P/1 – Seu Clóvis, acho que podemos começar a entrevista. Para começarmos, vou pedir que você se apresente, então vou pedir que você fale seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Clóvis Roberto Machado. Eu nasci no dia cinco de novembro de 1964, aqui no município de Santo Ângelo.
P/1 – Quais os nomes dos seus pais?
R – Do meu pai, Ulisses Machado. Da minha mãe, Vitória Gonchoroski.
P/1 – E quais eram as atividades deles, o que eles faziam?
R – O meu pai era funcionário da empresa Souza Cruz e a minha mãe era do lar, como era muito comum naquele tempo. A maioria das mulheres eram do lar e a minha também era.
P/1 – Você pode dizer como foi… Eles contaram para você como foi a história de como eles se conheceram e qual é a origem dessa família?
R – O meu pai estava vindo de outra família, ele tinha uma outra família. Naquele período, em que se trabalhava muito, ele não deu certo com a outra companheira dele, a dona Matilde. Nesse meio tempo, existia ainda a minha avó e meu avô não existia mais. A minha avó era uma senhora doente naquele tempo, ela tinha quase noventa anos na época. Como meu pai estava tendo problemas com a outra família, isso pelo que eu sei, pelo que ele me informou, então ele se separou da outra mulher, justamente por conta do trabalho dele. Não deu certo a relação do casamento antigo dele em vista da Souza Cruz, onde eles trabalhavam muito, ficavam muito tempo no serviço. Não era com qualquer esposa que daria, tinha uma esposa certa para cada tipo de profissão.
Meu pai não deu certo com essa outra família, mas tinha seis filhos com essa outra família. Eu tenho seis meio irmãos. Ele se conturbou, essa pessoa se afastou dele e como… A minha mãe entrou de maneira que veio ajudar a família a cuidar da minha avó, e foi por esse intermédio que o meu pai teve contato com ela. Ela cuidava, ajudava ali na casa da minha avó. Meu pai teve contato assim e ali começou a...
Continuar leituraP/1 – Seu Clóvis, acho que podemos começar a entrevista. Para começarmos, vou pedir que você se apresente, então vou pedir que você fale seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Clóvis Roberto Machado. Eu nasci no dia cinco de novembro de 1964, aqui no município de Santo Ângelo.
P/1 – Quais os nomes dos seus pais?
R – Do meu pai, Ulisses Machado. Da minha mãe, Vitória Gonchoroski.
P/1 – E quais eram as atividades deles, o que eles faziam?
R – O meu pai era funcionário da empresa Souza Cruz e a minha mãe era do lar, como era muito comum naquele tempo. A maioria das mulheres eram do lar e a minha também era.
P/1 – Você pode dizer como foi… Eles contaram para você como foi a história de como eles se conheceram e qual é a origem dessa família?
R – O meu pai estava vindo de outra família, ele tinha uma outra família. Naquele período, em que se trabalhava muito, ele não deu certo com a outra companheira dele, a dona Matilde. Nesse meio tempo, existia ainda a minha avó e meu avô não existia mais. A minha avó era uma senhora doente naquele tempo, ela tinha quase noventa anos na época. Como meu pai estava tendo problemas com a outra família, isso pelo que eu sei, pelo que ele me informou, então ele se separou da outra mulher, justamente por conta do trabalho dele. Não deu certo a relação do casamento antigo dele em vista da Souza Cruz, onde eles trabalhavam muito, ficavam muito tempo no serviço. Não era com qualquer esposa que daria, tinha uma esposa certa para cada tipo de profissão.
Meu pai não deu certo com essa outra família, mas tinha seis filhos com essa outra família. Eu tenho seis meio irmãos. Ele se conturbou, essa pessoa se afastou dele e como… A minha mãe entrou de maneira que veio ajudar a família a cuidar da minha avó, e foi por esse intermédio que o meu pai teve contato com ela. Ela cuidava, ajudava ali na casa da minha avó. Meu pai teve contato assim e ali começou a história do meu pai com a minha mãe. Ele tinha se separado dessa outra família e ali começou a história do meu pai com a minha mãe.
P/1 – Seus pais, ambos são de Santo Ângelo ou vieram de regiões diferentes e se conheceram aí?
R – O meu pai é natural de São Luís Gonzaga. Ele foi trazido para cá com nove anos, pelo meu avô. A minha mãe tem uma outra história, porque é descendente de imigrantes poloneses, então tem uma história também lá. Eles foram extraviados, na verdade. Naquela época, se extraviava. A minha avó faleceu ao dar à luz a um dos meus tios na época. Meu avô ficou solteiro, começou a namorar o pessoal. Nessa época extraviaram eles, e minha mãe com uma tia minha vieram para Santo Ângelo. Eles eram daquela região de Treze de Maio, no passado. Minha mãe veio para cá e eles ficaram meio assim, trabalhando em limpeza, em serviços nas casas, meio que serviçais. Ela veio assim para Santo Ângelo, a origem dela é essa.
P/1 – Clóvis, você estava contando um pouco da origem tanto da família do seu pai, quanto da família da sua mãe. Você falou no começo que eles se conheceram pela circunstância da sua mãe trabalhar na casa da família do seu pai.
R – Sim.
P/1 – E eles contaram como foi o início desse relacionamento para eles efetivamente formarem uma família?
R – Sim. O pai contou para nós que foi assim que ele começou a admirá-la. Ela veio ajudar naquele serviço e trabalhar quase que de maneira voluntária na família. Dessa forma, ela chamou a atenção dele, para que ele olhasse para ela com outros olhos.
Meu pai vem de uma família de tropeiros, eles eram tropeiros, meu falecido avô era tropeiro, então eles tinham um jeito bem peculiar naquela época. Eles não eram, vamos dizer assim, carinhosos, como somos hoje, eles tinham um jeito um pouco mais duro e rude de ser. Eles não se ligavam em certos… Hoje em dia, nós nos ligamos em certos mimos. Naquele tempo, eles eram mais secos, mais rígidos, vamos dizer assim. Dessa forma que ele começou a observá-la, mas na verdade, eles não andavam abraçados, essas coisas. O namoro deles não era como os namoros são hoje. Ele tinha admiração, então esse era um ponto já muito importante para a relação deles; assim começou e eles foram viver juntos. Na verdade, eles não casaram, foram morar juntos.
Logo, logo minha mãe engravidou do meu irmão mais velho, o Sérgio. E aí começou, ele já arrumou a casinha para ela, mas continuou mantendo contato com a outra família. Continuamos ligados como uma família, não viramos inimigos, vamos dizer assim, nem a minha mãe, nem os irmãos. Os outros irmãos continuaram chegando em casa e foi ficando todo mundo junto. A única coisa foi que os dois romperam o compromisso matrimonial, mas ficamos uma família unida igual, com mais integrantes, mas continuamos unidos. Foi assim que eles resolveram seguir a vida juntos.
A minha mãe também estava precisando. Para ela, foi uma sorte também, porque ela vinha de um êxodo e tinham se espalhado os outros irmãos da família dela, foram se perdendo. Ela veio para cá e também estava tentando a sorte, então vamos dizer que foi um grande marco na vida dela, entrar, cuidar da minha avó e despertar o interesse do meu pai. Aquilo foi o divisor de águas da vida dela, foi muito importante para ela e dali começou a nossa família.
P/1 – Clóvis, você falou que tinha seis meio-irmãos e vocês foram mantendo vínculo. No total, quantos irmãos são?
R – No total, nós éramos nove, porque dois irmãos dos outros seis já são falecidos. Depois, o meu pai teve mais três, meu irmão Sérgio, eu, e mais uma irmã minha, a Claudete.
P/1 – Conte como era o momento de reunião da família. Quais eram os momentos em que todas as famílias se reuniam?
R – Era...
P/1 – A pergunta era a respeito dos seus irmãos, dos momentos familiares. Quais eram os momentos em que toda essa família se reunia, se encontrava?
R – A gente manteve o contato. É claro que nem tudo eram rosas. Logo que o pai constituiu a família dele com a minha mãe, nós continuamos mantendo contato, continuamos nos dando, mas essa outra família, essa outra mulher, foi embora para Porto Alegre. A irmã mais velha daquele lado também foi e as outras irmãs foram junto, mas ficava assim, aquela ligação.
Como o pai rompeu, algumas tomaram partido. É normal alguns tomarem partido de um… Como tinha muita gente, principalmente os mais velhos tomaram partido da mãe e ficaram, vamos dizer, com uma certa mágoa do meu pai, mas isso não impedia que nós fôssemos lá e que eles viessem. Eles só ficaram com aquela dorzinha de cotovelo, mas a família continuou se dando. Inclusive teve duas irmãs que retornaram para Santo Ângelo e moraram com a gente, nessa nova formação de família do meu pai. A gente ia passear lá… A gente continuou, a gente conversava.
O irmão mais velho, o homem, no caso - que desses seis, um era homem e cinco eram mulheres - ficou morando em Santo Ângelo. O irmão mais velho, Juarez, já é falecido, e ele ficou morando em Santo Ângelo, então com esse tivemos contato direto. Ele teve seis filhos… Continuamos aqui, continuamos unidos e tendo contato direto, como família mesmo.
P/1 – Clóvis, você falou que a origem da família da sua mãe é polonesa, que a família do seu pai, enfim, tem uma origem do interior, uma origem tropeira. Eles contavam histórias de ambas as famílias para você?
R – O meu pai era negro, era afrodescendente. Ele contava dessa vida que ele teve. O meu avô era tropeiro, viajava, e quando veio para Santo Ângelo, meu pai foi trazido para cá com nove anos, trazido por ele. Ele veio para cá naquela época antiga, em que tinha aquelas revoluções. Ele serviu nessa época, o meu avô, e trouxe meu pai para cá com nove anos. Mas sempre nessa vida, de lidar com animais, doma. Naquela época, não se transportava animais através de boiadeiros, eram cavaleiros. Um fazendeiro X comprava uma tropa, então as pessoas levavam aquele gado pelos campos. O meu avô trabalhava nisso, era um entendido nesta matéria de lidar com tropa. Essa era a origem e meu pai foi criado nesse sistema, mas um sistema bem firme. Naquela época, eles eram de poucos sorrisos, vamos dizer assim.
P/1 – E quanto à origem da sua mãe, que já é de uma origem bem distinta a princípio, o que você sabe sobre essa origem polonesa?
R – A mãe vem do polonês puro, ela é filha de polonês com mãe polonesa. Os meus avós eram daqui, mas os tataravós já não eram daqui, tinham vindo de lá. Naquela época, os imigrantes poloneses caíam na nossa região aqui, mas se esparramavam, constituíam casas nas montanhas… Eram bem esparramados. O meu avô, com a minha avó do lado da mãe, moravam naquela região do Inhacorá.
