P/1 – Nadia, obrigada pela participação no nosso projeto. Eu vou começar te perguntando o seu nome completo, onde você nasceu e quando.
R – Meu nome é Nadia Campagnoli, nasci no Município de Santo André, grande São Paulo, em 15 de julho de 1959.
P/1 – Nadia, e o nome dos seus pais. Eles são vivos, ainda?
R – São vivos. Edne di Angelo Campagnoli e Miguel Campagnoli Stupelli
P/1 – Você tem irmãos e irmãs?
R – Não sou filha única.
P/1 – O quê que você pode contar da história dos seus pais, por exemplo, como que eles se conheceram?
R – Se conheceram num baile de casamento de parentes em comum. Minha mãe estava um pouco desiludida porque veio de um noivado que não deu muito certo. Aí quando o meu pai bateu os olhos nela, falou: “É essa”, e ela assim, um pouco incerta, de tentar um novo relacionamento e aí, teve uma tia em comum, digamos assim, que deu aquele incentivo para o namoro começar e aí, acho que depois de um ano e meio, estavam casados.
P/1 – O seu pai trabalhava com o quê? A sua mãe, fala um pouquinho deles.
R – Meu pai é filho direto de imigrantes italianos, então, ele veio de registro, a família migrou no passado para o Brasil e para a cidade de Registro e lá, tiveram atividades de agricultura, porque na Itália eram camponeses. Esse Campagnoli, inclusive, significa camponeses. Então, vieram, se instalaram em Registro e de Registro, aqueles que queriam estudar porque eram muitos filhos, sete irmãos, entre homens e mulheres, quiseram vir para São Paulo, mas Cidade de São Paulo era muito cara, então, ficaram um tempo trabalhando em tecelagem em São Paulo para juntar réis, eu não sei a relação de valor, em dinheiro agora para dizer para vocês, para juntar os réis para poder comprar um sitio na borda do campo, porque o grande ABC, Santo André da borda do campo, São Bernardo da borda do campo eram os terrenos cedidos da Monarquia para a República. Então, se você olhar nas escrituras de onde eu moro, de onde os meus pais e os pais deles compraram as terras, a primeira proprietária era a Princesa Isabel, tanto é que a Vila Assunção era Vila de Higienópolis. Então foi muito interessante quando eu peguei as escrituras para ver, eles conseguiram comprar terrenos, lotes enormes, né? Então, do bairro onde eu moro, uma parte dele, acredito que 1/5 aproximadamente eram as terras deles. Então, veio daí toda essa coisa de… como é que eu diria? É o amor pela terra, é uma coisa que; é um pertencimento muito grande que existe até hoje, inclusive, tirá-los de Santo André é uma coisa assim, fora de cogitação. Aí, o meu pai veio com uma parte da família, minha mãe já era moradora, foi aí que se conheceram e a história dele tem a ver com o gosto dele, a facilidade dele por idioma. Então, mesmo sem ensino médio, que depois ele fez por autodidatismo, ele conseguiu estudar na Cultura Inglesa, tirar o Cambridge e foi trabalhar nas multinacionais como tradutor interprete. Em toda área que precisava tradução, Firestone, Mercedes, Volks e outras empresas que eu não lembro, ele tinha essa função, de traduzir manuais que vinham do exterior para cá, para produzir as peças dos carros, etc. Então, ele se desenvolveu nisso, se aposentou nisso, praticamente, de uma empresa para outra e quando ele se aposentou muito jovem, né, 48 anos, ele não parou com a questão dos idiomas, ele queria muito tirar a cidadania italiana. Pelos métodos convencionais, era necessário a entrevista em italiano no consulado. Então ele foi estudar, mas por autodidatismo, comprou todo o material, estudou, para conseguir se comunicar com a Itália, com os parentes de lá. Meu pai tem esse perfil. Hoje ele tem quase 90 anos, e é super lúcido e fala uns quatro, cinco idiomas.
P/1 – Que legal. E a sua mãe? Fala um pouquinho dela.
R – A minha mãe é filha de um italiano legítimo e uma filha de italiano, né? Então, a descendência também é, costumes parecidos. Minha mãe sempre teve gosto por artes manuais e era muito raro naquela época, nasci em 57, a mulher sair para trabalhar fora, mas ela sempre teve uma visão um pouco à frente a época dela, tanto é que ela procurou fazer uma escola de artes e oficio famosa na região, faz parte hoje do Centro Paula Souza, que a escola chamava-se escola de Artes e Oficio Júlio de Mesquita e continua ainda, ETEC Júlio de Mesquita, onde as mocas aprendiam as artes de tricô, crochê, costura, bordado, e ela se deu muito bem nessa área de corte e costura. E através dessa qualificação, ela conseguiu passar em primeiro lugar num concurso do Município de São Bernardo, foi um projeto especial de corte e costura para ser ensinado para a comunidade, para os munícipes e ficou nesse projeto, ele vingou e durou 30 anos, ela trabalhou 30 anos nisso. Galgou postos dentro do trabalho porque é muito caprichosa, muito minuciosa, chegou a fazer cursos de alta costura para produzir peças, para incentivar também a comunidade, as pessoas que se mostrassem habilitadas a montar oficinas próprias, confecções, né? E aí, faz duas semanas, encontrei com uma amiga, nutricionista também, conversa vai, conversa vem, uma amiga dela foi uma das alunas da minha mãe e tem uma confecção famosa (risos).
P/1 – Olha só que legal. Nadia, e as suas primeiras lembranças na sua infância? Onde foi que você nasceu, a sua primeira casa ali, como é que era o bairro, como é que era a sua vida com os pais na infância? O quê que você costumava brincar?
R – História bacana. Como eu sou filha única, me sentia muito sozinha. Minha mãe muito cuidadosa, ela foi trabalhar fora quando eu tinha seis anos, antes não, ela ficava por conta do lar e dos estudos dela e eu queria brincar com crianças, não era usual naquela época, nem tinha escola… pré-escola, maternal, jardim, só existia do pré em diante. Então, para trabalhar fora, ela me deixava na casa da minha avó materna, só que a casa da minha avó materna, as lembranças que eu tenho já com quatro anos, cinco anos, sabe o Sitio do Pica Pau Amarelo? Igual! Adivinha se eu quis sair de lá? Então, era uma casa aos moldes das casas antigas, né, e tinha pomar, tinha horta, tinha galinheiro, tinha um cabrito e minha vó gostava muito dessa coisa do alimento. Então, a gente ficava o dia inteiro envolvida naquilo, né, plantar o morango, colher a cenoura, colher a salsinha. já maiorzinha, eu ficava encarregada de abastecer as gaiolas dos passarinhos do meu tio com almeirão picado e a ração. Então assim, era uma lida muito parecida com o que se vê na história do Monteiro Lobato, né, me vejo muito assim, tanto é que chegada a hora de ir para a escola, ser alfabetizada, eu não queria ir para a escola. Não queria de jeito nenhum, chorava, estrebuchava. Aí, tiveram que arranjar uma escola especial, que não tinha o método convencional de análise de aluno, de progressão e tudo mais, porque não teve discussão, não queria ir para a escola e pronto, certo? Imagina, né? As primas do lado, tinham três casas abaixo da casa da minha avó, eram todas irmãs dela com minhas primas, então, era um mundo assim, de fantasia, de brincadeira, certo? Esse aprendizado que vem da prática, que provavelmente, escola nenhuma poderia ofertar na época.
P/1 – Esse período da primeira infância, da casa da vó, casa que dá impressão de cara de sitio, assim, né?
R – Isso.
P/1 – Tem alguma passagem que tenha ficado mais guardada na memória, algum episódio mais emocionante ou mais divertido, uma aventura, alguma descoberta?
R – Eu e as minhas primas tínhamos passagens secretas. Na verdade, era só uma ripa móvel na cerca que dividia as casas, que só a gente sabia, certo? Mas tinham uns primos, né, tinham meninos que eram arteiros e fizeram uma cova e taparam com capim, sabendo que aquela era a nossa ripa de passagem (risos). E uma esperando a outra para brincadeiras, e aí, o que acontece? Nadia caiu, puff, não fiquei totalmente enterrada, mas fiquei bem por aqui, assim (risos), enterrada na cova gritando para alguém me salvar. Pronto, todo mundo descobriu o nosso segredo máster, né? Então, na minha idade de sete anos e meio, nossa, foi um vexame, entendeu? Naquela ótica da criança.
P/1 – E a escola? Qual foi a sua primeira escola e como é que foi essa experiência de ir para a escola?
R – Não queria ir para a escola. Aí, a diretora da escola que a minha mãe era professora pelo Município, falou: “Edne, põe a Nadia nessa escola, porque você não vai mais ter problema, ela vai gostar da escola, porque lá estuda se quiser, se não quiser, não estuda”. Minha mãe falou: “Imagina, como assim? Ela precisa aprender a ler e a escrever” “Vai, leva ela, vamos ver se ela gosta, fulana pôs, ciclano pôs as crianças”, e chamava-se Escola Experimental Irmã Catarina, que existe até hoje em São Paulo e tinha uma filial no ABC, hoje ela fica… ela já existe acho que há 60 anos, eu vou fazer 60, acho que até um pouco mais, existe na Aclimação. Então, o método da escola é o método Montessori, lubienska, né, um método não Montessori puro. Então, eu digo que aquela escola foi a minha salvação, porque eu era meio mimada, era não, devia ser mesmo, filha única, neta única, fazia só o que queria, entendeu? Batia o pé, não tinha quem fizesse, né? E colocando o pé na escola, eu já tinha oito para nove anos, porque eu não queria ir para a escola, eu chorava, não tinha o que fizesse, né? E eu precisava ser alfabetizada. Então, as crianças do pré, que existia já o pré, eram bem menores, tanto de tamanho, quanto de idade mesmo. E tinha a escola do primeiro ano, a escola era pavimentar, não era prédio e todas as salas davam para um solário. As portas sempre abertas das classes, é um método muito diferenciado, para aquela época, inclusive. E eu falei: “Minha mãe me matriculou no primeiro ano, é no primeiro ano que eu vou estudar. Não vou ficar nessa classe com esses nenéns aí, de jeito nenhum!”. Eu sei que ligaram para a minha mãe, minha mãe foi lá conversar fora do horário de aula, mas eles não se abalaram, eles pegaram a classe do primeiro ano, a classe do pré, juntaram em um galpão lá no pátio e pronto. Era lá que eu ia estudar, junto com todo mundo, certo, sem essa divisão que me incomodou, digamos assim, e ali ficamos, acho que uns dois meses. Até que essa questão diluiu e aí, houve uma negociação: “Nadia, você concorda em ficar até a hora do lanche você fica no pré para alfabetizar e da hora do lanche em diante, até o final do período, você fica no primeiro ano”. Aí, concordei, chegamos em um acordo e aí, consegui, finalmente, ser alfabetizada. O método é diferenciado, até hoje, existem algumas escolas, onde é tudo na prática, não existe aula em lousa, não existe lição de casa. Existem materiais didáticos específicos, onde a alfabetização é feita juntando pedacinhos de madeiras com as letras, com as figuras, numa esteira, tem toda uma metodologia que eu me adaptei muito bem, parecia muito com aquela lida diária lá da casa da vó, não é? Onde era tudo assim, na prática. E aí, progredi nessa escola, ela não tinha uma avaliação convencional. Como eu tinha um problema crônico de amidalite, eu ficava, às vezes 15 dias sem poder ir na escola. Mesmo assim, era avaliada de acordo com desempenhos que eles julgavam e era uma escola que buscava também que o aluno, o aprendiz fosse em busca, na verdade, pelo o que eu entendo olhando para trás, dessa história, o método Montessori, ele propicia criar pesquisadores. Então, existiam fichas de lições, cada matéria, digamos assim, um caderno, a professora numerava as lições e não tinham fichas para todo mundo, de modo que você tinha que negociar as fichas das lições com o amigo. Então, fazia um entrosamento de tal forma, que era trocado ficha por biscoito, ficha por pirulito, entendeu? Por figurinha. Cada um criava o seu jeito de obter a ficha para entregar o caderno todo, completo com todas as lições lá na hora, no dia, para a professora. A professora não dava aula convencional, era apenas um apoio. Então, um autodidatismo muito grande, né?
