Projeto Memória dos Brasileiros.
Depoimento de Therezinha de Jesus Jansen Pereira
Entrevistada por Júlia Bastos e Wine Shoi
São Luís, 03/11/2007.
Realização Museu da Pessoa.
MB_HV081_Therezinha de Jesus Jansen
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
R - Graças a ...Continuar leitura
Projeto Memória dos Brasileiros.
Depoimento de Therezinha de Jesus Jansen Pereira
Entrevistada por Júlia Bastos e Wine Shoi
São Luís, 03/11/2007.
Realização Museu da Pessoa.
MB_HV081_Therezinha de Jesus Jansen
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
R - Graças a Deus, eu tenho orgulho, muito orgulho de ser bisneta de Ana Jansen, porque ela me deixou a maior fortuna, a maior herança, o maior patrimônio que ela podia ter deixado, que foi o pai que ela me deu. E, através dele, é que eu tive o pai que tive.
P/1 – Dona Therezinha, pra começar eu gostaria que a senhora me dissesse o nome completo, a cidade e data de nascimento.
R – Therezinha de Jesus Jansen Pereira, 79 anos precisamente, porque 15 de dezembro está bem aí. E residência, aqui. Nasci, me criei e estou idosa nessa casa.
P/1 – E os seus pais, qual o nome deles?
R – Manuel Jansen Pereira Júnior e Joana Carneiro Jansen Pereira, a rainha dessa casa.
P/1 – E a senhora nasceu aqui nessa casa?
R – Nasci, me criei, estou idosa nessa casa. Até quando Deus quiser me levar!
P/1 – Os primeiros moradores dessa casa foram os seus pais?
R – Não, o primeiro morador foi o senhor Inácio Butão, que construiu essa casa pra moradia dele com a família. E, por motivos alheios à minha vontade, não sei o porquê, foram muito particulares dele, viveram só oito anos aqui com a família. Porque teve um problema financeiro muito grande e teve que se desvencilhar da casa, venderam. Colocaram à venda, e a pessoa que ele achou suficiente pra comprar foi o meu pai. Como eles eram muito amigos, o meu pai se recusou a comprar, que não queria que pensassem que ele estava se aproveitando da situação de um amigo pra ter lucro em cima disso. Ele era muito, muito, muito honesto, graças a Deus. Muito íntegro, era aquele amigo indo e voltando, mas aí entrou em parceria, entraram as esposas. A esposa de meu pai, e a esposa de seu Inácio, que procurou a minha mãe. Eles moravam num sobradão aqui na rua da Cruz. Procurou a minha mãe pra tentar convencer o meu pai a comprar porque se não fosse ele, teria de ser outra pessoa. E seu Inácio não queria passar aquilo que ele construiu com tanto carinho, com tanto sacrifício, com tanto amor pra família pra mão de qualquer pessoa. Relutaram, relutaram, até que ela conseguiu convencer. Foi assim que meu pai comprou.
P/1 – E era que época, mais ou menos o ano?
R – Ah, não lembro quando isso aí passou.
P/1 – E como foi a infância da senhora nessa casa?
R – Isso aqui foi um nascimento, foi uma vida, foi uma escola, foi um aconchego. Porque a minha mãe era de origem humilde, ela nasceu na cidade do Rosário, uma cidade aqui do Maranhão, próxima. E o meu pai era de família riquíssima, na época o maior patrimônio financeiro econômico era o dele. E pra ele namorar com ela foi uma luta terrível porque ela era muito séria também, não queria que pensassem que ela estava namorando com ele pra se aproveitar da riqueza dele. Então, ela se recusou peremptoriamente: não, não, não e não. Mas ele relutou e ela disse que: "Se ele quisesse procurar uma rica, ele já tinha casado". Então, ele procurou a pessoa que ele achava que ia fazer parte da vida dele, que ia ser aquela companheira que ele idealizou. Casaram, graças a deus foram felizes, foi um matrimônio de longos anos. Uma prole de 25 filhos normais, sendo 20 homens e cinco mulheres. Eu tive a felicidade de ser a vigésima quinta filha dela, caçula. E sete abortos, que ela perdeu. Então, ela teria 32 filhos. De um matrimônio _______. E ele dizia: "Eu queria que fosse todas mulheres". Queria todas mulheres, mas vieram 20 homens e cinco mulheres. Como ela teve um parto de gêmeos, a primeira filha ela acabou perdendo, porque ela sabia que tinha duas crianças. Naquela época não tinha enfermeira, eram parteiras leigas. A dela, além de leiga era "esmoler", cega, deficiente visual dos dois olhos e era a melhor que tinha na época. Quando ela mandou chamar, já tinha passado da hora da menina nascer. Ela não sabia que era uma menina, quando a velhinha chegou, que avisou pra ela, que aí ela disse que tinha perdido a primeira filha dela. Realmente, a menina já nasceu primeiro do que o menino, com quatro quilos e meio, mas como passou da hora de nascer, nasceu, antigamente eles chamavam (cianótica?), era aquela mancha a aparente, toda roxa. Ela disse: "Você vai perder essa criança, vou ver o que posso fazer". Mas naquela época os recursos eram os melhores no tempo. Um balde com água morna aqui, pegou uma toalha, molhou na água morna, torceu, envolveu a menina... Minha mãe contava demais isso pra nós. Envolveu a menina, foi clareando, melhorou. Umas três horas depois de nascida, faleceu. Aí é que vem a primeira filha, que hoje mora no Rio de Janeiro, há 55 anos. E no dia 10 de fevereiro, se Deus quiser, estará completando 90 anos. É a mais velha das irmãs. Ontem eu falei com ela: "Ainda não sabe se você ou meu irmão que vai fazer 90 anos, se é aqui ou aí. Então, avise pra eu poder saber.".
P/1 – Dona Therezinha, você e seus irmãos moravam aqui nessa casa, todos juntos?
R – Na época, sim, a proporção que foram crescendo, cada um procurou as suas famílias, foram saindo e eu fiquei com a minha mãe até quando ela chegou a falecer.
P/1 – E quando vocês eram pequenos, moravam todos juntos?
R – Todos juntos, aqui todo mundo era abrigado aqui dentro dessa casa.
P/1 – E como era? Era todo no mesmo quarto...
R – As mulheres num quarto e os homens eram nos mesmos quartos, aqui em cima e lá em baixo também. Esse corredor todo aqui, são quartos, mas que estão uma bagunça danada, e lá em baixo... Então, cada um dos meninos tinham o seu quarto. E as meninas aqui em cima, todas no mesmo quarto. Eram quatro irmãs, quatro, todas quatro num compartimento só. Porque não adimitia desunião: "Vocês são uma família e família é família. E se não tiver união, não é família".
P/2 – Devia ter muita brincadeira aqui nessa casa, hein?
R – Demais, demais. Eu pelo menos era a filha caçula e antes de mim tinha um menino, que hoje mora no Rio de Janeiro também. É o caçula dos homens. Eu sou a caçula de todos. Então, como não tinha outro irmão pra eu brincar, nem outro, mais ou menos tinha ele, então eu acompanhava a brincadeira dele. Quando a minha mãe espantava, eu estava lá em cima do telhado do galinheiro, lá atrás, do papagaio: "Menina, você está aí..." Era aquele auê danado, mas nada, brincadeira de não comprometer nada. Porque era aquela educação restrita de antigamente, que qualquer coisa que tivesse, bastava um olhar da minha mãe, todo mundo já sabia, todo mundo entendia.
P/1 – Devia vir muita gente aqui também. 25 amigos numa casa só!
R – Numa casa só. Ave Maria, volto assim ao pasado e agradeço a Deus, eu não posso, meu Deus, te pedir mais nada, nada. Só posso te agradecer pela vida que eu tive e pela vida outra que ele me deu agora. Porque nessa doença minha, foi uma outra vida que ele me deu.
P/1 – Dona Therezinha, quem cuidava dessa casa aqui de vocês?
R – Não tinha empregados, eram afilhados e afilhadas deles que cuidavam. Uma era filha de uma escrava da minha avó, que deu pra minha mãe na barriga. Essa foi afilhada da minha mãe. Ela criou, quando ela foi pro poder da minha mãe, ela estava criando o primeiro filho, o mais velho da minha mãe. Era a partida, então ela ajudou a criar todos nós. E faleceu em nossa casa como uma outra mãe nossa. Era mãe preta que todo mundo chamava, mas ninguém queria que chamasse mãe preta. Era Dedé, Dedé, Dedé. E muita coisa que eu aprendi com ela, eu agradeço. Porque só foi para nos beneficiar, para nos ajudar, para nos orientar. De vez em quando, ela passava a mão na nossa cabeça e minha mãe: "Tu que é culpada dessa menina estar assim". A cozinheira trabalhando lá fora, eu fugia, escapulia lá na vizinha. Meu pai tinha uma casa em São José do Ribamar que hoje é minha, toda reformada. Então, de lá vinha camarão fresco, vinha peixe. Quando chegava, que passava pela cozinheira, eu já sabia, ia pra lá, ajudava, mas ficava uma panelinha aqui do meu lado. Já eu cortava três camarões pra cá e dois pra cá. Quando terminava, dali eu já fazia meu engrossado. E assim aprendi a fazer todo trabalho de casa, independente de meu pai permitir porque ele não queria.
P/1 – E conta uma coisa pra gente, que lugar que você gostava de ficar aqui dentro da sua casa quando você era pequena? Que sempre tem uns esconderijinhos, um cantinho.
R – Então, quando nós escapulíamos, íamos brincar lá pra baixo.
P/1 – E a sua mãe preta, você lembra de alguma história?
R – Não, ela era afilhada, filha de escrava, afilhada de minha mãe, foi quem ajudou a criar todos nós. Mas nunca casou, nunca se separou de nós, separou de vez aos 79 anos de idade, 77 anos de idade.
P/1 – Lembra de umas músicas, umas coisas que ela cantava pra você?
R – Não, não, não. Ela não tinha essas coisas, não. A parte dela era só de casa. Por quê? Não tinha empregadas. Era ela uma semana e a outra, que era afilhada do meu pai, na outra semana. Se essa semana ela estava na limpeza de casa, na outra ela ia pra cozinha.
P/1 – E na cozinha, parece que era um lugar que você gostava?
R – É, na cozinha, eu até hoje adoro. Gosto de cozinha. Gosto e de cada coisa aprendi um pouco. E hoje eu acho que foi certo, eu fiz, independente de ser, de ter sido escondido do meu pai. Que os filhos dele eram os filhos, mas as filhas eram intocáveis. Ele não admitia que nenhuma de nós fizesse nada. Porque ele dizia pra mim: "Minhas filhas não nasceram pra ser empregadas. Pra isso, eu tenho quem faça dentro de casa. Não quero nenhuma delas". Então, de certa forma, pra lá ninguém podia passar com ele em casa.
P/1 – E como você fazia pra passar pra lá?
R – Quando ele saía do escritório, a gente aproveitava essa horinha aí, aproveitava mesmo.