Durante um dos partos… A minha mãe tem vários irmãos e irmãs, e em um desses partos, a minha avó faleceu e elas ficaram só com o pai. O meu avô arrumou uma nova companheira e ela era um pouco mais rígida com o pessoal que não era do sangue dela. E aí começaram a se esparramar, um fugia daqui, outro fugia de lá. A minha mãe e a tia Regina vieram parar aqui, vieram cair em Santo Ângelo. Nesse intermédio, andando por ali, ela entrou na família através da minha avó, ao se dispor a ajudar a minha avó. E nesse tempo, ela foi vista e achada pelo meu pai: "Opa, tem uma senhora aqui lidando, que interessante." Como ele estava saindo também e realmente precisava de uma companheira…
O trabalho naquele tempo, como eu tinha explicado antes, exigia muito. O meu pai trabalhava na Souza Cruz de… Ele era funcionário mesmo da Souza Cruz. Tinha os contratados e os funcionários, e ele era funcionário mesmo, era do quadro de funcionários. Só que naquele tempo, ele tinha que trabalhar… Ele era a pessoa que avaliava a qualidade do fumo que chegava ali, mas também trabalhava de guarda, daqui a pouco ficava na portaria cuidando de alguma coisa. Ele ficava o dia todo sem ir em casa, então também precisava de uma companheira. Às vezes, aos fins de semana, tinham muitos eventos, muitas festas na Souza Cruz, e ele trabalhava assando carne. Ele também tinha uma orquestra dentro da Souza Cruz, meu lado musical vem dele. Eles tinham uma orquestrinha ali. Ele ficava muito tempo trabalhando e precisava de um companheira, então meio que uniu o útil ao agradável. Ela veio servir e o meu pai precisava justamente daquele servidão dela com a minha avó e precisando também dela na vida dele. Foi dessa forma que ela o conquistou.
P/1 – Eu queria te perguntar se você consegue descrever a sua casa de infância. Como era essa casa e o entorno dela?
R – A minha casa… Na verdade, eu nasci no bairro São Carlos. Naquela época, se nascia em casa e eu nasci em casa, na beira do rio Itaquarinchim, o rio que banha a nossa cidade. Quando comecei a me entender por gente, nós morávamos no bairro Meller Sul, Santo Ângelo, Zona Sul.
Nós tínhamos uma casinha de madeira. Seria tipo um bangalô com um puxadinho a mais na cozinha, como era normal aqui, na maioria das casas. Eles faziam um bangalô e puxavam uma partezinha a mais na frente para fazer a cozinha. Era uma casa de madeira, uma casa simples.
Tinha um terreno como se fosse uma mini chácara, com uns cento e poucos metros. Ali era onde o meu pai plantava também, vime e vassoura. Além dele trabalhar na Souza Cruz, se virando e fazendo todas aquelas coisas, ele também fabricava cestos de vime e também fazia vassoura. Ele tinha aquela lavourinha nos fundos que era onde plantava seus vimes e as vassouras. Era assim.
P/1 – Clóvis, você estava descrevendo um pouco de Santo Ângelo e dos bairros do entorno de onde você morou. Quais as lembranças de infância, quais eram as suas brincadeiras favoritas de quando você era criança?
R – Naquele tempo, a maioria dos nossos brinquedos eram fabricados por nós. A gente fazia com coisas nossas. Isso de comprar brinquedo não existia muito pela própria condição de um pai com bastante filho. Tinha que dar comida, tinha que dar roupa, então não tinha como estar em uma loja de brinquedo. Nossos brinquedos eram o quê? Jogar bolita, jogar pataca, jogo de cartas… A gente juntava maços de cigarro pela rua, dobrava bem dobradinho… Tinham uma infinidade de marcas de cigarro, Hollywood, Presidente… A gente juntava os papéis vazios, dobrava bem direitinho como se fosse dinheiro, e jogava pataca. Colocava aquilo em uma rodinha, um círculo e atirava uma pedrinha chatinha assim. Aquele que conseguisse limpar, ficava com as cartas. Então era mais ou menos isso, brincar…
A gente assistia filmes. Consegui saber do Tarzan e a nossa brincadeira era sobre aquilo que víamos. Se a gente conseguisse ver um filme de cowboy, após o filme, estávamos brincando lá de pau, correndo com um cabo de vassoura, fazendo de cavalo. Era assim, brincávamos com coisas bem nossas, coisas praticamente criadas por nós mesmos. Era só isso.
P/1 – Você falou por exemplo desses filmes da infância, de faroeste, Tarzan… Eram filmes que se viam na TV ou no cinema?
R – A gente vai… Bem no começo, quando eu tinha cinco ou seis anos, que estava nessa hora em que começamos a entender… Na verdade, nós não tínhamos televisão, então [víamos] quando íamos em algum lugar que tivesse, quando a mãe iria passear em alguma comadre, algum lugar que tivesse televisão. Naquela época, se prestava muita atenção nos filmes. Não importava o filme que fosse, poderia ser o filme que fosse, que a gente prestava atenção. Era uma maravilha, era um achado, era uma coisa que nos fazia pensar que nunca teria nada melhor do que aquilo. A gente prestava muita atenção nesses detalhes, um Kung Fu, ou seja lá do que fosse o filme. Depois, saíamos brincando sobre aquilo.
Era uma cultura muito interessante que tinha naquele tempo, que era de relatar um filme. Se alguém visse um filme e outros cinco não vissem o filme, um deles tinha que contar todo o filme para os outros. Todo mundo se sentava e ficava sentadinho, quietinho ali e o cara relatava. O cara tinha que lembrar de todo o filme, quando começaram as letras, "o mocinho vinha galopando", o cara tinha que se lembrar daquilo. Era uma forma de arte que tinha naquele tempo e que hoje não se faz mais, não existe isso. Só que naquele tempo era preciso isso, porque nem todo mundo tinha televisão, nem todo mundo tinha o modo visual, então existia essa cultura e era muito valorizada. A gente usava muito aquilo, toda semana, a gente usava três ou quatro vezes essa tática. Alguém via e depois tinha que contar para todo mundo, relatar todo o filme. Os caras sentavam, ele ficava ali em pé, "foi para cá, veio de lá, o mocinho foi por ali", era assim que a gente ocupava nosso tempo. Depois, quando começamos a estudar, quando fomos ao colégio, começamos a aprender coisas novas.
P/1 – Você estava falando da escola, que é uma outra forma de aprendizado. Você falou muito dessa coisa de saberes passados pela oralidade. Eu queria te perguntar, qual a lembrança que você tem da escola?
R – A escola realmente foi um divisor. A gente vinha, menino, correndo, porque em frente de casa - nem era uma rua, era um campo. Nos fundos de casa, era uma lavoura, e ao lado, era um banhado. Fomos criados assim, correndo ali, livres. Chegou aquele momento e a gente até ficava bem ansioso. Realmente era aquilo a escola, um segundo lar, porém com uma abertura para novos horizontes, uma nova janela. Mas era como se fosse um lar, porque a professora era como a mãe, era uma mãe. Como se diz? Ela disciplinava, educava, era bem atuante. Quando entramos, o começo realmente foi aquilo, aprendemos um outro lado, a valorizar. Naquele tempo, cantávamos o hino antes de entrarmos para a sala, rezávamos, tínhamos disciplina, "sim, senhora", "não, senhora". Fomos aprendendo coisas novas. Demos um estalo e começamos a passar para uma outra fase da nossa vida, que também foi se tornando maravilhosa.
Aquilo também era bom, a gente gostava, novos amigos. Tinha um campinho no colégio, então o futebol também não ficou de lado. As brincadeiras, aquela correria no pátio… Nossa, aí sim ficamos mais completos como crianças na época. Claro que tinha que estudar, era bem sério, vamos dizer assim, mas tinha aquele lado bom. Foi muito realizadora essa parte minha daquela criança sem a escola e aquela criança com a escola. Nós ficamos muito felizes com aquilo.
P/1 – Qual o nome dessa escola?
R – Eu comecei a estudar no Colégio Villa Branca, do bairro Sepé Tiaraju. Hoje, já nem é mais Villa Branca, é bairro de Sepé e… Naquela época, era Villa Branca e o grupo escolar… A Villa Branca era um colégio na saída de Santo Ângelo. Hoje, é Colégio Esparta, mudou o nome, e o próprio bairro é o Sepé. Mas era Colégio Grupo Escolar Villa Branca na época.
P/1 – Você lembra como era o trajeto, como você ia para essa escola? Você consegue reconstituir esse caminho?
R – Sim, sim. Como nós tínhamos… Dava mais ou menos um quilômetro de casa. Como naquela época tinha pouca casa, não era um caminho urbano nossa ida ao colégio. Tinha umas aventuras, tinha que passar por uns banhos, tinha umas pedrinhas; a gente cruzava um campo para poder chegar ao colégio. Era bem natural esse trajeto.
A cidade não tinha avançado naquele trecho, na Zona Sul de Santo Ângelo. Nós tínhamos que cruzar… Passávamos pelo bairro Sossego, a Vila Sossego na época. Essa vila tinha só uma rua de extensão. A gente cruzava essa parte urbana, e depois era campo de novo. Ao chegar ao redor da escola, a gente cruzava a faixa e entrava na escola.
P/1 – Clóvis, você mencionou a figura de professoras que tinham essa relação até maternal com os alunos. Que professor ou professora… Você lembra de alguma que foi marcante na sua trajetória? Por que foi marcante?
R – De modo geral, todas as professoras foram marcantes. Para dizer a verdade, eu guardei o nome de quase todas que tinham contato comigo. Professora Arajuiara, professora Zoé, professora Jeneci, professora Odila, essas foram as minhas primeiras professoras. Todas elas foram marcantes, justamente por esse lado, porque naquele tempo existia um místico entre o professor e o aluno. A professora tomava o lugar da mãe, não tinha como. Mas assim, não era feito pela professora, isso vinha do lar, vinha do ensinamento que tivemos dos nossos pais, que nos criaram com respeito. A gente ia e dava tudo certo.
Claro, como éramos meninos, daqui a pouco alguém fazia uma arte, fazia algo ali e podia levar uma torção de orelha, uma xingadinha ou uma ameaça de mandar um bilhete para o pai, porque na época isso era um terror. (risos) Mandar um bilhete para o pai do cara, nossa, o cara ficava sem dormir uns dois dias pensando naquilo. Era assim.
Dessa forma, todas elas foram marcantes na nossa vida. Elas interagiam com o aluno de várias maneiras, no comportamento, e também em coisas boas. Por exemplo, para a criança, era interessante a merenda, aquelas coisas. Em tudo isso, elas estavam sempre presentes, sempre junto. A gente enxergava na rua, "olha lá minha professora". Tinha esse lado afetivo. Ainda existe hoje, mas acho que pouco, acho que não igual àquela época.