P/1 – O quê que você mais gostava de fazer nesse ambiente tão diferenciado escolar nesse primeiros anos lá? O quê mais te atraía, ou te divertia, ou te estimulava, estingava?
R – A pesquisa.
P/1 – Você se lembra de alguma em específico que tenha…?
R – Você podia seguir nos estudos na velocidade que você quisesse e também no tema que você quisesse. O tema que mais me atraiu foi História Antiga. Então, eu passei meses encantada, deslumbrada, foi isso que deu o impulso, né, para eu também absorver outras matérias. A História Antiga do Egito. Então, eu sabia de cor o nome das pirâmides dos faraós, dos rios, Tigre, Eufrates, enfim, tudo que você possa imaginar, os caldeus, sabia, contava a história toda em casa, todo mundo ficava: “Mas a menina já aprendeu a escrever?” (risos) “Mais ou menos” “Nadia, você sabe ler e escrever?” “Mais ou menos, tia” “Como mais ou menos?” “Como você estuda?” “Tem assim, assado” eu explicava, mas ninguém entendia nada como é que eu absorvi o conhecimento, mas não sabia… Se eu pegasse uma cartilha igual das crianças que iam para as escolas, que eram todas escolas públicas, do Estado, eu olhava aquilo e eu não via graça, eu não me lembro muito bem: “Completa essa cartilha para mim”, não saía nada. Então, o método assim, parecia esdruxulo, porque a criança aprendia várias coisas ao mesmo tempo, desenvolvia várias habilidades, mas no final das contas, com seis meses, aproximadamente, de Irmã Catarina, finalmente, deu o click, né, porque a professora, a mestre disse: “Quando der o click, a criança começa a ler”, e aí, não parei nunca mais. Demorei muito para entrar na escola, para me adaptar, etc., mas depois, o gosto por leitura, por pesquisa não parou nunca, nunca mais até hoje.
P/1 – E suas amizades nessa época? Quem eram suas amigas, do quê que vocês costumavam brincar, onde vocês conviviam? Como que era ser criança nessa época?
R – As brincadeiras com as primas eram brincadeiras de rua, de subir em árvore, de jogar amarelinha, de buscar e plantar, esperar nascer para colher, para fazer a comida das bonecas real, com fogareiro de fogão de lata de marmelada apoiado em tijolo, o avô ia lá e ascendia a brasa, fazia-se o casamento das bonecas, bonecas que nós tínhamos que não eram muitas, bichos de pelúcia, então assim, era uma representação da realidade dos adultos, que a gente trazia para a nossa vida de criança, mas para nós, lógico, aquilo era real. Costurávamos, fazíamos o enxoval das bonecas e dos bonecos, poucos que a gente tinha. O avô fazia e os meus tios, faziam a mobília, então nós tínhamos o nosso anseio maior, sonho de consumo das meninas, das primas todas era ter a casa da boneca e era feita de madeira aberta, com o telhado, a traseira aberta e tinham dois andares, a mobília eles faziam, a gente ajudava a fazer. Depois, a gente maiorzinha, aprendia a fazer receitas, porque começamos a ganhar bonecas em formato de bebês, então, os bebês comiam e a gente queria, então, fazer as comidinhas, a mamadeira.
P/1 – Qual que é a maior alegria, ou uma das maiores alegrias, felicidades que você teve na sua infância e que tá guardado na memória até hoje?
R – Uma festa de aniversario. Meu avô ainda era vivo, ele morreu eu era pequena, tinha oito anos. Mas aos sete anos, ele não estava muito bem de saúde e eu não tinha essa noção naquela época, mas foi uma festa de aniversario onde teve um primo que se vestiu de palhaço, fez brincadeiras, a mesa era toda enfeitada, todo mundo com chapéu, língua de sogra, apito, na cada da vó, tudo enfeitado, uma coisa mágica. Existia uma espécie de um galpão na casa da minha avó, como você disse, parecia um sitio, era isso mesmo, um galpão que em festa junina, punha bandeirinhas e tudo mais, então foi nesse galpão que era feito de tijolo assentado com barro mesmo. Essa parte mais rústica da residência e ali, podia tudo, todas as brincadeiras, todas as traquinagens que as crianças gostam de fazer em aniversario, cantiga de roda, tudo.
P/1 – Agora uma pergunta que é ao contrário dessa, um momento difícil na sua infância. Triste ou difícil que tenha permanecido nas suas recordações. Que não são só flores, né?
R – Sim. Quando eu tive que deixar toda essa vivencia lúdica, na casa da minha avó e sai do Irmã Catarina e fui aprovada para fazer o ginásio, no exame de admissão. Então, eu já era mocinha, mocinha no sentido biológico, também, a menarca foi muito cedo, com nove anos e meio. Então, com 11 anos, fiz admissão, demorei para me adaptar a essa questão de ser mocinha, de ser criança e brincar de urso, de boneca e ter menstruação e usar um uniforme todo tradicional, entrar numa escola pública. Não foi triste, mas eu fiquei amuada meses e meses. Sabia fazer todas as lições, não tinha problema com o aprendizado, já que a escola tinha dado essa base de você ser autodidata, buscar o que fosse necessário, mas o ambiente era todo muito diferente, regras, horários, diferente daquele da escola anterior e toda liberdade que havia, um modo diferente de aprendizado que as crianças estavam acostumadas, que eu tive que me adaptar, mas eu tive que sair da casa da minha avó e ser sozinha lá na casa dos meus pais, por rotinas diversas, circunstâncias familiares, eu fui para a minha casa de origem num bairro vizinho, para poder ir para a escola estadual, onde eu tinha passado na admissão. Então, isso foi bem chato, né?
P/1 – Deixou de ser criança?
R – É. Isso mesmo.
P/1 – E ao deixar de ser criança, quais outras transformações no seu dia a dia, você falou das transformações de física, das transformações escolares. E na sua vida, como um todo, a sua relação com os seus pais, os amigos, o tipo de lazer, como foi se transformando a sua vida a medida em que você foi deixando a infância e se transformando numa adolescente?
R – Uma pré-adolescente, eu era dita comportada. Tinha meus questionamentos internos, meus medos, minhas vergonhas. Deu o que fazer para acharem o primeiro sutiã, porque a blusa de escola do Estado era transparente, né, tinha um tecido fino, branco, a saia de pregas azul, aquela meia comprida, o sapato preto, mas a questão era a blusa. Eu queria que colocassem dois bolsos, não, dois bolsos não era possível. Aí, foram atrás do sutiã. Sutiã, encontravam o sutiã mini com bojo da Valisere, só tinha esse. Sutiã menina moça. Aparecerem com um sutiã, eu pus, achei ridículo, mas fui com casaco por cima nos primeiros dias, né, um calor daqueles e eu de casaco, certo? Então, essa questão de começar a encarar o corpo, os meninos começarem a olhar, eu não sabia lidar com isso. Fui parar em psicólogo. Aí, fui em algumas sessões e não gostei, não quis mais ir. Não tinha graça ficar conversando com uma pessoa estranha, não é? Então, eu tinha uma certa dificuldade de fazer amizades. Com meninas, naquela época, nós tínhamos as melhores amigas, então eu tinha duas melhores amigas e as melhores amigas conviviam umas nas casas das outras, fazíamos lição, ou elas na minha casa, ou eu na casa delas. Mas éramos ali, três, quatro. Depois, já terminado esse ciclo de ginásio, aí para ir para o ensino médio, aí houve uma outra transformação. Eu fui criada sempre muito acolhida, medo, meus pais tinham muito medo de soltar, desencaminhar, enfim, medos que os pais têm, né? A minha vó não, ela sempre foi mais moderna, pelo próprio jeito de ser, cabeça diferente. Mas meus pais não, sempre mais medrosos, assim, me segurando mais. Aí, quando eu cai na adolescência, propriamente dita, eu virei uma adolescente rebelde, que adolescente questiona tudo, quer saber o porque de tudo, enfim. E foi nesse meu momento que o meu pai começou a discutir, porque ele é muito politizado, sempre foi. Começou a discutir politica comigo, e aí eu comecei a me interessar pelas histórias, histórias da Itália, como tudo aconteceu, Mussolini, aqui no Brasil, todo um desenrolar e eu comecei a ficar mais questionadora assim, e ele conseguiu drenar essa energia de rebeldia, digamos, assim, para um aprendizado mais construtivo, né?
P/1 – E isso tudo acontecendo em meados dos anos 60, mais ou menos? Bem ali perto do Golpe. Como que era ser uma adolescente, jovem, politizada no ABC Paulista naquele período marcante da história do Brasil?
R – Meu pai foi por ser trabalhador de metalúrgica, eu considero um dos fundadores do PT, então foram… não oficial, né, ele era sindicalizado, no participava de passeatas, nem nada disso, mas os conceitos socialistas que ele tinha e tem até hoje, né, e que ele me incutiu, certo, diferente do que se pratica hoje, bem entendido, né, que tudo houve uma distorção muito grande desse entendimento, mas se eu tenho um senso crítico, muito crítico sobre sociedade, contemporaneidade, politica, eu devo a tudo que ele passou, me contava, enfim, trazia para casa, alguns amigos dele também. Então, na verdade, participaram da formação do Partido dos Trabalhadores, certo?
P/1 – Mas isso bem depois, né?
R – É, mas tudo isso nasceu nessas elucubrações, tá certo?
P/1 – Mas antes de chegar lá, antes de chegar nos anos 70, anos 80. Nessa sua adolescência, inicio da ditadura militar no Brasil, ABC, um lugar, historicamente, muito politizado, etc., como é que era? O quê que vocês faziam? Você costumava sair? Você se sentia cerceada?
R – Meus pais não deixavam eu sair até eu ter uns 15 anos, eu não tinha liberdade para quase nada. Então, eles tinham medo, um medo que eu não entendia, medo do que, mas era um medo real deles, tá certo, então, eu tinha um pequeno grupo de amigos e aí, sempre o pai de uma das moças ia levar e buscar nos bailinhos de clube, nos aniversários, sempre tinha um que era o encarregado de trazer, de baldear a turma para lá e para cá, clube, piscina, tínhamos atividades de lazer, não eram muitas, meu pai gostava muito de levar para viajar.
P/1 – Vocês viajavam para onde?
R – Ele comprou um fusquinha 66 zero e viajamos naquele fusca para Ouro Preto, quer dizer, para as cidades de Minas, porque ele é mineiro, né, Ouro Preto, as cidades em que ele nasceu e vivenciou, para o sul não muito, mas para o interior de São Paulo, muita coisa e sul de Minas muito. Litoral também, São Sebastião e todas as praias, nem existia rodovia. Todas as festas, as festas da uva, festa do vinho, festa do figo, nós éramos fregueses.
P/1 – Tem alguma dessas viagens que tenha ficado mais marcante para você?
R – Tem. Meu pai, se eu sou meio teimosa, eu tenho a quem puxar, meu pai é teimoso. E ele achava que dava pra estar em x horas de Bertioga e chegar em São Sebastião, sem a maré subir, porque tinha que atravessar um pouco de estrada e um pouco de praia, num fusquinha, mas a maré começou a subir e não deu para chegar em São Sebastião. Ah, eu abri o berreiro, uma choradeira, fiquei apavorada, a minha vó estava junto e ela era conciliadora. Eu e a minha mãe chorando, meu pai numa boa, minha vó numa boa e tivemos que passar então à noite no carro até chegar amanhecer o dia para a maré tá baixa, poder passar para mais uma praia e chegar em São Sebastião.
P/1 – Que aventura, hein!
R – É, uma aventura. Um fusquinha engrenar e rateava, né, e tinha que engrenar, não sei o que e o fusca só se desfez dele faz uns cinco anos, como relíquia, mesmo, entendeu? Veio um rapaz que coleciona, adquiriu o fusca que o meu pai não tem mais condições de dirigir, nem nada, mas foi difícil convence-lo, porque tem histórias mil, imagina.
P/1 – Conta mais uma história do fusquinha.
R – Aí gente, o fusquinha… Fusquinha em Ouro Preto. Subindo a ladeira, não subia, né, parou, estacionou. A gente foi a pé por aquelas ladeiras maravilhosas. O fusquinha foi para Belo Horizonte parando em todas as cidades possíveis, então assim, meu pai era consciente nisso, parava para se alimentar, para dormir em hotéis, pousadas, então passeio para o meu pai tinha que ser uma coisa quase histórica, certo? Eu me sentia a própria Margarida do pato Donald naquele fusca, era realmente “Se o meu fusca falasse”, muita história e foi bem, não acontecia nada, não quebrava, entendeu? Era muito legal, gente, muito legal.