P/1 – E o que a senhora aprendeu lá nessa cozinha que a senhora gosta de fazer até hoje?
R – Ah, tudo, tudo de cozinha. De tudo eu faço um pouco. Não só na parte de culinária, como de doces, como de salgados, tudo eu aprendi. Por conta minha própria, sempre fui muito espirituosa pra aprender as coisas.
P/1 – O seu pai, ele trabalhava no escritório?
R – Meu pai, ele tinha um escritório com cinco sócios dele, chamava marchantaria, antigamente, porque era a firma que matava o gado pra abastecimento dos mercados de São Luís. Então, meu pai era machante. Era sócio o... Não sei como chamava antigamente, mas era os sócios prioritários da firma. Então, ele que era o responsável pelo abate de gado, dividia nos açougues, no mercado, e todo o abastecimento da cidade pra alimentação. Carne ____, carne bovina.
P/1 – E como era o seu pai?
R – Meu pai era baixinho, tem um retrato dele lá na frente, você não viu? Ele era baixinho. Era um doce de pessoa, era lindo demais. Os olhos eram azuis, azuis, azuis, azuis. Era um pai divino.
P/1 – Ele ficava bravo?
R – Brabo quando minha mãe ralhava com alguma de nós. "Olhe, minhas filhas não são pra isso". "Olhe"- ela chamava ele seu Luizinho - "Seu Luizinho, as filhas, quem pariu fui eu. Então, o senhor tem direito como pai, mas eu tenho como mãe, que fui eu que pari. Então, eu tenho que chamar atenção, educar elas". "É, mas não precisa brigar com elas”. Ia pro escritório, quando chegava perto dele chegar, eu olhava pro relógio: "Está na hora do meu pai chegar". Fazia uma traquinagenzinha, saía de montão. Meu irmão mais novo era levado também. Às vezes, ele sentava, ele não admitia que a casa fosse encerada. Era tudo tábua normal. Se caía um alfinete numa frestinha assim, a gente pegava, entocava por baixo. "Ah, que é isso, menina?".
Ele dizia: "Não, é ela que estava mexendo". "Então, todos vão apanhar". Quando eu olhava pro relógio, eu não sabia ainda ver a hora, mas sabia a hora que ele chegava. Ia chegando, chegando, pro meio do corredor, e: "Vixe, meu pai chegou. Não vou mais apanhar". Era assim.
P/2 – Te protegia.
R – Pai maravilhoso, ave Maria.
P/2 – Os meninos apanhavam?
R – Ele não poderia ter deixado. Como na gente ele deixou, o pai ____ deixou, não poderia ter deixado uma maior herança, uma maior riqueza, um maior patrimônio do que o nome dele. E esse nome eu luto com garra, com amor, com carinho até hoje porque tenho orgulho de ser Jansen Pereira, filha de Manuel Jansen Pereira e bisneta de Ana Jansen. Maior orgulho.
P/2 – O seu irmão que você brincava mais, como é que ele chama?
R – Valdir. Hoje ele mora no Rio de Janeiro, mas já está muito idoso, perdeu a esposa há pouco tempo. Está altamente diabético, mas não se conforma, como tudo que faz mal, por isso a parte de açúcar está lá em cima. Corre, corre, leva pro hospital. Está quase que coma de açúcar. Passa, faz o tratamento, retorna pra casa. E assim vai levando a vidinha dele lá.
P/2 – Dona Therezinha, essa época que a senhora brincava com seu irmão, vocês saíam na rua?
R – Na rua, não, só dentro de casa. O espaço dentro de casa era todo nosso. Brinca pegador, brinca pipa, papagaio. Brinca de esconde-esconde. Já minha mãe costurava, eu já ficava já prestando atenção, eu ia aprendendo já alguma coisa. Aprendendo, aprendendo. Sem ela me botar pra aprender porque ele não queria. Então, eu sempre fui muito curiosa pra fazer as coisas. E aprendia. Quando encontrava: "Foi sua mãe que botou?". "Não, meu pai, não foi ela, não. Eu que fui vendo e fui aprendendo a fazer".
P/2 – E que momentos vocês saíam pra rua? Que que cês iam fazer na rua?
R – Olha, tinha um motorista particular com carro. Só esse senhor saía pra passear conosco dia de domingo. As mulheres. Ele ficava na janela, marcava o horário de saída, veja como era. Pra dar a volta, ia pela praça Gonçalves Dias, ele dava a parte toda que a gente tinha que ir. Se passava cinco minutos depois, quando chegava, ele perguntava por que que demorou. "Porque parou na praça um pouquinho, a gente desce". “Não era pra parar, era pra passear". Era desse jeito.
P/2 – O seu pai?
R – Meu pai, meu pai. Ele ficava até a hora. Agora, para o colégio, era Dedé que nos levava para lá. Estudamos no Santa Tereza. Tudo que eu tenho hoje eu devo em parte às irmãs Doroteias porque eu passei 15 anos lá, todas nós estudamos lá, as mulheres todas. Naquela época era só feminino o colégio, agora é misto. Mas eram só meninas que estudavam lá.
P/2 – E, pra quem fica dentro de casa, sair na rua devia ser...
R – Hum, era um auê danado. Ela ia conosco, levava, nos deixava lá. Também só ela que tinha autorização pra pegar. Outra pessoa podia ir como ______.
P/1 – O que a senhora gostava de ver na rua?
R – Passava, ver vitrine, andava pela rua grande. Era uma tranquilidade, não tinha essa violência que tem hoje. Que hoje a gente vive presa. Tudo em grade. Porque dentro de casa a segurança que a gente tem é somente Deus. Hoje ninguém tem segurança na rua. Todo canto, passa, pega a bolsa, o cara se importando se é nossa. E pra mim, pessoalmente, a maior tristeza que eu vejo, é que hoje não são são os adultos que fazem isso, são jovens. A maioria, jovens. Menino de 15, 16, 17 anos. Eu tenho um trabalho social também, com o pessoal lá da sede. Na área de lá. Eu tenho um trabalho não só cultural, mas ao lado deles, social.
P/1 – Na sede?
R – Na sede da brincadeira. Eu tenho dois grupos de cultura. Tem a casa que é a nossa sede, e tem o barracão, que é onde a gente faz os ensaios, onde faz as reuniões. Vai de uma rua à outra.
P/2 – O Bumba Boi.
R – O Bumba Boi.
P/1 – Na escola, você lembra o que você gostava de brincar? Você gostava de estudar?
R – Lá no Santa Tereza? Ah, tinha sim, que nós éramos sempre um grupo de seis, oito, era aquela patotinha que a gente tinha. Mas passava a maior parte do tempo no colégio.
P/2 – Devia conversar bastante.
R – As irmãs eram muito loucas por mim. Eu também cantava no coro da igreja. Quando chegava o mês de maio, era missa de manhã todos os dias, todos os dias. Tinha ladainha de um grupo, de uma série, então nós tínhamos que acompanhar. Eu chegava 31 de maio, a garganta estava que eu não dava uma palavra. Mas era assim, as irmãs eram loucas por mim. Tinha gente que pensava que eu fosse até ser freira.
P/2 – E você cantava ladainha?
R – Ladainha? Durante o mês de maio, tinha.
P/1 – Como é que é a ladainha
R – É uma oração que a gente faz, e a ladainha era uma louvação a Nossa Senhora. E, na ladainha, cada frase era louvando ela de uma maneira diferente. Virgem das Virgens, Mãe das Dores, Mãe da Divina Graça, Mãe Puríssima, Mãe Castíssima, Mãe Inviolada. Toda ela assim.
P/1 – Mas era cantada?
R – Era cantada.
P/1 – E quais outras músicas que a senhora cantava ou...
R – Sempre, no mês de maio, sempre músicas de Nossa Senhora. Sempre, sempre, sempre. E mês de maio é dedicado a ela. Então, sempre era ela.
P/1 – Como é que eram as festas na escola?
R – As festas da escola eram uma beleza. Tinha campanhas missionárias. E a gente fazia pra juntar donativos pra distribuir entre sociedades carentes daqui do interior, era muito bom. Foi uma época muito boa, que a gente não esquece. A infância da gente a gente não esquece.
P/2 – Lembra de uma em especial, que você teve alguma aventura assim?
R – Especial tem uma porção mesmo. (risos)
P/2 – (risos) Conta uma pra gente.
R – Uma quantidade enorme. Quando a gente ia passar férias fora. Fora, digamos: "Amanhã nós vamos fazer piquenique no olho d`água". Juntava, todo mundo ia. Naquela época, vocês não conhecem, uma praia enorme, uma das melhores praias que a gente tem. É lá no olho d`água. Morros naturais. Lá em cima, com plantações de uma frutinha pequenina assim que chama murici, amarelinha. Subia e apanhava o murici lá em cima. Comia, depois aí olhava lá pra baixo: "Vamos rolar?". "Vamos". O mais corajoso deitava e ia rolando mesmo, lá de cima até embaixo. Quando voltava já tinha outra já caindo, ficava aquele monte me menina lá embaixo. Tudo na época era uma distração e era uma brincadeira diferente a cada minuto. Porque a gente mesmo é que inventava. O que viesse na hora, na hora era passado e pronto.
P/1 – E vocês podiam sair do colégio?
R – Não. Só com a pessoa responsável pra tirar.
P/2 – Você falou um pouquinho do seu pai, da sua escola, e a sua mãe?
R – A minha mãe era uma mãe maravilhosa. Era aquela rainha que ainda hoje os passos dela me prendem. E pra mim foi muito difícil o momento de passagem dela dessa vida pra outra. Porque ela estava conversando comigo, como eu estou conversando com vocês, de repente, ela se sentiu mal. "Corre, corre, leva". O médico morava bem aqui no edifício (Jaiçara?). O menino chamou, na carreira, ele veio. Quando eu fui falar com ela, que eu corri, ela tinha acabado de falecer. Eu tive a isquemia, que convive comigo até hoje. Mas aquele momento jamais eu vou esquecer. Muito difícil da gente ver uma pessoa da gente, como a mãe que ela era, que até hoje eu não tenho a menor frustração, o menos ressentimento, a menor tristeza por não ter casado atendendo a um apelo dela. Muitas vezes, ela se ajoelhava aqui nesse mesmo chão, eu vinha de lá: "Mãe, o que a senhora faz aí?". "Ah, minha filha, me deixe, eu estou conversando com Deus". "Mas não precisa, se sente", ela era forte. "Não, minha filha, pra gente conversar com ele, tem que ser dobrando o joelho pra poder respeitar ele que é nossa autoridade maior". "O que a senhora quer com ele?". Ela me olhava assim, às vezes com os olhos lacrimejando. E dizia: "Eu estou pedindo a ele por ti". "Mas precisa pedir por mim desse jeito, minha mãe?". "E por quê?". "Sabe por que, minha filha? Porque eu tenho medo que você não seja feliz como eu sou". O espírito materno de uma verdadeira mãe. De chegar ao ponto de pedir um sacrifício pensando na felicidade ou infelicidade da filha. Que ela só queria o melhor pra nós. Pra mim porque era caçula. E depois: "Se isso lhe faz sofrer, ficar preocupada, não fique, minha mãe. Eu lhe prometo aqui agora que nunca vou me casar". E realmente nunca me casei, não tenho frustração, fico feliz em ter feito a vontade dela. Porque hoje a gente vê tanta tristeza, tantos matrimônios desfeitos. Eu estou com uma amiga com 23 anos de casada, uma filha só com 15 anos. O marido chegou semana passada, disse: "Olha, eu amanhã não sou mais seu marido. Só estou em casa até hoje". Saiu de casa, trocou uma esposa que batalhava ombro a ombro com ele, trabalhando feito uma louca, trocou por uma prostituta de prostíbulo com 17 anos de idade.