P/1 – Qual é sua lembrança de infância da cidade de Santo Ângelo? Você é natural daí, mas qual é sua lembrança da região nesse seu período, nessa sua fase de infância e começo de adolescência?
R – Para mim fica até difícil, porque eu sou muito apaixonado pela minha terra, Santo Ângelo. Eu gosto muito daqui, então para mim tudo marcou, tudo. Eu tenho, vamos dizer assim, quase que centenas de lembranças de coisas que sempre me emocionam, desde um piquenique. Naquela época se fazia, hoje não se faz, mas naquela época a gente fazia piquenique. Daqui a pouquinho, pegava uma cesta com uns docinhos, uns negócios e íamos sentar lá nas árvores. Tudo me marcou, sabe? Depois, fomos crescendo e vieram os futebóis, aí entrávamos em um time, na escolinha, "Os Mirins" que se chamava na época antiga. Tudo isso foram coisas que foram acontecendo e todas foram marcando.
Hoje percebemos mais ainda o quanto éramos felizes naquele tempo. Naquele tempo a gente era feliz e percebia, mas não na dimensão que deveríamos perceber. Então tudo, tudo me marcou, a cidade de um modo geral.
Tínhamos festas aqui em Santo Ângelo, festa do anjo da guarda, eventos de modo geral. Logo que começamos a crescer, a minha família tinha uma escola de samba na Zona Sul de Santo Ângelo, uma das primeiras daqui. Naquela época, tinha que ter a permissão do pai, tinha que ter um registro como éramos pequenos, para bater um bumbo ali. A gente ficava empolgado, tudo nos dava empolgação naquele tempo. Como se diz? Para tudo existia aquela fantasia forte no corpo da gente, tudo era empolgante. Se precisasse ir ali juntar uns matinhos, nós íamos alegres. Se precisasse ir em uma festa, nossa!
Para mim, o que realmente me… Eu sempre me lembrei e lembro muito de quando meu pai trabalhava na Souza Cruz e tinham os Natais da Souza Cruz, as festas de Natal que tinham ali. Eu realmente ia com meu pai e ali começamos a ter contato com presentes que não eram fabricados por nós. Vinha um Papai Noel mesmo e dava um carrinho, ou um ursinho, um soldadinho, alguma coisa.
Eu sempre guardo da minha infância até agora as festas da Souza Cruz. Foi ali que eu tive o contato também… Como eu sou músico hoje, eu lido com música, produção e animação, foi ali que tive o contato de ver meu pai atuando como músico. Eu era pequeno e meu pai pediu: "Fica sentado agora que o pai vai ali." Ele foi lá e tinha tipo uma orquestra. Aquilo ali foi um divisor mesmo de tudo na minha vida, até pelo próprio gosto, porque aprendi a ter um gosto clássico, vendo eles ali tocando músicas clássicas, jazz antigos. Eles estavam tocando uma coisa de orquestra. Eu tive um contato com a música e com a música clássica ao mesmo tempo, com a música diferenciada da música regional. Aquilo que me formou, eu comecei a querer entender as coisas. Meu pai tinha uma gaita e eu dizia: "Pai, deixa eu pegar essa gaita aí, deixa eu ver se consigo fazer alguma coisa". Depois, ele me ensinou algumas notinhas, e opa, me trouxe para a música, que é o que estou defendendo até hoje.
P/1 – Eu vou explorar um pouco dessa sua relação e da relação do seu pai com a música. Você falou que seu pai trabalhava em bastante funções dentro da Souza Cruz, Tinha uma rotina bastante atribulada. Como foi essa aproximação dele com a música e esse momento dele também te passar um pouco desses ensinamentos que ele tinha da música?
R – Ele, no caso… Como eu disse, eles vieram de uma vida mais bruta. Ele entrou na música através de amigos. Na época de jovem, ele tinha muitos amigos músicos. Eles trabalhavam em outras funções, mas tinham a música como hobby.
Na época, a música também tinha um valor diferenciado do de hoje, existia uma… Como se diz? Existia um gosto pela música muito… As pessoas precisavam de música. Todo lugar tinha uma festa, e toda festa precisa de música. Os amigos se reuniam. Tanto é que na época de jovem dele, eles tinham uma casa que era só para irem lá se reunir. Na verdade, meu pai tinha duas casas, a casa que morava com a gente, e uma casa em que ia só com os amigos. Lá eles faziam música, faziam carne, faziam as festas deles na época. Foi assim que ele foi também se descobrindo, o lado dele. Mas isso vem da própria origem, por ser afrodescendente, vamos dizer, aquele suíngue já vem no sangue dele. Aquilo foi só aprimorando, para entrar em uma música mais clássica. Isso, e depois descobrindo ali com colegas, estudando música.
Realmente foi ali que, eu por ser pequeno e estar sempre com ele, entrei também naquele visual da música e tivemos aquele contato. Ele admirava muito isso, tanto é que depois, ele tinha aquele anseio de me dar um instrumento, mas aí era mais difícil. Tinha que ter a comida, o alimento da família, a roupa, e mais o instrumento.
Naquele tempo, o instrumento era o mais difícil de… Hoje não é fácil. Por exemplo, eu que sou tecladista, para ter um bom teclado não é fácil, ele tem quase o preço de um carro. Naquele tempo também era muito difícil, então foi uma peleja para ele me dar meu primeiro instrumento. Tanto é que fui receber o meu primeiro violão… O meu primeiro violão foi fruto de uma briga (risos). Duas pessoas brigaram e alguém atirou na cabeça de alguém esse violão. Aquele violão ficou jogado em um canto, um conhecido passou, viu o violão abandonado, juntou, deu para o meu pai, e o meu pai tinha essa aptidão também. Ele realmente era multifuncional, porque também trabalhava com eletrônica, consertava aqueles rádios antigos, e tinha muita aptidão também para trabalhar com madeira. Ele tinha uma coisa que veio dele mesmo, da vida dele, essa aptidão. Tanto é que ele pegou aquele violão quebrado, colou pecinha por pecinha, juntou compensado com compensado, colou, lixou e conseguiu montar de novo o tal violão. Ali eu tive meu primeiro contato com violão, um violão velho e quebrado foi o meu primeiro.
P/1 – Você contou dessa história do seu primeiro violão, seu primeiro instrumento musical, e um pouco antes você tinha falado também, de ainda criança, do seu envolvimento com uma escola de samba, de ter que pedir permissão para poder fazer parte. Como foi esse envolvimento? Acho que você tinha falado que estava mais envolvido na parte de percussão.
R – Sim, naquela época não tinha… Aqui em Santo Ângelo o carnaval era bem… Vamos dizer assim, não tinha, era de uma outra maneira. A minha família, que antigamente tinha escola de samba… Dona Isabel [era] o nome da escola, e tinha o grupo também, Princesa Isabela.
Como existia um pouco essa separação… Naquele tempo, também tinha essa separação de onde o pessoal tinha que pular carnaval - essa história racial, a questão racial. Tinha um lugar para o pessoal afro pular e… Isso nem era bem assim, bem à risca, mas tinha aquela separação. Existia essa família… A minha família tinha essa escola de samba e existia esse clube onde eu tocava, então a gente começou… Quando eu comecei a me entender, entrei na escola de samba, consegui autorização, mas essa escola de samba já era da família, já estava ali com meus tios, parentes do meu pai, os primos mais velhos, filhos dos outros tios… Eles começaram a cultivar essa escola de samba, nós entramos e tivemos por vários anos.
Assim foi que se iniciou o carnaval em Santo Ângelo. Essa é a história… Minha família também está inserida no começo do carnaval aqui, já começa o carnaval aqui. Já se começou a quebrar uns tabus, dali a pouquinho já ia para a rua. Só que não se cantava naquele tempo, nós passávamos como se fosse um charanga tocando. Vínhamos aqui em cima, na Marechal Floriano, descíamos, todo mundo nos assistia tocar, e depois saíamos ali. Íamos contratados por algum restaurante ou algum clube municipal, e fazíamos um arrastão. Saíamos tocando, todo mundo ia atrás, entrávamos no clube e virava um outro bailão, uma outra história. Essa era a função da escola de samba naquele tempo. Era assim que tocávamos, era assim o início do próprio carnaval aqui na nossa região de Santo Ângelo. Esse foi o começo do nosso carnaval.
P/1 – As pessoas que puxavam a charanga eram na maioria pessoas da sua família? Você começou a tocar qual instrumento?
R – Eu comecei a tocar o bumbo de repique, que era o instrumento que era mais… Como eu tinha aptidão para tocar outros instrumentos, violão, e tinha interesse por teclas, essas coisas, eu não achava justo ficar em um instrumento com batida muito simples. Eu queria um instrumento que fizesse uma coisa diferente dos outros. Ficar só no, "pum, pum, pum" ali, eu não queria. Eles me deram um bumbo de repique, que faz uma batida contrária dos outros, que faz uma marcação diferente. Eu tocava aquele no começo e sempre fui tocando, maracanã, surdo, bumbo de repique… Era isso que eu tocava na escola de samba.
P/1 – Você falou um pouco que de alguma forma tinha uma questão racial na cidade, e de alguma forma isso criava uma separação que tinha como exemplo a questão do carnaval. Como você e sua família sentiam [isso], até pelo fato de vocês serem uma família interracial? Imagino que sua mãe, de origem polonesa, era branca, seu pai afrodescendente. Como era essa questão? Isso chegava em vocês de alguma forma?
R – Na verdade, na nossa adolescência, quando a gente era menino, no começo, a gente achava um pouco triste quando acontecia alguma coisa conosco, mas no fundo, a gente não ligava muito, porque a gente era feliz. Onde fôssemos, estávamos felizes, então não nos preocupávamos muito, mas sabíamos que tinha. Isso foi quebrado, essa pequena… Isso foi se quebrando justamente por isso, pela aptidão.
Nós tínhamos uma família interracial, mas puxamos mais o lado do meu pai. Saímos mais morenos, pendemos mais para ele, o sangue dele era mais forte, então puxamos… Eu, por exemplo, tocava um samba como poucos aqui na região. Eu tocava um cavaco, um violão, e muito pouca gente tocava. O lado da minha mãe nem aparecia, tanto é que éramos zoados: "Oi, negão!” "Vem cá, negão!" Não tinha, o lado da minha mãe sumiu, era só minha mãe mesmo. Ficamos brasileiros normais, ficamos… A gente pendeu para esse lado da escola de samba.
A gente não sentiu muito isso porque na verdade, aqui na nossa terra, em Santo Ângelo, é uma cidade que… É por isso que amo Santo Ângelo, isso realmente não progrediu muito aqui. A gente sabe que existe um aqui, outro ali, a gente sabe que tem um ou outro que ainda pensa essas coisas pequenas, mas a grande maioria da população progrediu. Por exemplo, o meu próprio pai, era negro e trabalhava na Souza Cruz. A Souza Cruz era uma multi… Não era fácil e ele era funcionário. Justamente por essas aptidões que ele tinha, essas questões foram se tornando pequenas, a aptidão dele era maior do que o preconceito.