P/1 – E aí, você foi ficando mais velha, 16, 17 anos. Eu insisto ainda nessa questão do período político por causa da sua família ser politizada, como que era observar pela sua ótica, ali, seu ponto de vista pessoal, o que estava acontecendo, o que vocês viam?
R – Quando eu terminei o ginásio numa escola pública, no colégio estadual, como eu queria fazer uma faculdade na área da saúde, eu não sabia ainda se era Medicina, se era outra coisa, mas tinha isso meio que borbulhante assim, dentro de mim, eu gostava muito da área, eu tinha muita facilidade na área de Biológicas. Então, meus pais me colocaram na… chamava-se Núcleo de Aplicação da Faculdade de Ciências e Letras da Fundação Santo André. Então, lá haviam três cursos profissionalizantes, técnico profissionalizante numa escola que foi criada pelos três municípios, então, apesar de ser particular, ela tinha um incentivo muito grande dos três municípios e a mensalidade era fácil de pagar, digamos assim, a maioria dos pais pagavam anuidade, pagava tudo, ganhava três mensalidades de desconto. Isso eu questiono hoje, mas vamos chegar lá. Então, essa escola ficava dentro da faculdade de Ciências e Letras da Fundação Santo André, esse colégio de aplicação, eu escolhi Patologia Clínica, colegas escolheram Tradutor Interprete, outro escolheu Processamento de Dados, mas parecia muito com a escola Montessori porque as portas das salas ficavam abertas, porque eles estavam costumados com o público, aluno de faculdade e nós éramos a terceira turma de colégio de aplicação, né? E os professores que nos davam aulas, além dos professores especializados naquele curso técnico específico, como patologistas, médicos, enfim, mas os professores das disciplinas comuns, Geografia Matemática, História, Física, Química, etc., eram os mesmos da faculdade, que davam inclusive aula para Medicina ABC. Então, o nível docente era muito elevado e primeiro dia de aula de História, assim, eu era uma patricinha, digamos assim, eu fui criada, não tinha essa ostentação que hoje existe, de roupas de grife, tudo mais, frequentar esse ou aquele lugar, mas eram dois trabalhadores, não eram de fortuna de família, já ricos de fortuna de família, mas o modo como eu fui criada era uma patricinha. Aí, cai no colégio de aplicação, a primeira aula de História, professora fez um circulo e mandou a gente destrinchar uns capítulos de um livro de feudalismo e capitalismo de Leo Huberman. Aí, compramos o livro, tal, dividimos lá, rateamos e lemos, não entendemos quase nada, demorou uns meses pra gente entender, mas quem era a professora? Ela era uma professora de referência do movimento da USP. Eu só fui compreender isso quase no fim do colégio, na verdade, quando alguns professores nossos desapareceram, cadê professora Helena? Cadê professor fulano? Professor ciclano? Ninguém falava nada. “Vai vir outro para dar aula”, veio depois, mas eles tinham sido… resolveram se retirar, não sei se foram exilados ou não, não sei disso até hoje, né? Mas eles tiveram que dar uma desaparecida pelos movimentos de perseguição da dita ditadura. A ditadura, para mim, Nadia, para todos aqueles meus colegas, assim, meu pai conseguiu fazer patrimônio na ditadura. Meus colegas também, os pais, né? Não faltava emprego, se você tinha habilidade, um conhecimento, não faltava. Não havia inflação, então eu questiono hoje fortemente o que foi a ditadura, para quem. Porque se os meus pais conseguiram pagar todo o meu estudo, dois trabalhadores comuns, sem grandes diplomas, digamos assim, uma formação acadêmica diferenciada para cargos diferenciados. Conseguiram pagar tranquilamente até com adiantamento de parcelas, depois já saindo do ensino médio, do colegial técnico, na faculdade a mesma coisa. Eu questiono o que foi ruim, para quem, o quê que eu não entendo ainda, às vezes, né? Meu pai fala: “Não, o Brasil teve que passar por tudo que passou”, e ele ainda defende não isso no que se transformou, mas os conceitos de socialismo anteriores, os quais ele vivenciou na pele, acredita e tudo mais. Eu, no dia de hoje questiono algumas coisas a esse respeito. Se por alguns interesses particulares aqui da nação esse conceito do pais ser governado por militares por um tempo, essa ditadura, esse termo que foi implementado e que peso real ele teve na vida das pessoas. Então, eu posso dizer de cadeira, lá no ABC quem trabalhava, entendeu, estudava, não havia bandidagem, não havia violência, os pais tinham medo de alguma coisa, não sei se porque era menino ou o que, sei lá. Mas o que a gente vê e escuta de ditadura, eu não vivenciei isso. Hoje, eles não conseguiriam, assim, pós ditadura, eles não conseguiriam fazer o patrimônio que eles fizeram, entendeu? É uma coisa a se pensar, né?
P/1 – E a faculdade? Como foi? Você disse que queria ir para oi lado das Biológicas, aí como é que foi a sua trajetória?
R – Eu fiquei um tempo entre Psicologia, Medicina e Nutrição. Aí, me chamou mais fortemente a Nutrição quando eu fiz teste vocacional, uma série de coisas que eram ofertadas na época, já dentro do próprio colégio e Medicina eu andei assistindo aulas de Medicina na Fundação porque era do lado da Faculdade de Medicina ABC, então, fiz curso de coleta, curso de injeção, de primeiros socorros, assisti algumas aulas de Medicina e a questão do necrotério acabou com todas as expectativas de fazer Medicina. Difícil encarar as peças anatômicas, cadáveres, tudo mais e não deu para o meu estomago, entendeu? Aí, mas eu queria cuidas das pessoas de alguma forma, era isso que tinha no amago desse desejo, né? E a questão do alimento, essa vivencia intrínseca com o alimento, por ajudar a cuidar da horta, colher, plantar sempre esteve arraigado, sempre fazendo receitas, a minha avó era a minha grande parceira, muito moderna no sentido de que adorava uma tecnologia, se aparecesse um liquidificador novo, uma batedeira, o que fosse, ela era a primeira a topar testar receitas comigo, né? Mesmo antes de pensar em ser nutricionista ou cursar essa graduação. Então assim, quando eu tive que resolver, não pensei muito duas vezes. Prestei, entrei em duas, escolhi Mogi, ia ser uma trajetória difícil, porque teria que passar horas no ônibus indo e voltando, era integral o curso, 79, fui caloura 79 e aí, mais uma vez, os professores eram professores ligados a faculdade de Medicina de Mogi. Então isso eu não estranhei, o colégio de aplicação da Fundação, como os docentes eram docentes que davam aula para nível, para terceiro grau e nós tínhamos todo esse contato profundo com a área de Biológicas, eu não tive nenhuma dificuldade em fazer a faculdade, escolhi e foi bem escolhido, eu gostei muito e sai muito bem, eram 100 alunos por sala e poucos foram para nutrição clinica, porque é uma área em que você precisa começar muito cedo a ter a base e eu comecei com 15 anos, então três alunas desses 100 foram para nutrição clinica, uma parcela muito pequena que vai e eu fui e me dei bem, graças a Deus.
P/1 – Nesse meio tempo, a sua vida pessoal, relacionamentos?
R – Eu só fui autorizada a namorar com 18 anos (risos). Então, foi meu primeiro namorado, namorei todos os anos da faculdade, fiquei noiva um ano e me casei. Então, o meu marido foi o meu primeiro namorado.
P/1 – Qual que é o nome dele?
R – Marcos. Tivemos três filhos, a filha do meio faleceu de uma doença não genética, mas congênita, como se fosse um tipo de câncer na medula, mas não é classificado como câncer. Ela viveu três meses. Acho que o baque maior que eu tive na vida foi esse, o falecimento da Julia. O casamento durou 13 anos, o Marcos não administrou o falecimento da Julia, ele começou a fazer uso de álcool, drogas. Aí, quando o caçula tinha seis anos, eu resolvi me separar porque assim, o estado dele emocional, de saúde, por mais que a gente quisesse ajudar, ele não aceitava ajuda, ele trabalhava numa empresa de referência, era a Embratel, pagava tudo que fosse necessário em relação à convênio. Embratel na época era mãe, pai, tio, avô, né? Era muito suporte e isso foi bem traumático, porque não é fácil você sair de casa com um menino de seis anos, uma menina de 12, voltar para a casa dos pais, certo? Por segurança, porque ele tornou-se uma pessoa violenta. E paralelamente ao falecimento da Julia, teve a questão de eu sair para trabalhar fora. Eu me formei, logo depois, eu casei grávida que era uma coisa na época assim, para se esconder ainda, naquela época. Mas eu queria ser mãe, independente de ter marido ou não ter marido, eu queria ser mãe, isso eu tinha uma certeza desde os 12, 13 anos. Queria ter três filhos e a minha vó falou: “Não, se não quer casar, não casa”, e o meu pai falou: ‘Se não quer casar, não casa”, mas minha mãe muito chiliquenta, muito pop, muito… “Não, porque vai casar, única filha, não vai ter festa, não vai ter vestido…”, e vai a Nadia casar. Mas também, eu escolhi um horário, 11 horas da manhã, meu vestido era curto (risos), tipo assim, a rebelde, né? Vou fazer do meu jeito.
P/1 – Em que ano foi isso?
R – Oitenta e dois. Tinha terminado a faculdade, os estágios e depois, tive que voltar, fazer um estágio, depois da licença maternidade, etc., tive que voltar. Mas enfim, eu sou prolixa, puxa o fio porque eu me perco no meu discurso.
P/1 – Tá ótimo. Eu estou adorando ouvir.
