MCHV_ 031_Francisco Carlos Cammilleri
Projeto Memórias do Comércio de Ribeirão Preto 2020 e 2021
Francisco Carlos Cammilleri - Bella Sicília
Entrevista História de Vida HV_031
Ribeirão Preto, 22 de março de 2021
R2 - Bom, gente, eu sou o Franco, filho do Francisco aqui, se precisar de qualquer coisa, eu estou aqui assessorando-o. É isso aí.
P1 – Tá bom, então.
P2 – Maravilha!
R2 - Muito obrigado!
P1 – Boa sorte!
R1 – Obrigado pela oportunidade, viu?
P1 – Não, a gente que agradece o senhor. Muito legal esse trabalho do Sesc, viu?
R1 – É.
P1 – ‘Seu’ Francisco, então primeiro eu volto a agradecer o senhor pela participação no Memórias do Comércio. Esse é um projeto que existe desde 1994, quando nem existia internet ainda. O Sesc faz sempre junto com o Museu da Pessoa. O Museu da Pessoa é o maior museu de história de vida do mundo, lá em São Paulo e é um museu virtual. Se o senhor entrar no site do Museu da Pessoa, o senhor vai ver milhares de entrevistas que as pessoas já deram, em todos os cantos do Brasil. Então, a sua entrevista vai ficar no portal, pro Sesc e futuramente todo Memórias do Comércio dá origem a um livro muito bonito, a gente está trabalhando pra que esse livro saia. É que tem a pandemia, né, então é difícil fazer um lançamento de livro hoje em dia, mas assim que terminar tudo isso. E é um projeto de história de vida. O senhor, contando a história da vida do senhor, já está contando a história da sua vida no comércio e da Bela Sicília, certo? Então, vamos fazer uma claquete. Estamos aqui com a Cláudia, que é a coordenadora desse projeto aqui comigo e vou fazer a claquete aqui.
Projeto Memórias do Comércio de Ribeirão Preto 2020/2021
HV História de Vida 031
Francisco Carlos Cammilleri – Cantina Bela Sicília
22 de março de 2021
Transcrito por Selma Paiva
‘Seu’ Francisco, primeira pergunta que eu gostaria, a gente sempre faz, é: o senhor fala seu nome completo, a data e o local de nascimento, por favor.
R1 – Francisco Carlos Cammilleri, nasci em Ribeirão Preto, 28 de janeiro de 1967.
P1 - Legal. Qual é o nome do seu pai e da sua mãe?
R1 – Minha mãe é Gerônima Sílvia Papa Cammilleri e meu pai é Francesco Cammilleri.
P1 – E os avós do senhor, o senhor teve contato com eles, conheceu seus avós?
R1 – Sim. Minha vida, graças a Deus, foi bem premiada. Tivemos um contato bem grande, tive o prazer de conhecer os meus avós paternos e maternos. Os meus avós paternos, Salvatore Cammilleri e Ana Úrsula Cammilleri, são de origem de Licata, província de Agrigento, na Itália. Os meus avós maternos são Maria Morganti Papa e Bruno Papa, dois primos de primeiro grau, casados em ________ (03:40), são nascidos de origem de _________ de (03:41), na Calábria. E aí eu tive oportunidade de conhecê-los. Os meus avós maternos vieram pro Brasil primeiramente em Araraquara, depois acabaram vindo pra Ribeirão Preto. Meu bisavô, na verdade, era um engenheiro agrônomo que veio tentar a vida em Araraquara e trouxe o seu primeiro filho, tio Rosário. Esse primeiro filho ficou com ele conhecendo Araraquara e logo que as coisas foram dando muito certo, ele pediu pra esse seu filho buscar sua esposa e mais quatro filhos. Ele continuou residente em Araraquara, mas por uma infelicidade esse tio, meu tio, filho dele, que voltou pra Itália pra buscar os filhos, os irmãos, estourou a guerra e esse, infelizmente, faleceu na guerra e não conseguiu voltar com a sua família. Foi o primeiro episódio muito triste da nossa família, que começou com esse filho que veio e depois, retornando à origem da Itália, não pôde mais retornar ao Brasil. Mas são coisas do destino e esse foi o primeiro episódio da família da minha mãe. A família do meu pai continua inteiramente na Sicília, Licata, província de Agrigento, onde eu tive oportunidade de, com o primeiro ano de vida, já conhecer meus avós. Na verdade, o imigrante italiano tem grandes sonhos na vida. Aliás, eu acho que por isso ele tem grandes conquistas na vida. Voltar pra Itália, pra rever os seus familiares, já seria sua primeira conquista. Esse era o sonho de qualquer italiano, ou de qualquer imigrante. Na questão de ser bem-sucedido no trabalho e no comércio também ou na agricultura, já é um grande outro passo do imigrante italiano ou também de outro imigrante. Eles vinham com o sonho de verdade de fazer a América. Eles não vieram aqui com outra intenção. Eles tinham um regime muito grande de reservar as usas quantias de dinheiro, eles não usavam os seus dinheiros com futilidades, eles tinham uma maneira muito aguerrida de guardar o seu dinheiro e, com isso, eles foram conquistando os seus espaços. Foi assim o exemplo do meu pai, que já com os seus 16 anos de Brasil, conseguiu levar a família a primeira vez pra Itália. Assim foi a nossa vida começando. As duas famílias, na verdade... é assim que você quer que eu faça a entrevista, está tudo certo?
P1 – Certo, pode falar o que o senhor lembrar, da sua memória.
R1 – Eu vou falando a trajetória, pra mim vai ficar mais fácil.
P1 – Pode falar. Pode falar, sim.
R1 – A cantina tem 62 anos. Na verdade, em 1954 foi quando meu pai veio pro Brasil, diretamente pra São Paulo, na casa de um amigo que o convidou. Só que meu pai tinha, na verdade, feito a Segunda Guerra Mundial e ele ficou meio apaixonado pelo Brasil, através dos pracinhas brasileiros, na guerra. Naquele momento de guerra se conversavam muito e falavam maravilhas do Brasil. Quando a Itália estava naquele momento pós-guerra, devastada, ele pensou e falou em vir pro Brasil. Nessa história de vir ao Brasil ele veio pra São Paulo, pois já tinha alguns amigos direcionando, falando: “Vem que é bom, vem que é bom”. Ele veio pra São Paulo e logo já encontrou com esse amigo e como esse amigo falou: “São Paulo é uma cidade grande, fica aqui, que a gente vai tentar achar alguma coisa pra você”. Ele, destemido, já foi logo no primeiro dia em busca de alguma oportunidade, não esperou esse amigo. Passando pela rua, encontrou a Confeitaria Fasano e lá estava Fabrício Fasano, também com ‘seus vestimentos’ parecidos, porque os dois estavam meio de terno, meio de boina, como você está usando e trocando meio que uma ideia, falando em italiano, o meu pai havia contado que havia acabado de chegar em São Paulo e ele se interessou porque meu pai, na verdade, antes da guerra, era confeiteiro na Itália. Imediatamente ele teve essa oportunidade. Meu pai ainda falando com ele, falou: “Se eu não souber fazer o que você faz ou me pede em uma semana, você não precisa nem me pagar. Eu só preciso da oportunidade de mostrar meu trabalho”. E por aí meu pai acabou ficando cinco anos no Fasano, aprendendo a lidar com tiramisù, com cannoli, com os gelatos e pegando muito esse estilo. Só que aí, nesse intervalo desses cinco anos, aí que eu te falo que o imigrante italiano tem uma visão um pouco diferente, talvez, da nossa, nesse primeiro momento de crise: ele buscou e conseguiu três, quatro oportunidades nesses intervalos, porque ele tinha suas habilidades. Aí ele conheceu a Casa Italiana, o Massadoro e o Sete Belo, que era uma cafeteria, mas daquelas máquinas antigas de tirar os cafés, mas com muitos cafés. Então, ele era meio que balcão. Aí ele era meio confeiteiro no Fasano, fazia rotisseria da Casa Italiana. Isso, assim, ocupando suas brechas, seus espaços, dias, noites, finais de semana. Só que ele, acho que teve um princípio de família muito grande, ele tinha diferencial e depois a gente só foi descobrir através de contato com esses lugares que ele trabalhou, que era o diferencial de ser um italiano muito disposto e muito honesto. Então, na verdade, ele criou vínculos muito fortes com essas famílias que abriram a porta. E foi onde ele criou sua primeira raiz. Então, nessas situações de honestidade, de fidelidade, que é o que a gente precisa pra tocar o nosso próprio negócio, foi onde ele foi criando a sua base. Ele fez alguns vínculos nesses lugares e começou, através de uma oportunidade, a ter seu primeiro negócio, que foi uma cantina no Largo do Arouche, que chamava Nel Blu Dipinto Di Blu, que é o nome da música tradicional italiana do Volare, do Domenico Modugno. Nessa oportunidade que ele teve dentro dessa cantina, frequentavam jovens que fazia Direito no Largo São Francisco. E esses jovens eram de Ribeirão Preto e comentavam muito de Ribeirão Preto, que era uma cidade que já começava a despontar no interior. Meu pai sempre foi um homem de muita comunicação, de muita oportunidade. Ele não se negava, não tinha medo. E uma vez ele pegou e veio até Ribeirão Preto e se apaixonou num ponto estratégico naquele momento da cidade, mesmo sem conhecer a cidade. Era um ponto de uma esquina, em frente a uma farmácia muito popular, que o dono dessa farmácia também tinha uma clientela muito grande, pois era um farmacêutico meio médico, que receitava. Naquela época não tinha esse pavor de agora. Ele tinha essa liberdade de poder orientar, então era uma ______ (12:38) muito tradicional na cidade. Na outra esquina era uma praça onde ficavam os ônibus da cidade. Na outra esquina ficava o cinema da cidade. E na outra esquina ficava a Bela Sicília. Então, ele montou uma cantina num ponto muito estratégico.
P1 – Que rua que era?