Ele era um homem preciso, assim como eu também. Logo que cresci, era um rapaz preciso, porque eu me dedicava, eu me dediquei a um instrumento, então era um ambiente que eu tinha que estar. Se não quisessem a minha presença, criava um problema entre eles se entenderem. "Não, mas ele tem que vir." "Não." Chegava a maioria: "O rapaz tem que vir, nós queremos música. O cara toca bem e vai ter que vir. Para quem não quer, vai dar problema."
Foi assim a vida, foram quebrando-se paradigmas, quebrando-se essas barreiras. Uma pessoa sabia fazer bem uma coisa e não tinha como mudar. A pessoa era boa naquilo e não tinha como mudar.
P/1 – Eu queria explorar mais um ponto que você trouxe, que foi do futebol na sua adolescência, jogar bola nos campinhos. Fale mais um pouco da experiência, de como o futebol participava da sua vida nessa fase.
R – Como eu tinha te falado, a gente começou a frequentar os clubes de futebol. No meu caso, foi o Cruzeiro do Sul, do seu Adão, popular Nonô. Ali começamos a praticar futebol. Primeiro ajeitamos um lugar para jogarmos, roçamos um campo. Primeiro nos preocupamos com aquilo, porque tinha aquela questão dos famosos jogando lá, e cada um queria ser um daqueles craques da época. Já nos preocupamos em dar um jeito no campo; roçamos, limpamos, começar a jogar em um campinho pequeno, mas o homem que formou o clube se interessou e falou: "Vamos limpar tudo aqui e fazer um time mesmo", e aí montou o Cruzeiro do Sul.
Os pequenos jogavam no mirim na escolinha, os maiorzinhos jogavam no segundo quadro e o pessoal grandão, os titulares, jogavam no que se chamava de primeiro. Todo domingo tinha os joguinhos: os mirins jogavam antes, tinha o jogo do segundo, que era preliminar do jogo principal, e tinha o… Ali começamos, entramos no campeonato amador da cidade.
O time já entrou no campeonato amador e a coisa foi ficando bem empolgante daquele lado também. Nós começamos a disputar campeonatos, começamos a viajar aos finais de semana para jogar amistosos na região, nas comunidades, nos distritos do município de Santo Ângelo. Eu, após esse começo, mudei de clube, saí do Cruzeiro; me criei no Cruzeiro, saí e montamos outro time lá embaixo, que era o Santos da Meller Sul. Fiquei mais empolgado com a outra gurizada lá. Assim viemos na história.
P/1 – Aqui pelo menos, para quem acompanha futebol em São Paulo, temos muito a visão de que aí no Sul ou é Grêmio ou é Inter, mas imagino que tenham muitos outros times. Não sei o quanto você acompanhava futebol profissional e qual era o seu time de coração.
R – Na verdade, eu sou torcedor do Grêmio, mas na nossa… Voltando um pouquinho, uma das brincadeiras que até esqueci de te relatar, que foi muito importante nessa questão do futebol, era o jogo de botão que existia na época. Fazíamos campeonato de jogo de botão, só que no sorteio nós tínhamos que montar quinze times e não podiam ser todos Grêmio e Inter, então tínhamos que brincar com outros clubes.
Como naquela época o campeonato brasileiro era farto, todos os times tinham craques… Naquele tempo, era uma relíquia de craques. Você pegava a Ponte Preta de São Paulo e era um timão, cheio de craques, tinham caras ali que queríamos ser na nossa infância, na nossa adolescência. Você pegava o Guarani, tinha o Zenon, e Nossa Senhora! O Corinthians com um monte de gente, São Paulo e Palmeiras cheios de craques.
A gente não tinha tanta essa questão. Grêmio e Inter eram só mais uns clubes, porque eles também tinham seus craques, mas na verdade, todos os times do Brasil eram bem fartos de craques, ou tinham pelo menos uma estrela famosa. Para se ter uma ideia, o Santa Cruz Tinha o Nunes, tinha o Givanildo, só para citar um exemplo. Todos os clubes tinham craques, tinha gente que chamava atenção. A gente tinha muito aquela mania de querer imitar. Todo clube tinha um artista, então não tinha problema com isso. O cara pegava o Curitiba, "mas o Coritiba tem o fulano, o sicrano". A gente não se preocupava muito só com o Grêmio e com o Inter.
O futebol no Brasil naquela época era bem… Hoje ainda é, mas não naquela época, como tinha aqueles craques. Eles eram uns galãs, vamos dizer assim, então nós queríamos imitar os caras (risos), não tinha problemas. Assim foi nosso contato com o futebol de modo geral, abrangendo o Brasil todo, e não só o Grêmio e o Inter, principalmente na nossa adolescência aqui em Santo Ângelo.
P/1 – Qual era o seu time de futebol de botão e os jogadores que você gostava nessa época e queria imitar de alguma forma?
R – Como a gente gostava muito de futebol e gostava muito dos torneios de jogo de botão, teve um dia que eu tive que ficar com o Internacional. Mas o nosso futebol de botão era assim, uma coisa muito educativa; era diferenciado, porque a gente tinha que colocar a cara do jogador em cima da pecinha, nós tínhamos que montar e colocar a carinha de cada jogador ali em cima. Nós saíamos para catar jornal, catar revista velha, aquelas revistas que tinham a cara dos jogadores. Às vezes, quando saíam promoções de álbuns de figurinhas, ali ficava melhor ainda.
Daqui a pouquinho eu tinha que procurar o Internacional, que não era meu clube, e acabava me envolvendo com o Internacional também. Não era meu time, mas eu não podia ficar de fora do torneio do jogo de botão dos guris ali, era um terror aquilo. Eu tinha que participar, não importava se fosse com o Inter, "não tem problema", saía eu para catar os rostos dos caras do Vasco lá das revistas e montava meu time.
P/1 – Para retornarmos, queria que você falasse dessa fase de juventude, você estava terminando o ensino médio, segundo grau, e o que vislumbrava de planos? A música, nesse momento, já era um plano para você?
R – Na verdade, a gente sempre tinha muitas dúvidas. Pensava, tinha medo do futuro, não sabia o que queria ser. Aquela fase… Às vezes estava lá no meu quartinho escutando um disco, uma música, e pensava no meu futuro. A gente tinha aquela preocupação: "O que será que vou ser? O que será que vou ter? Será que vou conseguir isso? Para que lado vamos?" Existiam essas dúvidas.
O serviço também era um pouco escasso naquele tempo, não existia tanta coisa como existe hoje. Era aquilo ali, tinha pouca coisa, principalmente aqui, que é uma cidade do interior. Por exemplo, o funcionário estava em uma empresa e ia até ficar veterano, só se acontecesse algum imprevisto para o cara sair daquele lugar e dar uma vaga para outra pessoa. As empresas se mantinham naquele mesmo tamanho, então isso realmente causava uma preocupação em nós, que éramos jovens na época. Éramos guris, estávamos saindo daquela fase adolescente. Tínhamos essa preocupação, olhávamos para o futuro e pensávamos no que iríamos ser, mas enfim, era como eu dizia, era uma época muito boa, então pensávamos, mas não nos atormentávamos muito. Daqui a pouquinho a gente pensava: "Vamos ver mais para frente. Está tudo bem, o pai está bem forte."
O pai cuidava da gente, a mãe cuidava, existia aquele lado familiar muito bom. Então, existia sim, particularmente a gente pensava nisso, se iria arrumar uma namorada, mas enfim, íamos seguindo.
P/1 – Essa fase também foi sua fase de namoros? Que lembranças você tem desse momento, de namoro, de relacionamento?
R – Aí já começamos a fase em que vamos ficando gurizões, saímos daquela fase infantil e fomos para uma fase maior, entendendo as coisas. Na verdade, naquele tempo, éramos bem bobos.
As pessoas que tinham contato conosco estavam no colégio. Daqui a pouquinho, o cara ficava admirando uma professora, vamos dizer assim (risos), achava linda a professora. Quando conseguia ver uma novela, se apaixonava pela atriz. A gente não presta atenção ao nosso redor, a gente olhava longe. Basicamente o que fazem hoje, mas hoje são mais as meninas que vêem um ídolo e ficam lá. Antigamente, os guris também tinham esse negócio, viam uma atriz e ficavam sonhando com aquela atriz. Daqui a pouquinho, tinha uma professora bonita e a gente ficava sonhando com a professora, ficava olhando, admirava, a gente virava fã das pessoas.
Nesse tempo, começamos a nos despertar, mas a coisa era muito tímida no nosso círculo. Preferíamos olhar para pessoas que sabíamos que nunca iríamos ter, nunca iriam olhar, porque éramos tímidos, tínhamos medo de pensar que um dia iríamos ter que conversar com uma menina e em como iríamos abordar aquele assunto. Aquilo de namorar, tinha um problema com os pais, que eram bravos, não tinham tanta tolerância e tanta liberdade quanto tem hoje em dia. Era também um obstáculo, mas a gente ficava assim: sonhava, criava um mundo de fantasia e ficava vivendo aquilo ali por um bom tempo.
P/1 – Clóvis, eu iria te perguntar, nesse momento, qual era a relação que você, seus amigos e sua família tinham com a estação ferroviária de Santo Ângelo.
R – Ah, o meu contato com a ferrovia entrou também na minha história, da mesma forma que tudo que estou narrando para ti, de momentos maravilhosos e bons.
A ferrovia entrou na minha vida assim, em meados de 1978, no final dos anos 1970. Uma das minhas irmãs, daquelas que tinham ido embora para Porto Alegre, casou. Eu e meu pai íamos para Porto Alegre para esse casamento. Meu pai tinha que ir, era uma das filhas dele. Quando fomos, fomos de ônibus, normal. Pegamos o ônibus e fomos para o casamento. Ficamos lá, sexta, sábado e domingo. Domingo à noite nós fomos para voltar para Santo Ângelo e meu pai foi para a estação ferroviária.
Para mim foi uma novidade, porque até então a gente só… O trem vivia na nossa vida, até aquele momento… Na minha vida, no caso, era só pelo barulho, em vê-lo pelos trilhos quando viajamos para a Zona Norte, mas naquele momento eu me vi em uma estação ferroviária. Nós íamos voltar para cá de trem. Foi meu primeiro contato com trem, e para mim, foi uma coisa que eu não tinha vivido. Fiquei ansioso, porque entrei no trem de passageiros.
Começamos a viagem, pelas condições financeiras do meu pai, em um vagão de segunda. O banco não era tão confortável como no outro vagão (risos), mas enfim, nada estava me tirando aquele anseio, aquela emoção de estar no trem, de andar no trem.