R – Então tá bom. Muito bem. Quando eu fui trabalhar fora, a Flavia já tinha seis, sete anos, oito anos, Nicolas dois e até então, eu não me achava bonita de jeito nenhum, fotogênica, nada, entendeu? Tirar foto de mim era uma coisa assim, que tinha que me caçar dentro de armário, embaixo de cama, nunca fui chegada, isso aqui é um milagre, tá? (risos) Isso é efeito de quase 60 anos. Quando eu fui trabalhar fora na nutrição clinica, no hospital você usa uniforme, meia fina, salto, tem todo um traje diferenciado, precisa passar visita em paciente, tem que usar um batom, você já é instruída pelo RH como é que você tem que se apresentar, certo? Então, para o meu ex-marido na época, tomou um susto porque eu era assim, muito moleca, no meu trajar, no meu vestir, não tinha muito glamour, todo mundo: “Aí, como a Nadia é bonita”, eu não me achava bonita e também não usava batom colorido, só um brilho, esmalte não, cuidava de criança pequena, estava naquele meu mundo que tava feliz da vida, até que falei: “Agora, eu vou trabalhar fora”, aí ele não administrou. Por incrível que pareça, ele começou a sentir ciúmes fora do comum quando me viu arrumada, primeiro dia de trabalho: “Precisa de tudo isso?”, no começo, ia, buscava, levava, depois largou mão, a Julia já tinha falecido aí no caso, a Julia foi a do meio, já tinha tido o Nicolas e aí, com o Nicolas com uns dois anos eu sai para trabalhar. Então, formada, fiquei uns sete anos, oito anos exercendo a nutrição na família, certo? Tudo aquilo que eu aprendi, eu aplicava na criação dos filhos, né? Tanto é que o primeiro emprego, ele falou: “Não é possível que você tenha conseguido emprego”, eu falei: “Mas você não disse que eu tenho que sair para trabalhar? Que é bom que eu exerça tudo isso que eu aprendi, que eu gosto tanto?” “Mas eu não sabia que tinha que se arrumar assim tão bem, tinha que ficar tão bonita”, falei: “Exigência, precisa ter uma apresentação, onde você trabalha também as mocas não têm que ter uma apresentação?”, então, ele… não sei se eu estou me fazendo entender, né? Teve dificuldade mesmo em lidar com uma Nadia que surgiu, que ele não sabia que existia, nem eu também não sabia, na verdade, né? Quando eu me olhei no espelho, eu falei: “Nossa, ficou até bem. Legal o batom dessa cor”, a gente ganhava um kit assim, maquiagem básica, naquela época, a empresa dava ainda. “Não é possível, você tem a carteira em branco, não é possível que você tenha conseguido emprego. O quê que a diretora conversou com você? Você conversou o que com ela?”, eu falei: “Eu falei que a minha carteira estava em branco, que era o meu primeiro emprego registrado”, que eu fazia alguns bicos em escolinha, cardápios, palestras para os pais, mais voltados para as escolas que os meus filhos estudavam, eu tinha uma atuação voluntária lá. Aí eu falei: “Ela não teve problema nenhum, é uma pediatra, perguntou se eu tive filhos, se eu era casada e se tinha filhos, como eu criei os meus filhos. Contei tudo como criei, como amamentei, como desmamei, como introduzi alimentação e tal”, o hospital era um hospital infantil de uma fundação de Santo André, FAISA e depois de uma hora e meia, duas horas de conversa, ela aprovou e pronto, falou que eu estava apta, fez a carta para mandar para o RH. O meu pai com o fusquinha, foi me levar. Fusquinha, então, veja só, o fusquinha levou os netos para a escola, para a escolinha, para o berçário, para o colégio, né, o fusquinha vivenciou tudo isso. Aí, o meu pai falou: “E aí?”, falei: “Pai, tenho que levar essa carta aqui no RH agora” “Mas ela te aprovou? É isso mesmo?” “É, ela aprovou”, aí ele foi lá na porta da sala da diretora: “A senhora tem certeza?” (risos), caramba o que tá acontecendo? Aí que mico. Então, o que ela queria? Ela estava sem nutricionista já fazia um ano e meio e as moças eram formadas, até bem formadas em Nutrição, mas não tinham sido mães, se tinham sido mães, tinham colocado as crianças em escolinhas, para poder trabalhar, enfim, não vivenciaram a nutrição clinica na pediatria com os seus próprios filhos ou com crianças próximas e ela sentiu um potencial, ela apostou bastante, pegar uma pessoa com a carteira em branco só com a história de vida. Na verdade, ela extraiu a história de vida ali, quis saber das crianças, como nasceram, como foi o parto, não parecia uma entrevista de emprego, não teve nada a ver. Então, pelas falas, pela postura, pelo o que eu falei, comentei, expliquei, ela se deu por satisfeita e eu me adaptei maravilhosamente bem. Eram 100 leitos de pediatria, muita responsabilidade, uma nutricionista só e ela falou: “Você sabe que você vai ser a nutricionista chefe”, eu falei: “É isso mesmo, Doutora Marisa, no primeiro emprego, eu vou ser nutricionista chefe?”, ela falou: “É, RT, Responsável Técnica perante o conselho, qualquer dificuldade, você me procura sempre, minha porta tá sempre aberta e o que você quiser implementar de mudanças, o que não estiver bem, o que você achar por bem evoluir aí, fique à vontade, nós não temos muito recurso, dependemos do dinheiro da Prefeitura, do repasse da Prefeitura, mas o que depender de criatividade e não insumos muito caríssimos, pode ficar à vontade”. Eu fui contratada para dois anos, era um contrato por tempo determinado e nessa metade de tempo, mudou a gestão politica do que era o PT do Celso Daniel falecido entrou e foi bom, naquela época foi ótimo, certo? Tudo que eu queria para o meu setor, que eu pedia, eles arrumavam para ontem. Então assim, Celso Daniel fez diferença no todo modo de fazer a politica, ou seja, o uso do dinheiro público, pelo menos naquele departamento, naquele setor, policultura, pediatria que eu estava, foi maravilhoso, aprendi demais. Puxa, senão eu…
P/1 – E a sua vida familiar, queria que você falasse um pouquinho mais por exemplo da sua filha e do seu filho. Como é que foi se tornar mãe, como é que era o dia a dia com as crianças? E também essa barra que deve ter sido a separação.
R – Sim. Nós compramos conforme incentivo da Embratel, conseguimos adquirir um imóvel de 500 metros quadrados, uma casa antiga com horta, com pomar, muito parecida com o que era a casa da minha avó, na mesma rua onde era a casa da minha vó e depois, veio ser a casa da minha mãe ao lado, com o decorrer do tempo, com o falecimento do meu avô, dividiu aquela casa com pomar entre o meu tio e minha mãe, ela construiu a casa dela, certo? Então, mudou um pouco a configuração, nós conseguimos adquirir um imóvel bem parecido, onde eu consegui logo de cara, digamos assim, dar para os meus filhos aquele Sitio do Pica-pau Amarelo que eu também tive. Então, eram três casas antigas no mesmo terreno. A casa mais antiga, no fundo do lote foi a primeira casa da rua, então era uma casinha histórica que ninguém se atreveu a demolir, até hoje tá lá. Tinha a casa mais a frente, era um terreno muito grande, dez por 50, então a casa principal não era muito grande, mas o resto era tudo jardim, quintal, árvore. Então, o Nicolas teve casa na árvore, a Flavia teve tocas e esconderijos, toda criançada da rua ia brincar lá porque o Marcos fez portão bem seguro, na frente do imóvel, eram declives, era como se fosse uma cidade da criança, tinha cavalo, tinha aqueles brinquedos de parquinho, o Marcos muito habilidoso, ele fez vários brinquedos, ele e o meu falecido sogro, brinquedos para fazer mesmo um mini parquinho para as crianças de todos, os amiguinhos deles poderem vir brincar lá dentro. Então, na separação, quando eu tive que sair desse imóvel, voltar para a casa dos meus pais, esse acho que foi o grande trauma da vida dos três, né? Meu, da Flavia e do Nicolas. Mas enquanto durou foi assim, excepcional, não existe um sentimento, eu percebo hoje, vendo os meus filhos conversando, que não teve um sentimento, não existe um ranço, entendeu, uma revolta, um sentimento de perda profundo, porque aquilo foi vivenciado tão intrinsecamente, tão fortemente, que isso não marcou, marcou talvez a mim, por sentir que a minha decisão os privaria de continuar naquele ambiente. Mas hoje eu vejo que eles não são traumatizados com isso, entendeu? Alguns anos depois da separação, sair daquele ambiente, ir para a casa da vó, não tinha todo aquele espaço, era um outra dinâmica, mas emocionalmente, não são pessoas traumatizadas. Então, foi uma decisão que eu tomei, a Flavia mesmo reconhece que foi bem tomada porque ele poderia ter causado danos maiores. Houve assalto, era por causa de drogas, ele escondia drogas no carro, a gente não sabia. Você vê, todo suporte, um funcionário que passou em primeiro lugar no concurso da Embratel, uma empresa fora de série, com todos os beneficies possíveis, não quis procurar terapia quando nossa filha faleceu e mexeu com ele tão intrinsicamente que ele descambou.
P/1 – Como é que foi voltar para a casa dos pais? Como é que se transformou sua vida, seu dia a dia, o trabalho, os filhos com os avós, como é que era essa época? Final dos anos 80, mais ou menos isso?
R – Noventa e quatro. Eu tinha alguns meses num hospital como funcionaria, num hospital de referência, até hoje, no ABC, Hospital e Maternidade Brasil, agora encampado pela Rede D’Or e o meu contato era diretamente com o dono, ele preferiu assim porque as moças anteriores a mim, da minha profissão se envolveram em corrupção, isso na minha área é muito comum, infelizmente, é uma mácula dessa profissão. As moças se deixam levar por brindes, relógios, carros, junto a fornecedores. Então, estava também algum tempo sem nutricionista responsável e uma colega me indicou, fui fazer entrevista, não sabia que ia me relacionar diretamente com o sócio-proprietário, majoritário e ele me incumbiu então de responsabilidade muito grande, aí sim, eu desempenhei meu trabalho muito bem, eu sou muito perfeccionista, e gosto de estudar, de pesquisar, o porquê do porque tá sempre intrínseco a minha pessoa, não me contento com uma coisa, uma resposta pronta, eu vou ver se é aquilo mesmo, porque é, porque não é. E na casa dos pais, com as crianças relativamente pequenas, né, Nicolas com seis, Flavia com 12 já mocinha, para eles foi bom, porque os avós sempre paparicaram muito, sempre estiveram muito presentes, sempre, meus pais todos os dias, o avô ia brincar com eles, ajudar a fazer lição antes de eu sair de casa para a casa deles, então assim, não teve, a não ser a questão do local físico, geográfico, do endereço número x para o y da rua, mas o carinho, o afeto, o cuidado na vida deles não mudou, certo? Eu me senti mais sobrecarregada, sim, claro, porque eu não queria estorva-los, tirar a liberdade deles, essa era a questão, de divisão de espaço, de convívio de gerações, tem conflitos, a Flavia com 12 anos estava na pré-adolescência, então ela dava bastante trabalho e por outro lado, eu era extremamente exigida no meu novo emprego. Então chegou uma hora que eu tive um grave problema de saúde, sim. Hoje é chamado Síndrome de Burnout. Então, seis ano depois, eu cai, fiquei hospitalizada alguns dias, com sintomas que hoje se fala de Síndrome do Pânico, ansiedade e tal e tal, mas era uma auto exigência muito grande, que eu fazia profissionalmente para desempenhar o melhor que eu pudesse para não decepcionar o chefe e também, meio que assim, me sentir responsável por tirar essa mácula das colegas que se deixaram levar por alguma práticas, achava assim, o fim da picada, entendeu? Sentia uma vergonha. Mas o fato é que eu não dei conta, que eu ia muito do trabalho para casa, da casa para o trabalho, não me dava ao desfrute de muito lazer, não tinha vontade, na verdade. Porque o divórcio naquelas condições foi bastante doloroso, eu fiz a coisa certa no meu entender foi a melhor coisa que eu fiz, mas eu fiquei muito sem companhia, que quando você é casado, você tem um circulo de amizades de casais, certo? Depois, quando você volta a ter um outra condição e filhos e um trabalho muito exigente, você fica, automaticamente, mais isolado, sim. Para a mulher, pelo menos, eu acho que pesa muito, não sei, para o meu ex-marido não pesou, eu vejo que para homens não pesam tanto, aliás, acaba arranjando uma outra companheira ou refaz a família, vê a criança a cada 15 dias, enfim, mas para a mulher não, para mim, pelo menos não foi assim.
P/1 – Depois ele melhorou?
R – Ele chegou a perder cargo, ele já era um gerente na Embratel, mesmo sem ter o terceiro grau, o conhecimento técnico que ele tinha em telecomunicações, é um gênio também, então tem isso, um gênio meio mal compreendido, taxavam ele assim, não tinha o que ele não resolvesse. E ele melhorou quando, na verdade, tivemos que nos divorciar para ele entrar numa outra fase, certo, vivenciar as perdas, procurar terapia, a Embratel ainda existia, ele ainda era um funcionário, uma parte da Embratel já estava terceirizada, mas ele conseguiu esse apoio e aí finalmente, ele encontrou uma moça bem mais jovem, com mais paciência do que eu, sei lá eu, ou sem filho para criar, porque tem isso. Se o cara é muito carente, tem carências internas de infância, sei lá, da vida pregressa e tenta ficar disputando essa atenção da esposa com os filhos, isso não acaba bem, certo? Ele não foi capaz de ter esse diálogo durante o casamento, não conseguiu se expressar. Eu sempre assim, sou falante, não sou uma pessoa travada para conversar, mas ele não conseguia, ele preferiu usar álcool, drogas, ir para um outro caminho do que o diálogo. E aí, ele foi melhorando conforme ele viu que tinha perdido tudo, porque a Flavia e Nicolas não queriam vê-lo, demoraram cinco anos para querer vê-lo a primeira vez depois da separação. (...) TRECHO RETIRADO A PEDIDO A DEPOENTE
(...) Fiquei divorciada 20 anos. não tive muito interesse em relacionamento acho que por medo, mesmo. Apareceram alguns pretendentes, sim, claro, aparece, mas ou eram homens casados que queriam uma aventura ou também divorciados, cheios de problemas (risos) e eu não tenho muita paciência com homem, sabe? Sou uma pessoa mais prática e homem muito carente, muito manhoso, muito nhê, nhê, nhê não rola. Até que há cinco anos atrás, eu encontrei uma pessoa, aquele marido que eu tanto idealizei lá no passado distante, apareceu a alma gêmea.
P/1 – Que bom. E naquela época, você ainda morava na casa dos seus pais ou já tinha saído, como é que foi?