R1 – Era na Rua Barão do Amazonas com a Rua General Osório. Bem no Centro da cidade. O que a gente ouve dizer é que Ribeirão Preto era fechado dentro de um quadrilátero: uma avenida chamada Francisco Junqueira, uma avenida que chamava Nove de Julho e duas avenidas paralelas, uma Independência e a outra Jerônimo Gonçalves. Ribeirão Preto se concentrava dentro desse quadrilátero. Fora isso começaram a aparecer os bairros. Mas antigamente não existia alto da cidade. Existia o Centro da cidade. E lá se concentravam as grandes famílias de Ribeirão Preto. Então, ali circulavam as boas amizades, os passeios, os encontros dos jovens, que já começavam a ter aquela paquera e a Bela Sicília acabou se encaixando. Hoje a Bela Sicília tem 62 anos. Então, ela já faz parte de muita história de muitos jovens, que hoje se tornaram advogados, médicos. Então, a gente _____ (14:12) muito que aquelas famílias passaram por algum momento dentro da Bela Sicília, porque no começo, em 1959, quando meu pai começou a cantina, ele quis fazer umas pinturas na parede, então ele chamou um pintor da cidade, mas não era um pintor comum, era um pintor já famoso da cidade. Italiano tem muito isso: essa necessidade de ostentar, aparecer. Dentro da sua simplicidade, mas ele tem essa vaidade própria de fazer o que ele faz, bonito. Não era uma coisa de luxo, mas era uma coisa bem caprichada. E aí, nesse mesmo intervalo - eu primeiro vou falar uma parte mais que eu acho interessante – quando ele foi alugar esse prédio ele não tinha fiador e muito menos ninguém o conhecia. E ele conheceu um casal que eram donos do prédio, mas um casal que eram advogados, que eram donos do imóvel, mas ele não tinha fiador e não falava muito bem o português correto, mas essa senhora percebeu que, nos documentos dele, tinha uma imagem de Santo Antônio e aí ela acreditou, porque ela falou: “Um homem que conduz dentro da sua carteira uma imagem de Santo Antônio não precisa de um fiador. Deve ser um homem bem honesto”. E ela também era... como diz?
P1 – Devota.
R1 – Devota de Santo Antônio. Então, foram uns acasos que, na verdade, foram muito fiéis à história do meu pai. Eu achei que as coisas foram se encaixando. Não tinha fiador, mas Santo Antônio vira fiador e aí não pode, mas de repente pode e as coisas foram caminhando de uma maneira bem bacana e foram acontecendo.
P1 – Ele ainda era solteiro quando ele veio?
R1 – Solteiro, mas olha que coincidência interessante: em 1959 a minha mãe representou a Sicília num desfile na Avenida Paulista, onde fizeram uma comemoração pra Giovanni Gronchi, que era o presidente da Itália. A família Matarazzo tinha criado um hospital, me parece e o Giovanni Gronchi, com sua esposa, vieram pra inauguração em São Paulo. E a sociedade italiana fez um desfile e minha mãe, vestida com a faixa da Sicília, sendo que ela é uma filha de calabrês, mas naquele desfile na Avenida Paulista ela desfilou pela Sicília, em 1959. Em 1959 meu pai inaugura a Bela Sicília, que é Bela Sicília por causa da Sicília. Uma tia minha passando pela rua nesse mesmo ano falou: “Olha, eu tenho um carreto siciliano”, que é um símbolo italiano de um carreto de um cavalo folclórico que leva as pessoas pra fazer trabalho, passeio. Isso era muito comum na Itália, em Roma, na Sicília, aquele cavalo fantasioso. Queria que você pintasse na parede. No meio das vinhas, das uvas, que tinha estampado, ia fazer o carreto siciliano. A minha mãe, nesse mesmo dia, voltou pra levar o carreto, pra fazer a pintura. No mesmo ano, no mesmo dia o meu pai pegou o carreto e minha mãe também. Meu pai pegou minha mãe e nunca mais largou, que também foi uma grande felicidade pra vida do meu pai, que eles tiveram um casamento maravilhoso de 57 anos. A Bela Sicília começou, na verdade, como uma sorveteria, nesse ponto que eu te contei, da General com a Barão. Casando com a minha mãe, a minha mãe tinha grandes habilidades na culinária italiana, por conta de tudo que acontecia. Com a questão do cinema em frente e as pessoas começando a parar naquele ponto, meu pai começou a fazer umas mini pizzas, que não existia em Ribeirão Preto. Aí a minha mãe tinha um irmão que ficava na Bela Sicília junto com meu pai, ajudando. Que, na verdade, seria o filho mais velho do meu pai, porque meu pai se apaixonou também por esse cunhado, que foi maravilhoso, que ajudou também desde o início, também não tinha prática nenhuma, nem conhecimento nenhum, meu pai o orientou, fez a carreira dele, porque depois as coisas vão se ampliando, vão acontecendo, então minha mãe começa a ajudar meu pai e meu tio começa a ajudar meu pai, a Bela Sicília começa a fazer mini pizza, aí põe uma máquina de frango na esquina pra vender, que não existia aquela história do frango na máquina, aí começa a vir uma segunda máquina. Os frangos, naquela época, vinham com pele e pescoço junto, não tinha o que se fazer. Criava-se uma fila lateral e doava pras pessoas mais carentes. Olha que história há sessenta anos! Doava os pés, então fazia uma fila de mais carente, pra ganhar e uma outra fila pra comprar. E aí você vai fazer numa esquina bem movimentada, onde era a rua do cinema, aí fica a farmácia, então ali vai acontecendo um buchicho bem grande. Aí os advogados, os médicos, todas as pessoas começam a participar desse momento. Mais pra baixo existia um bar que chamava Bar do Juá, que era frequentado também por playboys da cidade. Só que era um bar que tinha algumas situações que nem todo mundo gostava, mas a moçada já começava a viver a noite de Ribeirão Preto de uma maneira mais audaciosa: de lambreta, começa a história da minissaia. E meu pai já era um pouco mais tradicional, mas ele também tinha um contato com esses jovens mais alternativos na época. Então ele fazia um meio de campo, porque ele sabia que os meninos eram atrevidos, mas os meninos também eram filhos de famílias tradicionais. Então, eram dois bares totalmente opostos, mas que tinham a mesma, quase, clientela, em momentos assim. Então, começa a ficar um movimento mais intenso. Aí acontece de começar a aparecer o lagarto à vinagrete dentro da cantina. Meu pai sempre na produção do sorvete. Começa a aparecer o chopp. Começa a aparecer os polpetones. Algumas coisas de comida italiana. E meu pai trouxe algumas máquinas de São Paulo, que estão conosco até hoje, graças a Deus! Que meu pai deixou toda uma estrutura muito montada, desde aquela época, que é o cilindro, a máquina de fazer nhoque, a máquina de fazer ravióli. Um italiano, mas assim, bem interessante. Ia pra São Paulo e pegava as novidades, participava de feiras. Meu pai não foi um homem acomodado, não. Dentro do seu trabalho sempre foi um inovador e ele deixou um legado muito interessante. Deixou, além de um legado, uma estrutura muito boa. Já moderna pra época. Então, a gente contém até hoje esse maquinário, coisas da Argentina, da Itália, que ele conseguiu comprar e isso nos facilita até hoje. Deixou um nome muito estruturado, deixou uma família muito agregada. Nós, graças a Deus, temos uma família de sessenta ou até setenta pessoas unindo as duas famílias, todos nós estamos em Ribeirão Preto, fora a do meu pai, que a família do meu pai ainda resiste na Itália. Meu pai tinha três irmãs que já são falecidas, mas os meus primos ainda a gente mantém o contato via telefone ou on line. Isso faz com que a gente motive também esse lado da Itália. Então, o comércio dentro do Bela Sicília foi uma coisa muito interessante pra nós. A nossa vida, na verdade, foi isso: o comércio, a família, as visitas de domingo que a gente... domingo era o grande dia da Bela Sicília, onde as famílias passavam e compravam cannoli, ou um frango, uma lasanha. Meu pai, na verdade, tinha visão, foi o primeiro a criar a ideia de vender comida por quilo em bandejinhas de duzentos e cinquenta gramas, lasanhas pré-montadas. Os italianos mais tradicionais falavam: “Ih, esse não vai durar nada, vai quebrar a cara vendendo comida pronta. Não existe”. Porque italiano gostava de fazer comida em casa. Fazer seu próprio pão, seu próprio macarrão. Esse delivery que a gente está imaginando hoje era uma coisa que a gente nem imaginava. Comprar comida fora é um pecado pro italiano. Italiano faz a sua própria receita, a sua própria berinjela, a sua própria conserva. É um crime você pegar o telefone e comprar uma comida fora. Hoje os hábitos mudaram e, graças a Deus, a gente está nesse novo modelo. Senão, nesse momento de crise agora, estaríamos todos perdidos, se a gente não tivesse pelo menos a opção do delivery. Então, as coisas não são por acaso. Agora, eu acho que, no comércio, o que a gente precisa ter, mesmo, é muita disposição. Principalmente num trabalho como o nosso, que ainda é um trabalho que demanda muita energia, porque todo dia não existe uma rotina. Existe um dia que começa e que acaba, mas nem tudo acontece do jeito que a gente planeja: a máquina quebra, o produto acaba, o funcionário falta, o imposto. Ser comerciante no Brasil eu acho que é um desafio muito grande. E tem que gostar do que faz. E graças a Deus gostamos do que fazemos.
P1 – Legal. ‘Seu’ Francisco, a família da sua mãe primeiro estava em Araraquara e depois veio pra Ribeirão? Ou só sua mãe...