Saímos de lá por volta das nove e pouca da noite e viajamos a noite toda. Eu estava meio fascinado, vivendo uma nova aventura dentro de um trem. Eu nunca tinha vivido, a gente sempre teve aquele gosto de olhar ele passar, de ouvir o barulho.
O barulho do trem, na verdade, era o despertador para toda a população de Santo Ângelo. Ele vinha de madrugada, e todas as manhãs todo mundo escutava. Era algo que estava, vamos dizer, na nossa tradição. Era o ronco do trem de madrugada, de manhã cedo, a máquina roncava aqui e todo mundo escutava. Era uma coisa que era nossa, o trem é uma coisa nossa, era uma coisa que estava no nosso… O trem e os passarinhos eram a mesma coisa para nós.
Até então eu não tinha pisado em um vagão, e naquele dia eu entrei e sentei. Nossa, era como se eu entrasse em uma coisa totalmente nova, naquela época comigo juvenil, buscando emoções, buscando olhar o mundo. De repente, poxa, eu estava em uma coisa em que nunca tinha estado, então nossa, foi maravilhoso!
Iniciamos a viagem, e para você ter uma ideia o trem chegou em Santa Maria eram umas cinco da manhã. Eu não dormi um minuto, não dormi, era eu olhando para a janela, olhando para as pessoas, sabe? Eu queria ver tudo, queria viver aquele momento de fato, como se eu soubesse que depois o trem não teria mais aqui, como se eu nunca mais fosse entrar em um trem, sabe? Eu estava assim, estava sentindo aquilo, estava vivendo muito. E meu pai tranquilamente conversando com o amigo dele, também tranquilo.
Eram bancos de três lugares, virados uns para os outros. Era como se fosse um banco virado para cá e um para lá. As pessoas iam interagindo ali, proseando, conversando. Uns com travesseiro, outros com lanche. Era tipo uma festa, as pessoas estavam viajando como se estivessem da mesma maneira que as pessoas estão em cruzeiro hoje em dia viajando, todo mundo conversando. Aquilo ali era uma maravilha. Para mim, que era a minha primeira viagem de trem, a única que eu tinha feito na minha vida, eu ficava fascinado com aquilo. Para você ter uma ideia, o trem foi chegar aqui em Santo Ângelo às cinco da tarde, e eu não dormi um minuto. Viajamos a noite toda, o dia todo. Daqui a pouquinho eu dizia: "Pai, estou com fome", e o pai ia comprar no restaurante do trem. Tinha um restaurante no vagão de primeira. Um pão com manteiga, um sanduíche, uma mortadela, um queijo. "Me dá aquilo ali", e eu comia, olhando a paisagem, aquelas coisas.
Foi uma coisa fenomenal na minha vida. Foi uma experiência que me marcou, marcou eternamente o meu eu, porque até o meu fim não vou esquecer disso. Foi uma coisa da qual eu tenho muito orgulho.
Depois soubemos que o trem passageiro acabou, não tem mais trem passageiro. Aquilo ficou como se fosse um troféu, como se eu tivesse dado um "bom dia" para um dinossauro e depois os caras tivessem acabado com os dinossauros. É a mesma emoção que eu sinto. Eu repasso isso, conto para os meus filhos, falo para todo mundo que fiz uma viagem de trem. Aquele início, aquela paixão, aquela fervência que tinha.
Como eu disse antes, o trem estava inserido… Vinha até aqui o centro, cortava a cidade, próximo desse local onde estamos, a uns cinquenta metros para o lado. O trem estava inserido até na própria Souza Cruz do meu pai. Existia aquela fascinação já. Mas essa emoção, essa experiência de ter entrado ali, ter sentado, ouvido aquele ronco, vendo a paisagem da janela de um trem… Não era a mesma coisa que olhar a paisagem da janela de casa ou outra coisa. Tinha aquela coisa única daquele momento, que me marcou sempre.
Eu tenho isso na minha vida, tanto é que hoje estou morando na beira dos trilhos. Comprei minha casa… Nos fundos da minha casa, passa um trilho. A gente fica esperando passar um trem ali para ver. Hoje, aqui em Santo Ângelo, nós temos só trem de semente, mas é igual para nós, uma alegria. Se passar o trem, corremos todos ali para ver.
Sempre existiu essa interação do trem com o progresso. No tempo do meu pai, da empresa, do progresso, a gente sabia tudo que representava o trem. A gente sentia até medo daquele ronco da máquina diesel, aquele ronco bem forte. Quando a gente era bem criança se assustava um pouco, mas existia aquela fascinação toda em volta do trem.
Essa foi a minha experiência mesmo com o trem, de viajar. Eu tive esse prazer, esse privilégio, de viajar, de sentar no trem, de passar um dia no trem. Para mim, isso realmente marcou demais a minha vida. Esse é um dos marcos principais que tenho na vida, porque o trem terminou, não ficou mais uma coisa comum aqui o trem passageiro, se tornou uma coisa lendária. Tem gerações aqui que só ouviram falar desse trem, mas não viram o trem passageiro. Para mim, isso foi uma coisa fenomenal. Eu guardo isso como um troféu, vamos dizer assim, um instante especial e único na minha vida, que foi ter passado uma noite e um dia viajando de trem. Foi meu primeiro contato direto com trem.
P/1 – Clóvis, Você trouxe muitos detalhes da sua viagem de trem. O trajeto que você fez, começou onde até chegar em Santo Ângelo? Como foi o trajeto feito?
R – O trem começou em Porto Alegre. Ele viajava, passava por aquela região de General Câmara, Triunfo, depois vinha em direção ao Vale do Rio Pardo, passava por Cachoeira do Sul. Depois, ele se direcionava à Santa Maria, e em Santa Maria existia uma baldeação. Dali o trem tomava outro rumo e tinha outro trem que vinha para cá. Mais ou menos às cinco da manhã… Entre nove da noite e cinco e meia da manhã, ele chegava em Santa Maria.
Havia baldeação, tinha que esperar chegar o outro. Tinha aquele entendimento que passava um, esperava; outro ia, outro vinha. A gente saía de Santa Maria no clarear do dia, subia aquelas serras bonitas. Era um lugar muito lindo. Era um pouco assustador porque subia as encostas dos penhascos, então a gente se assustava um pouco, mas mesmo assim continuava o fascínio da viagem.
Ele vinha em direção à Júlio de Castilhos, por aquela região, Cruz Alta, Ijuí. Vinha por dentro nessa linha que passa em Catuípe, que é aqui perto. Dali ele já entrava na estação São Pedro, porque naquela época, já não estava operando essa estação do centro aqui, próxima à praça, então a gente vinha na estação São Pedro.
P/1 – Essa foi a sua única viagem então, no trem passageiro?
R – Sim, essa foi a minha única viagem. Depois, o contato que a gente tinha com o trem era só visual, só olhando, mas contato de viagem, essa foi a única. Já era no final dos anos 70, começo dos anos 80 quando aconteceu isso.
P/1 – Você disse que hoje está morando em uma casa que é próxima, colada à linha de trem. Antigamente, você morava em um bairro que era um pouco mais distante, mas ainda assim tinha a referência do barulho do trem chegando na estação?
R – Sim, sim.
P/1 – O bairro onde você morava era muito distante da estação de trem?
R – Onde nós morávamos, na verdade, dá uns dois… Não era tão distante, porque naquele tempo a cidade era mais reduzida. A gente morava na Zona Sul. Passei minha infância na Zona Sul, e depois mudamos um pouquinho mais para a Zona Sudoeste, mas mesmo assim a distância continuava a mesma, uns dois quilômetros e meio mais ou menos até aqui, no trem. Mas na madrugada, no silêncio do interior, o trem se fazia presente, se ouvia bem o barulho do trem.
Não era que a gente ouvisse mal, o trem estava inserido. Tanto é que tinha duas chaminés, duas empresas grandes que também faziam um barulho às sete horas da manhã que se ouvia em toda a cidade. Esses barulhos já eram marcados pelo pessoal aqui, já se sabia até em que horário iria vir o barulho. A gente ouvia muito bem o trem, distinguia muito bem o som da máquina diesel, pelas manhãs, pelas madrugadas… Às vezes era o trem cargueiro, às vezes era o trem passageiro, o trem de carga… Ouvia-se muito esses trens.
P/1 – O seu pai trabalhou por muito tempo na Souza Cruz. Eu queria que você falasse qual foi a relação dele com a empresa e a relação da empresa com a cidade. Ele contou a história de quando a fábrica da Souza Cruz chegou? O que você sabe sobre a história da empresa e da trajetória dele na Souza Cruz?
R – Quando o pai entrou… A Souza Cruz foi instalada lá por 1928, por aí. O meu pai entrou quando tinha dezessete anos na empresa, quando conseguiu emprego lá. Pelo que ele me relatou, a empresa tinha essa importância. Eles não faziam cigarro aqui, somente trabalhavam no benefício do fumo. Isso aqui na cidade, na época, vamos dizer que era uma explosão industrial, uma coisa que certamente mexeu muito com a economia da cidade, a favor.
Tinha os funcionários fixos, dos quais meu pai fazia parte, e tinha os funcionários contratados, que eles contratavam por período. Esse era o benefício da empresa para a cidade. Ela gerou muita renda, muito emprego e muita vaga. As pessoas saíam dali, passavam uns dias e daqui a pouco estavam todos de novo, tinha muito emprego. Meu pai era funcionário mesmo, então ficava ali. Esse era o contato, e a contribuição da empresa para o município foi muito grande. Tanto é que quando a empresa funcionou aqui em Santo Ângelo, até 1972, por aí, quando foi marginalizada, extinguida, o meu pai já estava com trinta e poucos anos de serviço. A empresa daqui foi para Santa Cruz, mas como meu pai já tinha o tempo devido para se aposentar, ele preferiu se aposentar, também pelo gosto da região aqui.
Nós, os filhos, crescemos com o pai trabalhando na Souza Cruz, então tudo foi muito importante. Era uma empresa que trabalhava aqui, mas como eu disse, fazia festa de Natal, fazia festa de São João. Aquilo pra gente, que era adolescente, infantil no começo, nossa, era uma maravilha. Tinha bastante festa, bastante reunião. Mais tarde, perto da finaleira, eles tinham tipo um sítio da firma, em que se podia ir, acampar, tomar banho e às vezes meu pai ia para lá conosco. Era uma maravilha! Uma empresa que realmente marcou muito.
P/1 – Seu pai fez mais uso da linha de trem da ferrovia? Ele te contou histórias do trem?
R – Sim, o pai contou. Para eles, era muito normal usar a linha do trem, eles usavam há muitos anos. Tanto é que quando estávamos vindo de lá, e eu estava junto, ele tinha vindo com outras pessoas que se conheciam assim. Ele era muito conhecido dentro do trem, porque as pessoas usavam muito bem.