R – Nessa época…
P/1 – Cinco anos atrás, quando você conheceu…
R – Não, não. Eu pedi para reincidir o meu contrato no hospital, eu queria, na verdade, depois da Síndrome de Burnout, que eu não sabia que era na época, não tinha esse nome, mas era uma estafa tremenda. Aquele dono, aquele foi o chefe direto, ele faleceu de um câncer de pulmão, que talvez já viesse, mas ele não falava nada para ninguém, pelo menos para nós foi assim, um câncer fulminante e quando ele faleceu, os outros sócios não contiveram a ganância e começaram a fazer as retiradas que esse sócio majoritário não permitia que fizessem, para a empresa crescer, para ter o reinvestimento, para ser a potência em que se transformou, mas os outros nove sócios começaram a retirar o seu pro bono, o seu pro labore e no falecimento dele, era necessário alguém que administrasse o hospital, porque ele era médico, mas ele tinha o dom da administração e ele tinha um superintendente e ele fez daquilo a potência que se transformou em tecnologia, em referência mesmo hospitalar e os outros sócios não tiveram esse zelo, eles queriam dinheiro. Estavam já com uma certa idade, os filhos, talvez, herdeiros, pressionassem por dinheiro, porque isso a gente sabe que é assim, até que colocaram um administrador caçado por esses head hunters e nessa minha andança por hospitais, eu passei um tempo, uns meses, não chegou a um ano trabalhando para uma concessionária famosa, chamada Sodexo e a Sodexo atuava em alguns hospitais, entre eles, um em São Bernardo do Campo, pequeno, bom de trabalhar, mas com uns oito, nove meses de Hospital Amico São Bernardo pela Sodexo, eu recebi essa proposta de ir para o Hospital Brasil, o próprio administrador da Amico, a quem eu me reportava, ele falou: “Você não tem perfil para concessionária, você tem perfil para autogestão, aqui a Sodexo talvez não fique muito tempo, porque ela me dá problema de superfaturamento e como você já conseguiu me mostrar que é possível trabalhar 23% abaixo da inflação, eu só fazia os meus cardápios, entendeu? Só que ele monitorizava o custo, em dólar, na época. Ele falou: “Então, eu talvez tenha que tomar algumas atitudes, talvez essa empresa não fique aqui, mas pelo seu potencial, eu vou fazer uma indicação para um hospital que é até bem perto da sua casa. Foi assim que eu fui parar no Hospital Brasil, por indicação do outro administrador.
P/1 – A gente começou falando da questão de quando você saiu da casa dos seus pais…
R – Isso. Quando eu pedi, então, para reincidirem o meu contrato no Hospital Brasil, depois da estafa, devido a entrada de um administrador bastante ganancioso pelo falecimento então daquele majoritário, entrou um que eu conheci de passagem na Rede Amico, supervisora me levou para conhecer e ele era tido, entre os adventistas, como um diretor bastante gastão, ele gostava de bordar e pintar, enfeitar a unidade hospitalar. Ele já tinha alguns conceitos de hotelaria hospitalar, mas para você fazer hotelaria hospitalar, você tem que ter caixa, porque custa caro, implantar e manter, né? E para fazer um bom hospital, você tem que ter bons médicos, boa estrutura, pensa nas Santas Casas antigas, tinha bordado? Tinha pintura? Assim, usando uma linguagem analógica, mas eram camas brancas, paredes brancas, roupa de cama limpa, alimentação adequada e na hotelaria, toda essa negociação de fornecedores para ter pisos de mármores, granitos, torneiras quase banhadas a ouro, entendeu, todo esse enfeite, é aí que é o problema para o caixa, porque quem está intermediando isso rouba mesmo, superfatura mesmo e eu vi isso com os meus olhos e esse tal diretor que veio cassado da Amico para lá, quando ele olhou na minha cara, ele falou: “Você já trabalhou na Sodexo, eu te conheço. Então, eu não vou ter problema nenhum em terceirizar a nutrição”, porque são nas terceirizações, também, que come-se altas bolas, a autogestão não dá gastos se administrado direitinho, mas quanto mais você terceiriza, quem administra, quem fica no meio do caminho, é como político, certo, é a mesma coisa, quanto eu vou ganhar nesse contrato? É 30%? É quanto? É 20, 28? É quanto? Então, eu já sabia que ele tinha má fama nesse aspecto e ele começou realmente a espremer os setores para ver onde ele podia enfiar a mão, comigo não conseguiu, mas foi suado lutar contra isso, contra o assédio dele nesse sentido de querer superfaturar, né? E aí, ele conseguiu na Arquitetura & Construção, que o hospital estava expandindo, então voltando, eu tenho toda essa consciência econômica, política e tudo mais, então foi difícil ser profissional da nutrição nas instituições, onde chega uma hora que o chefe muda e o chefe quer realmente superfaturar e a nutrição é muita compra, você compra muito de tudo. Foi difícil? Não, não foi difícil. Aliás, foi fácil? Não foi fácil, não é até hoje, né?
P/1 – E aí, nessa saída foi quando você também saiu da casa dos seus pais?
R – Eu consegui juntar dinheiro. Esse foi o meu objetivo, foi o meu objetivo juntar a rescisão, arrumar um outro emprego, eu fui para consultório, exercer nutrição clínica nos moldes que eu sonhava, não ganhava uma fábula, mas era o suficiente para não mexer nas aplicações, do dinheiro da rescisão e mais o que eu tinha juntado, até que eu prestei concurso na Prefeitura de Santo André, passei, fui chamada, não de imediato, mas depois de um ano e meio e feliz da vida, eu achei que ia poder fazer saúde pública, nutrição e saúde pública que era um outro sonho, profundo. Mas a roubalheira era pior ainda (risos). Então, dependia de tantas articulações para você poder fazer o mínimo e por mais que eu tivesse pedido para mudar de um setor para o outro, de merenda escolar para refeições coletivas, para cá e para lá, acabei em vigilância sanitária, as licenças sanitárias são vendidas por 30, 40 mil reais. Então, essa coisa da corrupção que hoje está exposta, mas ela sempre esteve entre os empresários, certo? Na política, de uma forma mais velada, não se faz nada sem uma contrapartida. Então, para você mudar assim, um achocolatado para servir para uma criança na merenda, por mais que você descreva o objeto de licitação, perfeitamente: “Quero com menos sódio, mais isso, mais aquilo, mais cálcio… não sei o que…”, você não pode também direcionar, porque vai parecer que você está favorecendo esse ou aquele, dentro de todo rigor técnico, na hora da solicitação, os fornecedores, aqueles que se inscreveram para participar, eles ficam lá, entendeu? Ficam lá fora trocando, fora da sala, antes do início do pregão, ficam trocando informações para quem vai pegar. Um deles vai pegar e o outro paga a diferença para o outro que não entrou, não entrou de propósito, eu não consegui emocionalmente, administrar nada disso aí. Aí, veio o segundo burnout, muito mais grave, então no dia de hoje, eu me encontro afastada da profissão há cinco anos. Faço trabalhos voluntários, principalmente em diabetes, aquele consultório que eu disse, eu fui lá exclusivamente para trabalhar com endócrinos e para trabalhar com diabetes. Diabetes e consequências, não é? Muitos têm muitas sequelas, já, porque por ser portadora de um distúrbio chamado hiperinsulinemia, o corpo fabrica mais insulina do que o normal das pessoas, então como se me fosse injetada insulina assim, direto, então isso dá crise de hipoglicemia contínuas, então, conviver com isso a vida inteira eu convivi com isso, por isso, o gosto, o desejo por compreender a fisiologia, o metabolismo, não para me auto tratar, mas foi muito mais prático tratar os pacientes diabéticos tendo esse distúrbio do que se eu não tivesse. A empatia era imediata, né?
P/1 – Espera só um pouquinho que agora eu queria até mergulhar um pouco nessa história, eu não sabia, você já tinha esse distúrbio. Conta desde quando você já tinha esse distúrbio, como e que foi descobrir isso? Crises de hipoglicemia, por exemplo, que você já disse que você já teve. Teve alguma mais…?
R – Provavelmente, eu nasci com esse distúrbio, ele é proveniente de algumas situações clínicas, entre elas, Síndrome dos Ovários Policísticos. Hoje já se sabe, já se faz até em crianças que passam em postos de saúde, já se faz alguns exames de sangue e imagem, porque a portadora de Síndrome de Ovários Policísticos, a menina portadora, ela é uma candidata a ter diabetes tipo um ou 2, provavelmente, tipo dois na maturidade, como agora, o meu caso. Então, existe no intrínseco dessa patologia, uma resistência a insulina e a insulina não é efetiva. Então, o pâncreas fabrica cada vez mais, não é, até que o corpo fica intoxicado com insulina e ela não é efetiva, certo? A primeira crise de hipoglicemia eu tinha uns 18 anos, estava indo no ônibus para Mogi. Eu acordava quatro e meia da manhã, seis horas em ponto passava o ônibus numa avenida de Santo André, era um fretado que levava até Mogi, demorava uma hora e meia, duas, Mogi naquela época era nada, era a UMC construída e um terrão em volta assim, não tinha coisa nenhuma, um deserto, um descampado, uma coisa assim, apavorante. Eu não conseguia me alimentar muito bem de manhã, então, tinha crise de tontura, mas isso demorou um tempinho até o médico diagnosticar e perceber que era alguma coisa mais metabólica do que simplesmente ficar sem se alimentar por um período, né? Então assim, desde 18 anos que eu entrei na faculdade, para mim é comum levar lancheira com tudo que eu preciso comer durante os períodos que a glicemia ia caindo espontaneamente, não me foi difícil, então, compreender depois na clínica o que acontecia, como se tratava. Em 2000 já, saindo do Hospital Brasil, indo para um congresso de diabetes da Associação, não a ADJ, a ANAD – Associação Nacional de Diabéticos. Ela promove um congresso todo ano de atualização. Sempre em julho, eu sempre fui e no ano de 2000, teve um painel de uns 15 minutos, duas nutricionistas que foram fazer treinamento nos Estados Unidos, numa determinada técnica que propicia através da alimentação, controlar muito bem a glicemia e eu olhei para o painel, olhei para a minha lancheira, eu falei: “Tá explicado, agora eu entendi tudo”, as colegas não entenderam nada, porque como elas não vivenciam na pele, foi tudo muito rápido, falei: “Então é isso. Então, se você comer isso com aquilo, 30 gramas de carboidrato, então sai da hipo e está tudo resolvido, você come a sua próxima refeição” então para mim, aqueles 15 minutos foi um mestrado, se você entende o peso da coisa, né? Como eu era muito magrinha, porque não conseguia me alimentar muito bem, tinha muita náusea, tontura, então tem isso essa Síndrome, né? Você vai vivendo, assim, meio cambaleante, mas vai. Difícil participar de alguns eventos em alguns horários, então, só por Deus, como diz o ditado é que eu estava naquele congresso. Tinha uma amiga nutricionista que me escorava assim, né, porque era uma hipo atrás da outra e aí, quando eu olhei o painel e vi aquilo, e comi todos os quitutes que eu tinha levado, comi a combinação que foi indicada ali, menino, em 15 minutos eu estava boa. Eu falei: “Gente, é assim tão simples? Eu não acredito! E tanta gente sofrendo e até morrendo e é só uma questão de contar carboidrato? Jesus, Maria José!”.
P/1 – Mas isso foi em que ano? Desculpa.
R – Dois mil.
P/1 – Foi relativamente recente isso e você já convivia com esse distúrbio há muitos anos, como é que você fazia o tratamento?