R1 – Não, a família inteira. Meu avô Teodoro e a minha vó Júlia, que são meus bisavós, tinham cinco filhos e vieram em primeiro lugar pra Araraquara. Aí, como ele era um engenheiro agrônomo, já havia um nome em Araraquara, a prefeitura de Ribeirão, cedendo uma casa, o convidou pra morar no Horto e cuidar do Horto de Ribeirão Preto. Assim vieram os cinco filhos, junto com esse casal. O meu bisavô, por uma infelicidade, sofreu um acidente e foi eletrocutado numa fazenda e veio a falecer. Que era o primeiro engenheiro agrônomo de Ribeirão, que tem uma praça com seu nome, uma avenida com seu nome, por tudo que ele construiu. Criou uma plantação de umas palmeiras, que depois foi muito questionada, na época, depois de muitos anos, porque as palmeiras são muito bonitas, mas elas trouxeram alguns problemas pra cidade, porque a cidade evoluiu e essas palmeiras criaram alguns modelos de enchentes, por conta das raízes. É uma situação que aconteceu, mas depois eles, pra não arrancar, as transferiram pra outro lugar, que são palmeiras centenárias que existem em Ribeirão e é um patrimônio histórico que não poderia arrancar. Mas como elas estavam causando alguns danos pra alguns comerciantes, elas foram transferidas, de um modo até muito interessante e assim começa também a nossa história, pro lado da nossa família. Meu avô Bruno, um sapateiro em Ribeirão Preto, que também construiu seu patrimônio em cima de muita luta. Meu tio José, também calheiro, que também construiu seu patrimônio com muita luta. Minha tia Maria e minha tia Raquel são outras duas irmãs que eram floristas e foi a primeira comerciante mulher em Ribeirão Preto a registrar seu comércio dentro da ACI, que é a Associação de Comércio e Indústria de Ribeirão. Foi a primeira mulher a ter seu primeiro próprio negócio em Ribeirão Preto. E aí a gente vai se identificando com todas essas histórias. E o tio Rosário que veio, infelizmente, a falecer na guerra e não veio nesse conjunto de filhos. Aí meu avô Bruno teve cinco filhos, sendo que uma é minha mãe, tia Rosa é a segunda irmã e mais três filhos homens. Desses três filhos homens, o Teodoro, o Amílcar e o Carlos. O Carlos foi o que ficou com o meu pai, dentro da cantina. Porque, na verdade, a história que eles entendiam é que o meu pai era um homem mais velho que eu, porque meu pai também já era um pouco mais velho quando eu nasci, então na concepção de trabalho dentro da cantina durante o comércio, na ideia das pessoas que não nos conheciam, o tio Carlos era o meu pai e meu pai era meu avô, por causa que todos trabalhavam juntos. E aí, no crescimento da cantina, o meu avô, pai da minha mãe, começou a ficar no segundo caixa. Então, meu avô ficava em um caixa, meu pai acabava ficando no outro caixa e todos nós envolvidos no trabalho. E a Bela Sicília começa a fazer a sua própria massa, o seu próprio pão, os maquinários. A gente começa a vender alguns produtos também pra fora, tipo pra supermercados. A gente começa a introduzir alguns produtos dentro do Carrefour, do Pão de Açúcar, dos supermercados de rede da cidade. Depois a gente passa por um segundo segmento e até hoje o que toca a nossa casa é o segmento de antepastos das cantinas. Hoje a gente fornece pra supermercados e também pra algumas cantinas em Ribeirão a nossa sardella, a nossa berinjela, o nosso pão italiano que, nesse momento, também, de crise, foi onde nos ajudou.
P1 – Francisco, quando você nasceu, vocês moravam onde em Ribeirão? A sua casa.
R1 – Nós sempre moramos no mesmo lugar.
P1 – Onde?
R1 – Nós moramos a quatro quarteirões da Bela Sicília. Inclusive eu descia todos os dias de domingo, ao meio-dia, com um pacote de macarrão na mão e trazia meu avô em casa a pé, porque toda a minha família morava na mesma rua. Os cinco irmãos moravam na mesma rua. Os seis irmãos do meu avô também moravam. Nós tínhamos oito famílias na mesma rua, na Visconde de Rio Branco, que é uma rua no Centro da cidade. Lá morava o tio José, o vô Bruno e a tia Raquel. Depois a tia Raquel mudou pro alto da cidade, foi a primeira - aquela florista que eu te falei – a morar no alto da cidade. Então, pra ir na tia Raquel, tinha que andar bastante quarteirões, mas também era o programa da moçada, de domingo, visitar a tia Raquel. O tio Zé, o vô Bruno e mais os cinco filhos acabaram ficando na mesma rua e eu morava lá também, depois da Visconde de Rio Branco. Então, eu, meus irmãos, meu pai e minha mãe, eu tenho dois irmãos e a gente morava tudo na mesma rua. Aí meu pai comprou uma casa do lado e a gente aumentou a casa, fez piscina, aquelas coisas que imigrante vai conseguindo construir com muito, muito trabalho. Aí meu pai recebe um título cidadão ribeirão-pretano, depois ele vira comendador. As honrarias, essas coisas apaixonantes, porque italiano sonha com essas coisas. Então, acho que meu pai teve uma trajetória excepcional, muito feliz, faleceu com 94 anos, mas assim, uma vida especial, faleceu lúcido, uma vida de muito trabalho. Faleceu, infelizmente, por um tombo dentro da cantina, trabalhando, veio a quebrar uma costela e depois começa aquela trajetória de hospital, que infelizmente não conseguiu resistir. Teve alguns episódios durante a vida, foi atropelado por um trator dentro de um sítio que ele tinha, veio a criar um defeito físico na perna, mas isso ele nem ligou, tocou de primeira e trabalhou. Tinha umas dificuldades pra andar, mas a vida segue. Passou pela Segunda Guerra Mundial, foi baleado por duas vezes e também não se intimidou. Veio pra um país como o Brasil, desconhecido, sem falar o idioma, pouquíssima reserva de dinheiro, fez a sua vida. Aquela cantina que ele montou no Largo do Arouche foi visitada pelo Domenico Modugno, que estava fazendo um passeio em São Paulo, uma turnê, assinou a parede. Isso são fatos que ele contava com muita glória. Meu pai virou símbolo na cidade. Era uma pessoa muito carismática, alegre, dava balinha pras crianças no caixa, essas crianças viraram advogados, médicos, professores. E ele falava o italiano a vida inteira. Quer dizer: nunca deixou de falar o italiano, falava muito dialeto. A gente, até, no começo, tinha uma dificuldade em se comunicar, mas depois a gente foi, também, aprendendo, porque meus avós, a gente ficava falando italiano, porque falava-se muito italiano dentro da nossa própria casa. E aí foi uma trajetória muito bacana, valeu muito a pena, conhecer meu pai, trabalhar na Bela Sicília. Eu não tenho do que me queixar. Eu me sinto bem premiado nessa vida aqui.
P1 – ‘Seu’ Francisco e o que o senhor lembra da sua época de infância? Dessa rua com muitos parentes. Do que vocês brincavam? Ribeirão Preto devia ser uma cidade muito diferente de hoje, né? Então, o que o senhor lembra do ambiente, das brincadeiras?
R1 – Então, nós tínhamos um hábito de, na segunda-feira, a Bela Sicília sempre fechou, por conta do descanso semanal dos funcionários. Então, esse meu avô Bruno tinha um sítio em Ribeirão Preto, que também a gente chamava de Campanha, porque italiano chama de Campanha o pedaço de terra que ele tem. E a gente costumava, nessas segundas-feiras, também se reunir nesse sítio, que já era o primeiro passeio, que isso me traz uma recordação muito bacana. A gente vivia dentro daquele sítio, tinha galinha, porco, cabra, coisas que o italiano gosta de ter no seu dia a dia, pra fazer até o seu alimento, matava-se o porco, era uma coisa muito mais simples, era uma vida diferente. A gente lembrava disso. Tinha plantação de café, existia três mil cafés, ele apanhava dez sacos, a gente apanhava junto, tinha o porão, tinha o pomar, o lugar onde guardava as rações. Era uma diversão. Tinha balanço, tinha quadra de futebol depois, mais pra frente, tinha o terreiro onde secava o café, que não era a quadra de futebol, era um terreiro que secava o café, que a gente montava o gol entre os primos, pra brincar. Todas as festas eram feitas no sítio, a minha família era muito grande, porque esses tio-avós que a gente morava na mesma rua e era muito próximo, a gente não sabia identificar essa história de primo de primeiro grau, primo de segundo grau, tio-avô. Pra nós era tudo igual. Era uma família numerosa, muito grande. Então, isso tudo acontecia no domingo, na segunda-feira a Bela Sicília misturada, busca macarrão, traz um frango, a comida da nossa casa era a comida da Bela Sicília, minha vó, meu tio, todo mundo muito junto, era uma coisa que você não tem noção, porque era uma família muito participativa. Os meus tios, aos domingos, que era muito movimentado, também passavam pra ajudar. Era uma coisa muito grande, muito forte, muito unida. Às terças-feiras, nessa rua que eu moro, também tinha uma feira muito grande, livre, que a gente comprava as coisas, também, pro restaurante. Então, esses feirantes também eram muito próximos. A gente até se chamava pelo nome, porque eles traziam toda essa mercadoria pra casa da minha mãe, que depois do período da tarde, não tinha como levar, a gente não tinha ainda, naquele momento, carro pra levar essa mercadoria. Aí vinha um carroceiro, que era o senhor Barone e levava toda essa mercadoria de carroça pro restaurante. Isso eu vi, porque a gente estava presente, já. A gente já tinha começado, me faz essa leitura na cabeça. Isso na terça-feira. Na quarta-feira era um dia normal. Na quinta-feira, nós jogávamos futebol durante a noite, numa chácara de um advogado que chamava Vadão. E quem fazia a comida dessa bola, após, era a Bela Sicília. Então, a gente levava já o sanduíche, quem fosse naquele dia e era uma situação, olha, eu vou te falar, eu tenho 53 anos, mas eu vi já coisas diferentes. Hoje a gente tem essa facilidade, mas antigamente não tinha muita facilidade. Então, a coisa era feita meio no refresco, meio no sanduíche. Essa fartura que a gente tem agora, de refrigerante, de opções de cardápio, não era uma coisa muito comum há sessenta anos, não. Você deve saber tanto quanto eu. Então, a gente meio que se virava com o que tinha. E aí, o que acontece? Então, são coisas que marcavam a minha semana. E meus tios eram diretores do Botafogo, que era um clube da cidade. Então, domingo a gente ia no Botafogo, entrava no vestiário, tirava foto com o Sócrates, com o Zé Mário, que eram os caras da época. Então, pra nós, a gente tinha uma situação muito movimentada. A gente sorteava almoços da Bela Sicília no vestiário, pra quem fizesse o primeiro gol. E isso saía na rádio. Então, isso era muito bacana, muito divertido. Era uma situação de muito mais simplicidade. Mas muito bacana, muito legal. Então, era Botafogo, era sítio, era futebol, era a chácara do Vadão, era o clube da cidade, que a gente frequentava, a gente sabia o nome das pessoas. Sabe, Ribeirão era uma cidade muito menor, muito mais aconchegante e a gente que, meio dentro da Bela Sicília, vira uma figurinha na cidade: “Aquele cara é o cara da Bela Sicília. Separa um frango pra nós”. Aí você vai criando. Aí você vai na escola, os caras falam: “Esse cara é o filho do dono da Bela Sicília”. Aí a Bela Sicília vira o footing da cidade. Fomos pioneiros em muitas situações, criadores de alguns produtos inovadores na cidade e isso consolidou o nosso nome. E hoje eu vou ser bem sincero, Luís: a clientela que hoje movimenta o nosso restaurante nesse momento de pandemia é a mesma ou filhos da clientela que fizeram o começo da vida do meu pai. Então, a gente é muito, muito grato a essas famílias que permaneceram e que a gente percebe agora que são super intencionadas a pedir produto dentro da nossa casa, por saber que a nossa casa tem uma família por trás. Não é uma compra de qualquer, que você compra um sanduíche do Mac Donalds, que você não sabe quem é quem. É diferente. Eu estou comprando um produto, porque eu sei que gera uma receita pra aquele garçom que me atende sempre, que me chama pelo nome, pra aquele pai de família que está lá dentro, sabe? É meio que não é só uma compra. A gente sente que existe uma compra maior por aí. Tanto é que a gente faz todos os agradecimentos pelo whatsapp, de todas as vendas que a gente faz. Até pra trocar um pouco dessa energia de agradecimento.
