Projeto Correios 350 anos – Aproximando Pessoas
Depoimento de Gertrude Ostermann
Entrevistada por Isla Nakano
São Paulo, 23 de julho de 2013
Realização Museu da Pessoa
HVC049_Gertrude Ostermann
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
P/1 – Dona Gertrude, primeiro eu gostaria de agradecer a senhora por estar nos recebendo.
R – Não há de quê.
P/1 – E para deixar registrado, eu queria que a senhora falasse o seu nome completo, onde a senhora nasceu e quando a senhora nasceu.
R – O meu nome é Gertraut Ostermann, mas meu nome mudou. Eu nasci na Alemanha, na cidade de Halle [Halle an der Saale], no dia 24 de junho de 1921.
P/1 – Por que o nome da senhora mudou?
R – Porque eu casei. Casei com o senhor Ostermann, aí ganhei Ostermann.
P/1 – E o nome dos pais da senhora?
R – O primeiro nome dele?
P/1 – Isso.
R – Era Werner.
P/1 – E da mãe?
R – Da minha?
P/1 – Isso.
R – Ah, do meu pai, do papai é Karl, mamãe era Luísa.
P/1 – E fala um pouco deles pra gente.
R – Meus pais vieram em 1924 para o Brasil. Os dois eram órfãos, se conheceram no orfanato, mas em 1924 eles vieram para o Brasil. O meu pai viveu a Primeira Guerra de 1914 a 1919, aí ele não quis mais saber, ele quis ir pra um país onde tem sossego, é isso aí. Como ele era marceneiro, ele fazia móveis, ele achou que o Brasil era um país bom, tem bastante madeira, e viemos pra cá. Eu tinha três anos naquela época, então viemos pra cá, nós viemos com algum dinheiro, ele tinha vendido a casa na Alemanha. Só que caímos no conto do vigário, ele comprou uma serraria, lá em Santo Anastácio, e quando chegamos lá não era o dono, ele tinha pago pra um intermediário que fugiu com o dinheiro dele. Aí ele começou bem menor, a pão e banana aqui, moramos no Jabaquara numa casinha pequena, que já tinham construído antes. E meu pai trabalhou numa fábrica de piano, Nardelli, aqui na Vila Mariana, como polidor de piano. Mas como ele era que nem eu, não tinha sossego nenhum, procurou outro emprego e começou a trabalhar na Companhia Antarctica Paulista, na Antarctica. Trabalhou lá, progrediu bastante e, por fim, ficou Chefe da Expedição. Nós primeiros moramos no Jabaquara e fomos para a Mooca porque nós tínhamos uma casa que era da Antarctica, ficamos morando lá. Primeiro eu fui na escola, Escola Marechal Floriano, na Vila Mariana. Depois na Mooca, fui na escola, na maior parte, Padre Anchieta. E lá eu me formei no Segundo Grau como chama aqui. Mas depois meus pais queriam voltar pra Alemanha, meu irmão já estava lá, eu resolvi ir estudar na Alemanha pra ser professora, era pra ser professora do Jardim da Infância porque o que eu gostava mesmo era crianças. Na época, na Mooca, já trabalhava no Jardim da Infância como ajudante. Mas fui para Alemanha para estudar lá, mas aí o que foi que aconteceu? Arrebentou a guerra em 1939, eu tava lá, meus pais estavam aqui, e não deu nem pra frequentar a escola lá porque tive que trabalhar na guerra. Porque eu trabalhei a vida inteira com crianças, trabalhei em orfanato, Jardim da Infância lá na Alemanha. Até que terminou a guerra, inclusive eu casei lá, mas meu marido morreu na guerra, então eu fiquei lá sozinha. Quando acabou a guerra, os meus pais que ficaram no Brasil, eu tava