corporal, habilidade, sei lá, eu sempre fui habilidosa com as mãos, uma coisa com a força, meu corpo sempre foi forte, sempre tive as coxas fortes, corpo atlético. Nunca fui de ter possibilidades com o esporte, ou porque não tinha grana, ou porque talvez aqui ainda não tivesse essa quantidade de possibilidades de instituições que dão essa possibilidade pra gente, naquela época não tinha. Mas me lembro disso, da minha mãe me estimular, eu estar sempre aberta a isso, e quando minha amiga me chamou, prontamente a minha mãe falou :“vai, pode ir”. Não me levou, eu tinha doze anos nessa época, eu estava na quinta série, e aí a minha mãe falou que eu pudesse ir depois da escola, fez um lanche, me lembro disso, dela colocar um lanche, uma maçã e um pão, e eu ir depois da aula pra essa ONG. Era uma ONG que se chamava CAMPO, Centro de Apoio ao Movimento Popular da Zona Oeste, e foi lá que tudo começou, então lá tinha aula de serigrafia, grafite, break, street dance, um monte de pré-vestibular. Era uma ong da zona oeste, uma galera Petista, uma galera muito engajada na política, e ali foram os primeiros passos de entender sobre injustiça social, desigualdade, entender meu lugar no mundo como mulher, como uma mulher preta, ou racializada na época, acho que a coisa de eu me entender negra veio depois, mas tinha uma coisa muito forte de começar a me entender num lugar no mundo. Isso foi muito forte pra mim quando eu cheguei lá, acho que não era tão forte assim de ser pobre, não era tão claro pra mim, eu acho que só porque eu estava rodeada de gente pobre, gente igual a mim, parecia que não fazia muita diferença, só vivia. Acho que meus pais, graças a Deus, dignamente conseguiram me dar tudo que eu queria, com muito trabalho, mas sempre puderam me dar o mínimo de comida, danoninho, sabe essas coisas, leite ninho, que nem todo mundo pode ter eu tive, eu tinha essa possibilidade, então foi a primeira vez de fato que esse entendimento de diferença entre as classes.
00:49:03
P/1 - Mas porque não convivia com pessoas diferentes?
R - Não lá. Mas porque lá a gente tinha aula de, algo como, posicionamento político. Algo sobre política, e falavam sobre a história do Brasil, eu estava começando a estudar a história, gostar de história, então pra mim, foi quando eu comecei a entender que tinha alguma coisa errada. Eu estava num espaço que eu fazia coisas de graça, mas eu já sabia que eu queria fazer dança, e não podia fazer dança porque era pago, uma escola de dança em Campo Grande era caríssimo, minha mãe não tinha possibilidade de pagar, então em algum lugar eu já comecei a entender que existia uma desigualdade aí. E eu acho que o hip hop em si, a história do hip hop lá nos Estados Unidos, década de sessenta e setenta, tem a ver com a possibilidade das pessoas começarem a dizer sobre o seu próprio ponto de vista, de pessoas pobres dizer o seu ponto de vista e colocar na sua arte, tanto nos grafites, dos desenhos, no rap, na dança. A dança do break era toda trabalhada nos significados, helicópteros do Vietnã, ela está totalmente ligada aos movimentos à história, a história de guerra, as histórias de dificuldades de inserção na arte, o tempo inteiro. Então desde o início, a minha arte foi cavar mesmo.
Quando eu falo da minha história de dança, de maneira geral, algum tempo atrás, eu costumava dizer que as coisas estavam acontecendo. Eu não tive muito que escolher, a dança me escolheu, mas eu começo a pensar que não, que foi alguma coisa em mim, mas que foi muito acertado, foi uma escolha ter seguido fazer break. Eu poderia ter desistido, depois que eu entendi que eu não teria sucesso, que era uma dança periférica, isso ele já me coloca num recorte social. Quando eu entendo isso, eu poderia ter seguido e ser obstetra como era o meu desejo, meu sonho, quando eu era criança, mas eu segui. E lá eu consegui uma bolsa de estudos, de sapateado, na Casa de Danças Carlinhos de Jesus, com um professor de sapateado americano, chamado Steven Harper, ele foi o cara que me deu a primeira bolsa, uma oportunidade, e a partir desta bolsa eu consegui outras bolsas. Minha vida foi basicamente quebrar muros, quebrar as dificuldades, entender que isso não é pra mim e ainda assim eu quero fazer. Ah, como é que faz? Tem que ir lá pedir, tem que ir lá na Secretaria pedir bolsa? Tá bom eu vou lá, eu mesmo ia, com treze, quatorze, quinze anos, dezesseis, dezoito anos, ainda hoje eu peço bolsas, ainda hoje eu não posso pagar por alguns cursos, é um trabalho de quebrar muro o tempo inteiro, quebrar as dificuldades, passar por isso o tempo inteiro.
00:58:04
P/1 - De que forma a dança foi seguindo profissionalmente na sua vida? Você está num processo formativo, você conta um pouco dos estilos que você se envolveu, você se capacitou, mas quando ela começa realmente a se tornar profissionalmente pra você? Você se torna professora? Como é isso? Tem interesse em se profissionalizar, fazer universidade, como isso na sua vida?
R - Ganhei essa bolsa no Carlinhos de Jesus, eu fiquei uns três anos fazendo aula lá, a partir dessa conexão com o campo, que essa organização não governamental, tem um outro projeto que a gente é convocado, que é o Galpão Aplauso, que é ali na Leopoldina, até hoje existe, hoje ficou muito mais profissional, ficou um curso mais profissionalizando do que artístico, antes quando era um curso profissionalizante eu tinha dezoito anos. E lá eu fiz aula de dança, música, teatro, audiovisual e mais alguma coisa. E eu ali despontava, talvez por conta da minha habilidade, em circo, a gente fazia também aula de circo. Então lá foi quando a coisa de fato me despertou, é isso que eu quero fazer. Eu já dançava desde os doze, treze, quatorze, quinze fazia aula de sapateado, já ali na aula de sapateado eu via o jazz, mas não podia fazer aula, eu via balé, eu já via outras danças mas não podia fazer, porque a minha bolsa era bem específica. Eu demorava três horas de Paciência até Botafogo, ficava uma hora fazendo aula, demorava mais três horas pra voltar.