R – Não tinha tratamento, ninguém sabia. Tinha que comer e pronto. Comer a cada duas horas, três horas, mas comer o quê? Não é? Às vezes, eu comia uma maçã, às vezes, eu comia um pão com manteiga, às vezes, eu tomava um copo de leite, mas eu percebia como os pacientes também percebem, depois convivendo com eles que o resultado na glicemia era completamente diferente. Às vezes, você comia aquilo e se sentia bem e às vezes, comia outra coisa disponível e não se sentia tão bem, vinha outra crise e no fim, é uma coisa aritmética, alguns alimentos têm carboidratos, outros não. No entendimento popular: “Não vou comer carboidrato, é pão, batata, macarrão, biscoitos, farinhas…”, a fruta é cheia de carboidrato e o leite também é, ou seja, o queijo não tem, carne não tem, ovo não tem, peixe não tem, então, às vezes, eu comia um pedaço de queijo e vinha outra crise, claro, zero carboidrato, não vai se transformar em glicose, precisava da glicose. E às vezes, eu tomava um copo de leite e ficava bem, razoavelmente bem. Então assim, por experiência, empiricamente, eu já sabia que alguns alimentos funcionavam muito bem e outros não e não tinha nada a ver com calorias e foi o que eu aprendi na escola, que está na cabeça das pessoas, que é o que se ensina, infelizmente, até hoje na faculdade de nutrição e não é nada disso. Então, é um conhecimento revolucionário que as moças trouxeram e quando eu fui pesquisar a fundo para entender mais, é uma técnica que existe desde 1935 na Europa e 45 nos Estados Unidos, onde foi montada a Clínica Joslin, pelo médico diabetólogo que tinha um contato com um diabetólogo na Argentina que fez um livro de terapia nutricional pelo qual eu estudei lá em Mogi. Então, o que eu aprendi na escola não era de todo contrário ao meu pensamento a respeito de como engendrar os alimentos, as combinações de modo a dar um resultado clinico palpável de bem-estar, que não tinha a ver com o cálculo de calorias, que até os programas, os softwares começaram a brotar como chuchu na cerca, entendeu? Tinha alguma coisa a mais que precisava ser observada. E essa técnica, chamada contagem de carboidratos, é o nome oficial dela, foi revolucionário tanto na minha vida quanto dos pacientes com os quais eu lidei e me dediquei dez anos somente a isso, à instrução a diabetes, a educação em diabetes, a trata-los com essa técnica. Todos eles, independente, de terem recursos para insulinas mais sofisticadas ou menos, enfim, atendimento pelo SUS ou por um médico de referência, assim como eu fiquei bem, pelo menos você sabe o que comer, como prevenir crises, o diabético depois de uma hipoglicemia, se ele não sabe o que comer, a hiperglicemia é certa porque o médico fala: “Coma qualquer coisa doce”, você está com baixa de açúcar no sangue, mas isso é o dito popular, um médico deveria nem que ele não fosse especialista, ele deveria ter essa informação e não tem, não é qualquer coisa doce, precisa ser 15 gramas de carboidrato na forma liquida, isso você encontra em suco de laranja, em refrigerante convencional, numa colher de sopa de açúcar, os saches prontos que já vendem nas farmácias, que são os saches também que os esportistas usam para repor glicose, então, existe um protocolo, existe desde 1945, gente! E tem gente morrendo disso ainda, entendeu?
P/1 – Você estava contando a sua primeira crise de hipoglicemia no ônibus, indo para a faculdade, como foi? Você acabou não descrevendo.
R – Foi aterrorizante, eu não sabia, não tinha nada para comer, então o ônibus de Mogi teve que parar na estrada, o motorista desceu, não tinha barzinho, mercearia, nada, já estava na área de Suzano, saindo de Suzano, mas tinha uma casa, casa talvez de alguns trabalhadores daquela Celulose Suzano e ele entrou lá para pedir alguma coisa para uma estudante comer que ela não estava passando bem, senão, ela ia desmaiar e não sabia o que fazer. Aí, veio com um pedaço de bolo e um pouco de leite. Então assim, a solidariedade, né? A pré disposição dele, proativo e tudo mais, veio e eu comi, comecei a sair daquele ar cadavérico, ficar mais aquecida e aí, tocamos em frente, cheguei lá, lá eu assisti a primeira aula, aí não passei muito bem, aí fui para o pronto-socorro e assim, os quatro anos de faculdade, eu era a freguesa do pronto-socorro de Mogi, da Santa Casa.
P/1 – E você não sabia o que estava acontecendo ainda?
R – Nenhum médico sabia. Tinha uns que me deram calmante. Como a hipoglicemia, ela se assemelha a uma crise de pânico, se for muito forte, muito intensa, deram Vertix, deram… agora não me lembro do nome da droga, tranquilizante, tarja preta, mas dava efeito contrário, não funcionava, não era isso, né? Dormia melhor, dormia como uma pedra, não conseguia acordar para ir para a faculdade, parecia um zumbi. Então, você passa, o portador passa por várias mãos de vários médicos, mas o conhecimento desse distúrbio no Brasil, não sei em outras partes do mundo, mas no Brasil, ainda é muito pequena.
P/1 – Qual que é o nome do distúrbio?
R – Hiperinsulinemia.
P/1 – Como que você descobriu?
R – Já trabalhando na clínica de endócrinos. Eu peguei o exame de uma paciente, ela passou em consulta nutricional e vinha a ficha médica. E eu olhei o exame de sangue dela e tinha o valor de normalidade e o valor aferido e ela tinha Síndrome dos Ovários Policísticos, ela estava tomando um determinado medicamento para diabetes, que a endócrino receitou, na hora, eu não entendi nada, que a gente passa por esses apertos no consultório, não é tudo que você sabe, entendeu, você tem que caçar. Você sai do consultório, atende todo mundo e se joga nos livros e vai pesquisar, não é? E ela fabricava cinco vezes mais insulina do que o normal e tinha sintomas parecidos com os meus no que ela relatou, né? Aí depois que eu atendi, fui embora e depois no dia seguinte, eu fui, pedi para uma endócrina, falei: “Você pode prescrever esse exame para mim? Que eu quero fazer porque eu preciso confirmar isso”, falou: “Sem problemas, está aqui”, fiz, aí confirmou, aí eu olhei preto no branco, certo, glicemia e insulina de jejum, glicemia e insulina pós almoço, né, pós - prandial e era cinco, seis, dez vezes, depois do almoço, dez vezes mais que o normal. Então ficou claro, ela falou: “Você tem histórico de Síndrome dos Ovários Policísticos?”, falei: “Sim e algumas mulheres da família também”, ela falou: “Porque é genético, passa de geração para geração, uma mulher passa pra outra e dá mesmo esse tipo de sintoma, mas o seu pelo jeito, é intenso, porque a maioria das moças não relata tanta crise de hipoglicemia e tudo mais. É que você tá muito magrinha, se você tivesse um pouco mais de corpo, ganho com exercício físico, de preferência, diminui a intensidade das crises”, aí então, eu procurei fazer mais exercícios, mais caminhada, eu perguntei para ela: “Qual o medicamento?”, ela falou: “Não existe. Se for o caso, mais tarde, se aparecer algum outro, alguma outra complicação, provavelmente, os mesmos remédios para diabetes”.
P/1 – Agora, você descobriu essa síndrome nessa ocasião, mas antes de descobrir, você já sabia que tinha crises de hipoglicemia ao longo da sua vida…
R – Sim.
P/1 – E não sabia exatamente o que originava essas crises.
R – Eu não sabia que se você fizesse uma alimentação sequencial, com as combinações adequadas de alimentos, nas crises, você consegue ficar assintomático, tá? E isso que esse método, essa ferramenta, ela é revolucionaria, apesar de tão antiga, o efeito clinico dela é revolucionário nesse sentido.
P/1 – E como que foi viver uma vida com crises recorrentes de hipoglicemia? Qual foi a pior crise que você teve? Pior situação em que você se envolveu por causa disso?
R – A mais constrangedora foi no trabalho, no próprio Hospital Brasil, onde havia toda aquela pressão do novo diretor, querendo pintar e bordar e se você fica muito nervoso, ansioso, o corpo secreta adrenalina, certo? Adrenalina é um hormônio que eleva a glicemia, eleva o açúcar do sangue, tira a glicose dos músculos e joga na corrente sanguínea. Isso é uma reação biológica ancestral, é o que o homem das cavernas também acontecia com ele, só que isso acontecia porque ele estava em alerta, ele ia correr, atacar, né? Hoje, nós fazemos a mesma reação, mas não vamos sair tapeando ninguém, né? Nem subindo numa esteira ergométrica, você está no trabalho, está estressado, super adrenérgica a coisa e você tem que continuar ali, fazendo suas coisas, só que o corpo reage, o corpo sente. Então, quanto mais glicose no sangue, se você sofre de hiperinsulinemia, provoca o pâncreas, o pâncreas não fabrica uma gota de insulina, ela fabrica um balde e a glicemia, o que acontece? Despenca. O normal é assim, com 70 miligramas/decilitro, você sente um pouquinho, a partir disso você já sente sintomas. E eu cheguei a ficar com 35, então um funcionário me levou para o pronto-socorro do próprio hospital, fiquei lá na maca, tomei glicose, tomei calmante, então isso bastante constrangedor, mas assim, foi constrangedor a vida inteira porque as pessoas não entendiam. Eu com dez anos, uns 11 anos, ia para uma festinha, eu sentia um mal estar, com certeza, era uma queda de glicemia e você fica irascível, fica irritadiço, agressivo, é o que todo diabético passa, só que o que é essa síndrome? É um pré diabetes, entendeu? Os médicos alguns dizem que não, outros dizem que sim, mas se houver algum evento como ganho de peso, como foi o meu caso em curto espaço de tempo, esse quadro pode se transformar no diabetes tipo 2, no mínimo. Mas voltando ao que você perguntou, como é conviver com isso, é uma pessoa discriminada, como um diabético é discriminado, quem tem essa síndrome nem sabe o que é e ninguém nem sabe, você pode dizer o nome, explicar e a pessoa não entende nada, mas o seu estado de humor oscila, muitos vão parar até em psiquiatras com diagnósticos de transtorno bipolar e não é nada disso, é só hiperinsulinemia, mesmo e conforme o açúcar no sangue sobe e desde, a sua disposição para o humor também muda, a sua tensão pode estar maior ou menor, mas a coisa da irritação é muito presente, muito lábil, você fica uma pessoa de pavio curto, se você não tiver o devido descanso mental, se as pessoas também não tiverem a compreensão disso, as pessoas não têm, na verdade, né?
P/1 – Você disse que esse caso no hospital, até porque você trabalhava lá, você classificou como constrangedor, mas qual foi a situação que você acha que tenha sido talvez a mais perigosa?
R – Glicemia de 35 é perigoso, pode entrar em coma, mas eu tive um socorro assim, de cinco minutos. Mais perigosa? Eu estava voltando para casa, nessa minha saga pela prefeitura, eu pedi para trabalhar em todos os departamentos possíveis e imaginários, né, e fui parar na cozinha central que faz as refeições de todos os funcionários servidores municipais de Santo André. Agora, terceirizou, mas era autogestão, 60 mil refeições por dia, então é um prédio gigantesco. Então, espaço também diferenciado e Santo André é dividido pela linha do trem, sempre foi, para lá, para cá da linha do trem e para lá da linha do trem (risos), tanto é que é zona leste e zona oeste e a casa central regional de abastecimento, de onde saiam as tais refeições eram para lá da linha do trem. Para lá da linha do trem é tudo enrolado, tem a avenida do estado que passa no meio, quando dá temporal, aquilo enche de água, ninguém passa, ônibus, coisa nenhuma, eu não dirijo, dependo de condução e fora de mão, tinha que caminhar, enfim, temporal de fim de tarde, deu enchente na avenida do estado, eu não tinha nada para comer, para não dizer que eu não tinha nada, eu tinha uma barra de cereal. Aí, o motorista assim que baixou, ele conseguiu passar para cá da linha do trem, vir para o outro terminal rodoviário da região que eu moro, atravessar a avenida do estado, só que para cá, estava mais cheio de água ainda. Então, ele parou ali, ele chamou o bombeiro e o bombeiro teve que tirar a gente, eu fui a primeira a ser socorrida, porque eu já estava assim, nem falava mais. Ele tirou a gente pela janela, aquela janela de segurança, assim gente, uma aventura, entendeu? Ter esse distúrbio, você tem que ser muito desprendido para levantar no dia seguinte, falar: “Espera aí, é mais um dia, vamos em frente, cabeça erguida”, a depressão é uma comorbidade ligada a hiperinsulinemia, não pelas situações constrangedoras pelas quais você passa, mas essas alterações de glicemias altas e baixas prejudica a fabricação de serotonina, então chegou o momento que eu tive que ser medicada e sou medicada com antidepressivo. Então, equilibrou isso, então um outro medicamento que é para epilepsia, mas em dose pequena, ele ajuda a você não ter tanta oscilação de humor, então são doses baixas, mas que mudaram a minha vida totalmente, eu não estaria aqui hoje conversando, assim desprendidamente se não fosse esse apoio terapêutico.