P/2 – Você e sua mãe...
R – São casos assim que a gente vê no dia-a-dia, e eu sou feliz. Hoje eu faço o que eu quero, que Deus me permite. O que eu ganho não é muito, mas muito porque "pouco com Deus é muito, muito sem Deus é nada". Supro as minhas necessidades, tem alguma coisa que meu pai me deixou pra ajudar na minha manutenção, tenho algumas casas ______. E sou feliz por isso. Porque olho pra trás, não tem o que faça eu baixar minha cabeça, e pra frente muito menos. Honrando o nome deles, a educação que eles souberam nos dar. Que hoje, você vê, a mãe está trabalhando pra cá, o pai está pra lá, o filho está pra cá. Às vezes, uma filha diz: "Eu vou dormir na casa de uma colega minha". Quando vai procurar, cadê? E hoje não. Tenho mais de 30 crianças que eu criei, inclusive os sobrinhos. E me sinto realizada. Cada um membro do grupo, ele diz: "Não, isso aqui é uma família minha, não é consanguíneo, mas é uma família". Então, pra que a família seja chamada de família tem que ter união. Tem que ter entrosamento. Eu já faço aquele trabalho. Já colocando crianças nos grupos pra tirar dos vícios, das drogas, da marginalidade. Até porque a área que a gente trabalha é uma área pobre. Ainda tem casas em periferia que está aqui em cima, a maré está ali embaixo. São palafitas. Mas isso preenche o meu dia, o meu dia-a-dia. O grupo que eu tenho hoje foi fundado em 1o de maio de 1930. O antigo proprietário trabalhava comigo na mesma repartição que eu trabalhava, onde é a Casa do Maranhão hoje, vocês devem ter visitado. Trabalhava em cima, embaixo ele trabalhava. No serviço que antigamente chamava estivador. Mas na época era chamado trabalhador de capatazia. Porque pegava as sacas de açúcar, de arroz, botava nas costas. Trabalhava lá, era seu Laurentino Araújo. Eu era o contador geral do Estado. Às vezes ele subia, ficava lá. "Dona Therezinha, eu quero lhe fazer um pedido, um pedido". "Que pedido é esse? Tenho que trabalhar, tenho aqui o que fazer". "Não, senhora, venha cá". Eu ia. Eu sempre aprendi com minha mãe respeitar os idosos. "Quero lhe convidar pra a senhora ser madrinha do meu grupo". Eu digo: "Eu? Só entendo de boi aquilo que o meu pai trabalha, que é de comida. Daí, nada mais. Deus me livre, o senhor não vê minha vida que eu tenho aqui? Não tenho tempo nem pra nada". "Não, dona Therezinha, eu quero". E ficou naquela insistência, insistência. Mas, paralelo a isso, pelas dificuldades que ele tinha, meus pais ajudavam ele. E ele passou um dia aqui e falou com minha mãe pra saber se era ela que não queria que eu fosse a madrinha do Boi dele. Ela disse: "Não, eu não. Tenho nada contra, nada a ver, não vejo por quê. Não fui eu que proibi, não". Ele saiu daqui caladinho, chegou, me desafiou: "Não preciso mais que a senhora queira ser madrinha do meu Boi de Graça". "Graças a Deus". "Graças a Deus, digo eu". "Mas por quê?". "Porque a senhora já é a madrinha do meu boi". "Não passei procuração, não autorizei ninguém a fazer isso. Então, se alguém autorizou é balela".
Até... Ele ficou aí fazendo guerra de nervo. Até que eu imprensei ele, ele me disse: "Foi sua mãe". Eu disse: "Que, seu Laurentino, o senhor teve coragem de sair daqui de nossa casa pra aperrear minha mãe com isso?". "Ah, a senhora não queria, eu fui perguntar se era ela que não queria". Ele era semi-analfabeto. _______ _________. Eu dizia: "Mas eu quero que seja a senhora madrinha. Então, ela disse que a madrinha é a senhora". Eu digo: "Bem, o senhor foi audacioso, mas, diante da palavra da minha mãe, a minha só não sei quantos zeros à esquerda". Ficou feliz da vida, então eu já comecei a ser madrinha da brincadeira dele.
P/1 – Você começou como madrinha?
R – Como madrinha, como madrinha. Aí, tudo que ele queria era comigo, ele se apegou mais a mim. Porque lá se tinha uma gratificaçãozinha que eu podia incluir o nome dele pela dificuldade de vida que ele tinha. Já ia incluir ele, ele ia fazer um extrazinho já, providenciava uma gratificaçãozinha, ia no secretário, pedia, ele autorizava. Quando estava no ponto de receber, mandava um funcionário chamar, e ele ia na tesouraria, recebia o pagamentinho dele, ficava feliz da vida. Isso fez ele ficar muito ligado a mim também. Fomos e fomos e fomos e fomos. Ele adoeceu. Pra não estender muito, assim, eu estou resumindo um pouco mais. Ele adoeceu, levei num médico, o médico: "Ih, dona Therezinha! Ele está com uma pneumonia. Tem que ser internado". Providenciei, internei. Era médico de tuberculoso, realmente, porque ele me chamou logo e me disse, que ele estava com o pulmão afetado, mas ia depender dos exames pra ver. Quando vieram os exames,
comprovaram ali estava com os dois pulmões afetados. Ficou internado, eu ia levar medicamento, os remédios que não tinha no hospital eu procurava, comprava, levava. Um dia o médico mandou me chamar lá, eu fui. "Olhe, dona Therezinha, seu Laurentino não quer mais ficar. Disse que ele sabe que vai morrer. Então, ele quer ir pra casa, morrer em casa. A senhora decide. Se a senhora quiser tirar, os medicamentos que ele toma aqui, ele vai continuar tomando, a senhora manda buscar. E os que não tem a senhora é habituada a comprar, a senhora compra também por lá, e ele fica com a mesma manutenção e tratamento só em casa". Eu levei pra casa, e ele tinha assim... Não eram ainda as hemoptises, mas era aquelas crises de falta de ar, de cansaço. Queria respirar, não podia. No tempo, não tinha oxigênio nem nada. E abana, abana, e faz isso, faz remédio caseiro. Quando foi um dia, eu estava aqui, ele mandou um dos brincantes dele, que o grupo já tinha só 20 brincantes. Não podia manter mais do que isso porque não tinha como. Mandou me chamar pra eu ir lá urgente falar com ele, que ele ia falar comigo. Eu disse: "O senhor não me deixa sossegar, o que ele quer?". Eu fui. Quando eu cheguei lá, meu Deus, ele estava com uns oito ou dez brincantes. Eu cheguei, estranhei aquele momento meio pesado, de tristeza. "Meu Deus, o que que aconteceu?". Entrei, ele estava deitadinho. Quando eu cheguei, disse: "O senhor pensa que eu não tenho o que fazer?". Ele me olhou, cansado, cansado. Eu chamei o moço, disse: "Vê se o senhor sente ele, apoia pra ver se ele melhora um pouco pra dizer o que ele quer". Ele sentou, muito cansado que estava, mas veio um pouquinho. E ele tinha crises, que, na hora, passava mal, mal, corre, dá o remédio, ele melhorava um pedacinho. E depois já tinha, mais adiante, outra crise. E assim ele estava passando a vida dele. Mas, nesse dia, foi pesado. Quando ele sentou, ele me disse: "Dona Therezinha, eu mandei lhe chamar porque eu quero lhe fazer um pedido. Eu quero que a senhora não diga 'não' pra mim. Que eu sei que vou morrer". Eu digo: "Isso não é pro senhor só. Todo mundo sabe que vai morrer". Tentei amenizar mais aquilo. "Todo mundo sabe que vai morrer. Até eu posso morrer aqui de repente agora". "Não, isso não vai acontecer. Eu sei que vou morrer, mas só vou morrer se primeiro a senhora me fizer o pedido que eu vou lhe pedir". "Olhe, não vou assinar carta sem ler, não vou assinar meu nome em papel que eu não sei que papel é esse, talvez o senhor vá mandar pra Polícia Federal me prender. Levando assim na brincadeira pra ver se ele melhorava. Ele me olhou assim: "A senhora pensa que eu estou brincando, eu não estou brincando, dona Therezinha. Pelo amor de Deus, diga que a senhora faz". Começou a cansar de novo, eu fiquei nervosa já, com medo dele ter uma crise pior e eu morrer e eu ser responsável por aquilo. Apelei pra cima: "Meu Deus, pelo amor de Deus, me guia, me orienta, me diz o que que eu vou fazer". Eu disse: "Quer saber? Eu vou dizer pra ele que eu vou atender o pedido dele pra ele se acalmar, e depois eu venho ver o que é que ele quer". Ele me olhou, eu digo: "Não adianta o senhor ficar assim, se acalme. O senhor quer fazer um pedido pra eu não dizer 'não', pois então eu não vou dizer 'não', pronto. O pedido é 'sim'". Ele me olhou, eu disse: "E agora diga qual é o pedido". "Eu vou lhe dar a minha brincadeira. A brincadeira é sua, estou lhe dando. Quando a senhora não quiser mais, não mate, não empreste, não venda, bote num fumeiro". Eu digo: "Fumeiro? Fumeiro? O senhor não sabe que casa de branco não tem fumeiro?" Brincando, pra ver se ele melhorava. E eu nervosa, que estava uma pilha. "Fumeiro só tem em casa de preto velho como tu, filho". "A senhora está brincando? A brincadeira é sua. Agora eu posso morrer tranquilo". Mas, quando eu disse aquele "sim", eu disse por dentro de mim, eu digo: "Não, ele está cansado demais. Ele é habituado a ter essas crises, depois ele melhora. E eu venho conversar com ele com calma pra semana pra ele botar outra pessoa pra tomar conta do Boi dele". Ele foi, se acalmou, se acalmou. Digo: "Está tranquilo?". "Estou. Agora ele pode morrer". Fui lá fora, a velhinha dele, também já idosa, arrastando o pé. Olhei, estava alguma coisa ______, vim pra casa. Quando foi na semana seguinte, vieram me chamar. Quando eu cheguei lá, o homem falou: "Ele morreu". A minha palavra empenhada até hoje. Porque eu já tinha dito que sim, não é? E pronto. Hoje o Boi da Fé em Deus está com uma faixa de 120 brincantes. Criança na faixa de quatro, cinco, seis, 15, 16 anos. Para o ano, se Deus me der vida, eu quero ver se eu coloco mais umas 20 crianças. Porque eles estão me pedindo demais. Que, independente da parte cultural, eu faço a parte social. E já vou orientando e mostrando: "Olha, meu filho, isso aqui é lazer. Não é... É uma brincadeira, mas não é pra você largar o que você tem, o seu estudo, pra vir só brincar. Pra você entrar na brincadeira, tem que falar com seu pai e principalmente com sua mãe. Se não tiver autorização, eu não quero. E mesmo que ela venha, se não tiver que estudar, eu também não quero. Só quero menino que queira aprender".