sozinha lá, quiseram que eu voltasse, e eu queria voltar também, tinha saudade do Brasil. Aí os brasileiros, gentis como sempre são, fizeram uma Missão Militar Brasileira em Berlim, eu tava morando em Berlim. Eu fui lá e eles me deram logo o visto de entrada para Brasil. Porque eu tava na zona russa, eu tive que fugir porque não deixavam, eu fugi, vim pra zona inglesa, que era perto do Rio Reno, e de lá, porque meu irmão tinha casado lá, então eu morei com ele lá. Porque durante a guerra, falando de Correios, não tinha, não deixavam, não vinha carta. Só pela Cruz Vermelha de vez em quando podia escrever 20 linhas. Como meus pais estavam aqui quiseram naturalmente que eu voltasse. Como eu já tinha visto de entrada pro Brasil, porque eu tentei voltar logo, mas teve muita coisa que não dá nem pra contar aqui, depois da guerra teve a Reforma Tributária, que ficava todo mundo sem dinheiro e tal. Mas meus pais que ficaram aqui abriram um restaurante lá na represa de Rio Bonito. E eles pagaram minha passagem para eu poder voltar, aí voltei. Na ida fui de navio à vapor, mas na volta eu vim de avião. E eu cheguei, meus pais tinham fundado o restaurante aqui, eu conheci um moço, ajudei minha mãe no restaurante, naturalmente, tinha um moço que frequentava lá, eu conheci e casei com ele, era o tal Werner Ostermann. E meu marido tinha uma pequena indústria de fios para rolamento de motores, fios magnéticos. Eu ajudei ele lá, comecei a aprender aquilo lá. Eu trabalhei com crianças por sete anos dentro de uma favela, mas isso foi depois, primeiro eu fui trabalhar com ele na indústria. Ele ficou com doente, o mal de Parkinson, ele não podia mais trabalhar e eu ajudei lá na fábrica. Ele ficava em casa com enfermeira e eu ia trabalhar na fábrica, até que ele faleceu em 1982. Um ano mais tarde eu doei a fábrica, eu fiz um negócio com uns moços que sabiam, eram do mesmo ramo. Por que sabe como é que fecha uma indústria? É muito difícil, é mais do que qualquer coisa, então eu passei pra eles, para o nome deles e pronto. E o prédio da indústria está lá, tá alugado, até hoje. É com esse aluguel que eu pago a mensalidade aqui. É lá em Santo Amaro. Bom, depois nós moramos numa casa lá no Brooklyn, depois compramos um apartamento na Rua da Paz, tem o Correio na esquina da Rua da Paz. Eu morei 40 anos naquele prédio, depois meu marido faleceu, eu tava sozinha lá. Na minha idade, o que faço sozinha lá no apartamento? Como eu conhecia isso aqui, já há muito tempo que a minha cunhada tava aqui, meu irmão morreu aqui. Eu fiquei com dor nas costas e falei: “Vou pra lá também”. O meu apartamento, primeiro eu vendi pra construir lá, ele tava alugado, então saí de lá, e agora eu resolvi vir aqui. Como eu conhecia, meu irmão estava aqui, minha cunhada tava aqui, então eu resolvi vir aqui também. E aí, eu saí lá do apartamento e vim morar aqui. É muito bom aqui, tem companhia. Só que na época, você sabe da Fundação, como que foi isso daqui, não precisa contar nada.
P/1 – Bom, agora a senhora nos esse geralzão da história da senhora, aí eu queria saber algumas coisinhas nesse meio do caminho.
R – Fala.
P/1 – Eu queria perguntar um pouquinho da infância da senhora. A senhora falou do seu irmão.