P1 – Eu estou fazendo várias entrevistas com pessoas de Ribeirão, nesses dias, todo descendente de italiano torcia pro Botafogo? Ninguém torcia pro Comercial?
R1 – Sim, tinha muito mais botafoguense que comercialino.
P1 - É. Todo mundo italiano, da Vila Tibério, tem que ser Botafogo, é isso?
R1 – É. Vila Tibério é um bairro bem tradicional, onde era o Botafogo. O Botafogo era dentro da Vila Tibério. Então, é um bairro extremamente botafoguense. Coincidentemente, o meu pai, quando montou essa Bela Sicília, nesse primeiro ponto... hoje a gente nem mais trabalha nesse prédio. Esse prédio era alugado, depois meu pai fez três mudanças, onde ele conseguiu comprar esses três imóveis. Primeiro foi num lugar, depois foi no outro, depois foi no outro, onde a gente está até hoje. Mas esse primeiro imóvel que meu pai alugou, aquele que eu te contei do fiador, do Santo Antônio, o dono do imóvel era o presidente do Comercial, que era o Doutor Brenno Venâncio Martins. E meu pai botou uma faixa da Bela Sicília saudando a inauguração do Estádio Palma Travassos, que era do Comercial. Uma brincadeira que eles fazem até hoje, porque a minha família inteira é botafoguense. Aí o presidente atual do Comercial brinca com a gente falando que, na verdade, nossa família não é inteira botafoguense, que meu pai era comercialino. Meu pai não era comercialino, era botafoguense, mas comercialmente falando, ele botou uma faixa saudando o Comercial e eles têm essa foto e ficam mexendo com a gente nessa brincadeira. O meu tio veio a ser presidente do Botafogo. Teodoro, que é irmão da minha mãe. Todos os meus tios diretores, conselheiros, nós somos conselheiros do Botafogo. Então, existe essa brincadeira na cidade, que eles falam que nós somos botafoguenses genéricos, porque a nossa origem, mesmo, é comercialino. O Sócrates frequentava a Bela Sicília; o Raí frequentou a Bela Sicília; o Zé Mário, que foi um outro jogador importante do Botafogo. E tantos outros, por causa dessa brincadeira que a gente fazia, dos almoços.
P1 – Sim. Davam tickets lá pra eles almoçarem, né? Francisco, e a escola, seu período de escola? O que você lembra da escola? Vocês iam a pé, né, pra escola? Nessa época...
R1 – Super, ia a pé, porque era tudo perto na cidade, era uma escola também no Centro da cidade. Que também foi o primeiro colégio, Guimarães Júnior, que era um grupo estadual de Ribeirão Preto. E lá existiam duas escolas estaduais: o Otoniel Mota, que a maioria dos estudantes também passaram e pelo Guimarães Júnior, porque depois vieram as escolas particulares. Mas anteriormente, em Ribeirão Preto, eram escolas municipais e estaduais e eu fiz todas elas _______ (45:55) nessas duas escolas: Guimarães Júnior e coisa. Viagem pra Itália, que era uma novidade na época, isso, na escola, era um show: “Puxa, o cara foi pra Itália” e assim foi, depois eu fui de novo, fomos de navio, foi uma viagem superinteressante, depois nós fomos de navio de novo, aí começamos a viajar de avião. Isso tudo era muita novidade no bairro que a gente morava. Quando a gente chegava na Itália também, eles achavam interessante, porque a gente era brasileiro, lembrava do Pelé, queriam jogar bola. O Brasil era muito famoso na história do carnaval e no futebol na Europa inteira, então todos os lugares que a gente... que a família da minha mãe continuou na Itália, mas mudou pra França, veio pro Brasil, mas os irmãos dos meus avós acabaram ficando na Itália, que a gente também mantém contato até hoje, mas eles migraram pra França. Então, hoje a família da minha mãe mora na França e a família do meu pai mora na Itália. Então, quando a gente vai a passeio, a gente consegue ir nesses dois países e ficar em casa de família, que é muito interessante. E uma Itália meio diferente. A Itália da Sicília é muito diferente da Itália do norte. É uma Itália mais simples, mais rústica, onde a gente _______ (47:24) falar mais alto, as comidas mais típicas. É um outro passeio. Vale muito a pena.
P1 – Legal. E, na escola, você ia pra escola e trabalhava na cantina já desde pequeno ou você já pensou em fazer uma faculdade e ir pra outro ramo? Como foi seu desenvolvimento, até você assumir a cantina? Você achou que podia ter outra profissão? Como foi?
R1 – Num primeiro momento eu e meus amigos descíamos do Guimarães Júnior, essa escola, até a Bela Sicília, por quê? Uma vez por mês que um moinho de Juiz de Fora trazia essa farinha pra Ribeirão. A gente só tinha esse carreto uma vez por mês. Então, uma vez por mês vinha um caminhão com cem sacos de farinha. Era um show na cidade. Aqueles homens fortes levando saco de farinha e a gente gostava de subir em cima dessas pilhas de farinha, pra cair no monte de saco. Era a diversão. A gente subia em cima do cercador, que tinha uma escada, subia em cima dos sacos de farinha, ficava tudo enfarinhado os abrigos da escola, mas a gente se jogava em saco de farinha. E aí um moleque contava pro outro, todo mundo queria ir nesse dia cinco pra cantina. E sempre comia um bombom, tomava um sorvete e acabava sendo um passeio. Então, esses foram os primeiros momentos onde eu fui me ligando na cantina. Um segundo momento que, aos domingos, eu começava a ir, com oito anos, fazer pacote e comecei a ganhar umas gorjetas de alguns clientes, porque eu fazia pacote, levava no carro: “Ai, que menino bom, atencioso, legal” e ficava muito do lado do meu avô. E eu tinha uma sorte que meu avô, meu pai, meus tios eram muito fanfarrões, muito alegres, falavam muito alto, mas eles não eram bravos. Eu tive essa felicidade de ter pai que falava alto, mas que não era um pai bravo. Eles eram enérgicos, rígidos, mas eles não tinham aquele lado agressivo de italiano, que se comenta, que eu, graças a Deus, nem conheci. Eles eram brincalhões, fanfarrões, falavam alto e, quando eles estavam todos na Bela Sicília, falando alto, era uma coisa ensurdecedora, que as pessoas até comentavam: “Gente, mas o que está acontecendo aqui? Não consigo pedir”, porque era muito italiano falando alto de uma vez só e com a mão. O meu pai, então, ficava tonto, falava: “Parate, parate”, porque era uma coisa muito grande, muito fantástica. E eu comecei a me apaixonar, porque o meu maior passeio era ir na Bela Sicília ganhar gorjeta e ainda fazer pacote e participar. Era uma festa, não era um trabalho comum. Tanto é que a hora que tinha algum tipo de confusão, também virava uma confusão, era uma coisa também, mas foi uma trajetória... aí comecei a me interessar e meu pai sempre do meu lado também: “Você vai vir?” e eu comecei a ir por conta própria. Tanto é que eu não me liguei muito na história na escola. Eu fiz a minha escola, mas eu meio que me apaixonei pelo comércio administrativo: a história de ficar do lado do cliente, participativo, sabe? Tentar passar essa energia boa, _______ (51:27) alegria.
P1 – E seu pai deu força pra isso? Achou bom?
R1 – Meu pai, minha mãe, todo mundo. Aliás, dentro da história do conjunto, meu irmão fez Administração, formou; minha irmã formou Psicologia, tem uma clínica particular; meu irmão trabalha comigo até hoje, meu tio trabalha comigo até hoje e minha mãe faz até hoje os doces da cantina, porque ela já não pode mais ir, por conta de um problema na perna e porque os médicos falaram assim... agora ela já tomou a segunda vacina e perguntou pra mim: “Agora eu já posso ir?”
P1 – Ela quer ir.