00:55:08
P/1 - Isso no Carlinhos de Jesus, ali no Botafogo?
R - Sim, foi ali que a coisa começou a apontar, e teve esse projeto, o Galpão Aplauso, que de fato fez estimular a me profissionalizar, eu quero isso, fazer o máximo de aulas possíveis e ainda sem entender muito bem, como é que me profissionalizo em dança, que não é uma área conhecida, não é uma área que a gente é estimulada a fazer a larga escala, naquela época muito menos do que hoje, E ali eu fiz balé, jazz, voltei a fazer sapateado, dança contemporânea, onde eu começo a conhecer o estilo que eu danço hoje, contato e improvisação, yoga, gyrotonic. Então como eu era bolsista, eu passava quase que a maior parte do meu tempo naquele espaço, que é ali na Glória, ainda é, ainda existe, e foi ali a minha formação enquanto bailarina, eu passava doze horas fazendo aula.
00:56:41
P/1 - Mas você já se apresentava com o corpo da companhia?
R - Lá, a gente só tinha espetáculos de final de ano, ou saraus. Sarau de música, sarau de poesia, sarau de dança, e eu sempre ali me estimulando e desejando cada vez mais me apresentar, mas era uma coisa muito pequena, e espetáculo de final de ano, normalmente, é num teatro, mas não aberto ao público, é só para os pais e/ou para as pessoas que frequentam aquela academia, a gente se apresentava mas não era num lugar profissional, era amador como uma aluna da escola. Em 2007 eu faço a minha primeira audição, para um espetáculo de dança, para uma companhia chamada Arquitetura do Movimento, da direção de Andrea Jabor, que é uma artista daqui, carioca, que fez sua formação em Brasília, foi para o exterior e fez sua formação lá, e em 2007 ela ganhou um prêmio da Secretaria de Cultura daqui, um prêmio chamado Klaus Vianna, que é o grande fundador e o maior formador da dança, no Brasil e no Rio muito específico. Quando ela ganha esse edital, ela convida e faz uma audição aberta, e foram mais de 150 pessoas fazendo essa audição, ela queria cinco pessoas, e no fim ficaram dez, sendo sete mulheres e três homens, saíram os três homens e ficamos em sete mulheres. Aí fizemos o espetáculo, então o meu primeiro espetáculo profissional foi com essa companhia em 2007. O nome da peça se chama, é um nome enorme, ‘Sala de Estar as Cinco Peles do Samba’, é um projeto dedicado a pesquisar o fundamento do samba carioca. A partir do dossiê do samba do Rio de Janeiro, existe um dossiê do samba na Bahia, existe um dossiê do samba Carioca, e aí a gente debruçou e pesquisou ele um tanto e fizemos três espetáculos, um tríptico.
Bom, a gente dançou um tanto, viajei pra Holanda com essa companhia, essa foi a minha primeira viagem internacional com ela pra dar aula. Eu, Andrea Jabor e mais outra bailarina da companhia, fomos as três para dar aula numa escola, numa companhia lá na Holanda. Um amigo meu, estava morando em Bruxelas, foi fazer escola lá, pobre como eu, tentou uma audição, passou, se estrupiou pra fazer uma grana e num determinado momento me convidou pra fazer uma peça. Falou: “Você está comigo desde sempre, a gente se conheceu lá na Deborah Colker, eu poderia chamar um monte de gente gringa pra fazer esse projeto, mas eu quero que você venha do Brasil até aqui, pra ter essa experiência de fazer uma criação em outro país, você topa?” “Claro, com certeza”. E aí faço esse projeto com ele, que se chamava Voltar À, tem uma ideia de velho, de voltar ao passado, enfim, essa peça não deu em nada, a gente apresentou uma vez, que foi neste festival e não fizemos mais nada. Mas pra mim foi muito simbólico, como pra ele também, porque foi o primeiro trabalho profissional dele, e ele fez questão de convidar uma amiga brasileira.
01:01:23
P/1 - Como é o nome dele?
R - Renan Martins. É até um coreógrafo conhecido hoje em dia lá fora, como uma pessoa que faz muito esse trânsito Brasil e Bruxelas, agora ele mora em Berlin. É um artista conhecido.
E aí, depois que eu voltei, aí eu pensei: “bom, agora eu dancei numa companhia profissional, sou uma profissional da dança, trabalhei faz um tempo, fiz um trabalho fora, onde eu quero dançar agora?” Eu cheguei no Brasil assim: “Onde é que eu quero dançar?”. Acho que um pouco na intuição, ou numa força, numa potência e num desejo muito grande, a única companhia que me interessava e sempre me interessou no Rio, sem ser a que eu trabalhava, foi a Lia Rodrigues, já pirava, já gostava muito e era muito conhecida, tem um trabalho muito forte internacionalmente, então isso para um bailarino é o melhor que se pode ter, é uma companhia super consagrada e conhecida. No mesmo período em que eu pensei, eu já conhecia ela antes, porque eu já fui estagiária da companhia alguns anos atrás, quando eu ainda trabalhava com a Andrea, e aí eu falei: “Vou mandar um e-mail pra ela, vou pedir pra chegar junto, vou aproveitar esse meu impulso e essa quantidade de aulas e coisas que eu fiz aqui, isso lá em Bruxelas, alguma entrada, alguma coisa, tentar alguma coisa.”
01:03:06
P/1 - A companhia já trabalhava aqui na Maré? Já tinha algum projeto aqui?
R - Não, ou melhor, no primeiro momento em que eu fui estagiária ela estava entrando, isso em 2010 talvez, ela já trabalhava lá no CEASM, naquela época. Ela começou lá, fez um galpão lá, aí depois que começou o Centro de Artes, eu participei da primeira abertura, eu estava no momento em que se abriu o galpão pela primeira vez, aquela podridão de coisas do carnaval, cocô de pombo, me lembro muito, eu estava neste primeiro momento, aí eu saí, quando eu volto em 2012, neste momento eu ia mandar um e-mail pra ela, na mesma semana ela me mandou um e-mail: “Eu queria te convidar pra fazer uma performance com a gente, na Casa França Brasil, sobre a ‘Hora da Estrela’, de Clarice Lispector. Eu falei: “Uau que doido, porque eu ia te mandar um e-mail”. Ali ela disse: “Que bom, apareça, a gente está aproximando pessoas que já fizeram parte pra fazer essa performance, e logo em seguida a gente vai ter uma audição, ficaria muito feliz se você viesse.”