R – Minha infância, eu vim com três anos para o Brasil, na época, na rua tinha um pré [pré-primátio], eu nem lembro mais o nome, mas eu fiz todo o grupo aqui. Eu fui lá no Grupo Escolar Marechal Floriano e depois fui na escola Padre Anchieta. E depois da Revolução de 32 o grupo teve que fechar porque virou alojamento para os soldados. Aí fui um ano, mais ou menos, numa escola alemã que tinha lá no Bosque da Saúde. Mas minha formação foi mais aqui. Agora em 39 eu quis estudar na Alemanha, já tinha o Ensino Médio completo. Fui para Alemanha, arrebentou a guerra e não pude voltar. Fiquei nove anos na Alemanha, isso foi sem querer. Logo que terminou a guerra eu fui em Berlim pedir visto de entrada, só que para voltar pro Brasil, pra comprar a passagem eu não tinha. Aí meus pais, que tinham o restaurante aqui, eles, com muito custo, compraram minha passagem pra eu voltar. Eu vim de avião. E eu ajudei meus pais no restaurante e um moço da Alemanha frequentava lá, que foi o meu marido depois. Nós dois estamos aí, no casamento. E meus pais, primeiro meu pai faleceu com 65 anos, muito jovem. E quem veio também é meu irmão, que tá lá na foto. Ele veio para o Brasil também depois. Ele foi soldado na Alemanha, na guerra, mas veio pro Brasil também, saudade, ele tinha muitos amigos brasileiros, aí voltou. Ele fez junto com um amigo dele uma torrefação de café, o Café Santo Amaro, até muito conhecido, Café Santo Amaro. Depois o amigo dele teve que mudar, meu irmão ficou com a torrefação e viveu lá. Como ele mora agora na Granja, quer dizer, ele não mora mais, a filha dele mora na Granja Julieta, lá em Santo Amaro. Ele faleceu, meu irmão teve um derrame e faleceu aqui pouco antes de completar 90 anos. E o outro irmão meu que tava lá na foto, ele faleceu na guerra também, ele foi soldado dos alemães.
P/1 – E a senhora falava alemão dentro de casa?
R – Com os meus pais naturalmente falava alemão, mas na rua, na escola e com os amigos não. Eu ainda sou sócia até hoje, não sei se você já ouviu falar, Sociedade Filarmônica Lyra, é onde tem coral, tem orquestra e tudo. Eu cantava lá no coral. E vinhamos cantar aqui. Mas eu já conhecia isso pelo seu curador, já conhecia isso há muito tempo. Primeiro veio minha cunhada, ela teve um derrame e ficou aqui, a irmã dela, depois veio meu irmão quando ficou mais velho. Meu irmão faleceu aqui dentro também, os dois. E é como eu disse, depois eu fiquei sozinha lá, eu tenho amigos, bastante amigo brasileiro, tenho amigo alemão lá na Sociedade Filarmônica Lyra, a gente fala bastante alemão, mas também canta em português e tudo. Pra mim, tanto alemão quanto português, dá na mesma coisa. As duas são minhas pátrias. Mas só que tem muito mais tempo de Brasil do que de Alemanha. Vim com três anos, depois fui com 17 e voltei. Eu voltei em 49, de 49 até agora eu estou aqui.
P/1 – E os pais da senhora enviavam cartas pra Alemanha, ou recebiam cartas da Alemanha?
R – Sim. Mas o caso foi o seguinte, como eu falei, na guerra toda não tinha correio. Antes da guerra sim, eu tinha parentes na Alemanha, amigas na Alemanha, a gente sempre trocava cartas, bastante carta. Primeiro foi de navio, as primeiras cartas vinham de navio, não tinha correio aéreo. Eu lembro de falar “agora vai ser mais depressa porque agora vai ter por avião”. Inclusive meu irmão trabalhava numa firma, que até trabalhavam para a Luft, nem sei como chamava aquilo lá. Mas depois eu recebia muitas cartas e enviava muitas cartas. Eu tenho muitos amigos na Alemanha. É que agora a gente fala mais por computador, mas eu escrevia muitas cartas. No meu aniversário recebia de 15 a 20 cartas da Alemanha.
P/1 – E cartão postal?
R – Cartão postal, muitos. Na Alemanha usam, mandam muito, quando a gente viaja no carro a gente manda cartão postal. Eu tinha um monte guardado, mas pra mudar para cá eu não pude trazer tudo não.
P/1 – E a senhora lembra de alguma carta ou cartão postal que tinha sido especial pra senhora? Que a senhora tenha ficado muito feliz de receber?
R – Olha, eu tenho tantas cartas. Eu tenho muitas cartas, mas essas não têm nada a ver com Brasil, são do meu primeiro marido. A gente mandava carta de amor e depois ele morreu, mas isso não tem nada a ver com o correio do Brasil. Mas a gente mandava muita carta, desde que eu voltei pro Brasil, em 49, eu vim em 48, 49, tinha muitos amigos na Alemanha, até hoje tenho. Ainda recebo aqui algumas cartas. Mas, como eu disse, morei 40 anos em frente da agência lá na Rua da Paz, um prédio que fica bem em frente. Eu conhecia lá, eu entregava carta, mandava pacotes, recebia pacotes também.