R1 – É, mas eu falei: “Ainda você não pode ir, vai ter que esperar mais um pouco”. Ela me liga todos os dias, ela quer que eu passo todo dia na casa dela e conto questão de valores, do que aconteceu. Ela interage até hoje comigo. Ela tem 87 anos e meu pai tinha 94, fazia conta no papel, entendeu? Então, era uma coisa assim: a gente fechava a Bela Sicília, os levava pra casa, mas antes da gente almoçar ou até de ajudá-lo no final, na história do banho, a gente sentava com a maquininha e fazia as contas do que vendeu e do que não vendeu, coisa mesmo de Itália. A gente tem conta conjunta, não tem essa necessidade de esconder valores, o que é, é e todo mundo participa. A gente, por exemplo: hoje existe um modelo econômico de você até pagar o seu próprio produto, dentro da sua própria casa. Isso ainda não existe entre nós. Meu irmão, minha irmã, meu tio, minha mãe, quem quiser pega o que quiser. Mas isso tem que ter um valor. Tem, mas o valor que a gente tem um com o outro é muito maior. Então, a gente ainda tem esse modelo de família, que foi um modelo que meu pai... meu pai era um homem tão interessante, tão inteligente, que eu acho que ele fez uma grande amizade também com os seus colaboradores, fornecedores e seus clientes, que ele era ligado ao dinheiro, mas ele não pensava muito no resultado final. Ele era muito feliz com tudo que ele fazia. Pra ele, às vezes, ter ganho um título de comendador, que era uma honraria do meu avô ou dele ter conseguido um título cidadão ribeirão-pretano ou uma medalha da prefeitura, era maior do que qualquer coisa. Sair no jornal, pra ele, era uma glória! Entendeu? Então, é isso que motivava o italiano e isso que eu tento pegar como exemplo pra minha vida, porque a vida começa a ficar mais interessante. Porque, se você só pensa em número, número, número, resultados... porque, na verdade, no momento de pandemia ou que está tudo ruim, então a vida vira uma droga, se você ficar pensando em resultados. A vida tem que ter mais que resultado. E é aí que a vida começa a ficar mais interessante. Ontem nós fizemos até um comentário, meu filho fez aniversário e ele fez o bolo do aniversário. E ele vem fazendo algumas coisas. O Franco não tem nada a ver, faz Artes Cênicas na USP em São Paulo, não tem nada a ver com alimentação. Mas sempre se interessa um pouquinho. E agora, coincidentemente, ontem minha mãe falou assim: “Gente, eu estou achando tão interessante o seu filho se ligar na história da confeitaria, que foi onde tudo na nossa vida começou. Será que seu pai não está mexendo com esse seu filho, não e está puxando seu filho pro doce?” Porque, na verdade, meu pai começou no ______ (55:26), na Itália, em 1950, numa confeitaria que chamava _______ (55:30) ele fazia os cannolis, os tiramisùs, os doces típicos da época. E esse menino, agora, depois de sessenta anos, começa a mexer com doce aqui dentro da minha casa. Aí minha mãe, brincando, falou: “Gente, será que esse menino não vai nos ajudar na história do doce, não vai ser nosso confeiteiro?” Porque a gente gosta que o Franco faz Artes Cênicas em São Paulo, mas a gente puxa o Franco pra Bela Sicília. Ele faz o meu Instagram, dá umas opiniões, tem um trejeito bem legal pra coisa. E eu falei uma vez: “Franco, você não quer fazer Gastronomia em Águas de São Pedro?” Antes dele fazer Artes Cênicas, eu falei: “Presta”. Ele falou: “Você vai deixar eu mudar a Bela Sicília, tudo que eu acho certo e tudo que eu acho errado?” Eu falei: “Não”. Ele falou: “Então, tá bom, continua firme e forte aí, porque eu vou fazer a minha Artes Cênicas. Se um dia eu precisar, eu corro praí”. Quando ele me mostrou a mudança dentro do meu princípio, que eu fico com um pouco de receio, eu falei: “Não, pode cuidar da sua história”. Mas é muito legal, a gente tem liberdade e a gente vai tocando.
P1 – Legal. E como é que você foi assumindo a administração da cantina? Sempre junto com seu pai ou depois você foi assumindo, mesmo, a frente do negócio? Como que foi esse processo?
R1 – Não teve um processo de transição, não. As coisas foram acontecendo. Inclusive a minha irmã mais velha que deveria, a priori, ter pegado isso. Mas eu tive, talvez, um pouco mais de afinidade com o meu pai e essa afinidade foi com que os compromissos e as responsabilidades foram chegando. E eu, na intenção de poupar meu pai de alguns assuntos mais delicados ou preocupantes, que acontecem dentro do dia a dia do comércio, fui poupando o meu pai de algumas situações e pegando essas responsabilidades pra mim. Então, aí você vai começando a pegar a frente. Quando você pega a frente, principalmente um erro grande que a gente tem é que o erro de centralizar, você acaba centralizando todas as situações e isso vai fazendo com que as responsabilidades, cada vez, fiquem mais perto de você. E isso eu faço também com o meu irmão mais velho, porque a gente vai pensando, também, você acaba descobrindo algumas estratégias que muitas dão certo e muitas não dão, mas você vai criando alguns atalhos e vai tocando a vida e aí você também acaba poupando a sua mãe. Eu não vou ligar pra minha mãe de noite pra falar de assunto chato e o dia amanhece e anoitece, a mesma coisa com meu irmão. Então, você vai ficando com os assuntos bons e os chatos. Tanto é que tem gente que fala que eu carrego o piano e ainda com o povo em cima. Porque o negócio é pesado. Mas você vai criando força, energia e as coisas vão acontecendo e, graças a Deus, por mais que algumas coisas acontecem, difíceis, as melhores são muito maiores. E isso vai criando fôlego pra gente construir o trabalho da gente. A satisfação de um cliente feliz é muito interessante. Você chega em casa abençoado. Por isso que uma outra coisa interessante nesse momento de pandemia e é um ditado que a gente sempre usou, que é: “No se puoi mangiare com due _______ (59:28)”, “Você não tem duas bocas pra comer”. Então, é uma coisa que a gente fala entre nós, então a gente tem que fazer uma opção e esse momento tem coisas que você pode, pode e coisa que você não pode, não pode. Porque hoje, aquele momento de balcão, de farra, você imagina que nós perdemos tudo há um ano. A gente vem há um ano sem essa parceria, essa energia. A cantina caiu, assim, de energia, muito grande. Então, você tem que ir lá no rádio, botar Volare no toco, pra se sentir com alguém. É o momento que eu me encontro com meu pai dentro da cantina, porque ele adorava essa música, entendeu? Porque aí você encontra algum elemento pro seu funcionário, pra ele se distrair, porque ele perdeu muito também. Eu hoje me preocupo muito com os meus funcionários, porque eles tinham um encontro com os clientes, eles ganhavam gorjeta dos clientes, eles ganhavam alguns presentinhos. De repente a vida se transformou. Você imagina isso numa cantina! Como que, de uma hora pra outra... e o que acontece? A vida começa assim: anteriormente o cara pegava aqueles telefones pretos, te ligava e falava: “Ô, como é que você está, está tudo bem, tudo bom? Manda um frango, uma pizza, estou passando aí pra ir buscar”. Ele ia lá buscar. Estou falando há cinquenta anos, naquela farra que eu te contei. Ele pegava uma faca, cortava o seu pedaço de queijo, abria sua cerveja... isso foi sempre... comia aquelas azeitonas graúdas, que tinha na cantina, que ninguém tinha. Hoje você encontra em qualquer empório. O cliente, antigamente, não sabia o que era alcaparra, o que era funghi. Hoje não, qualquer menino de cinco anos já pede uma pizza de funghi. Isso foi uma mudança muito grande na vida da gente. Hoje eu lido o meu comércio com muito mais dificuldade que meu pai lidava. Hoje o comércio ficou muito rápido. Hoje ele manda três palavras pelo whatsapp e ele já quer que chega... por exemplo: ele não participa do IFood, porque não é característica da minha casa, nem dos meus clientes. Os meus clientes, até hoje, querem um motoqueiro particular, não querem qualquer pessoa na casa deles. Não pode, nem recebe e outra coisa: não tem nem estrutura pra ficar com vinte motoqueiros acelerando lá na porta, querendo que saia, né? Minha comida não é essa. Minha comida é trabalhosa, difícil, sabe? São aquelas berinjelas modelo antigo ainda, que eu sou agradecido a essas mulheres que descascam essas berinjelas, que não é um trabalho fácil você ficar em pé ali, enrolando pãozinho na mão, sabe? Forno. Não é fácil ficar na boca do fogão, não é brincadeira, porque existe chef de cozinha que hoje aparece na televisão, com uma cozinha maravilhosa, inteira aparelhada e com mais quatro, cinco assessores pra descascar o alho.
P1 – Aí fica fácil, né?
R1 – As minhas vão do começo ao fim. E você sabe o que é trabalhar em pé, na boca do fogão, durante seis, sete horas? E agora, numa energia mais baixa, porque o compromisso mudou. São coisas da vida, entendeu? Hoje eu estou de folga aqui na minha casa, entre parênteses, porque daqui a pouco eu tenho que ir pra Banco, pagar, já não estou me sentindo tão bem, eu gostaria de estar naquela farra do restaurante, que a gente acaba viciando. Como a gente nunca fechou, agora que a gente começou _______ (01:03:29), fechou às segundas-feiras, depois a gente começou a fechar no dia de Natal e de Ano Novo. São as únicas datas que a gente fecha. Então, eu acho que, no comércio e no Brasil, infelizmente, a gente ainda passa por esse grande problema, de não ter uma estrutura, nem auxílio, que eu acho que deveria ter algum tipo de auxílio pra aqueles que, de fato, tentam trabalhar. Igual você me achou, por exemplo, pra fazer uma entrevista, mas não me achou no comércio. E você não tem o meu contato, você me descobriu, ao contrário do governo, que tem o meu contato diariamente, pelas notas que a gente emite, pelo imposto que a gente paga. Então, deveria-se criar. Igual você está me buscando numa história, eu tenho uma história de sessenta anos de comércio, de criadores de empregos, de pagamentos de impostos, que deveria ter um auxílio. E não se tem uma lei pra favorecer nesse momento que a gente está passando, esse episódio difícil. Então, acho que acabam sendo desiguais. Então, quando meu filho parte pra um trabalho diferente, eu não critico. Por quê? Porque o trabalho que a gente já acostumou a fazer é difícil. Cinco horas da manhã você já tem que estar ligando no Ceasa, porque o produto que você quer é diferenciado. A farinha que você usa é diferenciada, senão o pão não cresce, não fica bom. E o nosso pão não é congelado, é feito diariamente. Então, você sabe São Paulo como funcionam essas grandes cantinas, o tanto que é difícil. E outra: essa história que eu estou te contando tem um preço emocional muito grande.
P1 – Claro!
R1 – Então, a vida do comércio de São Paulo, do Brasil. Agora, o nosso modelo ainda segue aquele da Itália, que é aquele onde a família participa do próprio negócio. Mas eu sei de situações que a Itália, como a Europa, ajudam muito essas famílias por trás. É onde que a gente está sentindo falta da ajuda do governo, nesse momento.
P1 – Exatamente.
R1 – Que a gente precisava de um amparo, de alguma maneira. __________ (01:06:09), mas a gente fica preocupado com as contas. E as contas não pararam. Onde eu acho que teve uma desigualdade nesse momento. Ah, mas está tudo certo, tudo bom, fazer o quê? Faz parte.