Fiz a performance, e aí já muito certa do que eu queria, eu falei: “Eu vou passar nesta audição.” Vou passar, e passei, e aí eu fiz dois espetáculos com ela, duas criações artísticas com a Lia. O primeiro ‘Pindorama’ e depois ‘Para que o Céu não Caia’, que foi a última peça que eu fiz com eles. Eu trabalhei na companhia durante quatro anos.
01:05:15
P/1 - A companhia ficava sediada aonde?
R - Antes, ela já foi sediada na Sala Cecília Meireles, aí depois num outro casarão lá no centro, não sei se tem um nome, mas era um casarão, perto da Tiradentes, depois eles vieram pro CEASM. Acho que a convite de Silvia Soter, já trabalhava com a Eliana, que ainda era do CEASM naquela época, enfim, era uma era remota. E aí quando eu voltei aqui no Centro de Artes , a companhia já estava estabelecida, já existia o Centro de Arte, já estava bem melhorado o Galpão, já existia a Escola Livre de Dança, já existia o Galpão da Companhia, todas essas coisas já estavam mais estabelecidas, neste segundo momento em que eu apareço.
01:06:17
P/1 - O que significava pra você, estar sendo inserida num grupo de dança tão renomado e tão importante, num lugar de origem seu familiar?
R - Pois é, isso foi uma… não sei, me emociona falar sobre isso. Eu não sei como, mas sei lá porque, a companhia que eu mais me identificava está exatamente no espaço de onde eu vim. não tem uma explicação, tão concreta e possível. Mas é um milagre, sei lá, pra mim é algo que tinha que acontecer na minha história. Não que a Lia tenha a ver com isso, mas é muito importante para minha história, que seja aqui, eu acho que faz muito sentido. Eu saí desse espaço, aos sete anos de idade, não desejando sair, foi uma imposição dos meus pais, eles achavam que não era o melhor lugar, eu me lembro dele verbalizar isso e isso, e isso ficar muito… todas as minhas amigas estão aqui, minha família está aqui, meus avós estão aqui. Meus avós moram aqui, eles são ótimos, porque eu não vou ser, porque a minha criação não vai ser boa aqui. Eu fiquei muito resistente e chateada, fiquei muito triste, quando eu me mudei. Logo, a bandoleira que sou, já me bandeei pra lá, já fiquei ótima, já tinha melhores amigas, mas algum tempo depois, entender que uma companhia de dança está no lugar em que eu cresci, é muito potente, é muito forte.
01:09:27
P/1 - Você estava contando dessa experiência, desse sentimento de se inserir numa companhia como a da Lia Rodrigues, que vem pra fazer um trabalho social, aqui na Maré, e o teu lugar de origem. Mas você havia comentado sobre a sua formação, em dança, num curso universitário. E eu queria que você contasse um pouco, o que te motivou a fazer uma universidade, de que forma essa sua formação impacta na sua vida profissional, transforma, você conhece pessoas novas, insere outras áreas de atuação dentro da dança, outros rumos. Como é que foi um pouco da sua experiência, na universidade?
R - Eu não gostava de estudar, minha parada era dançar, eu queria dançar, eu só pensava nisso. E aí, no segundo grau, quando eu me mudei pra Paciência, fiz oitava série, fiz o primeiro ano no Sarah Kubitschek, que é um curso de formação de professores, e eu odiei, depois fiz o segundo grau Albert Sabin, que é em Campo Grande, ali eu já estava na finaleira, louca pra terminar e eu repeti o terceiro ano, e não contei pra ninguém, pro meu pai, pra minha mãe, simplesmente só… acabei, vou embora. E lá pelas tantas, minha mãe no ano seguinte foi à escola e descobriu, fiquei uns três anos sem estudar, até que meu pai falou: “Você vai estudar sim, você precisa estudar”, e eu só queria dançar. Aí eu fiz o supletivo, terminei e fiquei dois anos procurando que curso fazer. E já dançando muito, fazendo aula de sapateado na Deborah Colker, a meu pai dizendo: “Você tem que fazer uma formação”, em 2007, no mesmo ano em que eu entro pra Andrea Jabor, eu descubro que tem um curso na UFRJ e nesse lugar que é no Centro Universitário da Cidade, UniverCidade, fiquei ali: “ Ah o que eu quero?” Na UFRJ tem curso de Licenciatura, Bacharelado e Teoria, naquela época talvez não tivesse Teoria, mas tinha esses dois com certeza e o curso do UniverCidade era um curso de Licenciatura. Pensei eu: “Bom eu já faço dança, eu já sou artista, eu já trabalho com isso, então vou fazer um curso de licenciatura, que eu estou pensando no papo do futuro, sempre falava assim, papo de futuro, não tenho nenhuma ligação diretamente com isso, não me interesso em dar aula, minha parada é estar em cena, mas eu estou aqui pensando no futuro e vou fazer.” Pedi pro meu pai, ele falou: “Sem condições, não tenho grana pra pagar, você está viajando”. Fui eu lá na secretaria da faculdade, pedi uma bolsa, conversa e conversa vem, dá vinte, e trinta, e cinquenta por cento, foi o máximo que eu consegui, cinquenta por cento de desconto na faculdade, e fui a duras penas, fazendo pequenos jobs, com mil coisas, pegando freelancer de garçonete, já dava aula de hip hop, dava aulas de sapateado, substituindo, então pegava qualquer dinheiro e ia no meu pai, dizia: “pai me ajuda”; todo mês eu ia lá pegar um dinheiro pra pagar a faculdade. No fim fiz a faculdade, não era uma faculdade que eu amei fazer, não mudou a minha vida, mas em algum lugar a cena era o que me pirava, foi o lugar da cena, da criação artística sempre o que me motivou a existir, a falar de um assunto com o meu corpo, me comunicar com as pessoas com a minha dança. Essa sempre foi e ainda hoje é meu norte. Como eu existo no mundo, eu acho. Fui eu lá, fiz a minha formação, e estou com o diploma ainda sem saber muito bem o que fazer, entro na Lia, aí dei aula lá na escola de dança, pra galera do Núcleo II, então a coisa foi começando a entrar mais em mim, essa coisa de passar o que eu aprendi nessa minha trajetória torta, ou como dava, sempre com bolsa, sempre pedindo, ali mais ali, dando meu jeito, pedindo bolsa pra fazer aula também de circo, consigo também, fiz minhas escolhas, fiz aula de canto lá no Galpão Aplauso, entendo que tem aí alguma possibilidade, de usar a minha voz, tenho a ideia de que posso usar a minha voz, posso cantar num coro, as coisas vão aos poucos meio que ampliando essa questão artística, não é só a dança, que é o que me move, mas também tem aí o circo que eu trabalho um pouco, ganho uma grana fazendo coisas, trabalho numa peça de teatro com amigo e ganho uma grana, faço teatro também. Então essas coisas vão se ampliando, a Lia foi um lugar que eu “OK estou aqui e só trabalho com isso”, fiquei uns quatro anos só trabalhando com ela exclusivamente.