P/1 – Dona Therezinha...
P/2 – É... A madrinha, ela ajuda o grupo?
R – Ajuda, não tem nada obrigatório. Nada que se imponha, é um... Pelo menos comigo, não me impuseram nada porque não tinha como, coitado, também. Era um homem pobre, simples, humilde, semi-analfabeto. Tinha a toadinha que ele fazia de pé quebrado. Mas no repente, no período, não tinha ninguém que ganhasse ele também. E era aquele homem, que lutava por aquele ideal dele. Era dele aquilo.
P/1 – Por que a senhora acha que ele convidou a senhora pra ser madrinha?
R – Sabedoria. Tem dia hoje que eu brigo muito com ele, eu olho pra cima: "Tu é um velho safado, ordinário. Está lá em cima numa bem-boa. Olha pra mim aqui embaixo, diz: 'Eu botei uma banana quente na mão daquela velha, mas ela que vai aguentar’". (risos) A menina vem de lá de fora: "Que é isso, dona Therezinha, a senhora está falando só?". Digo: "Eu estou brincando com seu Laurentino, brigando mesmo com ele. Digo: "Olha, um dia a gente se encontra". Às vezes até eu mesma digo: "Será que eu estou ficando doida? Como é que eu vou ficar com uma pessoa que já faleceu?" Mas é isso mesmo. Estão assim porque chega num momento que a gente aprende a querer bem a _____. Então, hoje a cultura do Maranhão faz parte da minha vida. Quer dizer, me absorve de uma maneira tal, eu sou membro da Comissão Maranhense de Folclore. Tenho um currículo que está sendo atualizado agora. Com mais de 50 itens. Entre medalhas, certificados, medalha de comendadora, de patrimônio, de Câmara de Vereador, de Dia Internacional da Mulher e por aí vai. Mas isso só não junta, não compensa, não preenche. Então, o que preenche é esse convívio com as pessoas que a gente escolheu pra estar no dia-a-dia. Pessoas humildes, simples. Financeiramente lá embaixo. Pessoas que passam, pais de família, que passam o mês inteiro sem trabalhar. Um é auxiliar de pintor, o outro é pedreiro. Só profissão miudinha assim. Mas que quando ele parte pra fazer aquilo que ele abraçou, que é um cantador de boi, brota a força de Deus porque ele é que ensina. Às vezes, eles estão dormindo, de repente chama: "Olha, copia isso aí". Copia a letra, no outro dia ele vai pôr uma música dele naquela letra. Então, é um trabalho que me prendeu muito. De certa forma, me prendeu num momento que eu tinha perdido a minha mãe. Não é que aquilo preencha, uma coisa preencha a outra - porque esse espaço dela ninguém preenche até hoje - mas, naquelas horas que eu tinha de dedicação, de esquecer isso aqui e cuidar dela, eu comecei a preencher com a brincadeira.
P/2 – Como é que você via quando você era pequena, crescendo, a cultura no seu dia-a-dia? Quando você encontrava o Boi, como é que era?
R – Não, não tinha isso. As roupas eram simples. As roupas eram de balacachê, os chapéus também. Não tinha isso. A partir dele foi que começou a mudar a decoração dos bois de zabumba.
P/2 – Que que é o balacachê?
R – É um adorno. A gente costurava nos chapéus pra abrilhantar, pra brilhar.
P/2 – Quando você começou a ser madrinha, você também começou a pensar nas roupas?
R – Pois é. Já o grupo já estava fraco. Porque não tinha realmente condições. O Tambor de Crioula estava desativado. Porque antigamente todo Bumba Boi tinha um grupo de Tambor de Crioula. Isso aí, ele... Mas não tinha como manter o Boi, imagina com o Tambor? Depois dessa história toda, que ele me passou o Boi, pererê, parará, aí as esposas dos brincantes começaram a me cobrar: "Ah, dona Therezinha, por que que a senhora não reativa o Tambor? Nós estamos aqui, somos do Boi, podemos reativar o Tambor". "Olha, gente, é muita despesa, pelo amor de Deus, vamos devagar". Assim, conversei, conversei, até... Certa forma, o Boi já estava mais ou menos. Que quando eu vi, peguei, acho que não chegava a ter 20 brincantes. Porque não tinha como mesmo. Hoje o Boi está com 120 brincantes. Entre jovens, adultos, senhoras, senhores. E você olha a padronização do... Pra mim o que é mais essencial é isso.
P/1 – E no comecinho vocês iam brincar aonde?
R – Não, era muito simples. Ate lá onde era a Receita Federal, vocês não conhecem aqui, mas dali pra trás os bois podiam brincar. Mas de lá pra cá não não podiam entrar na cidade nenhum grupo de _____
P/1 – Por quê?
R – Porque a polícia não permitia. Não permitia mesmo. Então, pra passar era aquela luta. E ele era danado mesmo, desafiava até a polícia. Que ele tirava música de pé quebrado pro chefe de polícia, que era uma danação. Mas assim foi indo, indo, indo até que foi melhorando aos poucos. Mas as roupas eram simples, mas sempre a mesma padronagem de cor: branco e verde.
P/2 – E os bordados?
R – Os bordados eram com miçanga, com paetês, que hoje não se usa mais o paetê na roupa, só a miçanga e o canutilho. Eu pelo menos parei de usar mesmo, porque eu sou meio enjoada com as coisas. Ou eu faço coisa que preste ou então eu não faço. De forma que foi sendo abolida essa parte: (malacacheta?), paetê. Tanto que esse ano eu tive vontade de fazer um couro de boi como era antigamente pra mostrar a diversidade da época antiga com a atual. Quer dizer, eu sou muito ponderada e primo muito, assim: vamos modernizar, mas sem perder a sua característica, a sua raiz, a sua tradição. Porque isso é que leva em conta. Porque se eu defendo um grupo, que origem, a tradição, tem que lutar por ele, mostrar. Ou então eu não mostro. É tão, você mata a cobra e mostra o pau. Então, eu tenho por obrigação moral cumprir os compromissos que eu assumi com ele. Então, hoje é uma adoração minha por esta brincadeira. Minha irmã reclama demais: "Pelo amor de Deus, tu tem tempo pra boi, pra vaca, pra tudo mais, mas não tem tempo pra vir aqui? Só quando eu estou doente!". "E ainda bem que quando tu está doente, eu tenho que ir". Mas prende a gente. A gente aprende a querer bem, a viver aquela vida de dificuldade que eles têm. Lamentamos muitas e muitas vezes, eu querer ajudar e não poder.
P/2 – Dona Therezinha, qual a origem do boi?
R – A origem do boi é o boi zabumba, origem, raiz, cultura, tradição. Praticamente vindo de uma cidade, Guimarães, aqui do interior do estado do Maranhão. E muita gente chama também sotaque guimarantino, pelo lugar, Guimarães. Então, daí é que vieram o sotaque da cultura.
P/1 – E qual é a história do boi?
R – A história do boi é o seguinte: um fazendeiro muito rico, muito rico, rico mesmo e dentro da fazenda dele, ele tinha um boi muito lindo que era da predileção dele. Tinha um capataz da fazenda que era aquele vaqueiro que tomava conta de tudo, era o responsável por tudo e chamava Nego Chico, que era Francisco, mas todo mundo só chamava Nego Chico. E ele era casado com uma mulher que era chamada Catilina. Então, ela resolveu engravidar. E dessa gravidez, ela sentiu desejo de comer a língua do melhor boi do patrão do marido dela. Loucura, como é que eu vou desejar a língua do boi do patrão, que sustenta meu marido, me sustenta? Eu estou com tudo aqui dentro, não é uma loucura? E ele meteu o pé na parede: "Não, isso eu não vou fazer. Como é que eu vou tirar a língua do boi do meu patrão? E como é que eu vou viver? Você não está grávida?". "Mas tu queres perder teu primeiro filho? Se eu não comer isso, eu vou perder o menino e você vai ficar culpado". E aquela danação e vai, não vai. Até que ela muito imprensou e ele resolveu roubar o boi do patrão dele pra mandar tirar a língua pra dar pra ela. O boi sumiu, então o patrão começou: "Você tem que me dar conta, você que é o responsável!". "Mas o boi estava aqui, e desapareceu". "Então, vá procurar, quem roubou vai ter que mostrar onde é que está". Foi lá, luta, luta, luta, trouxeram um boi: "Não é esse. Leva". Trouxeram outro: "Não é esse, leva". Por último ele resolveu dizer que ele tinha mandado roubar o boi pra tirar a língua. O dono da fazenda chamou as índias, que eram quase como delegadas. "Vamos se reunir e prender este homem. Ele tem de dá conta de meu boi". Elas foram e trouxeram ele preso. Ele confessou que ele tinha roubado o boi por um pedido da esposa dele que estava desejando comer a língua do boi e ele não quis perder o primeiro filho dele. "Mas você vai se virar, eu quero meu boi". Foi aquela luta, aquela guerra danada. Ele mandou soltar e ele saiu atrás, e por ali ele mandou seguir. Até que encontraram o boi. Eles vieram e contaram pra eles, os detalhes, muito detalhado, muito pequeno... Trouxeram o boi e o boi estava passando mal, que ele estava sem língua, não podia comer. Mandaram busca o pajé, naquela época pajé tinha força. Mandaram buscar o pajé. O pajé veio e faz remédio daqui e faz remédio dali, o boi melhorou um pouquinho. Todo mundo ficou contente, inclusive o dono. Melhorou, melhorou até que ele conseguiu ressuscitar o boi e foi a festa da fazenda. Mas dentro da cultura popular isso é só parte da comédia, que é chamada "Alto" ou muitos chamam "Matança" também, mas o nome próprio dentro da cultura é o "Alto do Boi". É isso mais ou menos que resume o "Alto do Boi", da cultura do Maranhão.
P/1 – Na brincadeira, como vocês contam essa história?