P1 – Francisco, quantos funcionários a cantina tinha antes da pandemia?
R1 – Não, graças a Deus a gente conseguiu manter o nosso grupo. A gente não dispensou ninguém, não. Nós trabalhamos numa equipe de dez pessoas e mais dois da família, que somos nós e às vezes aparece um sobrinho meu pra ajudar de domingo, que esse também é um rapaz que me interessa, que fez Administração na FEA, USP e ele gosta também um pouco desse meu lado, porque no meu projeto de vida, teria meu filho e o meu sobrinho. Aliás, eu tenho dois sobrinhos: o Giuseppe, que fez Direito, que participa só na gastronomia, no mangiare. E o Franccesco fez Administração e aparece no domingo, pra me ajudar. Só que, como ele está com trabalho novo, no momento, também está ausente, mas nós continuamos com esse grupo de funcionários, as meninas na cozinha, as meninas no balcão e os meninos na padaria, fazendo a parte do pastifício. Eu e meu irmão... e a minha mãe e meu tio, agora, nesse primeiro momento, estão afastados por conta da pandemia e esse meu tio, às vezes, aparece lá, onde a gente se preocupa, porque a gente não queria que nada acontecesse com nosso grupo nesse momento muito difícil. E a gente sabe que o balcão, por uma infelicidade, pode contrair algum tipo de doença. Então, os mais velhos a gente exigiu que não viessem, mas...
P1 - ... eles querem vir.
R1 – ... eles querem vir. Aí eu ligo pra filha e falo: “Não é pra vir, eu já falei pra não vir, mas ele veio” “Mas eu me distraio, eu faço alguma coisa, eu me sinto mais feliz, não sei...” “Então está bom, fica”. Mas depois eu fico com a cabeça preocupada, porque eu já tive dois clientes que ficaram muito doentes e depois me ligaram pra se desculpar, que perceberam que estavam doentes e já tiveram contato comigo. Mas graças a Deus não aconteceu nada.
P1 – Francisco, e vocês fazem propaganda ou esse negócio, esse tipo, esse modelo de negócios tão tradicional e tão particular como é a cantina, com essa qualidade dos materiais, já faz a propaganda sozinha ou você anuncia na rádio, no jornal, essas coisas?
R1 – Não. Na verdade, nosso marketing sempre foi boca a boca dos amigos, um contando pro outro. Isso, antigamente era muito mais comum, porque a cidade era menor. E aí a gente tinha algumas notinhas sociais de rádio e jornal, porque também eram frequentadores da cantina. Nunca tivemos nenhum tipo de propaganda. A propaganda sempre foi essa. Depois, quando veio o digital, nós também não fizemos propaganda. E éramos inteiros analógicos, porque a gente não gostava muito desse modelo. Agora, com a pandemia, não teve jeito, a gente teve que buscar essa alternativa, meu filho criou o Instagram e o Facebook, onde ele me ajuda a olhar, mas na verdade, as propagandas que fizemos foi através de amigos e reportagens de jornal que saíam sobre a cantina.
P1 – Entendi.
R1 – Pra você ter uma ideia, esse aí é até hoje o modelo que começou. Em todos os sentidos a cantina ainda mantém os mesmos traços, até é uma homenagem que a gente faz pro meu pai, que ensinou esse modelo que também deu certo e a gente seguiu e porque a gente também gosta desse modelo. A verdade é essa. A gente gosta desse oba-oba, dessa história, dessa maneira de se encontrar com o fornecedor. Eu acho que esse grande momento que a gente está vivendo de pandemia, o grande momento difícil que a gente passa é a falta de encontro do dia a dia. A maneira da gente comprar os produtos, a maneira da gente receber os produtos e claro que a gente modernizou alguma coisa, mas a gente ainda continua com a raiz básica tradicional. A gente confia mais nisso. E você vê: a matéria-prima é uma coisa que mudou muito e, pra gente, a gente sempre vai em busca daquela matéria-prima mais próxima do que a gente acredita que dê sabor e qualidade na finalização do produto. Porque parece que não, mas existe uma diferença muito grande de produtos pra produtos. Se você usa um produto com a característica daquele que você acredita que seja um produto bom, ele finaliza. Porque não adianta você comprar produto por preço. Tem preço que vale a pena e tem preço que não vale a pena. Tem preços de produto hoje, o mercado mudou muito, você pega manteiga, queijos do mesmo nome, da mesma qualidade, mas que não têm o mesmo sabor. Então, a gente não pode só olhar, comprar por preço. Tem preço que, na finalização do produto, não resolve e no mercado tem produtos simples que têm sabor bom, mas já que você quer ter um compromisso fiel com o seu cliente, é importante que você seja fiel também na venda do produto.
P1 – E como você consegue os fornecedores? Hoje é mais fácil? Deveria ser mais fácil do que na época do seu pai, que ele começou, porque chega mais coisa em Ribeirão do que naquela época, mas como você direciona os seus fornecedores?
R1 – Olha, eu acho que o fornecedor, no meu ponto de vista, tem que ter um produto bom, mas ele tem que ter um trabalho bom. Os meus fornecedores, na verdade, são muitos daqueles que eram desde antigamente. Passaram de pai pra filho e a gente continua. É claro que, por exemplo, o supermercado mudou. O hortifruti não, é filho daquele feirante que eu te contei lá atrás. Então, esse aí, por exemplo, a gente vê que algum produto a gente está pagando mais caro, mas a gente vê que existem os filhos dele, que estão precisando nesse primeiro momento. Porque é minha mãe que faz essa compra. Minha mãe me questiona: “Mas eu acho isso caro”, falo: “Mãeee, fica fria, porque tem os filhos dele. Calma, a gente vai pagar um pouquinho mais caro, mas é meio que uma doação também que a gente está fazendo. A gente não vai pagar mais caro em outros produtos aqui. Nessa questão a gente não mexe. A gente vai pagar mais caro, mas a gente vai continuar pagando, porque é uma sobrevivência dessa família, que nos atendeu a vida inteira”. Aí você faz essa caridade aqui, mas de verdade, passa um dia e você recebe uma outra caridade, de um outro cliente seu, que também comprou mais coisas e assim a vida vai. O leiteiro a mesma coisa. Eu não uso leite de caixinha, uso de saquinho, porque eu acredito que o leite seja melhor. Então, a farinha eu uso a mesma, que a farinha é uma coisa que importa muito no meu produto. Farinha não é questão de preço, é questão de cor. Farinha com textura cinza não funciona, então eu não compro. Então a gente compra farinha de primeira qualidade, porque senão todo aquele empenho, aquele trabalho, você joga fora a hora que finaliza o produto, quando o pão não cresce. Então, não adianta arriscar. Agora, a questão do produto hortifruti: quanto mais danificado ele vem, pior é. Então, não adianta, produto tem que ser de boa qualidade, porque você já tem a perda na limpeza. Se você tem a perda do produto quando ele está danificado, aí também te prejudica muito, porque cansa o funcionário e você tem a perda do produto. Então, são todas essas coisas que você precisa ficar pensando se o fornecedor é bom. Outra coisa que ainda existe conosco: o fornecedor entrega, tem a maquininha de cartão, passa; não tem a maquininha: “Assina, que depois eu volto”. Isso, pra nós, acaba sendo interessante: esse compromisso, essa fidelidade. Porque eu vendo por cartão e eu recebo em datas diferentes, porque a gente não usa estratégia de antecipar valores. Mesmo no aperto, a gente não está antecipando. A gente vai lidando com o resultado que a gente tem. Isso significa que o rapaz assina a notinha semana que vem e volta, o dinheiro já entrou, pra gente pagar. Isso mostra que a gente tem crédito e isso deixa a gente feliz. E aí o açougue leva carne. E uma coisa que eu fiz pros meus funcionários e isso eu achei que foi interessante pro meu rendimento: todas as situações que puder ajudar o meu funcionário na questão, por exemplo, muçarela, presunto, já vem tudo fatiado. Isso já é um ganho de mão de obra, porque o meu funcionário não se expõe. Ah, os produtos de hortifruti já vêm ensacados e manipulados, só vamos finalizar, limpar. Sabe, essas coisas que parecem... o açougue já manda a carne fatiada, sem isso. São modernismos que a gente está usando que dão um diferencial, você tem um funcionário mais disposto e mais livre, pra finalizar.
P1 – Muito bom. Francisco, e quanto à sua clientela, ela variou ao longo dos anos? Você disse que muita gente é filho dos anteriores, tem neto, até, dos anteriores, mas quem é seu cliente dentro de Ribeirão Preto? Assim, a cara dele.
R1 – Eu acho que a gente, na verdade, mantém uma clientela grande dos mais antigos, que são moradores de Ribeirão Preto, outros que estão chegando e conhecendo a cantina. Ribeirão está vivendo um momento muito diferente. Está me parecendo uma cidade muito parecida com Campinas. Ela ficou uma cidade muito sofisticada. Ela recebeu um mercado muito bom, os condomínios receberam uma grande fatia de pessoas que consomem esse tipo de produto nosso, por estarem em casa e em casas mais confortáveis. Então, às vezes o cara, num final de semana, num final de tarde, na casa dele, com uma garrafa de vinho, porque hoje, mesmo Ribeirão Preto sendo uma cidade muito quente, de muita cerveja, ainda se consome muito vinho. Um vinho, um pedaço de queijo, uma sardella, um pão italiano, o cara já está resolvendo a vida dele. Então, são hábitos de, na verdade, pessoas que estão morando em Ribeirão, que vieram de outras cidades, que têm os hábitos de cantina italiana de São Paulo. Então, isso, pra nós, é interessante, porque o nosso perfil de alimento, por exemplo: eu não tenho feijão, eu tenho mais um risoto, mas eu não tenho o arroz no dia a dia. O meu cardápio é especificamente em cima da tradição italiana. Eu não tenho feijoada, torresmo, não tenho nada disso. Tenho meu leque italiano. Então, eu tenho risoto, pizza, lasanha, isso, isso e aquilo, mas sempre voltado pro italiano. Então, além de eu ter essa clientela tradicional, eu tenho uma clientela jovem, que também está consumindo muito fora e começa a gostar dos antepastos, que são coisas que a gente percebe que sempre está na moda, que é uma berinjela, que é uma abobrinha, que é um jiló, que eram legumes que não eram muto bem aceitos nos jovens, anteriormente. “Jiló, não gosto”. Eram coisas que a gente discriminava. Berinjela, ninguém gostava. Por quê? Porque se fazia aquela berinjela mais cozida, mais vinagrete. Hoje não, você tem diversos tipos de berinjela pra fazer em casa. Agora, uma outra coisa que a gente percebe que é um grande concorrente da casa da gente, que é o grande concorrente das cantinas, do mercado em si, são as pessoas começando a criar o hábito de fazer comida em casa, como já se foi. Hoje a juventude começa a gostar de cozinhar em casa. Apesar de não ter todos os trejeitos, mas ela gosta de fazer uma comida em casa. E hoje, por incrível que pareça, se você for analisar fazer uma compra pra fazer o almoço em casa, às vezes fica mais caro do que comprar fora. É onde a gente começa, também, ter uma vantagem. Porque, na verdade, a pessoa, quando vai fazer uma comida em casa, mas vai usar uma matéria-prima tudo de primeira qualidade, fica caríssimo pra você fazer em casa. Enquanto que a gente consegue ter isso. Então, existem as chances de dar certo ou de não dar, mas eu acho que o comércio é tudo isso, essa movimentação.