01:15:14
P/1 - Quem eram seus alunos, no projeto da Lia Rodrigues?
R - Lá no projeto, era o grupo Núcleo II, que é um grupo de formação continuada da Escola Livre de Dança da Maré. Existem dois grupos, o Núcleo I que é as aulas abertas e existe o Núcleo II que é um grupo que sai do Núcleo I com um desejo de continuidade, de formação desse grupo. São jovens, moradores daqui, meninas e meninos, que se interessam por dança ou que tenham uma veia, que tenham uma predisposição e que a Lia e o grupo da organização olha um potencial e chama essa galera pra fazer aula no Núcleo II, onde eu mais dei aula neste projeto, foi no Núcleo II.
01:16:13
P/1 - De que forma você acha que era importante esse trabalho que você fazia, exatamente de estimular jovens, meninas e meninos da Maré, a dançarem?
R - É, eu acho que, é uma referência, eu me torno uma referência, quando eu sou da comunidade. Naquele momento a companhia tinha onze pessoas, somente três eram daqui, lá naquele momento. Léo, Gaby, e Eu e Geani, tinha quatro pessoas, depois ficamos só Eu, Gaby e Léo. De onze, ter três pessoas, é um contingente muito pequeno, e eu acho que essa foi a ideia da Lia, justamente de uma formação, para que essas pessoas pudessem em algum momento, estar na companhia, como estão neste momento. Então olhando pra trás, então eu acho que o meu lugar é de referência, de alguém que fez uma formação em outro lugar, infelizmente isso não existia aqui, mas naquele momento existia, então pra mim é maravilhoso em retorno da minha parte. Eu consegui com as minhas próprias pernas, fazer a minha formação, estar em alguns lugares, chegar neste espaço e é catalizador. Ele realmente me coloca num lugar de referência mesmo, eu acho,. E pra mim é de uma felicidade enorme pensar em estimular outras pessoas, a estarem no lugar que eu ocupava aquele espaço. E fiquei muito feliz quando eu saí da companhia, e que pude ver de fato as pessoas, através deste projeto, a entrarem e hoje o grupo de contingente se eu não me engano é maior ou igual de quem é daqui e quem não é daqui. E pensar que em dez anos de projeto, agora isso é possível, é um trabalho longo, de formiguinha, o trabalho do corpo é um trabalho muito sutil, o trabalho que a Lia faz, especificamente, é muito… ele se utiliza da nossa história, é muito forte pra gente, é muito forte fazer Pindorama por exemplo, lidar com pessoas em outro país, em outro lugar, num lugar que a companhia trabalha com o nu, eu estou pelada, isso já te coloca numa exposição e num lugar de fragilidade. Nós estamos pelados, nus, no chão, com pessoas de pé, olhando a gente de cima para baixo, é o tempo inteiro lidar com nosso próprio cotidiano, é virar essa chave, é como colocar em arte esse lugar que é tão prejudicial e tão terrível pra gente, de desigualdade social, de lugar em que a gente não tem acesso. Foi incrível pra mim poder fazer esses espetáculos, no Centro de Arte, poder levar minha avó pra assistir essa peça, as minhas primas para assistirem essa peça. E chegar em casa e poder dialogar com elas sobre arte, sobre o meu fazer, que eu nunca tive. Porque as minhas apresentações nunca foram aqui, e de uma maneira geral, as pessoas que são daqui parecem que não se sentem autorizadas a sair, muitas vezes não veem autorizadas, primeiro porque não tem grana pra passagem, aí o transporte é ruim, tem mil coisas que eu acho que não cabe aqui dizer, mas acho que é me colocar de frente pras minhas próprias dificuldades, lidar com a minha realidade de maneira tão incrível, de usar o meu cotidiano que é tão complexo, que é tão difícil, a violência policial aqui, a violência do tráfico, a violência por eu ser mulher, por ser racializada, pobre, então já tem muitas questões e isso já está aqui, já está dito. Eu entro numa companhia de dança, que tem outros personagens, outras figuras, isso já dá um embate enorme, e ainda dizer isso dentro dessa comunidade, dizer para as minhas pessoas. É contar o que eu quero dizer, é falar o que eu mais quero falar, que através da arte da dança para as pessoas que têm a mesma realidade que eu. Imagina, Eu ter dançado pra minha tia avó!, e ela ter ficado com medo, eu toda cheia de pó, esse foi ‘Para que o Céu não Caia’, a segunda peça que eu fiz, minha avó saiu do meio, porque ela disse que eu estava com alguma coisa no corpo, que não era eu. Isso é incrível, porque não era eu, sou eu, mas era eu interpretando com outro corpo, com outro olho, com outro lugar. Então o meu trabalho está sendo feito, parece que o ciclo se fecha. Quando eu danço lá fora, quando eu tive essa experiência de dançar no exterior, lá em teatros, em festivais enormes, é lindo, é gratificante, é muito bonito, tem a ver com o ego. Aqui é diferente, parece que tem a ver com uma missão, falar pra gente, falar pra mim, falar pra minha família, lá eu não falo pra minha família eu falo pras pessoas, pras pessoas que têm acesso a arte, aqui o buraco é muito mais embaixo, são muitas questões, primeiro o nu, é um puta tabu falar sobre isso, estar em cena pelada na frente do meu pai, na frente da minha mãe, são muitas camadas, ouvir a minha prima dizer que eu sou um ponto de referência para ela, reportar a mim como alguém que viajou o mundo e que tem outro entendimento de mundo, ou pedir favores, tipo: “minha filha está precisando de uma ajuda”, ser referência. Isso muda muito, é muito profundo pra mim, estar aqui e a Lia Rodrigues estar aqui, e eu poder estar exatamente no mesmo momento. Poderia ter sido outro, eu poderia não ter vivido essa experiência, mas vivi, e vi conhecidas de vir aqui e falar; “Tia” que não é minha tia, “vai lá ver minha peça” e ela ir lá, me ver criança e agora chorar e dizer: “Como eu estou orgulhosa de você e fazer isso pra mim, você saiu daqui” - essa é uma tia que eu gosto muito – “eu te vi indo embora e agora eu te vejo de outro jeito, adulta, contundente, íntegra, falando de uma coisa tão séria, mesmo que eu não entenda exatamente o que você está fazendo com essa peça, eu não sei do que se trata, é você, em algum lugar isso já me aproxima”. Então isso é muito legal, talvez se essa mesma pessoa tivesse vindo assistir e não ter reconhecido ninguém, não dissesse nada.