P/1 – O que a senhora mandava?
R – O que a gente manda do Brasil? Café (risos). Não, vários, presentes, e recebia também de lá pacotes com chocolate, coisas da Alemanha. Agora eu tenho uma sobrinha, a filha dela, que é filha do meu irmão, a filha dela mora em Hamburgo, ela nasceu aqui, formou aqui na USP [Universidade de São Paulo], os dois filhos dele formaram na USP, ela estava trabalhando na Hamburg Süd, a companhia de navegação, ela trabalha lá, já está quase há dez anos trabalhando lá na Alemanha. Ela manda cartas. Aqui não dá pra guardar muitas coisas, não. Mas que tinha muitas e muitas tinha.
P/1 – E me conta uma coisa. Durante o período da guerra, a senhora falou que não tinha como mandar carta.
R – Não tinha.
P/1 – Como que era pela Cruz Vermelha? Conta pra gente.
R – Da Suíça, a Cruz Vermelha, a gente podia mandar uma carta pra Cruz Vermelha e eles mandavam pra cá, mas era a cada três meses, 20 palavras, uma coisa assim. Tipo telegrama.
P/1 – E conseguia receber lá?
R – Eles recebiam. Eu também, como na guerra eu não podia escrever pro Brasil, meus pais ficaram mais de dois anos sem saber se nós estávamos vivos lá na Alemanha, só pela Cruz Vermelha, depois mandavam. Mas depois, isso foi até 42, antes do Brasil entrar na guerra junto, ainda dava pra mandar cartas, a gente escrevia, meus pais escreviam e eu escrevia. Mas depois em 42, quando o Brasil declarou a guerra contra a Alemanha (risos), aí não mandava mais carta, aí só pela Cruz Vermelha um pouco. Mas depois da guerra, isso foi um período difícil no tempo da guerra e depois da guerra, não tinha comunicação, anos meus pais não sabiam se nós estávamos vivos e nós não sabíamos. E meus pais perderam também tudo, meus pais tinham um sítio lá na represa, venderam pra voltar pra Alemanha, venderam sítio, venderam os três bares que tinham em Moema, mas perderam tudo por conta da guerra, porque iam voltar pra Alemanha e eu já estava lá, eles estavam aqui sem nada. Aí começaram tudo de novo. Foi uma vida difícil, só que passou a guerra que vai saber o que é isso, pra entender isso aí. Foi um tempo, é melhor nem falar disso aí. Eu sei que depois meus pais aqui, com o restaurante, compraram a minha passagem de avião, KLM e eu estou aqui feliz da vida. Eu fiz algumas viagens pra Alemanha agora, depois que meu marido faleceu, que eu vendi a firma, eu estive a última vez em 2002, depois não deu mais.
P/1 – E como a senhora conseguiu superar tudo o que a senhora viu na guerra, tudo o que a senhora viveu de difícil?
R – Eu vou dizer uma coisa, pelo gênio que meu pai teve. Nunca desisti. E também aquele vazio, quando nós começamos a fábrica, compramos o terreno em Santo Amaro pra construir a fábrica, entramos com a planta. Aí negaram lá no Ibirapuera, negaram porque a rua tem três metros e meio e só com 14 metros pode construir fábrica lá. Como eu não desisto, eu ia lá, consegui aprovar a planta e construímos. Depois teve mais uma coisa, naquela rua, agora chama Rua Da Paz, chamava Rua João Ramalho, onde que era a fábrica, passava um córrego, agora tá asfaltado, tá tudo bonito. Disseram que não podia construir lá nessa rua, eu tirei fotos das fábricas que tinham lá, disse: “Como é que eu não posso construir se os outros já construíram lá?”. Só pra mostrar que eu não desisto, nunca desisti de nada. Como não desisti de vir aqui, e como disse, o prédio da fábrica alugado era o meu fornecedor de verniz, ele disse: “Ah, eu gostaria tanto de ter essa”, eu disse: “Tudo bem, eu vou lá”. Ele me paga o aluguel e com o aluguel eu pago aqui.