R – Na brincadeira: todos brincando, se fardam com a roupa da brincadeira, tem uma fogueira feita ali, tem os amos ou cabeceiras, que são aqueles que cantam, os senhores que cantam, tem os vaqueiros, tem as tapuias, tem os brincantes da fita que ornam o cordão. E lá na fogueira, eles têm por obrigação, praticamente, o certo é cada cabeceira ter o seu apito, o maracá, o seu chapéu. Então, eles reúnem a brincadeira no apito, apitam lá na fogueira. Lá eles cantam o Guarnece. Junta todo mundo ali. Depois de juntar, eles vão pra fogueira, contam a reunida. Depois da reunida, o cordão é feito e sai pra casa onde foi chamado pra brincar, que é o "Lá Vai". Tudo isso sobre a cantoria. Eles cantando e o resto do cordão respondendo. Chega lá na sua porta, faz de conta que foi você que contratou, eles chegam e dão um boa noite. Então, chegou, o boa noite e daí é que vai partir a parte da comédia se eles pedirem que seja feito. Se não, eles fazem uma misturinha, assim, um faz de conta quando termina, eles cantam a despedida, vão até a fogueira, canta o Horror, que é o encerramento da festa. E lá na fogueira ainda tem um... Que agora eles usam muito um certo tempo pra calar o atravessor, que eles cantam na fogueira. Terminou aquilo, parou a brincadeira. Mas a sequência toda é essa.
P/1 – Deve ser emocionante.
R – É muito emocionante pra gente que vive aquilo, que sente no sangue. Acho que eu puxei isso da minha avó, que ela era danada mesmo.
P/2 – E as toadas, dona Therezinha?
R –As toadas? Eu dou o m maior valor, sabe por quê? É o trabalho de cada um deles, eu vou dar pra vocês levarem um CD, o nosso primeiro CD, o nosso segundo CD e o terceiro CD, que eu não posso nem dizer que é um CD. Porque a capa é só um papel dobradinho assim, pra colocar porque não teve apoio pra tudo.
P/2 – Mas não deixa de ser o terceiro CD.
R – Mas tem um "cedezinho" dentro, que foi o que se gravou ainda.
P/2 – Dona Therezinha, lembra pra mim de uma toada que você gostou basante? O que é uma toada?
R – Toada é o cântico que eles fazem, seguindo essas influências. Lá na Reunida tem a toada da reunida, bate as zabumbas. Que as zabumbas são os instrumentos do grupo. São os arcos de zinco, porque hoje não pode fazer de madeira. Porque é proibido. Então, fazem de zinco, cobrem de um lado e de outro com o couro de boi. Tem uns parafusos que engatam em cima e embaixo e vai apertando, apertando à proporção que vai dando a percussão. Elas não precisam ser esquentadas em fogo. Agora, os tambores de fogo e de arrocho têm que ir no calor da fogueira pra poder dar a percussão.
P/1 – E tambor de crioula?
R – Tambor de crioula é outro tipo de tambor, que são tambores grandes. Eu como tenho parelhas de madeira natural, que eu conservo que hoje não pode dar, mas eu conservo com o maior trabalho. Vai, junta, não deixa ficar nenhum que senão quando a gente procura, não acha. São cobertos com couro de boi, ou de veado, sei lá... Dependendo daquele qua a gente conseguir, com as cravelhas que vai apertando e com o calor do fogo que dá o batuque. São três tambores: um grande, um socador e um crivador. No tambor grande tem a matraca que faz a percussão também, que marca. E o tambor da frente hoje está com quase 90 brincantes. Entre crianças, adultos, jovens, que já tem um grupo mirizinho que já está mais ou menos encaminhado. E estou querendo compor esse ano que vem, se Deus me permitir, um com mais umas 20 crianças pra somar com os que já tem. Pra tirar dessa vida de vício, de marginalidade. Os pais não podem ajudar, eu ajudo. É uma roupinha, é uma golinha pra outro, tudo é dispendioso e tudo é difícil. Eu sou aposentada do Estado, mas quando eu estava licenciada pela morte da minha mãe, eu não me aposentei pela minha função, perdi. Então, eu sou aposentada pelo meu vencimento só, que aposentado do Estado, não precisa nem se falar mais. Todos sabem como é. Mas tenho aquilo que o meu pai me deixou pra me ajudar. O patrimônio, que ele me deixou casas que eu alugo pra me ajudar a suprir as minhas necessidades e as necessidades dos outros.
P/1 – Dona Therezinha, a senhora foi funcionária pública de que instituição?
R –Contadora geral do estado, na época. A minha vida funcional foi naquela casa do Maranhão, toda. Só saí no governo de doutor Penevo Santana, que eu fui trabalhar na Fundação do Bem Estar do Menor com a esposa dele, que era a presidente da Fundação e me impôs. Foi imposição dela me levar pra trabalhar como tesoureira da Fundação. Quando ela me convidou, eu digo: "Não, Edithe. Te ajudo em qualquer situação, em qualquer atividade, até pra ser faxineira eu vou". "Quando eu te escolhi, é porque eu te conheço, sei da tua família, confio em ti e na tua honestidade. Eu quero que tu seja minha tesoureira." Eu disse: "Mas eu não vou". "Ah, tu não vai? Tu sabe quem é o governador do Estado?". "Eu sei". "Quem é ele?". "Doutor Penevo Santana". "Quem é Penevo de Santana?". "É o teu marido". "Ah, é o meu marido? E tu não queres." Quando foi no da seguinte, ela já chegou num ato de nomeação dele me colocando à disposição da Fundação como tesoreira da Fundação. Eu digo: "Isso foi altamente suborno, isso não se faz com ninguém". Mas como ela era muito amiga da gente, realmente uma grande amiga, a família dela muito amiga de meu pai. Essa coisa de família ligada, que hoje muita gente não preserva, mas eu preservo, que foram os amigos que meu pai teve. E me dou feliz por isso, lá na Fé em Deus todo mundo me conhece, eu faço um trabalho social. Acabamos de sair da festa da morte do boi, foram quatro dias de festa. Um boi de 250 quilos, 120 quilos de porco e galinha e isso e aquilo, não sei quantos panelas de farinha.
P/2 – Fé em deus é o bairro?
R – É o bairro. E tive a felicidade de Deus me colocar na Fé em Deus, que sabe a fé que eu tenho nele. Então, o convívio lá é uma outra família que eu tenho, sem ser consanguíneo. Mas são muito apegados, se é uma receita, sou eu; se é uma criança que está com dificuldade, sou eu; se precisa disso, sou eu. Aquele sufoco. O cachê do boi, esse cachê aqui eu recebo, não é meu. É da morte de meu boi. Este aqui é pra pagar os ônibus que foram conosco. Se sobra alguma coisa, eu mando chamar a menina pra comprar material pra começar a bordar, que eu trabalho o ano todo, de um ano pra outro. Se não eu meto a mão no bolso, se me dá na telha e vou tirando. Pra ir comprando aquilo que a gente precisa, pra não chegar em cima da hora e a gente com a mão na cabeça. São João está aí, falta roupa, não. No dia 23 está todo mundo pronto, é a noite do batizado dos couros. Batizar, é uma pena que eu não tenha tido como trazer o couro do boi pra mostrar pra vocês. Todo na miçanga e no canutilho.
P/2 – Nossa, no couro?
R – No couro do boi. É a capa que cobre aquela armação do boi.
P/1 – Dona Therezinha, naquela hora eu estava te perguntando da toada, você não lembra de uma, não tem uma que você mais gosta?
R – Não dá pra cantar. No CD, vocês vão ver.
P/1 – E essa festa do boi, a gente já viu lá em São Paulo, sabe, lá tem a festa de nascimento, batismo, da morte e da ressurreição. E aqui como é que ela é?
R – Não, aqui tem véspera de São João, é noite que a gente brinca na porta... Que eu não saio pra brincar fora. Num ano eu brinquei, mas não me dei bem, então é a tal história: a gente tem a religiosidade e tem aquela crença que a gente tem. Que tem que respeitar e obedecer. Tem o batizado dos couros, a ladainha. Os padrinhos estão lá, o grupo todo junto. Brinca a noite toda, em véspera de São João. Não sai pra brincar fora. Até de manhã, de manhã tem um... Eles escolhem. É mocotó, aquelas panelas grandes de mocotó. É feijoada, o que eles escolhem pra comer eu faço pra eles. Durante o dia eles saem, e à noite do dia 24 nós começamos a jornada de saída para o São João. Para atender à programação do estado ou do município. Este ano nós brincamos de 24 até o dia 5 de julho. Direto. Toda noite. Eu acompanhando eles até... Porque nunca sai sem acompanhar. Porque não adianta eu vir pra cá e ficar preocupada.
P/1 – Você tem o grupo do bumba-boi, que acabou que você entrou como madrinha, e hoje é uma pessoa super importante dentro do movimento. E como é que foi que você criou o tambor de crioula?
R – Tambor de crioula, porque já tinha no grupo criado.
P/1 – Ah, você só...
R – Já tinha pronto. estava desativado porque não tinha como. Elas começaram a me cobrar, e cobrar, eu reativei o tambor de crioula. Pra ter um grupo. Como hoje o tambor de crioula. Tem aquelas fotos que estão aí, minha filha? Aquelas fotos do boi. Mostra aqui pra ela.
P/1 – Ai que ótimo, brigado.
R – A do tambor eu nem separei porque isso é uma senhora que me pediu pra fazer até um trabalho também que ela está fazendo. Pois é, então, eu compro aqui em frente dez peças de tecido com 30 metros cada uma. Com um metro e 20, um metro e meio de largura. E essas mãos é que cortam todas as saias dela pra todas ser padronizadas. As adultas. O babado daqui tem 28 centímetros de largura, são sete panos franzidos. Aqui a única medida que diverge é essa, comprimento, que uma é mais alto até embaixo. Mas são 14 nesgas pra adultas; pra crianças são dez, oito nesgas. Cada uma delas. A pala tem dez centímetros pra criança, 12 de adulta. você vê aquela roda.
P/1 – No tambor de crioula, só mulher pode jogar? Pode dançar?
R – Não. No interior, os homens dançam, mas aqui, se tem algum grupo que homem dança, não sei, mas no nosso só as mulheres que dançam e as crianças, os meninos quando estão pequenos. Que quando cresce um pouquinho mais, vão aprender nos instrumentos, a cantar, bater um instrumento. Mas é só mulher. Você olha a roda, está completa ali.
P/1 – Continua contando pra gente da saia.
R – A saia, pois é, são todas padronizadas, todas iguais. Você olha a roda, não tem uma mais comprida do que a outra. É tudo como tivesse medido do chão pra barra delas. Antigamente, brincavam todos de pé no chão porque era o correto. Mas teve um ano que nós fomos brincar no Viva Vinhais, e uma criança cortou o pé com um caco de garrafa. Quando me chamaram, a bichinha estava perdendo sangue, horrível, corre, corre, leva pra o hospital. Levamos _________. Digo: "A partir de hoje, ninguém vai brincar mais descalço". Porque é muito perigoso. Já pensou? Podia ter uma infecção, uma coisa assim, eu corri logo, logo. Então, hoje todo mundo é de sapatilha preta. Tanto o boi como o tambor. Mas você vê, quando eu olho, parece assim: "Será que isso é um trabalho mesmo ou será que eu estou sonhando acordada?". Você vai ver aí. Eu não sei se tem o tambor, mas talvez tenha aí. Mas o boi, tem fotos aí de brincantes do boi pra ver a riqueza das roupas que são.
P/1 – Você falou que fica o ano inteiro costurando essas roupas.