P/1 – Nadia, você tem esse distúrbio desde sempre. Você trabalhando na área da nutrição, na área hospitalar, de certa forma, você já sabia que existiria uma chance enorme de mais cedo ou mais tarde, o diabetes chegar. Como que foi conviver com isso, como é que foi essa espera assim?
R – Quando você tem esse distúrbio, que segundo algumas amigas minhas, que são nutricionistas e diabéticas tipo 1, são diabéticas desde os seis anos, sete anos, aplicam insulina, agora as insulinas estão moderníssimas, elas falam que é pior do que eu, o meu caso é pior que a diabetes, que toma insulina, porque o seu corpo vai fabricar insulina num horário que você não sabe qual é, que alguém que aplica insulina ela sabe quanto ela está aplicando, que resultado vai dar e pronto, sabe o que eu tem que comer e se resolvo.” Mas com você, não é assim. Então, como é isso?” Falei: “Você lida com uma incerteza diária, você tem sempre que sair com alimentos, isso acaba incutindo, torna-se automático, assim como você sai, leva a escova de dentes na bolsa, leva absorvente, leva tal, eu tenho a minha lancheira. As pessoas, isso incomoda o entrono. Depois de um tempo, você introjeta, aquilo não passa a te incomodar, é automático, entendeu? Você estava sentindo a glicemia cair, você vai lá, come o que tem que comer, mas as pessoas ficam… você vira meio que um ET, assim. É estranho como é difícil aceitar a diversidade, não é? Isso, eu convivi com isso sempre. Eu me tornei, provavelmente, mais introspectiva, mais estudiosa, mais pesquisadora porque o convívio com outras pessoas nunca foi fácil por esse motivo: “Como ela é enjoada, como ela é nervosa, como ela é assim, como ela é assado”, porque é fácil rotular, mais complicado compreender. Então, amigos poucos, meia-dúzia, se muito que compreende, acompanharam a história de vida até pouco tempo, que as coisas vão se diluindo, com quem eu tinha uma troca, podia ser eu mesma, digamos assim, porque esse tipo de distúrbio não permite que você seja você mesmo em todas as situações, você é obrigado a recusar convites de eventos para certos horários, você não é muito produtivo de manhã, é mais de um certo período da tarde para noite, então sim, afeta o biorritmo, afeta o modo como você organiza a sua vida.
P/1 – Você já fazia as medições de glicemia?
R – Não. Quando eu tive o segundo Burnout, precisei tomar uma dose maior de antidepressivos, de calmantes. Coincidiu com menopausa e a necessidade de tomar um hormônio que me engordou 20 quilos, mas se eu não tomasse o hormônio, eu ia morrer sangrando, não tinha escolha, progesterona, dose alta para ir secando a menstruação, certo? A minha, ao invés de ir diminuindo, foi aumentando, até por causa do próprio, da questão dessa genética do ovário policístico, já se esperava, mas poderia ser que eu escapasse, mas não escapei, né? Então, a progesterona fez com que eu engordasse esses 20 quilos de maneira rápida, que você estufa igual um balão, você come pouco e isso não importa, você engorda, né? Aí, eu falei: “Preciso comprar um glicosimetro”, mas assim, o quanto a gente aguenta de verdade? Eu tenho me questionado, sabe? Agora que eu tenho condições de me colocar literalmente no lugar de alguns pacientes que eu tive, até quanto a gente aguenta de verdade? Pegar, medir, olhar, fazer um exame. Quando eu fui ao ginecologista por causa dessa questão do sangramento, menopausa, ele passou uma lista gigante de exames. Eu fiz? Não tive coragem de fazer. Então, você vê que o conhecimento, ser um profissional, entender, intelectualmente entender, mas você, ser humano, com seus medos, com suas fragilidades, muitas vezes, você não consegue dar o passo, não é porque você tem o conhecimento também, que você vai ser proativo quando se trata de si próprio, você precisa de um apoio, de um empurrão, de alguém que te pegue pela mão. E isso aconteceu quando eu conheci o Valter, começamos a ter um relacionamento de amizade, a princípio, então ele foi a mão, aquela mão que faltava e para isso, os meus pais que já são de idade, amigas ocupadas, eu também não queria transferir, né? Enfim, quando eu tive esse ganho de peso e pensava em comprar um glicosímetro, fiquei naquele contemporizando, né, faço? Não faço? Não, o que eu vou encontrar? Não vou conseguir administrar. Até que há três semanas atrás, comecei a sentir secura na boca, urinação excessiva, sintomas clássicos de um pré diabetes ou diabetes, não dei muita trela, fiquei uma semana assim, procrastinando, até que isso foi se intensificando, até que chegou no fim de semana retrasado, que chegou num ponto assim que eu fui para a internet de madrugada comprar um glicosímetro, escondido do Valter, de todo mundo, comprei o glicosímetro meia-noite, chegou meio-dia, medi, deu 398, aí eu telefonei: “Vem pra cá, eu acho que eu tenho que ir para o pronto-socorro”. Mas você olha, você não acredita, entendeu? “Chegou minha hora? Aí, que merda. E agora? O quê que eu faço? Vou para o pronto-socorro, para onde? Faço o que?”. Aí o Valter chegou, me arrumei, peguei lá, falei: “Para o pronto-socorro, não, acho melhor dobrar a esquina, tem uma clínica de endócrino aqui, logo no quarteirão daqui, dois quarteirões e parece que ele tem um pronto atendimento lá, acho que é melhor, né?”. Então, aí cheguei na clínica, a moça não sabia o que fazer, falei: “Preciso de atendimento” ”Doutor vai chegar daqui uma meia-hora, a senhora quer beber uma água?”, não sabiam bem o que fazer, eu estava meio zonza, enfim, ele chegou, mandou a enfermeira fazer teste, pesar, medir, enfim e falou: “A senhora é diabética desde quando?”, eu falei: “Descobri faz meia-hora”, ele falou: ”Que bom! A senhora nunca passou em médico nenhum com essa queixa, nada?”, eu falei: “Não”, contei do histórico, ele falou: “Não é grave. A senhor vai sair daqui medicada, instruída”, passou todas as instruções. Hoje faz dez dias e a glicemia de quase 400, agora está 127. Aí, uma pessoa falou: “Mas você sabe que ele é um do dez médicos mais renomados na área?”, eu falei: “Eu não tive tempo de pensar em nada, simplesmente eu dobrei a esquina e cai lá”. Mas assim, agora, já passado esse período de susto, é muita sorte.
P/1 – Me explica uma coisa para um leigo. Você tinha esse distúrbio que fazia com que o seu pâncreas produzisse muita insulina, de modo que como consequência, entre as tais possíveis consequências, tinha as crises de hipoglicemia, por causa do excesso de insulina. A longo prazo, esse distúrbio acabou acarretando o diabetes, que é ao contrário disso, não é? Porque o pâncreas para de produzir a insulina. Como é que funciona essa relação do seu distúrbio com o aparecimento do diabetes?
R – Eu até comentei isso, que foi uma das questões que contei na consulta e o Doutor márcio disse o seguinte, falou: “Não há nenhum estudo científico nível A de evidência que prove, que tenha provado que inerentemente, uma mulher, principalmente, mulher por causa dos ovários policísticos, portadora de hiperinsulinemia vá terminar em diabetes. A não ser que ganhe muito peso de maneira rápida. Então, ele falou: “É uma genética ruim associado a ganho de peso rápido e no seu caso…”, eu fiquei muito enclausurada nesses cinco anos, foi difícil sair desse Burnout, o segundo, né? Então, eu fiquei muito em casa, muito na minha, fazendo os meus trabalhos manuais, criando algumas coisas. A mente muito ativa, mas o corpo muito parado, eu não conseguia administrar sair da porta do apartamento para fora. É complicado. Medo de ter hipo, medo de… a síndrome de burnout, ela também é pouco conhecida, né? Fui em vários, aí sim, fiz uma peregrinação grande em médicos e ninguém tocou no assunto, não é conhecido nem nos médicos do trabalho, mas também, na época, fui.
PAUSA
P/1 – A gente estava falando disso, a relação entre o distúrbio e o aparecimento do diabetes.
R – Então assim, você entendeu, né? Não é condição sine qua non, certo? Mas como a menopausa é diabetogênica, assim como a gestação é diabetiogênica, ou seja, a mulher fica muito mais pré-disposta a desenvolver pelas questões hormonais, que naturalmente, criam resistência à insulina, então, o pâncreas, automaticamente vai fazer mais insulina. O meu caso especifico, ele disse que é uma crise, aquela hiperglicemia de quase 400 foi um episódio agudo, porque o pâncreas, no meu caso, ele está ineficaz no sentido de que ele faz muita insulina, mas a insulina não está fazendo efeito, porque as células criaram resistência, então ele explicou que quando eu tinha crises e crises de hipoglicemia, era melhor do que agora, que eu não tenho crise, porque fazer muita insulina e ter crises de hipoglicemia significa que não há tanta resistência, a insulina está fazendo efeito, apesar de todo esse histórico de vida que é complicado conviver e enfim. Mas metadologicamente falando, não há risco, a menos que a glicemia caia muito, você bata a cabeça, desmaie, sei lá o que mais aconteça, né? Porém, quando ganha peso e na menopausa, é na região central do corpo, é onde a insulina fica menos eficaz, ela é fabricada, mas ela… tanto é que a glicemia tava 400 quase, né? Com medicamentos, ele falou: “Agora precisa medicar para diminuir a resistência à insulina e diminuindo, limpa, as células voltam a respirar, porque o pâncreas está infectado com a própria insulina”, para você ver que mesmo com o nome diabetes tipo dois, tipo um, os quadros são diferentes, têm particularidades que só um profissional diabetólogo, metabologista já viu casos suficientes para conseguir analisar em meia hora, uma hora de consulta, detectar o que realmente tá acontecendo, né?
P/1 – E como tem sido essas duas, três semanas, Nadia?
R – Ele me colocou numa alimentação de zero carboidrato, então, ele tomou uma medida de choque. Medicação especifica para reduzir a resistência à insulina e também, fazer o fluxo, fazer a insulina funcionar, tanto que caiu drasticamente a glicemia, sem tomar insulina injetável, porém zero carboidrato. No que eu fiquei contente? Exultante, eu não entrei no luto ainda, não sei se vou entrar, porque existe no diabetes, a partir do diagnóstico da evolução, existe a negação, às vezes, total, existe o luto. Tá previsto nos artigos científicos, principalmente na área de psicologia, não sei se eu vou entrar no luto, porque eu fiquei exultante no sentido de que a dieta que ele prescreveu, na prescrição dieta terapêutica que ele teve que fazer na hora, até porque não precisou me encaminhar para a nutricionista, conversando, ele sabia que eu entendia o suficiente, ele prescreveu uma rotina dieta terapêutica que eu sempre defendi lá em 2000 e que não era bem aceita também, os médicos não entendiam, tinham resistência, entendeu? E eu falei: “Não acredito que você tá prescrevendo isso”, ele falou: “Por quê”, eu falei: “Então você também concorda com 40% de carboidratos totais nessa condição?”, ele falou: “Lógico”, eu falei: “Porque eu sempre prescrevi isso e tinha que explicar muito para médicos”, para o paciente, não, mas para médicos, tinha que explicar muito, o médico questionava. E as minhas colegas todas falando que eu era louca, que eu ia matar alguém. Ele falou: “Louca, sei, louca”, eu falei: “Então, você concorda que 50, 60% de carboidrato está fora de cogitação?”, ele falou: “Sim, no dia de hoje, com a população sedentária de hoje, 60% de carboidratos totais dentro do valor calórico que a pessoa tem o direito, é só para quem é altamente ativo, senão, nós vamos ter cada vez mais e mais diabéticos”. Olha, para mim foi um doutorado.
P/1 – Você introduziu perfeitamente o que eu gostaria de perguntar agora, que era a sensação de se ver do outro lado da história. Você construiu uma carreira ajudando pessoas do ponto de vista nutricional que eram diabéticos. Agora você está do outro lado dessa história, como você analisa isso?