01:24:25
P/1 - Talvez não dissesse nada pra ela, mas era você, as histórias familiares, histórias de vida, e neste processo artístico tem esse reconhecimento.
R - É… isso é muito profundo pra mim, muito forte, é o que mais me motivou nesses últimos anos. estar na Lia era um trabalho muito complexo, muito difícil de fazer, muitas horas de trabalho, em condições que não as melhores, não é o melhor chão, não é o melhor teatro, não é melhor. Porque eu vi outras coisas lá fora, eu vi como as companhias lá de fora são tratadas, elas são pagas, você tem fisioterapeuta, osteopata, a gente não tem isso, ela não pode dar isso pra gente. Mas fazer esse trabalho aqui, pra mim mudou a minha relação com a peça, a relação em estar numa companhia, mudou a minha relação com a arte de uma maneira geral, e é muito importante. E depois que eu volto e ver a Redes [ da Maré] estabelecida, e o trabalho em que ela faz, e poder ver a minha ex- casa em frente, minhas memórias, minhas memórias primordiais é este espaço, é o galpão que eu fiz a festa de aniversário dos meus sete anos, que agora é o jornal, a sede do jornal lá no final da rua. Sabe, ver minha vida ligada a este espaço, ver a Eliana desde criança nas reuniões junto com a minha tia Vanda, a ver Marielle nas reuniões, super inflamada, me lembro muito eu criança. Então está no meu corpo, a história está no meu corpo, no que eu digo quando eu estou em cena. Quando eu volto, depois que eu saio da companhia, eu tenho um tempo, trabalho num circo, trabalhei no circo do Marcos Frota como bailarina, ensaiadora do trabalho, uma pessoa de confiança desse espaço da dança, terminei de fazer isso e me junto a outro artista que foi da Lia, o Francisco Tiago Cavalcante, e a gente cria um projeto, o desejo era continuar dançando, como que a gente consegue se mover, como que a gente consegue continuar fazendo dança sem estar numa grande companhia.
01:28:14
P/1 - Bom Luana, foi muito bacana a sua reflexão do seu trabalho, da sua inserção na companhia da Lia, de forma que ia te vincula as origens da Maré, te vincula com o corpo, você falou de tia, tia avó, mãe, essas figuras femininas te verem dessa forma, em espetáculo, nua, estava nua mas no seu sentido mais simbólico mesmo, de você se expressando através da sua arte. E depois da saída da Lia, você nos contou que a partir dessa parceria com o seu colega, Francisco, vocês realizaram dois trabalhos. Eu gostaria que você contasse um pouco sobre esses títulos fortes que vocês dão, e do que se trata esse projeto? Está vinculado ao quê? Um estilo, um pensamento, ao modo de ser, ao modo de viver, de transformar, de embate, de contestação. Como é que é isso?
R - Depois que eu saí da Lia, a gente como artista fica muito a mercê, porque não tem uma regulamentação, a gente não tem um sindicato forte, uma estrutura, um alguém que te abrace, uma instituição ou um lugar que você se sinta amparado, a gente está o tempo inteiro frágil, meio exposto. Ou a gente está dentro de uma companhia, ou a gente tem o nosso próprio trabalho, tem essas duas frentes na dança contemporânea, no rio de janeiro especificamente, que é onde eu me insiro. Aí depois que eu saio dali, ficou aquilo: “Ai meu Deus nunca mais vou dançar?!, nunca mais vou entrar nunca companhia?!, nunca mais vou poder fazer um espetáculo de dança contemporânea?!”. Aí eu penso: “Não, eu não posso viver assim, não posso só trabalhar para as outras pessoas, eu quero também poder dizer, coisas que eu quero dizer, porque na Lia não é um coletivo, é a Lia Rodrigues, é a ideia que ela tem e aí ela abre pra gente, a gente troca informações, mas é uma direção dela. Como é que eu, com as minhas experiências, com meus modos, com a minha possibilidade financeira de fazer isso, como é seguir fazendo dança contemporânea.” Eu me junto à esse meu amigo, Francisco, e a gente começa a pesquisar coisas, desejar trabalhar juntos, aí ele vem com esse livro do Didi Huberman, um texto chamado ‘A Sobrevivência dos Vagalumes’, um texto muito bonito, filosófico, super filosófico, e a gente começa a estudar e a pensar possibilidades. Paralelo a isso, tem um amigo dele, um artista plástico, que possui uma obra chamada, “Um Corpo foi Achado”, e ele coloca nos pontos de ônibus, apenas essa frase, Um corpo foi achado, nos abrigos de ônibus. A ideia de se abrigar, ou passagem, a gente tem um abrigo de fato da instituição estado, a ideia de brincar, onde está esse corpo, um corpo foi achado onde?!, enfim essa coisa de brincar com vida e morte, achado como, onde, então começa a pipocar umas ideias, o Francisco é muito inventivo, a vida inteira foi, e eu sou muito de dizer sim, e eu digo sim as coisas e uma vez que eu vou, vamos que vamos. Então ele começou a sugerir coisas, e ao pensar coisas a gente formou essa peça de 45 minutos, a gente apresentou ela bem pouco, infelizmente, a gente escreveu pra edital, escrevemos em concurso, mandamos para um monte de empresas, tentamos algum subsídio, tentamos residência no Centro Coreográfico no Rio de Janeiro, na Tijuca, que é um espaço que teoricamente agrega companhias, artistas da dança, é um pouco contraditório, não faz exatamente ou não consegue fazer como gostaria, por conta de grana, mas enfim, a