R – Eu tenho pessoas que trabalham comigo o ano inteiro no bordado.
P/1 – Mas é porque você faz uma roupa do tambor uma vez por ano?
R – Não, o tambor é costurado assim: esse não é bordado, não é nada bordado. As roupas são de chitão, estampadão, cores firmes e bem alegres. As blusas são de rendão branco, com aquele babadão franzindo aqui, com acabamento de renda na ponta. Ficam lindas, e o torço do rendão na cabeça. Agora o boi, não, o boi é trabalho pesado porque é na base do canotilho e da miçanga.
P/1 – A saia também?
R – A gola, nem a saia, agora, as roupas, por exemplo, camisa, calça, aqueles que têm usam, às vezes, aqueles que não têm, já deixa uma quantidade pronta que quem não tem já ter a calça, camisa prontinha. É branca a camisa e a calça, verde. Pra só usar roupa de brilho. Que o chapéu de fita, eu tenho quase 40 chapéus prontos lá na nossa sede. Todos pendurados. Menor chapéu que eu tenho tem 120 pontos de fita. Coloridas em várias cores. Da borda do chapéu até embaixo. Quando eles brincam, fica aquela roda de fita espalhada, fica linda. Agora, aqueles que têm as suas roupas prontas, usam. Então, o que acontece? Quando passa o São João, eu dou 15 dias de folga. Segunda-feira já vou recomeçar. "Vamos começar por golas?". "Vamos". "Minha saia?". "Vamos". Então, vai se fazendo, deixando pronta, quando chegar por São João, dia 23, está todo mundo arrumadinho. E sempre ainda tem um de última hora, que ainda está correndo. Então, arruma daqui, arruma dali. Mas o grupo sai todo preparado. Com brilho.
P/1 – No boi tem vários tipos de roupa padronizado como no tambor de crioula?
R – Não, não. No boi é padronizada a calça e a camisa. Agora, as golas, os riscos, os bordados diferem um do outro. Uns têm um santo, outros têm uma santa, outros têm galhos, têm árvores, têm flores, tudo bordado. Não tenho nada aqui para mostrar pra vocês. Minha filha, aí é uma história muito complexa, mas que realiza porque a gente sente que aquilo que Deus permite a gente fazer para terceiros, e muitas e muitas vezes estão precisando de uma mão amiga e tem dificuldade de encontrar. Eu sempre que faço a festa, eu agradeço demais a comunidade de Monte Castelo. Da fé em Deus, pelo apoio que eles me dão lá. Que, quando chega a época da festa, pra tirar a licença, eu tiro licença até do meio ambiente, sonorização. A parte que a gente pode fazer de isolamento do meio ambiente também, urbanismo. Fecha a rua pra que o brinquedo corra na maior calma e tranquilidade. Este ano, foram quatro dias de festa, sem o menor problema. Enfrentando uma crise de nervos, que eu estava com os nervos na flor da pele diante de tanta violência que a gente vê. A nossa sede fica numa área que não é violenta, mas próximo tem uma que é Liberdade, é conhecida como a pior parte de violência que nós temos. É lá. Mas, confiando em Deus, certa de que nada demais ia nos acontecer. Tanto que foram os quatro dias de festa sem nem dizer assim: "Fulano empurrou aquela cadeira". Tudo em paz. Lotado porque vai muito turista, muita gente de fora, muito amigo. A comunidade desce toda pra apoiar, fica de um lado a outro a rua super lotada. Eles saem pra brincar sábado, eu acompanho a noite toda com eles. Mesmo doente, eu fui. Chega aqui, senta. "Tudo bem, vamos sentar." Mas tem dois aqui de meu lado pra prestar atenção em mim, se eu precisar levantar, se eu me sentir mal pra... Não vai ter nada. Brinca a noite toda, de manhã, eles chegam, a chegada é linda demais. Que eles chegam geralmente sete, sete e meia da manhã. O grupo em peso brincando naquela alegria. As roupas todas, balão, tudo, mas é uma coisa, só vendo de perto pra a gente saber explicar aquilo que a gente sente na hora. Aí eu venho na frente, fico esperando, eles chegam. Cada uma cabeceira, canta sua toada de despedida. Depois de tudo, eu falo, agradeço a eles. E à tarde já os bois que vão morrer nesse dia já ficam escondidos. Quatro horas da tarde, eles já estão saindo pra ir atrás dos bois. Este ano, eu antecipei o horário por causa da violência também. de chegada. Fazia nove horas, este ano fiz oito horas. Eles saem pra ir, então eu vou pra deixar tudo arrumado, a fachada da casa. Eu não sei se tem aí, acho que levou os retratos que tinha aí, já da morte do boi desse ano. À noite, eu vou, quando chega oito horas em ponto, vem o ritual da gente fazer da morte simbolicamente. Porque não pode mais matar. Porque antigamente matava, pegava o couro, não quebrava porque era veludo, não podia. Mas a armação toda quebrava, dava pra cada brincante um pedacinho. Mas hoje onera demais, o custo é muito alto, muito pesado. E a gente não tem ajuda a não ser ajuda de Deus. Que eu não sou de sair pedindo: "Me dá isso". "Me dá aquilo". Não. Eu tenho essa responsabilidade, é minha, eu tenho que me preparar pra isso. Agora se você quiser me dar um alfinete, eu recebo como se você tivesse me dado uma caixa. Não deu a melhor caixa porque não pode, mas me deu o alfinete. Mas eu sair pedindo, não peço. Não é por orgulho, mas é por responsabilidade. Saber que eu que tenho que arcar com aquela responsabilidade. Eles chegam, terminam na festa, eles cantam, então tem um jantar. Todos os brincantes nossos nos ajudam nessa noite. Porque sempre de um grupo chega dois pra ajudar, pra somar. Brincam. E pessoas de fora, que tiveram, se tiver e quando tiver gente pra comer, come. Às vezes, ainda chegam dois, três que a gente já sabe como são. "Donha Therezinha, eu estou aqui". "Corre, minha filha, faz os pratos e manda pra ele". Resultado, se eu passar na área pesada dele, ninguém me mexe. "Mas eles estão morrendo de fome, ainda estão com fome". "Manda buscar". Até se fartar, de lá eles já vão embora. Quer dizer, já sei que ninguém vai me mexer. Quer seja comida, quer seja doce, quer seja o que for. Que eles apareçam, eu procuro atender. Porque não custa nada isso. Às vezes, estão realmente com fome. Com fome, com fome, com fome! E a gente tendo a comida deixa de dar? Sabendo que aquela pessoa está com fome? Não. E isso me satisfaz, isso me realiza. Eu vivo com a minha consciência tranquila do dever cumprido. Como pessoa, como amiga, como ser humano. Como responsável pelos compromissos que Deus me colocou nas costas. E às vezes eu digo: "Meu Deus, a cruz está pesando demais, meu velho. Só o senhor sendo meu Cirineu porque senão eu vou arriar ela no chão, eu não aguento". E ele logo, logo dá um jeitinho, a gente vai amenizando, amenizando. Eu já me preparo pra isso porque junta um troquinho daqui hoje, outro dali, fora isso eu trabalho pra fora, faço um plissadozinho, um acabamento de roupa. Pra passar o tempo, pra ajudar também. Pra não ficar pedindo pra um e pra outro. Quem quiser me dar, me dê, tudo bem, mas eu pedir? Às vezes a gente chega, Fulano está se escondendo porque tem não-sei-quem ali. E eu? Não acontece comigo. Dia que eu chegar lá em São Paulo, eu procurar vocês pra pedir alguma coisa, só está na última lona.
P/1 – (risos)
R – Certo... Queimou o último cartucho, não tem mais pra onde. Mas Deus não deixa porque Ele é bom. Pois é, minha filha.
P/1 – Eu queria perguntar pra você, depois de todo esse trabalho que você fez que é cultural, é social, e também tem tanta gente no Brasil que faz isso, que está modificando. Que você acha de importante de trabalhar com a cultura?
R – Eu acho que, a partir do patrimônio, nós temos um patrimônio hoje. Em cada ombro nosso pesa uma responsabilidade. Patrimônio significa você ser o dono, você é responsável por alguma coisa que você tem que prestar conta daquilo. Então, se você é responsável por uma parcela do patrimônio cultural daqui, você tem que zelar por ele. Temos uma obrigação moral de preservarmos isso porque chega um turista de lá, vocês me procuraram, eu posso não estar atendendo bem, mas o melhor que eu posso fazer é isso.
P/1 – Ótimo.
R – Então, tem uma obrigação moral disso aí. Porque lá vocês sabem dizer que no Maranhão o patrimônio é esse, quem me disse foi Fulano de Tal. Está errado, foi a responsável. Mas isso não acontece porque a gente que trabalha nessa área de cultura, eu estava falando pra você antes de começar, o problema do nosso barracão como patrimônio cultural. No dia que o prefeito, doutor Tadeu, mandou me convidar pra fazer parte da reunião que seria confirmada a escolha do nosso barracão como patrimônio cultural, eu fui. Começou na plateia super lotado, a menina veio: "Dona Therezinha, a senhora foi escolhida por todos, por unanimidade, aqui pra senhora ser a representante da cultura na mesa com o prefeito e as autoridades. Digo: "Não, tem muita gente aí, menina, que nada, não dá, não dá". "Não, não tem mais pra onde apelar, é a senhora mesmo". Começou, ele subiu, abriu, compôs a mesa, me chamou. Abriu a sessão e me passou a palavra. "Dona Therezinha, a senhora é uma pessoa que todos nós conhecemos, a senhora não só é reconhecida aqui como fora do Maranhão, no Brasil, no exterior. Mas nós precisamos da senhora de um outro apoio. Nós escolhemos seis barracões dentre inúmeros, o seu foi um dos escolhidos por nós pra ser um barracão cultural. Que a senhora acha disso? Que a senhora acha da nossa cultura? Como a senhora se sente na cultura?". Eu disse: "Doutor Tadeu, eu não gosto de falar muito isso por eu ser uma criatura que eu ganho um cachê muito alto na cultura do Maranhão. É um cachê alto, que o senhor não pode me pagar como prefeito. O governador não pode me pagar. Eu não quero nem chegar perto de Lula, que ele vai olhar assim, 'Não, essa velha está doida'”. "Mas que cachê é esse alto que a senhora ganha, que a gente não pode pagar?". Eu digo: "Ganho, doutor Tadeu. É um cachê altíssimo". Então foi aquele suspense no auditório. Todo mundo ali curioso pra saber quanto é que eu ganhava pela cultura. Pensando realmente que era financeiramente que eu estava falando. Ele: "Mas me tire dessa preocupação, que eu quero lhe ajudar, ajudar a lhe pagar". Digo: "O senhor não pode". "Então, me diga". "Eu vou lhe dizer já e matar a curiosidade de todos vocês que estão me olhando aí curiosos de saber quanto é que eu tenho pra dividir com vocês. Posso dividir, mas de uma maneira diferente." Então, eu digo: "O senhor sabe qual é o cachê que eu ganho, doutor Tadeu? É o amor que eu tenho por essa cultura. E o valor deles só eu posso dar. O senhor não pode, nem ninguém pode dar. O governador não pode, o presidente da República não pode. Só eu é que sei o quanto custa o meu amor pela cultura do estado. Não é financeiramente que eu falo, que eu não ganho financeiramente por isso. O meu trabalho pela cultura é todo colaboração. Não ganho um centavo que diga assim: 'Isso aqui é pago pra dona Therezinha pelo trabalho dela na cultura'”.