P/1 – E teve algum momento, durante a guerra, que tenha sido mais difícil, que foi muito difícil pra senhora superar? A senhora conseguiu? Qual foi esse momento?
R – O momento foi quando o meu primeiro marido morreu na guerra depois de um mês de casado. E depois meu irmão também morreu na guerra. Depois, naturalmente, eu tava ali na Polônia porque sabe, tinha gente da Alemanha e tal e eu ia trabalhar no jardim da infância, era na Polônia. E quando os russos vieram tivemos que fugir de lá, foi horrível. Aí eu fiquei em Berlim, e meu irmão tinha casado e a esposa dele morava em Berlim também. Ele perdeu a casa com bombardeio, perdeu a casa onde eles moravam, em Berlim eles moravam com uma prima minha. Então juntamos todo mundo lá, com ela. Mas é melhor esquecer a guerra, viu? Eu lembro quando eu vim pro Brasil, na Rua Sete de Abril tinha um cinema que passava filme alemão, então ia passar o filme, Férias em Berlim, eu disse pra minha mãe: “Deve ser um filme bom”. Cheguei lá, o filme começou na guerra, eu sei que eu fiquei assim na poltrona e disse: “Por que isso?” Quando vinha bombardeio lá na Alemanha a gente ia no porão da casa e a gente, as bombas, a gente se encolhia todo. Eu via aquela bomba lá no cinema, minha mãe disse: “O que está fazendo?” Foi só o sinal que ia começar o bombardeio, já dava medo na gente.
P/1 – E aí depois que a senhora já estava aqui no Brasil, que a guerra já tinha acabado, a senhora manteve as amizades?
R – Ah, até hoje.
P/1 – Manteve comunicação por carta?
R – Até hoje. Essa minha amiga que está lá na foto comigo, ela foi na escola aqui, na escola do Brasil, escola alemã que eu frequentei, o pai dela era diretor da escola, e ela era muito minha amiga. Ela foi pra Alemanha um pouco antes de mim, a gente sempre se encontrava na Alemanha, até hoje, ela faleceu dois anos atrás, até hoje me comunico com o marido dela, ele está lá. E com as filhas dela, os netos, quer dizer, eu conheço toda essa família. E ela adorava o Brasil. Depois que eu vim pro Brasil, na Alemanha ela ficou com artrite, o médico disse: “É melhor voltar pro Brasil que é um país mais quente”. Aí ela passou meio ano aqui e melhorou bastante. Ah, falando de país mais quente, a minha sobrinha na Alemanha ficou doente também com artrite, o médico falou: “Você tem que ir para um país mais quente”. O Brasil era muito longe pra eles porque os filhos moram na Alemanha. Então Portugal, “vamos pra Portugal”, estão morando lá, estão gostando muito de lá. Já vieram me visitar aqui duas vezes. É uma história de uma vida.
P/1 – E tem alguma coisa da Alemanha que a senhora sinta falta, alguma comida, algum objeto, alguma coisa que tenha vindo pelo correio, que a senhora tenha ficado feliz de receber?
R – Que veio da Alemanha pelo correio?
P/1 – É.
R – Isso aqui por exemplo. O meu signo, signo de câncer. Eles me mandaram um pacote com doces e veio isso junto no meu aniversário. Eu tenho muitas fotos e tudo isso. Eu viajei muito na Alemanha quando fui agora depois da guerra. Estive na Grécia. Eu já fui no Polo Norte e fui no Polo Sul. Depois que meu marido faleceu eu fiquei livre da firma, aí fui pra Alemanha com amigas, do Brasil inclusive, umas brasileiras, foram comigo até o Polo Norte, uma viagem pela Alemanha, Suécia, Finlândia, fomos pra lá. E com outras amigas daqui, que até hoje são minhas amigas, fomos até o Polo Sul, na ilha Terra do Fogo! Eu fiz muitas viagens pelo Brasil e gosto muito do Brasil, especialmente adorei o Pantanal. Eu já estive na Ilha do Marajó, na ilha mais importante, Fernando de Noronha. Estive lá inclusive com meus amigos da Alemanha. Com meu sobrinho, eles adoravam, tanto o sobrinho como a esposa adoravam plantas, então ele levava mudas daqui e plantava na Alemanha. E agora de Portugal eu trouxe uma bouganville, eu plantei aqui, uma que dá uma flor amarela. E o gozado é que a gente traz uma planta, ela dá uma flor e depois morre. É a mesma coisa, ele levou daqui, plantou em Portugal, deu uma flor e morreu. Elas não gostam de mudança de clima.