R – Ele escutou um pouco da minha história de vida, rapidamente, ele deduziu, porque ele é o profissional do ABC, ele é o herdeiro de um dos hospitais de referência, então, dessa área hospitalar, do que aconteceu, de como os hospitais estão seguindo uma linha de progresso e aí, veio as compras, as terceirizações, tudo mais, ele sabe que os profissionais mais questionadores, que perturbam mais a diretoria, digamos assim, foram excluídos. Ele sabe, ele viu isso dentro do hospital que o pai dele era proprietário, né? Então, ele deu a entender, sutilmente, ainda, mas já deixou assim, claro que se eu quiser voltar a trabalhar como nutricionista clínica nesta linha lá na clínica dele como pesquisadora, junto com ele, tá tudo dominado. Então assim, não tem luto na minha descoberta do diabetes, porque na verdade, está sendo um resgate. Eu vou poder aplicar estando do mesmo lado do paciente, com conhecimento técnico profissional, mas com muito maior empatia, aplicando técnicas nutricionais com amparo médico com certeza do que estamos fazendo, que é o que sempre deu certo, mas os grandes lobbies fizeram por onde dizer que não, certo? Que quanto mais pessoas doentes, melhor. Infelizmente, é isso, né? Eu esperava que isso não acontecesse no serviço público. Eu falei: “Nossa, agora eu vou poder me realizar”, mas não. A saúde primária no serviço público, pelo menos aqui na grande São Paulo, grande ABC, no sul, sim, no sul nós temos um nutricionista, um endócrino, um psicólogo, um assistente social em cada posto de saúde de Curitiba, por exemplo não custa caro, no posto servidor público não custa caro. Custa caro fazer o que fazem, terceirizar serviço, não ter o atendimento de base primária para terminar lá dentro do hospital, porque os grandes desvios de verba estão lá, no atendimento terciário. É com isso que eu não…
P/1 – Compactua.
R – Não.
P/1 – E Nadia, nessa semana, você tem feito as medições? Como tem sido essa experiência no dia a dia?
R – Por intuição ou algo mais superior, eu comprei um glicosímetro rapidamente, isso não demorou mais que uma hora de internet a meia-noite para escolher, então dentre todos os disponíveis, eu escolhi aquele com a menor amostra de sangue, 0,3 micas, porque eu tinha medo das espetadas, morro de medo de agulha. E agora? Agora eu tenho que superar isso, vamo que vamo. E aí, eu fiz a compra certa, porque a picada é muito sutil, na verdade, é indolor, a gota de sangue é quase nada, porque é usado para bebês e crianças. Compatível, as fitas, compatíveis com outros insumos dessa empresa e fiquei na dúvida, na hora, na internet, fiquei super na dúvida, que eu me deslumbrei com um dos insumos, para controle de glicemia que é por escaneamento, já existe na Europa há algum tempo e assim, eu falei: “Não, imagina. Pra quê?”, mas assim, eu amo tecnologia, entendeu? Quando você trabalha muito tempo em hospital, na área da saúde, você ser portador de alguma coisa e ter que tratar, isso não é uma amargura muito profunda, não sei se eu consigo me explicar, não é um pesar. Aí eu falei: “Não, deixa eu comprar um glicosímetro tradicional e fazer”, então eu fui orientada a fazer duas vezes ao dia, eu faço umas quatro. Não dói, não é nenhum bicho de sete cabeças, tem aparelhos e aparelhos, esse custava o mesmo valor, até mais em conta do que alguns mais antiquados, então aí também, as pessoas estão desinformadas, entendeu? Muitas vezes, as pessoas vão por outros parâmetros, né? Gente, no existe informação nenhuma para diabetes, para hiperinsulinemia nenhuma mesmo, né? Haja a vista a história, mas para diabetes, nada, ninguém sabe, nos postos de saúde, em algumas clinicas, convênios. Eu estou atrás agora de uma pulseira para diabetes, não sei onde eu vou arrumar.
P/1 – E como que você, em termos de estado de espirito, de mentalização, digamos assim, como que você está encarando a sua vida de agora para frente com o diabetes, como você espera se relacionar, conviver com o diabetes?
R – Eu já estou fazendo de 20 minutos a 30 minutos de caminhada, não consigo fazer sozinha, meu marido me acompanha, que eu ainda tenho um… como é que eu diria? Medo não é o nome, um incomodo em sair de casa sozinha depois de cinco anos enfurnada lá. Então, ele me acompanha, pode ser em qualquer horário do dia, assim que ele chega, faço a caminhada, então, eu estou agora elucubrando, tentando introjetar que é necessário começar com 20, chegar até 60, eu vou ter que fazer um período dessa caminhada sozinha, nem que seja nos quarteirões de casa. O meu conflito e o meu incomodo está nisso, sair de casa sozinha pelo histórico, não pelo diabetes. Isso vai ajudar a perder o peso de gordura abdominal necessária para ficar, ao que tudo indica, quase assintomática. Então, isso depende de mim, não depende do médico, a medicação é muito eficaz, mas essa é a adaptação que eu, Nadia vou ter que elaborar. Então, com alimentação, não tenho dificuldade com o que foi prescrito fazer, frequentemente refeições dentro de um padrão, etc., não é problema, é até uma graça, no sentido divino, graça divina, porque eu vou poder testar em mim, que eu tenho agora o glicosímetro, certo, do que aquilo que já estava escrito lá atrás, que eu aprendi na faculdade, lá em 80, funciona que é uma beleza, é o que realmente funciona e não tudo que foi pautado até então. E particularmente, essa questão de me exercitar mais, vou ter que me expor mais, sair mais, expor o corpo, então essa é a dificuldade atual, que eu me sinto mais feia do que nunca, claro. As pessoas dizem que não, mas eu me sinto.
P/1 – E o quê que você pensa sobre a qualidade de vida? No que a relação diabetes e tudo que está em torno disso e qualidade de vida?
R – Eu sei que eu vou ter um bom resultado, eu, Nadia. Eu tive conhecimento, eu tive instrução, eu consegui ser proativa no momento adequado. Não é preciso muito para você ter essa qualidade de vida. Mas a questão não impacta a mim, por enquanto, talvez venha impactar, é o custo. O custo da qualidade de vida para o diabetes é substancial. As fitas são caras, o aparelho não, ele vem até de graça, se você comprar uma caixa com dois jogos de fitas, mas os insumos são caríssimos, não é? Então, não penso em nenhum dano para os próximos cinco anos, mas depois, já, francamente na terceira idade, não sei como isso será. É uma angustia? Tem passado alguns flashes dessa angustia pelo meu espírito, sim, então portanto, é necessário que eu tome tento, emagreça, não nos parâmetros estéticos, mas nos parâmetros médicos, para precisar o menos possível de insumos, controlar com no máximo, duas picadas por dia, duas fitas, duas lancetas e etc., não precisar de alimentos especiais, que a contagem de carboidratos já pressupõe isso, que você olhe no rotulo de um alimento, como formula dele, numa tabela, veja quanto você pode consumir naquela refeição e você come, independente dele ser diet, dele estar estigmatizado como light, zero, diet, etc. A indústria alimentícia usa muito desses artifícios para fazer com que a pessoa compre produtos que são quatro, cinco vezes mais caro do que o convencional e quando você olha carboidratos em gramas, o diet é pior em algumas marcas, então vai precisar de mais insulina se for o caso, entendeu? Enfim, eu tenho preocupação não para agora, mas para daqui três, quatro, cinco anos, sim, no sentido de que você fica mais velha, não se sabe o país se vai para esquerda ou para direita, literalmente, como ficam os custos em saúde. Eu acho que a preocupação de todo mundo que tá entrando na terceira idade é isso: “Vou ter dinheiro para bancar?”, não é? “Como é que vai ser? Será que até lá, os postos de saúde, medicamentos de alto custo que não estão sendo entregues vão poder estar mais fartamente disponíveis?’, são angústias que a gente passa.
P/1 – A gente está terminando. Tem alguma questão fundamental, assim, que você gostaria de falar, alguma coisa relevante, alguma coisa que você está com vontade de compartilhar com a gente em relação a esse aspecto do diabetes, ou não, outra questão?
R – Me sinto plena. Acho que não. Para mim está bom, me abri bastante, mais do que eu esperava. Vocês são muito…
P/1 – Acho que isso tem um pouco a ver com isso que você estava falando agora dos seus receios, talvez, o reverso disso, né? Quais são os seus sonhos hoje?
R – Sempre foi trabalhar em diabetes. Sempre. Mesmo quando era chefe de setor. Então, poder atuar voluntariamente até, se for o caso, a questão financeira, eu não consigo elaborar, não sou boa nisso, é claro que cobra-se para fazer um trabalho, né, é licito que se ganhe, mas não ganhar do paciente. Há uma possibilidade, acredito que no ABC, tenho dado aulas para algumas nutricionistas, capacitando-as na técnica para formar um grupo de atendimento específico para diabetes em nutrição, dentro dessa técnica, ou seja, passar tudo que eu sei, estou passando para colegas, se puder haver parceria com médico para que ele seja a referência, melhor, acredito que sim, que isso vai acontecer. Então assim, eu não vou morrer sem fazer isso, mas eu estou plantando já faz dois anos, mesmo antes de diagnósticos, de pensar nisso, esse anseio de capacitar profissionais mais jovens na técnica, nos conceitos metabólicos da nutrição para diabetes, deixar esse legado. Então, eu tenho esse anseio de deixar esse legado, certo? De capacitar essas moças, de supervisionar o atendimento delas, porque existe demanda, não cobrar preços abusivos, preços módicos, atendimento em grupo, porque isso funciona muito, você reunir grupos de pacientes hipertensos, diabéticos, enfim no caso, diabetes e dar os conceitos básicos: como o corpo funciona, por que esse alimento faz esse efeito, aquele não faz, enfim, numa linguagem coloquial, instruí-los de modo que eles se sintam mais empodeirados porque isso é muito importante, não é? Eu percebo que as pessoas que sofrem de doenças crônicas não transmissíveis, o diabetes é uma delas, ficam muito reféns do médico, do serviço de saúde, do que eles escutam no convênios assim por diante, sendo que nos outros países não é assim, nos postos de saúde, não têm esse nome, mas é isso, existem os grupos de discussão, onde os profissionais se revezam, dietista, não é nutricionista, psicólogo, médico, enfim, o especialista orientando os pacientes, de modo que eles troquem informações entre si, suas dores, suas alegrias e isso é provado em estudos, diversos estudos que isso melhora a qualidade de vida de todos, inclusive, daquele que participa como instrutor, não só do paciente. Então, essa troca é muito gratificante em ambos os lados, a gratidão é muito curativa.
P/1 – Uma última pergunta a partir disso, a gente já falou disso, você já falou disso que eu vou te perguntar em vários momentos no seu discurso, na sua história, mas eu não queria terminar sem fazer essa pergunta categórica, assertiva sobre isso, você como nutricionista e você como diabética, agora, qual você acha que é a importância, relevância do papel do nutricionista ou da nutrição ou da alimentação para o diabético?
R – É dito o terceiro pilar, medicamentosamente é necessário tratar, psicologicamente, os aspectos de atividade física e tudo mais, mas pela minha experiência, se não souber contar carboidratos, não consegue. Você pode gastar, usar a insulina mais cara, os medicamentos orais mais caros, mas se o diabético não souber quais alimentos elevam a glicemia e quais os alimentos não elevam a glicemia além do que deve, pode gastar o insumo que for, pode ir no médico que for, não dá resultado, é dinheiro jogado fora. Então, não querendo puxar a brasa para a sardinha de maneira excessiva, mas o profissional tendo esse conhecimento, é assim, fundamental. Entre médico e nutricionista, nesse aspecto, a importância se equivale, tá? Eu estou testando, na verdade, ele fez essa prescrição, justamente, para que ele também constate junto comigo, né? E olha que funciona, funciona de que maneira? Junto, entrosado, não adianta comer 60% de carboidrato numa dieta de 1.200 calorias, nossa, era o que se prescrevia, né, 1.500, 1.200 calorias era a dieta do diabético, mas uma dieta dessa pode vir a ter 60% de carboidrato, então, ela vai funcionar, mesmo com baixo valor energético? Não. Não sei se eu respondi (risos).
P/1 – Perfeitamente respondido. Te agradeço pela participação na entrevista.
R – Eu que agradeço. Eu lavei a alma, sabia?
P/1 – Foi muito bom te ouvir contar a tua história. Obrigado.
R – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
Recolher