P/1 – Dona Therezinha, só antes da gente voltar a falar do barracão que virou barracão cultural, que a senhora estava dizendo, eu queria que a senhora me contasse o que a senhora me contou agora dos diferentes tipos de boi.
R – Ah, porque a nossa cultura popular é caracterizada por cinco sotaques. Sotaque são aquelas músicas que são tocadas de uma maneira diferente da outra. E acompanhadas também. Por exemplo, zabumba, que a nossa cultura popular é a raiz, é a origem, a tradição. As roupas vocês viram como são? Os instrumentos também são batidos. Tem uma forquilha que recebe aquela zabumba, apoia ali, um brincante segura e tem a baqueta que bate e dá percussão. Independentemente disso, temos os pandeirinhos. Que esses são cobertos com cores de cotia. E tem que ser esquentado no calor da fogueira. Com muito cuidado pra não queimar, não torrar porque o couro é fino. Então, esses é que fazem o ritmo da toada. Então, são esses os instrumentos da zabumbas. O sotaque é a música que é cantada de uma maneira diferente das outras. O sotaque da baixada. São aqueles pandeirões grandes, cobertos também com couro. As roupas são diferentes. Porque tem os cazumbás, que usam aquele pandeirão, que eles usam. Mas, de um modo geral, chapéus e fitas são com penas de ema grande. Que hoje não sei como eles estão se vendo, que também não é mais fácil, não é mais legal usar pena de ema porque é proibido. Baixada. Tem o Costa de Mão, que é esse da Baixada, em vez de tocar assim, toca com a costa da mão. É chamado Costa de Mão, mas é conhecido também. Agora, tem o folguedo. É a música que não é um sotaque porque a música não retrata realmente a nossa cultura popular diretamente. Como raiz. Então, eles utilizam, dali eles improvisam e vão fazendo. Mas chama muito atenção porque música é música. Bate um pouquinho aqui, uns instrumentos aqui, dá aquela percussão, aquele som, todo mundo quer pular, todo mundo quer brincar. É o de música. E o da Ilha, que são também chapéus grandes, que são batidos com pedaço de pau chatos, que batem, chama matraca. Que aquilo no conjunto todo é lindo porque, quando eles estão batendo no conjunto, parece que eles marcam o horário, o tempo certinho de bater, é uma quantidade enorme, mas você tem impressão que é só aquela que está batendo, de tão certa que é. Então, eles primam muito por isso. Esses aqui são os sotaques da nossa cultura popular.
P/1 – Todos do Maranhão?
R – Do Maranhão.
P/1 – Continua contando pra gente da emoção que você teve lá de quando eles escolheram o seu barracão pra ser, como é que fala...
R – Ah, não, como foi? O barracão, ele tinha antigamente, geralmente, ele tinha, mas não tinha como, caiu, caiu. E apareceu um senhor vendendo um terreno. Eu comprei e lá se construiu um barracão provisório. A casa dele era onde é a sede hoje, mas era uma outra casa, que você chegava lá atrás, era um buraco lá no fundo, era uma tristeza aquilo. Então, no governo de Roseana, ela trabalhou em vários barracões, inclusive no nosso, mandou levantar o nosso barracão vai de uma rua a outra. É enorme. A casa em frente também foi ela que mandou levantar no outro governo dela. Que o barracão foi no primeiro, e a casa foi no segundo. Assim como ela fez com o nosso fez com vários grupos da cultura do Maranhão também. Porque ela, como eu digo, foi nascida, foi criada ali na Madre Deus, que é o foco da cultura. Então, foi aquilo que nasceu dela mesmo. Ela gosta da cultura como parte da vida dela também. Que foi criada naquele folguedo, naquela coisa. E ela luta muito. Lutou muito por isso. E eu, pessoalmente, sou muito agradecida a ela pelo apoio, pela ajuda que ela me deu. Que eu não tinha como levantar aquela casa como foi levantada; o nosso barracão, como foi levantado, não tinha. Então, eu peço a Deus que dê saúde pra ela, que dê aquilo que nós que fomos beneficiadas, nós todos, não só eu, não podemos dar pra ela. Que Deus dê.
P/1 – Dona Threzinha, a sua família de sobrenome Jansen é uma família tradicional aqui em São Luis, não é mesmo?
R – É, é tradicional. A nossa origem é holandesa.
P/1 – Era o que eu ia perguntar.
R – É holandesa.
P/2 – Quem veio pra aqui primeiro da família?
R – Foi ela, Ana Jansen. É o que a gente veio a saber sobre os nossos antepassados, de onde vieram.
P/2 – Mas ela veio por quê? Você sabe como é que foi?
R – Ela quando casou com Jansen, ela já era Jansen, já tinha trazido Jansen no nome dela. Então, pra sorte nossa, pra felicidade nossa, ela foi Jansen duas vezes: quando veio e quando casou com o marido. Já era Jansen. Ela teve onze filhos, sendo que num matrimônio ela teve seis, no outro ela teve quatro, porque ela teve dois matrimônios. E teve o meu avô, que ela teve a audácia, a coragem de assumir um filho, naquela época, no século XIX, sem ser legalizado através do matrimônio. Porque era um verdadeiro crime uma mulher adulterar. Então, ela engravidou e assumiu esse filho. E esse filho brabo é o meu avô, lá está ele lá na parede. Então, ela assumiu ele. Assumiu, agora com um compromisso: ela morreu levando o segredo do nome do pai dele com ela. Nunca ela deixou ninguém saber.
P/1 – Nem a senhora sabe?
R – Ninguém sabe.
P/1 – Nossa, Dona Therezinha, sua bisavó parece que era uma mulher bem à frente.
R – Era, era. Diziam que ela era uma mulher má, que maltratava escravos... Os escravos eram educados... Como naquela época, não era só ela, todo mundo educava escravo. Mas ela, porque ela era aquela mulher “increedita”, corajosa, organizada. Tudo dela era organizado. Mas tinha uma família de escravo que morava com ela. Não digo família, assim irmão, mas uma família de escravos que moravam na residência dela. E esses escravos ela deixou todos eles beneficiados dentro do testamento dela. Eles, descendentes deles. Ana Jansen é uma mulher que não trata criança, manda furar poço e manda botar a criança dentro. Agora veja como é que pode: ela chamou o marido, autorizou que fosse fundado uma roda de enjeitados. Nós temos uma igreja aqui, lá no final dessa rua. Não é nem bem no final, é no meio. É uma igreja de São (Pantaleon?). Do lado ainda hoje existe a marca onde ela mandou fundar essa roda de enjeitados. O que era a roda de enjeitados? Era uma roda giratória, como já diz o nome. Do lado de fora tinha uma sineta, do lado de dentro outra. Tinha uma irmã, religiosa, freira, que era da Ordem de Santana, que ficou responsável pelo recebimento das crianças. Jovens, adultos, era, mulheres que não queriam que a família soubesse que estavam grávidas, encobriam. Chegava lá, tinha a criança. Se tinha pano ou não tinha, se botava em caixa de papel, no que fosse. Chegava lá, tocava a sineta, a roda girava, a freira lá dentro já sabia que tinha chegado uma criança. Botava aquela caixa lá dentro, fazia o giratório completo. Ela tirava lá dentro. E lá dentro essa criança era educada com tudo que fosse preciso. E a mulher que maltratava crianças... Por lá passaram 584 crianças pra serem educadas. 584 crianças. Senhoras de alta sociedade, nós tivemos, foram criadas na roda. Que saíam de lá prontas, preparadas para um matrimônio, um trabalho, fosse o que quisesse. Mas só saíam de lá prontas. Então, hoje vocês têm uma família, eu acredito que dentro da família de vocês, as mães, vamos puxar as mães. Tem uma bagunça ali: "Mas quem fez essa bagunça aqui? Eu não quero nada bagunçado, quero arrumado!". Lá vocês chegam e arrumam. Ou ela própria, como boa mãe, arruma. Era Ana Jansen na época. Não gostava de bagunça, era muito... Se um escravo errava, ela tinha que chamar a atenção. Era uma mulher riquíssima, o maior patrimônio que ela tinha no século XIX, era esse, era o dela. Ela tinha inúmeros escravos. A carruagem dela era puxada por cavalos puro sangue importados, de sangue puro, com arreios de ouro. Os botões da roupa dela eram todos de ouro. Está lá o retrato dela. As torneiras da casa dela era tudo ouro. Então, ela tinha a maior riqueza, realmente. Mas lutou, lutou, lutou pra mostar aquilo que ela queria. Na política, a política hoje do jeito que está, não é preciso que ninguém diga, mas já existia antigamente a briga de político. Não da maneira que está hoje, que hoje é um vexame a gente falar de política. Eu pelo menos não faço gênero de política.
P/1 – Ela tinha bastante influência na política?
R – Ela era a maior política da época e por isso ela foi a primeira mulher a desafiar o machismo no século XIX. Que antigamente o homem não admitia que uma mulher levantasse a voz mais do que ele. Ela foi uma mulher intrépida, corajosa mesmo, que desafiou. E por isso ela teve inimigos políticos como o Comendador Meireles, foi o pior inimigo político que ela teve. Ele mandou confeccionar na França, que antigamente ele não dizia que era encomenda, uma partida de pinicos chamados antigamente de pinicos, hoje se diz urinol. Nem se fala mais. Porcelana francesa com retrato dela no fundo, mandou fazer. Não sei como ela soube, chamou os escravos dela de confiança e disse pra eles: "Eu quero toda essa partida comprada. Procurem saber quais as lojas de comércio encomendaram e comprem. Eu quero toda ela comprada". Riquíssima, um monte de dinheiro, esnobava. Vai, aqui comprou essa, comprou essa... Quando ela juntou tudo, pegou os escravos dela de confiança, foram em frente à casa dele. Mandou botar tudo em cima da calçada e mandou quebrar um por um. Quando ele chegou na janela: "Agora o senhor desça pra conversar comigo". Quer dizer, ela se fazia se respeitar e mostrar por que ela se respeitava. A história da minha bisavó é uma história muito longa, tem muita história pra contar. É muito complexa, realmente. Mas eu me sinto honrada por ser bisneta dela.
P/1 – Sua família deve ser bem grande aqui em São Luís.