P/1 – E dessas viagens que a senhora fez, algum lugar muito especial, alguma delas tenha marcado assim?
R – Aqui do Brasil?
P/1 – Pode ser do Brasil, de fora...
R – Como disse, eu adorei o Pantanal. Naturalmente gosto de Santa Catarina, onde tem os alemães, Blumenau, fui lá. Inclusive eu tenho um afilhado, eles estavam morando em São Paulo, a minha amiga, o sobrinho dela, é meu afilhado, eles moram em Paranaguá, eu já fui lá. Já fui várias vezes lá, mas como eu disse, eu acho o Brasil muito bonito, eu gosto muito do Brasil, para dizer a verdade adoro. Eu gosto muito do gênio dos brasileiros. Alemão é mais frio, é difícil fazer amizade na Alemanha. Eu tenho porque é tempo de convivência, mas para fazer aqui já é logo meu amigo, eu gostei. E o gênio do brasileiro é diferente, na Alemanha é mais frio, acho que muito trabalho, muito tudo, mas brasileiro é mais amigo. É raça, raça germânica e raça latina, é uma diferença muito grande. Mas não vou dizer que um é melhor do que o outro, cada um tem o seu jeito.
P/1 – E conta um pouquinho como foi o segundo casamento da senhora?
R – O segundo?
P/1 – Isso.
R – Aqui no Brasil. Não, como disse, tinha aquela industriazinha em Santo Amaro. O pai dele tinha uma fábrica de máquinas da Alemanha e mandou umas máquinas de tecelagem, tinha fábrica de tecelagem da Alemanha, fazia as máquinas e mandou para filho aqui, que estava aqui. Então ele fundou lá na Rua Vergueiro, fundou aquela industriazinha e fazia fios para rolamento de motores. E como era alugada e como eu não suporto aluguel, meu pai sempre falava: “Você tem que ter seu próprio teto em cima da cabeça”. Construímos em Santo Amaro e fizemos a fábrica lá que até hoje tá lá, em Santo Amaro, na Rua Da Paz, tá alugada.
P/1 – E conta pra gente um pouquinho o dia a dia da senhora, o que a senhora gosta de fazer aqui.
R – Aqui eles fazem ginástica, fazem dança, eu faço tudo junto aqui. Eles podem dizer o que eles fazem aqui e eu acompanho. Inclusive hoje à tarde foi Lian Gong, sabe o que é Lian Gong? Uma ginástica chinesa que a gente mexe, isso é bom, faz bem pra coluna. Quando eu morava ainda lá em Santo Amaro eu ia nadar no Banespa, fui muitos anos sócia do Banespa, até que eu mudei pra cá. Eu ia nadar três, quatro vezes por semana, nadava lá no Banespa, na piscina. Fiquei até janeiro desse ano sócia do Banespa.
P/1 – E a senhora sempre gostou de esportes?
R – Eu gosto muito de natação, mas antigamente, como criança, não é como hoje, a gente brincava de bola, de esconde-esconde, pular corda, eu adorava pular corda, a gente se mexia. E depois com as crianças, trabalhando com criança, a gente se mexia mais. Mas eu gosto mesmo é de nadar, de água. Eu sempre nadava no nosso sítio na represa, a gente andava de barco, nós tínhamos um barco à vela lá na represa, aquela era minha mãe pátria, a represa, até hoje. Quando tem alguma coisa, no fim de semana, a minha sobrinha tem um terreno lá, antes de Parelheiros, na represa mesmo, eles têm um terreno lá, tem uma casa lá que meu irmão construiu, então fim de semana, de vez em quando eu vou lá junto com a minha cunhada, vou passar o fim de semana lá. Só não fui no último fim de semana porque eu tava com muito frio, aqui é mais quentinho. Mas no fim é isso aí, 92 anos de vida. Eu fiz os 90 anos, eu festejei três vezes, uma vez com a família, com os alemães, os brasileiros e por fim com os funcionários antigos da minha fábrica (risos). Até, não sei onde eu pus, ah, tá aqui. Minha festa dos 90 anos. [Mostrando foto da festa de aniversário]
P/1 – Olha, que bacana!