gente ficou tentando as pampas e não rolou. A gente fez a peça, a gente criou a peça, apresentamos três vezes. Apresentamos num festival, depois a gente participou numa noite de apresentações, com o Renan inclusive vindo pro Brasil com uma peça, convida pra fazer uma coisa e eu tenha essa peça, a gente faz junto essa dobradinha, uma peça dele com essa peça de ‘Um Corpo foi Achado’, numa escola de danças que tem ali na Tiradentes, e no Espírito Santo, uma amiga do Francisco convida a gente para um Festival de Teatro, e a gente escolhe um trechinho de cenas e faz a peça, e vai ser muito difícil falar sobre ela, porque ela não existe, ela só existe na nossa cabeça, e no nosso desejo, no nosso sonho de realizá-la. Infelizmente a gente não consegue andar com ela, apresentá-la, estar em lugares, então ela se encerra aí, vida que segue, cada um pra um lado, Francisco voltou para Fortaleza, eu segui aqui fazendo as minhas coisas, veio a pandemia. No início da pandemia foi aquele choque, a gente não sabia o que fazer, chorava litros, achando que ia acabar a dança, acabou teatro, acabou tudo, o fim da arte. Pra que fazer dança, tanta gente morrendo, milhões de pessoas sem respirar, aquela ideia de não conseguir respirar é muito simbólico, um vírus que nos impede de respirar, de estar junto, de abraçar, de tocar. Não só é tão profundo como é tão simbólico pra mim, que ao mesmo tempo parece que a gente precisava levar esse tapa na cara, enquanto humanidade, a gente está fazendo tudo errado eu acho, ambientalmente, socialmente, falando mais uma vez sobre desigualdade e impossibilidades, preconceitos, racismo, todos os ismos, sexismo, classismo, a gente já tem tanta coisa que já é contra, a gente ainda vira essa doença que vem muito assim… Pra mim foi num ponto muito acertado sabe, estava eu intacta, impávida, sem poder me mover muito, um dia sem conseguir ouvir música, sem conseguir dançar, sem perspectivas de futuro, todos nós, enquanto humanidade, hoje a gente já pode pensar um pouquinho melhor, mas nem tanto, tem um breve futuro, não dá pra pensar no futuro, que futuro?, 2022, 2023, não se sabe muito. Então ali naquele momento, logo no começo eu estava completamente meio abobada, anestesiada ou descrente de qualquer coisa, meio sem entender pra onde ir, num dia teve a coisa do “e agora, sobrevive como?”, com que dinheiro se faz, nunca tive a possibilidade de juntar dinheiro, trabalho com arte, tem uma grana muito curta, que nunca me dei ao luxo de poder juntar grana. Então neste momento de recessão, eu fiquei com nenhuma possibilidade de me articular financeiramente, teve essa coisa do auxílio emergencial, que foi um milagre, uma possibilidade de continuar existindo, porque nem sei o que seria de mim, talvez nem tivesse aqui pra contar essa história. Mas é isso, eu fiquei lá com aquele auxílio emergencial, em casa, presa, “Bom eu acho que em algum momento eu vou ter começar a pensar sobre me mover novamente, apesar de não ter desejo de”, um dia em casa pensei: “Vou me movimentar, vou colocar uma câmera e vou dançar”. E aí é quando surge Sobreviventes que pra mim é um jogo de palavra, de falar sobre os viventes, mas toda a imagem e toda a cena que se criou, parece que fala mais do que não está aqui, eu acho que esse vídeo, ele se torna um vídeo esse projeto, digamos assim, e como você falou ele não é em conjunto com o Francisco, ele é um projeto pessoal, é uma iniciativa é uma criação minha, foi desse lugar da impossibilidade da existência mesmo, do como conseguir ter desejos de mover, da onde que tira. Acho que meus movimentos, de tentar, parece ter uma camisa de força que me prende, apesar de estar viva, apesar de estar respirando, apesar de poder colocar o meu pé no chão e colocar minha cabeça em direção ao céu, tem alguma coisa que não me deixa estar livre. Pra poder dançar, abrir os braços, me mover, dançar, porque não tem nem clima, não tem desejo, não tenho recurso, não tenho nada. Tenho um celular e uma ideia na cabeça, tentar me mover, e foi isso que aconteceu com Sobreviventes , fiquei com esse vídeo, de cinco minutos a princípio, decidi postá-lo no Instagram, apenas postá-lo que durou um minuto, eu fiz uma edição, coloquei lá uns filtros, então não sou mega da tecnologia e do audiovisual, sou bem restrita neste lugar, fiz um vídeo que pra mim era digno, e ficou num minuto e pouco e só, postei nessa rede social, até que o pessoal das Redes me convidou pra fazer parte de um dia, uma programação que tinha vários vídeos de mulheres da comunidade. Eu falei: “Uau que legal, eles me deram a opção; a gente viu esse vídeo seu, nos interessamos por esse vídeo, e achamos que ele tem tudo a ver com o projeto, mas se você quiser fazer outro tudo bem.” Só que pra mim, eu não ia conseguir fazer outro, nem de tempo e muito menos de desejo, vontade de fazer. Mesmo que eu fale sobre revolta, mesmo que eu fale sobre coisas que eu não esteja satisfeita, mesmo que eu faça uma denúncia, é um grito né?! tem um desejo, tem que ter uma primeira iniciativa, tem que ter uma pulsão de vida. Eu acho que é sobre isso, eu não tinha pulsão de vida pra fazer mais do que já tinha feito.
01:41:17
P/1 - Você já estava morando de volta aqui? Neste momento?