R – É, muito grande. Hoje os mais próximos dela somos nós, somos os Jansen Pereira. Existe Jansen Ferreira, Jansen Matos, Jansen Lobo. Mas descendentes dela diretos somos nós os Jansen Pereira. E eu hoje estou a única que se credenciou pra falar de Ana Jansen. Porque chegou num momento que não dava mais. Tentaram denegrir demais a imagem dela e eu como sou bisneta, resolvi meter o pé na parede e assim... E hoje eu sou muito procurada por faculdade, por colégio, por... "Ai meu deus do céu, eu hoje vou pra esse colégio aí..." Crianças querem saber tim tim por tim tim da vida dela: quantos filhos, quantos maridos, o dia que nasceu, o dia que morreu, onde morreu, as casas dela. Que muita gente acha que essa casa foi dela e não foi. Dela foi uma... Ela tinha aqui na rua grande, lá em baixo, onde tem um armazém embaixo e em cima o sobrado era dela. Lá era tipo um comitê dela. Ela reunia os políticos, ela chamava o Palácio da Luz. Porque não adimitia que uma lâmpada dormisse apagada. Todo iluminado. Acendia agora, de manhã apagava. Era conhecido Palácio da Lu. De lá, ela levava pra casa dela de residência aqui na rua Rio Branco, onde ela residia, onde ela chegou a falecer, era chamada Casa Nobre. A minha querida bisavó.
P/1 – Desse tanto de parentes, família grande que a senhora tem, tem alguém mais que trabalhe com cultura?
R – Não. Não fizeram o gênero dele, não sei porque caiu pra mim isso aí. Às vezes eu ainda me pergunto como, por quê. Nessa hora, quando eu digo: "Senhor, me ajuda, que a cruz está pesada demais". Porque é muita responsabilidade. Só um trabalho feito com amor, como eu digo que eu faço, que realmente eu faço, é que encobre às vezes a gente pensa que não dá conta, mas Deus, esse ser supremo que nos orienta e que nos guia, que nos socorre. Botou mensageiro dele na minha vida, que é um preto chamado São Benedito, que é o padroeiro dos tambores de crioula. Que é o único santo que a Igreja Católica tem. Então, ele é um moleque de recado dele pra mim e de mim pra ele. "Você suba lá, fale lá com o homem que nós estamos... está brabo, está ruim, dê um jeitinho". E aí vão ajeitando daqui, ajeitando dali, que sempre chega naquilo que... Não às vezes aquilo que a gente quer, mas naquilo que é possível se fazer.
P/1 – Lembra aquela imagem que eu te mostrei, da Anastácia, você podia contar pra gente um pouquinho da história dela?
R – Qual? Ali.
P/1 – É, que tem a Anastácia.
P/2 – A escrava Anastácia.
R – Ela foi uma escrava, que ela foi estuprada, foi usada. E eles, pra que fizessem isso, ela teve muita revolta, eles amordaçaram ela. E aí foi que fizeram tudo que puderam com ela. E esse sofrimento dela todo é que fez com que ela chegasse a ser canonizada. Que foram vários, vários milagres de pessoas que se pegavam com ela. Tem aquela pequenina e tem uma maiorzinha também lá.
P/1 – A senhora ganhou muitos prêmios pelo boi. Eu estava dando uma olhada ali.
R – Já, já. Bisbilhotou lá. (risos)
R – É. (risos)
P/1 – Qual foi o que você mais emocionou, um que tenha sido bem diferente pra você?
R – Ah, pra mim todos eles são quase a mesma coisa porque eu recebo com o mesmo carinho, com o mesmo amor.
P/1 – E são muitos.
R – São. Eu estava falando que eu estou com meu currículo, que uma pessoa está atualizando, que está querendo levar pra fora, depois pediram, não sei pra onde. Mas eu só tinha um currículo parcial. Então, estão atualizando e está com 58, quase 60.... Prêmio disso, prêmio daquilo, medalha daqui, medalha dali.
P/1 – Quantos anos a senhora tem de boi?
R – Quarenta e cinco anos de cultura popular.
P/1 – Parabéns, hein, dona Therezinha.
R – Muito obrigada. Comendadora da Cultura e por aí vai. É medalha de Estácio da Silveira, de não sei o quê, de não sei mais o quê, Gonçalves Dias, o grande imortal. E por aí vai. Deixa estar, que um dia vocês vão receber lá, eu vou levar pessoalmente esse currículo pra vocês.
P/1 – Oba.
P/2 – Ê!
P/1 – E o que a senhora acha dessa experiência, que a gente deu uma caminhada desde o começo da sua família, do boi...
R – Lições de vida. Lições de vida que a gente aprende a cada minuto, a cada momento. Com você, com outro, com uma criança. Basta que você analise aquilo que você está percebendo naquela hora e você sabe a lição que Deus está lhe dando de vida naquele momento.
P/1 – Então, dona Therezinha, tenha alguma coisa que a senhora ainda queira falar?
R – Agradecer a vocês por virem de tão longe me procurar aqui. Não sei se atendi bem, mas fiz o possível, mesmo no meu estado de saúde ainda fraco. Mas tentando fazer o que eu pude. E desejando todo sucesso, que vocês cresçam cada vez mais dentro do trabalho de cada um de vocês, mas sobretudo com muita saúde e muita paz, que o resto a gente corre atrás.
P/1 – A gente é que tem que agradecer por a senhora ter nos recebido apesar da sua vida corrida, das coisas que acontecem.
R – Mas é isso aí. Eu gosto muito de somar com as pessoas naquilo que eu vejo que tem um resultado, que eu vejo que aquilo eu estou somando em benefício, em detrimento de outros. Quer dizer, o meu trabalho somado ao seu já dá pra ajudar o seu. Eu gosto de estender a minha mão porque amanhã, quando eu precisar, eu encontro quem Deus me mostre, alguém que me estenda a mão. Se eu chegar algum dia lá em São Paulo, bater na sua porta, tenho certeza que você vai me atender.
P/1 – Com certeza.
R – E são essas coisas que a gente para pra pensar, medir e contar. Agradecendo a ele. Por tudo que ele nos dá. Pela família, pelos amigos, pelos compromissos que a gente tem. E aquilo que é supérfluo, que ele dá, que a gente não merece, mas ele é aquele paizão. então...
P/1 – (risos)
R – O bom pai é assim mesmo.
P/1 – Queria agradecer pelo Museu da Pessoa, que é uma alegria muito grande, que isso continue por muito tempo, o tambor de crioula. E todas as pessoas que mexem com cultura e que...
R – Venham aqui no mês de junho, que vocês vão ver o que é a cultura do Maranhão.
P/1 – Eita!
R – Que nós, por exemplo, começamos o nosso trabalho... Agora encerrou o período desse ano. Mas, como nós somos cadastrados no estado, na prefeitura, a hora que precisa pra um turismo, eles chamam, e nós, que já somos cadastrados, sabe a qualidade do grupo que é, já chamam pra tal parte, tal parte. Às vezes, pra viajar. Fiz Imperatriz, Açailândia, (Morro do Bacabeira?). Brasília, Salvador, Belém, Fortaleza. Perdi três viagens agora nesse período porque coincidiram com o período de festa e eu estava doente também. Uma pra Santa Catarina, outra pra Salvador e a outra eu não lembro pra onde foi. o Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] me chamou. Digo: "Olha, não posso". "Não, mas não se preocupe, que o seu nome está no primeiro da lista, senhora pode arrumar o que arrumar, mas a senhora vai".
P/1 – Que barato. Que bom.
R – Mas eu fico satisfeita porque eu vejo que aquilo que eu posso somar pra ajudar alguém numa situação. O tambor de crioula, o cachê que eu recebo no tambor, eu não gasto dele pra nada. Eu pego, que foram, por exemplo, 40 adultos, 20 crianças, eu, do adulto, digamos, um adulto ganha 15, 20 reais. Uma criança eu dou a metade. Isto aqui não é pagamento, isto aqui não é emprego, não é carteira assinada, não é nada disso. Isso aqui apenas pra suprir uma necessidade que você esteja.
P/1 – Sim.
R – A despesa do ônibus é minha. Do lanche, é meu, da bebida que se usa, porque as crianças não bebem, não permito que criança, jovem tome bebida alcoólica não. Pra isso eu levo refrigerante. Bastante pra eles. Então, é tudo sob controle. Até a bebida dos homens eu controlo porque tem um copinho assim, e tem as marcas. Eles: "Dona Therezinha, a senhora bote...". Botam o dedo. "Bote assim". Eu digo: "Não, minha mão não funciona, só assim ________". Até isso eu controlo porque eu acho que tudo tem um limite dentro de um grupo. Se você cede, um está caindo pra ali, o outro está trocando as pernas por ali, acabou a imagem da brincadeira. Isso não acontece com eles.
P/1 – Como chama o grupo da senhora, tem um nome?
R – O tambor de crioula é Tambor de Crioula Morro de São Benedito, e Therezinha Jansen da Fé em Deus. O Bumba Boi é Bumba meu Boi da Fé em Deus de Therezinha Jansen. Tudo, tudo é Fé em Deus. Ainda nasci com o nome de Jesus, aí pronto. Estou feliz, realizada, a hora que ele quiser me levar, eu vou tranquila, com a minha consciência do dever cumprido com todos. De um modo geral.
P/1 – Só pra finalizar, a última pergunta, esse tempo todo que você caminhou e tudo, você já chegou pra alguém que nem chegaram pra você. Já chegaram assim e falaram, deu o título de madrinha, ou já teve a emoção de uma pessoa especial assim, tipo, você acha que pegou o jeito do boi, sabe? Que vai poder prosseguir o trabalho?
R – Ah, isso aí é que é o complicado. Que é... Ajudar é uma coisa, e assumir é outra. Que hoje, pra gente assumir, eu acho que é muita coragem uma pessoa dizer assim: "Eu vou fundar um grupo de Bumba Boi". Porque é muita coragem. Porque é preciso que tenha o pé no chão, a cabeça no lugar e uma ajuda disso aqui sua. Pra não depender dos outros. E é o que eu faço. Porque a minha área é limitada àquela periferia dali onde é só gente humilde. Mas a gente chega lá, Deus é que sabe o que ele quer, às vezes eu estou pensando que é uma coisa, ele quer outra, então ele vai ajeitando, dando o jeitinho dele, e eu estou aqui mermo.
P/1 – Não desistir na hora.
R – Não, de jeito algum. De jeito e qualidade nenhuma.
P/1 – Então, boa caminhada pra você.
R – Muito obrigada. Pra vocês também.
P/1 – Pro boi, pro tambor, pra senhora.
R – Que Deus abençoe o trabalho de cada um de vocês porque tudo tem o seu objetivo, você tem o seu, ela tem o dela, ele já é de outra maneira, mas também tem o dele. Que ele abençoe todo esse trabalho, que vocês tenham muito sucesso. Não só na vida profissional, como na vida pessoal. Como na vida de família.
P/1 – Obrigada.
R – E, se precisarem de alguma coisa além dessa idosa. Idosa porque velha eu não sou. Estou por aqui mesmo. Vocês têm meu endereço, meu telefone, qualquer coisa é só ligar. E eu vou ficar aguardando, hein.
P/2 – A gente vai mandar o material, tudo, você vai ver.
P/1 – E a gente pode visitá-la. E ver o boi.
R – Quando quiserem vir o boi, manda buscar o boi, que eu vou pra lá pra São Paulo.Recolher