R – Isso foi lá. Essa é a minha família. Meu irmão, a filha dela, marido e aqui são os dois filhos dela. Essa é Maria, ela tá aqui também, minha cunhada. Isso foi no dia 24 de junho de 2011.
P/1 – E conta um pouquinho para a gente, tem alguém na Alemanha ou em outro país que a senhora troque correspondência ainda por carta?
R – Como?
P/1 – Hoje, a senhora ainda recebe cartas?
R – Hoje eu recebo mais pelo computador. Sim, essas que eu mostrei agora recebi agora no aniversário, as amigas que não têm computador. Mas nessa idade a minha melhor amiga que vivia aqui, que eu contei, ela já faleceu. Mas o marido dela ainda me escreve, ele tem computador também. Mas ele também, nesses dias vai fazer 90 anos também, é isso aí. Carta, eu recebi essas no aniversário, de amigas, que não têm computador. Isso aqui, mas o correio, eu recebia também, esse que escreveu a carta que está lá, ele mandou o pacote lá, às vezes com marzipan no meu aniversário, Natal sempre manda pacote. Por exemplo, logo depois da guerra da Alemanha, a gente estava passando fome, muita fome. Eu perdi 20 quilos em três meses de tanto passar fome. E aí vinha a carta e um pacotes, era pacote com comida, então eles pagavam aqui e eles entregavam na Alemanha. Vinha pelo correio na Alemanha, eu recebi várias, inclusive amigos do meu irmão mandavam. Meus pais, quer dizer, mandavam pacote, pagavam aqui e iam despachar lá na Alemanha.
P/1 – E o que vinha nesse pacote?
R – O pacote que ia lá era comida e café. E de lá pra cá, hoje vem doces, às vezes fotos, coisa assim.
P/1 – E naquela época o que ia de comida no pacote?
R – Chocolate, marzipan, marzipan é uma especialidade na Alemanha. Até hoje, o meu amigo, no aniversário sempre manda pacote, ele sabe que eu gosto de marzipan, chocolate, biscoito, coisas assim. Eu mandei pacotes, mas isso, da nossa igreja tem um sítio lá no norte de Minas que um pastor alemão fundou, chama Escola Rural, no norte de Minas. Então, como é tudo gente sitiante, a gente fazia bazar aqui, comprava roupas usadas e mandava pra eles lá. Também já mandei, ela escrevia que estão precisando lá no orfanato, toalhas, comprava toalhas aqui. Fazia, mandava, montava do tamanho que eles queriam, mandava pra lá. Mas isso com roupas, vários pacotes eu mandei pra lá.
P/1 – E agora, pra gente encerrar, eu vou só fazer algumas perguntinhas de encerramento pra senhora. O que mais deixa a senhora feliz hoje? O que é um grande prazer da vida da senhora?
R – Olha, um exemplo, como eu disse, eu fui muitos anos sócia, ainda sou, da Lyra, a gente cantava lá. Então esse fim de semana eu passei lá, no sábado tinha o encontro dos velhos sócios e no domingo tem o Café de Amizade, chama. A gente se encontra lá, conversa, faz um café e lanche. Isso no próximo sábado vou de novo, vai ter outro café lá. Tem um grupo que toca bandolim que são sócios lá, inclusive com o nosso presidente, eles vão fazer um encontro lá. Inclusive falei pra Maria da Glória ir. Esses são os prazeres que a gente ainda tem porque aqui, pra dizer a verdade, eu tenho um gênio, a maioria não quer mais sair, não quer mais saber disso, só quer ficar aqui. Eu ainda não sou muito sossegada não, no sábado que vem eu vou lá, vou ver se a Maria da Glória vai comigo lá. Lá vai tocar esse grupo de bandolim. Aqui eu gosto de fazer todos os eventos que eles fazem, eu faço. Ela contou que tem aqui a festa de São Pedro, 29 de junho tem uma festa aqui grande, com barracas, festa junina. E como sou de junho, 24 de junho, fizeram uma festa bonita, dançaram quadrilha aqui, as velhinhas aqui, dançamos quadrilha e tudo.