Veja bem, eram vários vagões e aqueles vagões vinham lotados, cheios de gente. Eram pessoas que estavam sempre utilizando isso, as pessoas utilizavam muito o trem. Não importava isso de, "ah, a viagem é cansativa", não tinha isso de ser cansativa; as pessoas utilizavam com naturalidade, era uma coisa que era daquela maneira, não tinha problema.
Eu mesmo vinha viajando e ouvindo as conversas do meu pai, porque sempre fui atento às histórias de modo geral, sempre me atentei a isso. Fui muito apegado às histórias do passado, de origem, essas coisas. Eu também prestava muito atenção no que meu pai vinha conversando com o pessoal. Ele vinha conversando com um senhor lá, com outro senhor também, e realmente eles utilizavam muito o trem, muito. Coisas que eles fossem resolver lá… Às vezes iam de ônibus e voltavam de trem, ou o contrário, então faziam assim, meio que mesclavam.
O trem estava muito inserido, tanto é que ficou muito triste quando se falou que não iria mais ter passageiro. Realmente deu nostalgia no pessoal. Para exemplificar, outro dia fizeram um passeio aqui com a maria fumaça, que ia pegar o pessoal aqui para levar em Catuípe e Ijuí - um passeio assim, tipo turístico. Nossa, foi uma festa, o pessoal parecendo estar com aquele anseio, querendo.
Acho que todo mundo está querendo um trem. Tem público para isso, tem pessoas que gostam dessa viagem, que apreciam, sem falar na nostalgia e na história que tem e representa. O próprio trem é uma história, foi um marco inicial de todas essas viagens. Iam passageiros, cargas, muitas coisas, então realmente você tem essa nostalgia do trem de passageiro.
Eu sou um dos que se perguntassem hoje se sou a favor que volte, sou 100% a favor que volte. Claro, dentro das dimensões, que se respeite, que ninguém perca emprego em lugar nenhum, mas que volte. Pode voltar, porque realmente as pessoas têm essa nostalgia. O trem sempre esteve inserido na vida das pessoas. De um modo ou de outro, ele está inserido. Ele é preciso, vamos dizer assim.
P/1 – Eu estava perguntando sobre essa relação e da importância, como o senhor disse, dessa relação para lá de afetiva. Era um meio importante de circulação de pessoas e sociabilidade das pessoas. Dessa importância que a ferrovia tinha, de ligação de pessoas de cidades vizinhas de uma mesma região.
R – Realmente, para nós, o trem é muito além desse lado. Realmente se nota que ele foi, é e se tivesse de novo aqui para nós seria importante, porque é um bem presente. O poder de um trem não tem comparação, é um poder descomunal do progresso, até pela força dele próprio. Ele leva uma lavoura inteira aqui e leva meia cidade para passear lá, realmente sabemos disso.
Como eu te disse, quando se soube que não teríamos mais trens de passageiros, causou uma certa perda nas pessoas. As pessoas sentiram como se estivessem perdendo algo. Eu senti isso! "Poxa, não vai ter mais trem de passageiro", como se tivessem tirado uma coisa da gente, uma coisa que você sente muito. A gente realmente sentiu isso.
Claro que o nosso lado nostálgico é acalmado, porque o trem de carga ainda vem aqui. Aquele lado nostálgico, do barulho, está acalentando, porque ainda temos isso. O trem vem de manhã ali, passa perto da minha casa, então eu saio e meio que dou uma recarregada. Mas a questão de você sentar em um banco de trem, ir para lá, ir para cá, interagir com as pessoas ali, aquele vai e vem, realmente terminou, e isso ficou faltando. Ficou faltando um pedaço para nós. A importância dele realmente não tem...
P/1 – Na sua opinião, qual foi a mudança que a ferrovia trouxe para a cidade de Santo Ângelo?
R – Em todo o progresso de Santo Ângelo, principalmente no começo, quando a cidade explodiu, vamos dizer assim, o trem estava ali de forma importante e operante. Da própria Souza Cruz, ele que levava. O trem tinha um trilho especial que entrava na Souza Cruz e dali saía a produção toda.
Meu pai era um dos especialistas, analisador da qualidade de fumo, e eu tenho muito orgulho dessa profissão dele. Ele era um dos especialistas, ninguém entendia tanto quanto ele daquilo ali. Ele que ficava selecionando, "esse é para aquele", "esse é para aquele". O trem entrava ali, estava ali junto com aquela história, junto com o meu lado histórico e emocional, porque além do real, do valor do trem, ele também está inserido na minha história. Eu vejo com orgulho meu pai trabalhando perto de um vagão, ele estava ali selecionando com eles, vendo o que iriam carregar, qual fumo era para tal cigarro… Na época, isso era muito importante para o desenvolvimento da cidade. Lá onde o trem chegava… Estavam dando uma ligação. Lá no Rio de Janeiro, lá não sei onde, estavam olhando para o meu pai, para a minha cidade, para o desenvolvimento.
Com isso, o que acontecia? Muitos shows. Era comum você estar aqui e daqui a pouco ter alguém tocando, ter alguém de lá passeando aqui. Ele esteve ligado nisso, nesse progresso, porque o progresso chega e você é notado. O trem estava nisso, até porque naquela época, não se falava de grandes carretas de caminhão carregando coisas, era o trem. Era o trem que estava para lá e para cá, levando mercadoria, progresso e levando os nomes do progresso. Todo mundo crescia com isso. Até meu próprio pai que trabalhava ali, daqui a pouco lá estavam falando dele, mas o trem estava inserido nisso, porque levava o que ele preparava ali para as grandes cidades. É uma coisa emocionante de saber. O trem estava junto nessa emoção.
Ainda hoje eu passo ali de carro e consigo ver um sinal dos trilhos no asfalto. Aquilo ali me gera uma emoção, uma nostalgia muito grande, porque sei que ali passou o progresso. Eles não deviam nem esconder aqueles trilhos, no meu pensamento, porque ali está a história de Santo Ângelo. Agora a rua está tomando conta, tem alguns lugares dos quais eles já tiraram os trilhos, e eu me sinto até um pouco agredido na riqueza que tenho dentro de mim, guardada desse momento, porque acho que eles não deveriam tirar aquele trilho dali. Aquilo cruzou…
O trem, de modo geral e completo, está na história. Tudo é importante. Lá em casa, eu achei um pedaço de um poste de concreto da linha ferroviária antiga que estava jogado, porque o fundo da minha casa está na beira dos trilhos. Eu guardei, porque para mim aquilo é uma obra. Eu guardei, juntei aquele pedaço de concreto, que seria daquele poste triangular da beira do trilho e está guardado lá. Guardei, "deixa aí", porque realmente é escancarado o poder do trem no desenvolvimento não só da minha… Estou falando aqui da minha, mas não é só da minha cidade. De um modo geral, é de todo o Estado, porque ele saía daqui e ia varrendo, ia trazendo o progresso dele, levando as pessoas aos locais e também levando toneladas de produtos. Isso está inserido no Rio Grande do Sul de modo geral. Onde ele passou, levou. E se não foi direto em alguma cidade, estava perto, trabalhando de alguma forma beneficiando. Dali as pessoas pegavam e levavam até outro…
Eu tenho uma visão completamente apaixonada, sou suspeito para falar, porque sou muito apaixonado, muito nostálgico com o passado. É como disse para ti, eu me recordo do meu falecido pai e me recordo do trem também, porque ele estava trabalhando ali perto. Ele trabalhava na seleção do que era carregado no trem. Os dois ficaram muito marcados em mim, e eu sei que no progresso e desenvolvimento do município também, embora as pessoas deixem que as coisas presentes apaguem o passado.
Hoje em dia as pessoas se movimentam por coisas assim, que deixam apagar. Como eu te disse, aquele trilho para mim não deveria ser apagado pelo asfalto. Eles deveriam cruzar o asfalto, deixar o trilho ali, e pôr uma placa, "aqui começou". Hoje a cidade está grande e linda, mas começou ali, esse outro lado, o desenvolvimento, tudo, está tudo ali, passou ali, naqueles palanques, naquele trilho, ali cruzou a história do nosso município e de vários outros. E inclusive a história de pessoas. Quantas pessoas passaram, quantas pessoas vieram, quantos imigrantes foram migrar para outro lugar e quantos vieram para cá por ali. Então tem muita coisa, ali tem uma história muito maior do que um espaço de ferro enterrado no asfalto, tem algo muito além ali, muito além.
P/1 – Clóvis, antes de ir para a fase de algumas perguntas que são mais pessoais, eu quero fazer duas perguntas. Você foi acionando duas memórias principais: uma é a do seu pai, que é a memória do trabalho que ele fazia, e outra é a memória da ferrovia. Primeiro vou perguntar sobre o seu pai e o trabalho que ele fazia. O que você lembra do que ele te contava desse trabalho que ele fazia que era de analisar a qualidade do fumo? Você falou até dessa relação que tinha, que não era só o trabalho dele, era uma coisa que fazia a relação do trabalho dele com outros pontos do Brasil. Eu queria que você me falasse como era para ele esse trabalho e o que ele te contava desse trabalho de análise de qualidade do fumo.
R – Era o que ele mesmo falava e o que a gente via. O que ele dizia era o que já sabíamos dele, porque o conhecíamos muito bem. Ele era um homem muito sério, muito trabalhador, era uma pessoa muito profissional. O serviço dele era tudo, ele trabalhava com muito amor. Ele tinha aquela vontade de estar ali, fazendo aquilo que estava fazendo. Em nenhum momento ele achava que alguma coisa pudesse… Embora tivesse a família, todos nós tínhamos que entender que aquilo ali vinha em primeiro lugar, era o sustento da nossa família.
Ele levava muito à risca esse lado profissional. Isso era uma coisa que você já percebia olhando para ele, tinha muita dedicação em tudo que se pedia a ele. Ele era uma pessoa que veio de uma criação muito boa, muito certinha, tudo tinha que ser muito certo na época. Ele era essa pessoa, esse era o trabalho dele, tanto é que ele tinha o mesmo prazer, tanto tocando na festa quanto na portaria. Ele era multifuncional e todos os seus serviços eram feitos com excelência. Não que ele fosse no ditado de hoje um puxa-saco; não, ele não era isso, ele era aquela pessoa que trabalha, porque gostava daquilo que fazia, ele gostava. Ele gostava de servir, de ser útil. Estava na empresa e queria ser útil para aquele patrão. Daqui a pouco o patrão precisava de outra coisa e ele estava ali, "sim, senhor". "Ah, eu vou não sei onde pescar", e não tinha nada a ver com o serviço dele, "eu preciso de alguém que vá lá e organize o acampamento", e lá estava ele. Ia naquele acampamento, organizava, se os caras não soubessem lidar com peixe, ele ia lá e lidava, se precisasse fazer algo, ele fazia. No outro dia, estava lá no serviço cedinho, com o mesmo amor pela outra aptidão dele também, a mesma coisa.