R - Ainda não. Eu estava morando com um casal de amigos neste momento, eu morava no Vidigal anos e anos, trabalhando na Lia, eu ainda morava no Vidigal e aí minha grana foi só diminuindo, financeiramente fui só diminuindo e fui acolhida por esse casal, dançavam na companhia também, inclusive. Eles me acolheram, vem aqui tem um quarto, e fiquei lá um tempo. E foi lá que eu fiz esse vídeo, neste lugar, nesta casa. E aí quando eu fui convidada pra fazer, eu falei: “Uau que massa, vou mandar ele então, não vou nem trabalhar nada, eu acho que ele está pronto e o que eu quero dizer é isso”, apesar de achar ele super simples, super frágil, tinha alguma coisa ali que me interessava, e pelo olhar também da curadoria desse projeto, então ficou mais evidente que eu achava que tinha pano pra manga esse trabalho. E aí tive a possibilidade de passar nesse festival, eu fiquei muito feliz, com a repercussão e com a possibilidade de estar de novo inserida na comunidade, inserida em projetos da comunidade.
01:42:36
P/1 - E a sua inserção no Projeto Coletiva na Maré, se você puder falar um pouco, pra gente já ir encerrando.
R - No meio desse processo, acho que a coisa é a mesma né, falta de grana, falta de trabalho, falta de perspectiva. estava eu em casa, um dia a Maíra me ligou, eu muito estressada sem saber o que fazer, meu Deus e agora, vou mandar e-mails para uns amigos pra ver se tem algum lugar pra eu dar aula, pra eu fazer qualquer coisa, estava assim, qualquer coisa, acho que toda a minha fala tem muito a ver com uma resistência, em continuar fazendo o que eu faço, em acreditar no que eu faço, em acreditar em fazer dança, no Brasil, no Rio de Janeiro, sendo pobre, sendo preta, o tempo inteiro sobre isso. Fui eu mais uma vez, amigos e dentro desse grupo estava Maíra. Prontamente ela me ligou de volta: “Então… não sei como você está aí, o que você está pensando, mas existe um projeto. Aí ela contou um pouco, é um projeto que já existia, pela Casa das Mulheres ou alguma coisa nesse tipo, uma formação para as meninas e depois foi para o WOW, e essas meninas fizeram uma performance lá, a Andreza Jorge fez uma orientação com elas para essa performance, foi muito bom, de contar histórias numa saia de chita com vários bolsos, de histórias de mulheres da Comunidade da Maré”, então essas meninas fizeram todo um processo, então eu iria entrar como parte do projeto, a parte final desse projeto. Então teve toda essa coisa e depois teve o Uol, e aí elas estavam retomando esse projeto, e eu ia entrar como curadora, professora de dança e curadora desse projeto, a princípio a gente não tinha um produto final a se chegar, mas já se falava de uma possibilidade de uma exposição, que talvez tivesse performance, e aí começamos a trabalhar nisso. Então eu entro nesse projeto para fazer uma curadoria final e pra dar aula de dança. Eram muitas meninas no início, e aí a coisa foi diminuindo, claro que as meninas tiveram que estudar ou outras tiveram que fazer outras coisas, no fim ficaram cinco. Nesse projeto a gente ficou no total um trabalho de oito meses, era pra ser muito menos que isso, mas a coisa foi se entendendo e no fim viraram oito, e o projeto final, culminou numa exposição. Mas no meio do processo, eu dei aulas de dança, inclusive aqui, nesta sala, que se chama Sala Lia Rodrigues, simbolicamente, o tempo inteiro a gente fica indo e voltando na história, as coisas vão se amarrando. Então a gente ficou trabalhando durante os primeiros quatro meses, aulas de dança e pensando em possibilidades. O que eu posso tirar de melhor das meninas, onde elas se inserem dentro dos projetos da Maré, o que a gente pode falar a mais. A gente começou a trabalhar sobre as histórias de mulheres da Maré, depois elas começaram a pensar nas histórias delas e das famílias delas, e depois, elas e as mulheres foram escolher personagens da sua própria família para falar, ou avó, ou mãe, ou bisavó, ou tia, enfim, alguma mulher. Então a gente trabalhou nisso, na parte da prática eu acho que a minha ideia sempre foi sensibilização, sensibilizar as meninas para a dança, uma delas só que já tinha feito dança, as outras não são da dança especificamente, então era uma coisa nova pra elas, um lugar super frágil e difícil pra eles se entregarem, mas isso também foi muito rápido, logo as meninas já adoravam a gente, já deitava aqui, a gente podia falar, a gente podia dançar, a gente se tocava muito, que pra mim tem muito a ver com o meu processo pessoal, de contorno, de ter contorno, de ter integridade.
01:47:26
P/1 - Eu queria que você falasse um pouco sobre isso. Do seu processo como mulher, moradora da Nova Holanda, voltando né, você comentou que voltou a morar aqui. E como é que você dialoga com essa comunidade? Se através de processos educativos, se através de processo artístico, só pra gente dar um fechamento. Se você puder fazer essa reflexão, como é esse momento de você voltar e através da sua arte, você sensibilizar, ensinar, capacitar, e eu acho que transformar. Se você puder fazer uma reflexão....!