P1 – Sim. E essa família de pessoas mais novas, com um nível bom de vida, que está lá no condomínio, se quiser ligar na cantina e pedir só o antepasto, ela quer o vinho com a sardella, com aquela coisinha pra comer com o pão italiano, vocês entregam também?
R1 - Sim. A gente fez esse preparo através do Instagram. A gente não tinha, muito, essa comunicação visual. Agora acabou, através do Instagram, tendo essa comunicação visual onde o cliente, na verdade, consegue visualizar e se interessar e aí é a fogazza, a sardella, é a _______ (01:22:00), a pizza. Aí vai criando o hábito de começar a pedir.
P1 – Legal. Francisco, o que você pensou, quando começou a pandemia? Você achou que ia tudo pro buraco, assim? O pessoal, primeiro, achou que ia terminar logo. Quais foram seus grandes desafios na pandemia?
R1 – Eu acho que o grande desafio nosso é essa ausência da família e dos clientes, dentro do nosso estabelecimento. Isso criou uma angústia muito grande, porque a gente mudou muito o perfil de atendimento, radicalmente. A falta desse calor humano dos clientes foi uma coisa que a gente sentiu muito. Resultado final eu acho que não dá muito pra você ter noção. Se você fizer um gráfico, tudo mudou, não tem muita lógica. Agora eu acho que aquela pessoa que analisa o seu comércio através de relatório diário, de gráfico e está trabalhando extremamente e somente por dinheiro, foram alguns casos que, infelizmente, muitos fecharam. Porque, na verdade, ele lidava com uma realidade financeira. Ele não está ali pra brincar. Ele não está ligando pra Maria e pra João, está ligando pra resultado. Aí o negócio despencou. Agora, eu tive a felicidade, nesse primeiro momento, de ter uma clientela amiga, que você cai naquilo que eu já havia te falado: estavam muito mais dispostos a serem solidários comigo naquele momento. Então, eu cobro um pouco a mais, eu estou te mandando até um dinheiro um pouco a mais. Eu não tive uma situação que se criou no começo, que eu achei bom que eu não participei, que eu achei que pode ser que não teria dado certo, que foram umas vendas antecipadas que se fizeram no começo: você vendia mil e quinhentos reais pra um determinado cliente e ele ficava com crédito futuro. Isso eu acho que não foi muito interessante, porque a matéria-prima aumentou demais e teve gente que usou desse primeiro recurso na primeira necessidade, abriu um crédito lá na frente, usou esse crédito no começo e ficou com uma dívida lá atrás. Graças a Deus eu não participei disso, mas no primeiro momento de confusão, você começava a pegar todas as oportunidades. Essa eu achei que foi um ponto interessante que eu não fiz e que eu acho que eu me dei bem. Agora, a pandemia foi um desastre pra todo mundo, né? A perda dos clientes que tivemos. Nós tivemos clientes amigos que perdemos, entendeu? Isso criou muita dor. Tanto é que alguns eu nem comentei pra minha mãe, pra não aumentar o nível de angústia. Ficamos entre nós. Infelizmente. O fato de não poder fazer uma homenagem, uma despedida pra esses amigos da cantina foi uma coisa muito triste. Mas infelizmente é o momento de todos nós. Permanecer no comércio eu acho que a gente, hoje, está sendo muito herói, poque são tempos difíceis de resultado, de pandemia, de doença. A gente tem medo também de alguém ficar doente. A gente tem medo de não dar certo. A gente atende o público, põe máscara, luva, tudo, mas a gente tem medo também. A gente volta pra casa, a gente tem a família da gente. Porque pior de também pegar, é o passar.
P1 – Sim, pra outra pessoa.
R1 – Que está aí pra trabalhar. Agora, a gente criou algumas estratégias no restaurante: o fornecedor já não entra mais dentro do restaurante, entra pelo portão lateral, deixa tudo em cima de uma mesa, depois, quando ele vai embora, o funcionário vai pegar essa matéria-prima, lava produto por produto. Que é um desgaste bem trabalhoso, mas é necessário. Então, a gente, num primeiro momento, não tem contato com o fornecedor em hipótese nenhuma e em um segundo, com o cliente, via delivery e sempre o mesmo motoqueiro. Tem uma outra coisa que a gente percebe, que também deu resultado positivo, foi a história da maquininha. Se a maquininha, naquele momento vai, vai receber, muito bem, senão depois o cliente liga, paga quando puder, quando quiser. Isso criou uma confiança muito grande.
P1 – Criou um vínculo.
R1 – Foi até comentado a necessidade do vínculo que a gente fez com esses clientes, que era uma coisa do meu pai, no passado. Meu pai sempre marcou e sempre deu certo. Então, não é aquela apreensão de eu ir lá na sua casa com a maquininha e ficar lá embaixo esperando, se você tem o cartão, você paga, senão você não vai levar o produto. Não, a gente deixa na portaria e depois a gente volta. E deu certo até agora. Nós estamos há um ano entregando fiado e os nossos clientes pagaram. Claro, cada caso é um caso.
P1 – Está certo. Francisco, e quanto ao futuro? A gente sempre pergunta isso, mas esquecendo um pouco a pandemia, porque ela vai acabar, uma hora chega ao fim, você já pensou, não sei, acredito que pro seu negócio não funciona, mas uma expansão, abrir em outras cidades ou tipo que fazem franquias hoje em dia? Não sei se é bem o caso do seu negócio, mas já pensou nisso?
R1 – Luís, eu sou bem conservador nesse ponto. O que eu estou tentando fazer, ao máximo, é deixar a casa estruturada como eu recebi do meu pai no passado, pra esses meninos, um dia, se quiserem fazer o que eles quiserem, eles possam fazer. Pra manter esse nome e essa estrutura, eu vou te ser bem sincero: da maneira que a gente trabalha é uma coisa muito sacrificante. Agora, sócio e franquia eu já tive vários convites, porque quando você vê o fervor do negócio, você quer ser participativo daquilo. Então, eu arrumo um sócio por dia. Ideia dos amigos e clientes, então, são umas mais fantásticas do que as outras, porque eles não sabem a dificuldade do próprio negócio. Então, eu, particularmente, pro meu ganha-pão, pro meu dia a dia, pra minha alegria, está bom demais esse modelo de vida. Quando você começa a expandir, se você não tiver uma estrutura, uma prática, eu acho que você corre o risco de dar alguma coisinha que não funciona. E eu já tive alguns outros exemplos onde a casa ruim abalou a casa boa. Se você começa a injetar o seu dinheiro bom no dinheiro ruim, é onde a coisa pode desandar, porque aquela receita nossa ali está muito mais no dia a dia. Quando você começa a criar um modelo de franquia pruma outra casa paralela e você está um pouco longe, porque naquilo você só acredita vendo resultado, você começa a ficar meio distante. Então, não é um modelo, muito, pra nós. Modelo nosso, talvez, seria conseguir o que meu pai conseguiu, que foi sua casa própria, o seu carro, as suas viagens, os seus passeios. Nós tivemos grandes oportunidades de viagens e isso tudo foi construído pela casa, pela cantina. Nós tivemos essa liberdade de horário. Eu vou todos os dias, chego no meu horário, saio no meu horário, mas se eu não quiser, eu não vou. Mas não é isso que eu penso, não é isso que eu acredito. Eu nunca tive que dar satisfação, eu nunca tive que entregar um currículo, eu nunca tive que entregar um relatório, sabe? Isso tem um valor muito grande. A liberdade do seu próprio negócio.
P1 – Claro!
R1 – Eu nunca peguei um ônibus. Graças a Deus nós somos agradecidos por Deus, por a gente ter tido isso tudo. Isso não tem preço. Agora, vai num final de sexta-feira transmitir um relatório pro seu chefe, vai pegar um ônibus e entregar um currículo pra arrumar um emprego. É difícil! E meu pai me poupou de tudo isso. Então, quer dizer: já está muito bom. Vamos pro Guarujá, vamos pro Rio de Janeiro. Isso tudo vendendo comida. Isso está bom demais! Agora, por que eu acho que, às vezes, o jovem já ficou um pouco diferente? Porque ele está sonhando com uma realidade muito distante da que ele possa ter. E isso te traz uma infelicidade muito grande. Você não consegue ser feliz, porque você está projetando um resultado muito rápido. Nós estamos falando de sessenta anos, sabe? Nós não estamos falando de... sabe, o cara quer criar um patrimônio, construir, aí começa a entrar em alternativas que, por uma infelicidade, a juventude vai pegando e errando. E isso tem um preço muito grande. Porque quando você tem um nome a zelar e uma família a zelar, você tem medo de alguns passos. Você não percorre esses passos. Porque você tem essa cultura de raiz. Agora, quando você quer resultado muito rápido, você começa a buscar uns atalhos que podem não dar certo, porque a gente vê grandes exemplos por aí que não valem a pena.
P1 – Está certo. Francisco, a gente está chegando mais pro final, então, da entrevista e eu gostaria de saber se alguma coisa que você queria falar, que eu não perguntei, algum assunto que você acha que seja pertinente à cantina ou à história da sua vida. A gente não falou do seu filho, nem da sua esposa. Como você, por exemplo, se casou? Encontrou sua esposa onde?