P/1 – E o que foi mais difícil para senhora de mudar pra cá?
R – Deixar os amigos que estão lá onde eu morava. Lá eu era a síndica do prédio, eu tinha amizade com todos eles, inclusive uma afilhada minha mora lá. Então, semana passada eu fui visitar lá, eu tinha muita amizade no prédio. Eu sou uma pessoa, eu me comunico com as pessoas, eu não gosto de discussão, eu sou da paz! Eu morava na Rua da Paz e sou da paz (risos). E olha, na semana que vem eu vou passar um dia lá, minha afilhada quebrou a perna, eu vou visitar ela lá. Aí eu passo no Banespa também pra ver os amigos lá, eu sou de me mexer, eu não sou acomodada ainda. E aqui também, aqui tem um grupo de dança, vamos dançar lá, faço toda a ginástica como eu falei, fazem caminhada, aí eu participo.
P/1 – E olhando pra trás, desde que a senhora veio pro Brasil, nascimento lá na Alemanha até hoje, qual que a senhora considera como a tua maior conquista?
R – Olha, a época, na Alemanha eu era criancinha, eu vim com três anos pra cá. Aqui no Brasil, eu gostava de ir na escola, fazia amizades, fazia meus aniversário com meus amigos aqui. Muitos brasileiros. E a minha mãe costurava, quando viemos pro Brasil, logo no início, quando tínhamos perdido todo aquele dinheiro que eu falei, ela começou a costurar. Ela fazia vestido de noiva, especialmente nós morávamos no Jabaquara antes, e ela fazia vestido de noiva, ela fazia enxoval, ela era costureira muito procurada lá. E também, depois que perdeu tudo, quando nós fomos pra Alemanha, ela começou a costurar de novo, ela ia na casa de família costurar lá, porque tinha que sobreviver; os filhos estavam na Alemanha, o dinheiro tava tudo na Alemanha e eles estavam aqui. Sobreviveu a maior parte com a costura da minha mãe. E depois, naturalmente, com o restaurante. Minha mãe era pequenininha, mas ela tinha uma força. Mas eu virei mais pro meu pai.
P/1 – E eu queria fazer uma última pergunta pra senhora.
R – Faz.
P/1 – Como que as cartas, esses pacotes, as encomendas, tudo o que a senhora recebeu ou enviou pelo correio marcaram a sua trajetória de vida?
R – É, especialmente quando chegavam após a guerra, que a gente tava passando fome, o que mais valor tinha na Alemanha era café. Amigos do meu irmão, porque minha família não tinha mais dinheiro, os amigos do meu irmão mandavam pacote com café, a gente vendia lá e ganhava bastante dinheiro, o café. Então eles mandavam aqueles pacotes com comida. A gente, naturalmente, da Alemanha, a gente até hoje, como disse, recebemos pacotes. Eu mandei muitos também. Na Alemanha eles compram muita roupa, tem seminova e mandam pra cá. Eu frequento a igreja do Alto da Boa Vista e lá temos bazar. Então eles mandam da Alemanha pacotes com roupas pra vender lá no bazar, com esse dinheiro do bazar a gente mantém uma favela lá em Campo Grande. E os pacotes que vêm são muito valiosos porque a roupa que vem de lá, não são que nem aqui que usam até o fim, lá usaram uma vez e mandam embora. Então tem a Cruz Vermelha e outros que vêm e depois mandam pra cá, e mandam na nossa igreja e lá no bazar nós vamos vender pra manter aquela favela, mas isso vai tudo com pacote também.
P/1 – Então em nome do nosso projeto, do Museu da Pessoa, eu agradeço muito a senhora ter dado essa entrevista pra gente.
R – Muito obrigada! Já falei bastante, falei demais (risos)
FINAL DA ENTREVISTA
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