Ele vivia isso, tinha muito amor por aquilo que fazia - claro, um amor bem sério, bem responsável, tanto é que se ele precisasse ralhar com um ou outro ali, ele ralhava. As coisas tinham que ser da forma que tinham que ser. Ele era uma pessoa muito exata, não se permitia. Ele não permitia nem a ele mesmo, não dava permissão nem para ele se desviar de qualquer coisa que não fosse a seriedade naquele trabalho. Ele não sabia.
Nós fomos criados de um jeito muito sério, porque os momentos de riso dele eram muito poucos. Quando ele resolvia nos fazer rir, a gente ria com vontade, porque a gente sabia que não era todo dia que a gente podia rir. Tinha momentos em que ele estava muito sério. Se precisasse trocar uma telha, ele ia trocar com toda seriedade, com todo cuidado. Ele ficava uma hora para tirar uma telha, mas não importava, ele fazia aquilo bem, como tinha que ser. Esse era ele, essa pessoa. Ali dentro do serviço, era essa pessoa.
Ele trabalhava com amor e foi até o final. A gente também foi testemunha de várias honras que ele recebeu, então a gente sabia disso. Não tinha como não ser aquilo que nós próprios já sabíamos.
Ele era uma pessoa muito querida, muito quista. Como eu tinha falado, nós éramos de origem afro, e as pessoas brancas às vezes iam lá em casa, iam visitar ele, iam convidar a gente para passear nos lugares e nos levava com as famílias deles. Nós sabíamos que aquilo era conquistado por conta dessa maneira dele trabalhar, que não tinha comparação, não tinha como não gostar de uma pessoa assim. Você pedir para uma pessoa vir fazer uma coisa e ela vir com o maior carinho do mundo, fazendo da maneira mais séria e profissional que pode… Não tinha como. Ele abria os horizontes, e a gente volta lá ao começo de tudo que te falei, até dessa miscigenação, que foi contornando até o próprio município de forma geral. Daqui a pouquinho, mudou o município e hoje temos uma visão diferente, mas tudo isso começou lá atrás, com um, com outro, que foram fazendo, abrindo esses caminhos. Eles abriram os caminhos.
P/1 – A outra pergunta que iria fazer era no sentido de… Enfim, para além da paixão, você foi acumulando histórias e construindo um saber sobre a ferrovia e a estação de trem. Como você foi construindo todas essas histórias e memórias da ferrovia?
R – É como eu te disse, a gente não fez força para buscar aqui ou ali, porque ela estava inserida, essa história está ali. Esse amor, esse sentimento, está ali. O trem já está fazendo parte. "Espera aí que vou buscar", não, ele estava ali, vivia conosco.
A gente caminhava nos trilhos, sabe? Ele está inserido de modo geral, através de pessoas e amigos. Esses amigos que falamos, são maquinistas, o pessoal que trabalhava. Eles também estavam inseridos naquela sociedade, naquelas festas. Era tudo uma coisa só. Era como se fosse um emprego, uma família, estava todo mundo inserido na família, as pessoas que trabalhavam, o pessoal da ferroviária… Aqui tinha um bairro perto de onde estou morando atualmente, que era o bairro dos ferroviários.
O trem era vida… Como vou dizer? Ninguém estava buscando, ele estava ali, inserido nos costumes, nos bate-papos, inserido na história, nas maravilhas. É a questão da pessoa ter um amor pela própria história da cidade e automaticamente já estar gostando dele. Se a pessoa realmente está sentindo aquele amor pela cidade como eu sinto pela minha cidade, que gosto demais… O trem está ali. Eu sei que de tudo que gosto, o trem também estava fazendo parte e contribuiu muito para isso, muito mesmo. Ele está inserido e é também nossa vida, ele está junto ali.
P/1 – Para encaminharmos para o bloco final da entrevista, acho que não tem como não perguntar dessa sua trajetória como músico, que é o seu ofício atual. Como foi se construindo esse ofício, enfim, essa carreira? Em que momento você decidiu: "É essa carreira que vou seguir"?
R – Comecei muito cedo, lá atrás, vendo meu pai. Além de ter no sangue esse vínculo musical, eu, vendo, senti que era aquilo que queria.
Depois, quando jovem… Pode ser até engraçado, mas a gente pensa assim. Eu me achava feio, quando era jovem me achava muito feio. Talvez fosse mesmo (risos). Eu pensava assim: "Poxa, como vou conquistar uma namorada se não souber fazer nada?" Como a música realmente tinha uma visão muito diferenciada naquele tempo… A música comunicava muito mais do que comunica hoje. Naquele tempo, a música… Vamos dizer assim, eu poderia conquistar uma pessoa com uma música, coisa que hoje em dia seria muito difícil do cara fazer. Naquele tempo, com uma música eu poderia conquistar a minha esposa. Através de uma música, através de uma serenata.
Nem se fala mais nisso. Hoje "serenata" é somente o nome do chocolate, naquele tempo não. Existia um galanteio chamado "serenata" e era levado muito em conta pelas moças e pelas mulheres, porque era muito romântico. Mas o cara precisava saber cantar ou tocar, ele tinha que saber fazer alguma coisa, senão acabava perdendo espaço. Então essas questões…
Não só isso. Era sobre ajudar nessa questão, mas também sobre aquele lado da música transmitir emoções. A música permite que a pessoa viaje no tempo. Por exemplo, o próprio trem… Quando essa estação foi desativada aqui, era o nosso ponto de nostalgia. Nós íamos ali, e já existia a nostalgia do local, do trem. A gente ia tocar ali, e tinha ainda mais nostalgia nas nossas músicas pela saudade do trem, e nós íamos cantar. Tinha uma infinidade de música que falava em trem e nós íamos cantar.
A música também se associava com o meu modo de viver, nostálgico. Eu sempre fui assim, nostálgico. Hoje estou no presente, mas é como se um pedacinho meu tivesse ficado para trás. Eu sou assim, sou essa pessoa, então a música me permite isso. Eu posso viajar, posso fazer tudo isso e posso viver também, porque ela é uma profissão. É uma profissão maravilhosa, porque me permite vivenciar e alegrar as pessoas. Uma pessoa vai em uma festa, você canta uma música e você alegra, conforta, consola pessoas, tudo através da música. Ela tem uma comunicação muito grande, que talvez no presente não esteja sendo levada tão à risca quanto no passado.
A música no passado era muito mais importante do que hoje. Eu decidi pela música nessas pequenas coisas da vida, do cotidiano, da vaidade de jovem. Eu sabia que a música iria me abrir portas e era uma coisa que eu gostava e na qual estava inserido, embora na minha vida eu tenha trabalhado em outras profissões.
Uma vez eu saí de Santo Ângelo. Morei em Porto Alegre, morei em Novo Hamburgo, fiquei alguns anos fora. Lá eu trabalhei em um colégio, trabalhei em caminhão de bebida… Mas sempre a música trabalhou comigo. Aos finais de semana, eu estava lidando com as minhas musiquinhas, tocando em uma festinha aqui, em uma festinha ali, e assim eu estou hoje.
Hoje sim, eu realmente estou só com a música. Agora, por causa da pandemia estou um pouco parado, porque zeraram as festas, mas a gente ainda consegue fazer alguns trabalhos. Algum trabalho aqui, algum trabalho ali, e a gente ainda consegue ganhar um dinheirinho.
É assim, a música veio a se somar a isso tudo que relatei, tudo, tudo está somado com a música. Toda essa trajetória da vida, da família, da minha nostalgia, daqui, dali, do trem… Tudo está somado com a música. A música fechou meu mundo. Eu posso viver todo esse meu mundo, tanto é que vou ali no meu quarto, toco e viajo. É como diz uma música, "a gente viaja no tempo com a música". Estou com a música e para mim é o que está me sustentando, graças a Deus. Juntamente com o trabalho da minha esposa, é o que ajuda na renda da família, e a gente está vivendo bem, graças a Deus, felizes demais. É assim.
P/1 – Você falou que através da música é possível fazer uma pessoa se encantar por você. Eu ia te perguntar como você conheceu a sua esposa e se teve algum tipo de relação com a música. Como é que foi?
R – Foi um golpe do destino, vamos dizer assim, porque seria quase impossível eu conhecer minha esposa. Quando fui para Porto Alegre… Eu estava morando aqui, era solteiro e fui tentar a sorte lá, trabalhar lá. Falei com a minha mãe e fui trabalhar em Porto Alegre.
Chegando lá, fui morar na casa da minha irmã mais velha. Hoje ela já é falecida, a Neuza. "Posso morar aqui?" "Não tem problema, pode morar." Morei com ela, só que ela trabalha em hospital, e paralelamente a minha esposa residia em Cachoeira do Sul. Ela saiu de Cachoeira do Sul, foi trabalhar em Porto Alegre, e foi colega de setor da minha irmã.
Quando cheguei em Porto Alegre, a música entrou. A música entrou pelo menos na festa da família, porque a gente tocava muito em casa. Lá em Porto Alegre era muito aqueles pagodões, pagodes em casa e tudo mais. Um dia, minha irmã convidou a amiga: "Escuta, como você mora fora e seus parentes não estão aí, você não quer ir lá em casa? Lá a gente se reúne. Tem um irmão meu que veio de Santo Ângelo que toca, e a gente faz churrasco, pagode, música. Você não quer passar um final de semana conosco, um domingo?"
A minha esposa aceitou o convite da minha irmã. Ela chegou lá e minha irmã na época me alertou: "Olha, vai vir uma moça de fora, mas é de respeito, você não venha se passar." "Não, mana. Não tem problema, está tranquilo." (risos) E realmente aconteceu isso, ela foi lá passear, e claro, era uma moça trabalhadora, de respeito. Ela veio a se encantar porque eu estava ali tocando.
Naquela época eu era bem jovem, estava lá tocando, rindo. Ela veio a se encantar um pouco e ali a gente começou um papo, uma conversa; ficamos amigos, eu era muito brincalhão e fazia ela rir bastante. Ficamos amigos por um tempo e lá pelas tantas resolvemos namorar.
Nós nos conhecemos assim, através da minha irmã. Ela começou a ir mais vezes seguidas lá nos finais de semana, e a gente fazia churrasco, pagode e tal. Assim começou.
Um dia eu fui lá conhecer os pais dela em Cachoeira do Sul, uma família também muito séria. Foi um namoro bem à moda antiga. Nós tivemos um namoro que é raríssimo hoje em dia. Não sei se totalmente raro, mas diria que muito raro hoje em dia, porque naquele tempo a gente não ficava sozinho com a namorada em nenhum momento. Se ficássemos na sala, alguém tinha que ficar na sala. Se a gente fosse passear, alguém tinha que ir junto, alguém de confiança dos pais tinha que ir junto controlando, vendo onde a gente estava indo. Se fôssemos a um cinema principalmente, tinha que ter alguém lá junto. Eu tive um namoro assim, bem… Foi maravilhoso, foi lindo, porque a gente viveu aquela tradição que era para viver.