R1 – Falando um pouco do que eu não falei, uma coisa que me veio agora na cabeça, uma coisa que eu vou te falar, Luís: essa minha vida de trabalhar com meu pai e de prover meu próprio resultado, me fez tentar percorrer um caminho muito reto e quando algumas oportunidades apareceram durante a minha vida, que não foi o caso, graças a Deus, mas eu sempre falo pros meus sobrinhos e pro meu filho, que é o medo da droga, da velocidade no carro, da tentação das coisas erradas. Isso, trabalhar no meu dia a dia, acordar cedo e trabalhar muito e dormir muito mal, porque às vezes a gente dorme muito preocupado, tira da vida da gente. E a própria internet, que eu vim a conhecer bem depois, porque eu sou quase analógico, fez também com que eu me livrasse de muitas confusões. Então, essa história de trabalhar com seriedade faz com que também a gente atraia coisas boas e interessantes pro dia a dia da gente. Minha mulher foi, graças a Deus, uma ótima mulher que apareceu na minha vida, o meu filho a mesma coisa. Graças a Deus eu sou casado, já, há muitos anos, consegui conhecê-la também, uma história meio parecida da cantina, porque ela trabalhava num Banco perto da Bela Sicília e eu comecei a paquerá-la nessa Rua São Sebastião que era a rua do Banco e da Bela Sicília. Eu dava uma escapadinha no horário que eu sabia que ela ia almoçar, pra dar uma olhada pra ela. Foi bem legal. E aí consegui roubar o telefone dela. Só que no dia que eu peguei, que eu fiquei de passar pra pegar eu, pra variar, me atrasei e ela foi embora. Falei: “Puts, perdi a menina”. Mas aí eu consegui ter uma segunda chance, porque ela é rígida no horário e eu sou, por conta dos meus afazeres, não dá pra chegar num horário britânico, mas foi muito bacana. Aí tivemos essa coisa linda, que é o Franco, que também é um menino bem especial, que não me dá um pingo de trabalho, aliás, só me dá orgulho, bem estudioso, bem inteligente, bem extrovertido, por isso que eu gosto e eu queria muito que ele ficasse do meu lado, porque eu acho que ele ia ser um avanço bem interessante pra Bela Sicília, porque eu acho que ele tem esses trejeitos mais modernos, que é onde a Bela Sicília também segura as rédeas da tradição. Mas às vezes o modernismo também funciona, né? A gente sabe. Mas o caminho está aberto e, por isso, eu tento fazer com que a Bela Sicília dure mais cem anos, pra quem vier na frente ajudar a cuidar dela, que esse é um patrimônio de Ribeirão Preto, agora é um patrimônio do Sesc, que está abrindo essa oportunidade muito interessante. Esses trabalhos que eu acho que o Brasil deveria fazer mais, entendeu? Essa troca que a gente está participando. Hoje, pra mim, está sendo um dia muito especial. Esse bate-papo com vocês me fez, sabe, muito grande, porque eu falei da minha vida, que acho que nem eu tinha falado pra mim mesmo da minha vida. Lembrei, que não esqueço, mas ver meu pai, assim, naquelas correrias de balcão, sabe? Acho que falar da minha mãe, dos meus irmãos, dos meus tios, dessa vida folclórica que foi a Bela Sicília, dentro da nossa vida. É isso que eu acho que falta no comerciante. No comércio tem muito, né? Mas eu acho que o jovem está muito desprendido disso. O jovem está muito fraco, entendeu? Isso me deixa muito preocupado, porque a gente depende dessa juventude. Aí quando você vê grandes talentos despontando, a gente fica feliz. Mas eu me preocupo muito em saber que o jovem está muito interessado no financeiro. Esse financeiro não é pra agora, é pra depois. Teve gente que lutou a vida inteira e não conseguiu ter esse resultado, porque a mídia mostra muito, por exemplo, os artistas que são bem-sucedidos, os jogadores de futebol. É claro que são resultados diferentes, mas eu fico com dó das pessoas que veem isso na mídia e pensam que a vida vai se transformar naquilo no outro dia. Não é assim, entendeu? Os imigrantes que eu te contei, que eu já vivi o lado do imigrante, pra construir uma casa foi uma luta, que é o grande sonho do brasileiro: ter uma casa e um carro zero na garagem. E era um Fusquinha, não era uma Mercedes. Então, eu acho que essa inversão de valores que o Brasil está vivendo, que eu acho que a gente pecou um pouco nisso, traz uma frustração muito grande pro jovem, mas eu acho que ele está equivocado. A vida é feita de muita luta e de muita conquista. E esse imediatismo que o jovem está querendo... agora, por que eu mantenho meus funcionários antigos a todo custo? Porque eles aprenderam a viver um pouco da nossa linguagem. Meu funcionário, hoje, mais novo, tem dez anos de casa. Eu tive muito deles que se aposentaram com o trabalho só dentro da nossa cantina! Já tivemos diversos funcionários. A Bela Sicília tinha trinta funcionários no começo. Mas ela abria de madrugada, até as três horas da manhã! Meu pai dormia dentro da Bela Sicília. Minha mãe lavava louça e meu pai enxaguava, porque eram só os dois. Aí começaram chamar mais um pra ajudar, chama o Batista, o João, o Munir e vai fazendo e começou a virar uma... você entendeu? Então, agora, como, de uma hora pra outra? Por isso que os meninos que eu convido pra trabalhar, eu já explico muito o trabalho nosso. Aliás, o meu filho e o meu sobrinho, todos sabem a luta que é. E um amigo meu me falou: “Sabe por que eles não vão trabalhar com você? Porque o chicote nas costas dói”. (risos)
P1 – Sei.
R1 – Entendeu? E aí sabem que a vida nossa é essa, uma vida difícil. Entendeu? Não é uma vida fácil. E a moçada quer vida fácil. Vida fácil não é fácil. Tem que trabalhar. Então, essas meninas que eu mantenho hoje trataram meu pai com muito amor, eu não esqueço, trataram da minha mãe, porque foram funcionárias muito dedicadas, além de ter uma habilidade talentosa na cozinha que, pra mim, é muito especial. Até porque os aparelhos que eu tenho são antigos, então elas têm muita habilidade e muito dom, mas a gente também transfere esse amor e esse carinho e tenta valorizar financeiramente da maneira que a gente pode, da mais honestidade possível e elas vão ficando, vão ficando e a gente vai tocando. Tanto é que nessa época de pandemia eu não usei nenhum auxílio do governo, não afastei ninguém, não dispensei ninguém, fiz o máximo que eu pude e não abaixei o salário de ninguém. A gente está na mesma luta, todo mundo igual. Décimo terceiro, férias, prêmio, tudo que você imaginar mantivemos do mesmo jeito que começamos. Então, a pandemia não foi alternativa pra mexer na vida de ninguém.
P1 – Legal. Francisco, queria agradecer muito pela entrevista, foi muito...
P2 – Deixa eu só fazer uma perguntinha, Lu, assim, mais direto?
P1 – Claro, Cláudia.
P2 - Francisco, você já falou um pouco, assim, pela tangente, né? Mas, assim, você já deve ter dado entrevista pra jornal, televisão, rádio, essas coisas, mas o que você achou de ter falado um pouco... esse momento... você já falou, eu sei, mas eu queria que você fizesse uma reflexão sobre esse momento de ter dado a entrevista, nesse momento de pandemia ter falado da sua trajetória, dos seus familiares.
R1 – Desde a semana passada, quando veio o convite, a gente já ficou pensando nisso, mas eu não pensei que fosse tão interessante como foi hoje. Muito gratificante essa oportunidade, porque não foi uma coisa muito de propaganda, nem de mídia, foi um bate-papo muito interessante, onde eu pude contar sobre a minha família, sobre meus funcionários, sobre meu negócio, sabe? E é uma coisa que vai ficar registrada pro resto da vida. Isso é muito legal, entendeu? Porque a gente vai ter essa oportunidade. E ter sido escolhido, então, foi muito, muito, muito interessante. Porque a gente se sente muito valorizado. Mas é verdade, porque vocês são uma entidade muito importante no país. Achar a gente, no meio de tantas atividades, isso nos deixa muito interessantes, muito importantes, até. Então, falar isso do meu pai foi como se eu estivesse fazendo, hoje, uma homenagem pra ele. Porque a gente está participando de um trabalho tão interessante como esse. Então, é muito gratificante, muito importante e chega até a ser emocionante.
P1 – Que legal, ‘seu’ Francisco!
R1 - Muito obrigado, mesmo!
P1 – A história foi muito interessante. A história da cantina e da sua família é muito interessante. Além da entrevista que você deu agora, nós temos uma produtora, ela vai te ligar pra, se você tiver fotos antigas do seu pai...
R1 – Tenho fotos maravilhosas, tenho livro, a gente fez um livro em homenagem a ele, se você quiser a gente manda o livro pra vocês de presente. É um livro contando a história dele, a trajetória, essa que eu contei, mas é bem interessante. Tem foto, tem tudo. Muito obrigado! Foi bem bacana.
P1 – Foto da sua época de criança, do seu pai e tudo o mais.
R1 – Tem tudo.
P1 – Ele vai ligar pra você também, pra fazer um ensaio fotográfico na cantina, se você quiser, no lugar que você quiser, porque tem a pandemia, mas é legal aparecer a cantina hoje, né?
R1 – É. Graças a Deus...
P2 – Balcão, essas coisas. A gente espera passar a pandemia pra fazer uma ida, uma visita pessoal, viu?
R1 – Nossa, vai ser um prazer. A gente vai fazer um almoço, se Deus quiser, muito daqueles gostosos, bem típico italiano.
P2 – Para, que deu água na boca!
R1 – É, mas é uma história bem bacana e me sinto muito feliz em ter participado dela.
P2 - Obrigada, Francisco!
P1 – Tá legal, Francisco!
R1 – Gente, olha, um beijo bem grande no coração de vocês, se cuidem e muito obrigado!
P2 - Amém! Todos nós.
R1 – E como a gente pode ver essa entrevista no futuro?
P2 – A gente vai dando notícia. Vai estar no ar, no portal. A gente vai fazer biografia...
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