R - É, eu acho que esse último ano, desde setembro do ano passado, que a gente começou a trabalhar neste projeto da Coletiva, foi quando eu voltei pra cá, eu volto a morar na Maré no final do ano passado, e desde então, todo o dia lembrar e retornar um pouquinho ao meu lugar. Eu tinha muito isso, era muito claro, em que toda vez até os sete anos morando aqui, eu era muito feliz. Quando eu ia e voltava aos finais de semana, era onde eu me sentia em casa, tem um coisa de uma memória corporal que é muito forte em mim, a coisa com meu corpo, parece que o tempo inteiro muitos receptores, é muito forte esse lugar pra mim, a Nova Holanda, a Maré, esse espaço é muito forte no meu corpo. Então poder sair dele e retornar de outro jeito, sendo uma artista, trabalhando com arte, ser inserido em um monte de lugar e poder retornar com uma mochila e abrir essa mochila e mostrar pra quem está afim de ver, eu sei quem nem é todo mundo que está afim de ver, e tudo bem, nem todo mundo gosta de arte e nem todo mundo se interessa por dança, mas tudo bem, tem pessoas que querem. E não tinha essa possibilidade, e desde que Lia está aqui, acho que a coisa da dança foi ficando mais forte na comunidade, as pessoas se abrem mais a isso, e poder o meu corpo ser meio de caminho, ser passagem, me sinto feliz, me sinto honrada eu acho, nesses últimos dois anos eu me senti muito perdida, artisticamente falando, sem saber muito bem onde me colocar; na cena carioca, na cena de dança, na cena artística, as coisas estão se misturando muito as performance com a dança, digo de uma maneira geral, e me ver periférica, negra, mulher, já tem muitos impedimentos e ainda assim, olhar pra minha história e ver a quantidade de coisas que eu já fiz, educativamente falando, como lugar de troca, é um mar de alegria sem fim. A quantidade de pessoas que eu fiz mordiscar a dança e a arte, só de poder botar um bichinho, poder acionar um pouquinho, uma respiração mais profunda numa senhora, de poder colocar as meninas pra deitar no chão, fechar os olhos e olhar pra elas, olhar pra dentro durante cinco minutos, e ver elas chorar sem fazer nada, só deitar no chão, eu propus, eu pensei, eu imaginei que isso poderia ser bom e de fato isso acontecer, de fato essas pessoas serem atravessadas, pelo que eu tenho a dizer, pelo que eu tenho a trocar e aprender também, porque cada corpo tem uma história. É o trabalho do Museu da Pessoa, de afirmar que cada pessoa tem uma história pra contar, que cada corpo tem uma história pra contar que é muito forte, cada parte que você toca é uma coisa. Se eu te tocar de um jeito, talvez você se lembre de uma memória muito sutil do seu corpo, toda a troca que a gente faz é através do nosso corpo, da nossa voz, do nosso olhar, mas é corpo, a gente é corpo. A gente é só corpo, a gente é só isso, e é tanto ao mesmo tempo, é tanta coisa. Me sinto muito lisonjeada e privilegiada, eu acho, apesar de tudo isso e de todas as impossibilidades das coisas que eu não pude fazer, que eu quis fazer e não pude fazer em relação a dança a arte a cursos e coisas, eu estou fazendo arte no Brasil e eu trabalho com isso, eu não faço outra coisa na vida, e eu estou viva, eu estou comendo, eu estou me sustentando, eu moro sozinha, eu não divido casa. Já dividi, já casei e descasei, mas poder dizer que eu trabalho com arte e que eu trabalho com dança no Brasil, é alguma coisa eu acho. E poder fazer isso aqui, poder trabalhar e estar e pensar em como me comunicar, como passar o que eu sei pra minha comunidade, pras pessoas que de fato precisam, acho que o nosso corpo está tão abandonado, a gente está tão aqui, acho que a gente está dividindo pouco esse lugar de importância, me parece que o mental e o intelectual ficaram mais importante do que as questões do corpo. E pra mim não é, é junto, precisa olhar pro corpo também, precisa olhar pras fragilidades do corpo, precisa olhar as feridas do corpo, e as feridas do corpo são as feridas de memórias, são as feridas de história. E como transformar e quebrar isso, a gente fez um questionário com a galera usuária de crack pra fazer o Para que o Céu não Caia e como é modificar, fazer esse click, mudar a direção de uma coisa que é muito terrível, pra uma coisa que pode ser muito bela. É olhar para um espetáculo da Lia Rodrigues e pensar que é pra falar de tanta coisa difícil e ruim. É tão belo, como que a arte pode fazer isso, como que uma aula de dança pode transformar e pode mudar a vida de uma pessoa, que não anda direito, que não respira direito. E aí uma vez que ela respira, ela existe, ela se sente íntegra novamente, ela se olha no espelho e se acha bonita. Isso é muito especial e eu poder ser interlocutora disso, fazer esse meio, é um privilégio danado.
01:55:22
P/1 - Luana eu vou agradecer. Gostaria de saber, se você quer comentar alguma coisa? Gostou de compartilhar, de estar junto com a gente neste projeto? De que forma você acha que é importante contar e deixar registrado um pouco da sua experiência de vida vivida?
R - Eu acho que é um grande projeto, esse projeto já está acontecendo tem algum tempo, eu participei dele, participei de uma primeira entrevista, teve o Grupo Focal que também foi muito interessante de entender as nossas violências, de dar a ver as violências que a gente sofre e isso é fundamental, a gente já sabe de alguma coisa e isso já é muita coisa. A gente pode talvez mudá-la ou transformá-la, mudar de lugar, ou acabá-la de vez, enfim, a gente tem trabalho pela frente. Eu poder me ver no Museu da Pessoa, saber que a minha história está lá, é tipo; que legal, eu sou uma pessoa, olha que incrível. Apesar de dizerem e ter sofrido muitas coisas, muitos preconceitos, muitos abusos, muitas violências, eu acho que é um projeto fundamental pra gente se sentir. Eu estou usando muito essa palavra aqui e vou usar ela de novo, integridade, acho que o projeto da integridade as pessoas. Olhar a minha história, pra poder refletir sobre a vida, sobre o cotidiano, sobre a vida de uma maneira geral, é um projetão, acho fundamental.
01:57:16
P/1 - Eu gostaria de agradecer, pelo compartilhar, porque você compartilhou conosco, uma história de vida belíssima, da sua família. Nem um terço, mas uma parte muito expressiva, e eu te agradeço por dividir conosco e agradeço as meninas também. É uma honra te escutar.
R - Eu que agradeço, por poder ter sido escolhida entre tantas pessoas. É muito especial mesmo pra mim estar aqui. Poder passar 32 anos da vida fazendo uma coisa, desejando uma coisa, ir atrás de uma coisa é poder estar aqui pra poder retornar, isso é muito forte. É muito forte, muito forte. Eu dou aula pra minha avó, imagina que lindo, que demais, é muito forte, é muito forte. Tem muitas ausências, né?!, a gente precisa mesmo. E se não é a gente, não vai ser. Então vamos arregaçar as mangas e vamos que vamos, tem muito corpo pra tocar ainda. Eu não sei de nada ainda.
01:58:33
P/1 - Então muito obrigado, Luana.
R - Eu que agradeço, demais! Obrigada, obrigada, obrigada.
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