Decidimos noivar e viemos noivar aqui em Santo Ângelo, mas estávamos morando lá na época. No dia três de setembro de 1988, a gente casou. Agora, no dia três de setembro passado, nós fizemos 32 anos de casados. Temos três filhos, dois homens e uma moça e estamos aí lutando. Essa é a história.
P/1 – Então vocês se conheceram em Porto Alegre e noivaram em Santo Ângelo. Em que momento vocês voltaram para aí? Não sei se vocês passaram por outros lugares antes de se estabelecerem em Santo Ângelo.
R – Não, nós moramos… Nós peregrinamos muito. A gente peregrinou… A gente casou em 1988 e morávamos em Porto Alegre. Eu trabalhava na então Aurora, do antigo conglomerado Bamerindus. Em 1992 o Bamerindus fechou, mudou a razão social dele e fechou aquela empresa em que a gente trabalhava.
Viemos embora para Santo Ângelo em 1992, começo de 1993. Moramos em Santo Ângelo até 1998. Em 1998, voltamos e peregrinamos de novo para lá. Moramos em Novo Hamburgo, moramos na Alvorada… Eu peguei emprego na Rede Metodista, lá em Porto Alegre e trabalhei por cerca de dez anos nessa rede. Em 2010, nos mudamos para a Taquara, lá na serra, e moramos três anos na Taquara.
Em 2014, como nosso filho já homem estava morando em Santo Ângelo, e meu filho que estava morando comigo veio para cá para servir no quartel, a gente… Como a minha esposa já tinha se aposentado… Ela trabalha como técnica de enfermagem, trabalhou na Santa Casa em Porto Alegre. Estava no tempo de se aposentar, ela se aposentou e eu disse para ela: "Vamos para Santo Ângelo."
Eu como músico, não estou aposentado ainda, mas aqui todo mundo me conhece, tenho conhecimento, bastante campo de trabalho, então viemos embora para cá. Agora já fazem seis anos que estamos morando em Santo Ângelo de novo.
P/1 – Você falou que tem três filhos. Para registramos aqui, quais são os nomes deles?
R – Tarciso, o mais velho, Mateus, o do meio e a Cássia, a menina mais nova.
Durante o ano de 1990 e poucos, eu tive um pequeno probleminha em casa. A minha esposa perdeu a mãe dela e a gente acabou… Não nos separamos oficialmente, mas nos afastamos um pouco. Teve um período que minha esposa estava com depressão e nesse período eu tive uma filha fora do casamento, uma menina, a Roberta. Ela mora em Bento Gonçalves hoje.
Foi um problema que tivemos de família, mas não chegamos… Foi uma coisa que aconteceu, foi um deslize que aconteceu. A minha esposa me perdoou, a gente voltou e seguiu. Na verdade, a gente não tinha se separado, só tinha se afastado. Então na verdade eu tenho quatro filhos, tenho uma filha fora do casamento e com a minha esposa tenho três filhos.
P/1 – Eu queria perguntar, nesse contexto de pandemia, como isso tem impactado a vida de vocês.
R – Agora, na pandemia, eu como músico estou quase 100% anulado, porque não tem o que fazer, não está tendo evento. Eu só tenho o meu trabalho religioso, que é na igreja a qual eu pertenço. A gente consegue fazer alguma coisa lá e recebo alguma oferta ali, mas para mim como músico, a pandemia está sendo violenta, porque zerou tudo: zerou trabalho, zerou festa, zerou apresentações. Como músico, a pandemia está sendo cruel para mim até, de certa forma. Graças ao meu lado religioso que estou tendo ainda alguma oferta, que estou tendo algum trabalho de onde estou conseguindo tirar, porque eu sirvo à igreja, sou um levita, toco músicas gospel também. Ali eu consigo tirar uma ajuda, porque minha esposa, que é aposentada, na verdade está segurando o rojão todo. É uma pequena ajuda minha, mas vamos dizer assim, 70% é ela.
P/1 – Eu queria perguntar: hoje, para você, quais são as coisas mais importantes da sua vida?
R – Primeiramente, toda a minha família. Toda a minha família e toda a minha trajetória, tudo isso é muito importante e marcou demais. Justamente por tudo aquilo que te expliquei, por esse meu lado sentimental, então para mim importante é especialmente a minha família, mas tudo é importante, tudo. Tudo tem um porquê, tem alguma coisa direcionada a mim que tem a ver com qualquer coisa que tenha acontecido na minha vida. Com tudo, a gente aprendeu, em todos os lugares que a gente foi, a gente aprendeu. Alguma coisa a gente aprende das lições, e até mesmo com os tropeços que a gente tem, acaba aprendendo alguma coisa.
Para mim, tudo foi importante na minha constituição, tudo me ensinou. Está no meu perfil procurar tirar conhecimento de todos os momentos que passo na minha vida.
P/1 – Eu queria que você dissesse como é para você participar de um projeto de memórias sobre a estação ferroviária de Santo Ângelo e de alguma forma também relembrar um pouco das memórias da sua cidade natal. Como você se sente participando desse projeto de memórias?
R – Primeiramente, me sinto honrado. Na verdade, para mim isso é como uma loteria, saber que posso ajudar nem que seja com uma vírgula da história. Para mim, isso realmente é muito importante, muito marcante. Eu estava até conversando com a minha esposa antes de vir para cá, falando que esse é um evento muito importante, porque mesmo que seja uma vírgula que vá ficar registrada para sempre por esse momento que estou aqui, e mesmo depois que eu não existir mais, essa vírgula vai estar lá. Eu vou ser uma estrela feliz.
Eu me sinto muito feliz hoje por estar participando disso, justamente porque isso se relaciona com a minha nostalgia. Eu sou uma pessoa nostálgica; não esqueço das minhas origens, não esqueço o passado, não esqueço de nada. Eu tenho tudo no meu coração e gosto realmente de tudo isso. Tudo isso que relatei são coisas que gosto, que estão na minha vida, coisas que passaram e ficaram marcadas em mim. Não passaram, está tudo marcado em mim.
A própria ferrovia… Eu me sinto muito honrado de estar aqui hoje e poder dar o meu humilde relato sobre o trem, a minha especial viagem. Isso tudo para mim é uma emoção que para ser sincero, não consigo nem descrever para ti. A emoção que estou sentindo nesse momento… Estou aqui me segurando para não me emocionar, porque é realmente um momento muito emocionante para mim, é uma coisa muito maravilhosa. Dentre tantas coisas especiais que você me perguntou que me trouxeram até aqui, a partir de agora tem mais essa. É isso.
P/1 – Hoje, quais são os seus sonhos?
R – O meu sonho pessoal agora é tocar o barco. Agora a gente é veterano, então é tocar o barco com a família, ter uma harmonia familiar e desejo que voltem muitas coisas que ficaram para trás e que as pessoas não olhem só para o futuro. Olhem para trás, era muita coisa boa que tinha.
Por exemplo, a gente estava aqui falando do trem. Que deixem voltar essas coisas, que não deixem que o progresso tire aquela nostalgia do passado. Não importa que tenha que pintar o trem da mesma cor que estava, tudo isso é muito bom. Deixem as retretas viverem, deixem tudo acontecer como acontecia. O meu sonho é que o mundo seja como foi, como sempre foi um pouco mais para trás, onde existia muito mais consideração, muito mais amor, as pessoas tinham muito mais compaixão pelas coisas.
O meu sonho mesmo, além da minha felicidade... O meu sonho é ser feliz juntamente com tudo isso que estou te relatando; que volte um pouco, que não tirem coisas que existiam, que deixem viver, que deem prosseguimento ao mundo de maneira que não tirem as coisas. Que venha o progresso, mas que não tirem aquelas outras coisas que tinham ali. Isso iria tornar o mundo muito feliz e as pessoas iriam viver bem mais felizes.
P/1 – Eu queria saber se tinha alguma coisa que você queria falar e que ainda não falou ao longo dessa entrevista, da sua história de vida. Algo que você gostaria de dizer e não teve a oportunidade ainda.
R – Não, basicamente o que me lembro é isso aí. Era isso que queria deixar registrado, sabendo que essas imagens vão para o futuro, sabendo que isso vai servir lá na frente.
Realmente essa era uma coisa que estava me faltando, eu ter essa loteria na minha vida, de poder colocar a minha palavra aqui, para depois de mim ela ainda estar por aí. Era isso o que estava me faltando, uma coisa que talvez eu já sonhasse. Já pensei nisso, de que maneira eu poderia produzir alguma coisa que pudesse ajudar lá na frente. Agora Deus me deu essa oportunidade através de vocês e eu me sinto muito honrado.
Eu creio que o que me faltava era isso: essa oportunidade, esse prêmio que ganhei agora de ser um dos escolhidos para participar desse projeto de memórias da ferrovia e da memória do meu município que amo demais, da minha história também, e da minha família. Meu marco mesmo é a minha família e depois vem tudo isso que te relatei. Eu me sinto muito honrado mesmo e acho que agora estou completo.
P/1 – Para terminarmos, eu queria só perguntar como foi a experiência de contar a sua história, Clóvis.
R - Emocionante, como eu tinha te dito. Acho que todos nós seres humanos, de uma maneira ou de outra, pensamos em como vamos ter oportunidade de que mais alguém saiba um pouco sobre nós, só que a gente não pode sair por aí dizendo para as pessoas, então é realmente muito difícil. Talvez através de uma canção ou talvez através de um livro...
Eu me sinto privilegiado nesse momento de estar aqui. É uma honra, eu me sinto muito honrado e muito feliz, feliz mesmo de ser beneficiado com esse projeto e de estar aqui relatando. Para mim, isso é história, e como eu te disse, é a importância de ir em frente, porque nós somos seres humanos, e de uma hora para outra, a gente para. Um dia a gente para, mas a nossa história continua.
Agora, isso vai contribuir também. Além de eu estar dando a minha contribuição para a história, essa história também está contribuindo para mim. É uma coisa bem recíproca. Eu me sinto muito feliz!
P/1 – Que bom, Clóvis. Em nome do Museu e em nome da Rumo, eu queria agradecer muito. Primeiro dizer, que bom que você gostou dessa experiência, e agradecer muito pela sua disponibilidade e por compartilhar a sua história de vida aqui com a gente. Foi um prazer poder fazer parte e enfim, de alguma forma poder registrar esse momento. Espero que também tenha sido gratificante para você e que você tenha gostado também.
R – Foi muito prazeroso para mim, é uma honra. Eu me sinto muito feliz por ter vivido essa nova experiência, de estar em uma entrevista exclusivamente para mim. É a primeira vez que isso acontece, então para mim é maravilhoso. Está faltando palavras no meu vocabulário para realmente expressar o que estou sentindo nesse momento.
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