Entrevista de Priscilla Monteiro de Andrade
Entrevistadora Paula Ribeiro
10/08/2021
Projeto Mulheres da Maré, Dignidade, Resiliência e Arte
Entrevista número MDRA_HV008
Transcrição revisada
00:00:54
P/1 - Boa tarde Priscilla.
R - Boa tarde.
P/1 - Eu gostaria primeiramente de agradecer a sua disponibilidade em compartilhar conosco, participar desse projeto, compartilhando um pouco da sua história e trajetória de vida, experiências, né? De vida pessoal e profissional. Muito obrigada, obrigada equipe.
R - Também agradeço, essa oportunidade de poder contar a minha própria história. Acho que é uma oportunidade rica, que bom que isso está sendo feito, e que outras mulheres e outras pessoas estão tendo essa oportunidade.
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P/1 - Então vamos começar do comecinho, nome completo, local e data de nascimento, por favor.
R - Meu nome é Priscilla Monteiro de Andrade, eu nasci em São João de Meriti. Tem até uma história desse meu nascimento, de como foi, por que eu fui nascer lá em São João de Meriti. Os meus pais eles moravam nos apartamentos ali do Alemão, em Nova Brasília tem uns apartamentozinhos que é aqui perto da Maré, e minha mãe, eu sou a última filha da minha mãe, ela queria fazer ligadura de trompas, não queria mais ter filhos, somos 03, e na ocasião minha mãe começou a sentir dor de parto e meu pai não estava em casa, era final de semana eu acho, meu pai estava bebendo, estava com os amigos, eu estava vendo o jogo e ela começou a sentir dor de parto, e aí mandaram chamar meu pai, o pai veio correndo, e eles tiveram que de lá da onde meu pai, onde eles moravam, em Nova Brasília, Alemão, para ir para São João de Meriti, porque era lá que minha mãe tinha conseguido ligadura de trompas. Porque enfim, pelo público era muito difícil conseguir na ocasião, e financeiramente era o que era mais possível. Eu sei que ela fala que foi uma aventura, porque a gente pegou o ônibus que era antigamente o 724 que passa em Bonsucesso para saltar em São João de Meriti para poder pegar outro, ela atravessou a linha de trem, tinha que cortar caminho pela linha de trem, e ela fala que quando ela estava no ônibus tendo as dores da contração, as pessoas ficavam, “ah meu Deus, ela vai ter filho aqui”, e o motorista tentou ir o mais rápido possível, ficavam, “senta moça, senta aqui que é melhor”, então ela: “não sentar é pior, sentar é pior”, e ficava lá sentindo as dores e rezando, pedindo para que nada acontecesse comigo, teve todo esse caminho, todo esse trajeto e quando ela chegou lá na maternidade eu já estava coroando, eu já tava nascendo, aí o médico falou, "vão pra sala já está parindo”, a minha mãe, “não é assim, ela não ia nascer era de cirurgia, eu vou fazer ligadura”. O médico falou, “não moça, sua filha já está nascendo, a cabeça dela já está aqui”. Ela, “não, mas por favor meu Deus!” Aí começou a chorar, porque ela achou que ia perder a ligadura de trompas, não ia poder mais fazer a ligadura, e ele teve que explicar para ela, a sorte que ela também encontrou um bom médico que falou pra ela, “não moça, está tudo bem, não, você não perdeu sua ligadura, você vai fazer, você vai fazer inclusive nesse momento, vai ser uma cirurgia até mais tranquila, porque vai ser menor do que uma cirurgia de nascimento de uma criança, que rompe muito mais, tem que fazer uma abertura muito maior, então vai ser muito melhor a sua recuperação, e tudo mais”, e foi acalmando a minha mãe. E foi aí que eu consegui nascer, porque ela não queria deixar eu nascer. E foi essa aventura. Meu pai conta que a mãe, enfim, é meio confusa a história, que cada um conta uma versão. Meu pai conta que quando foi escolher meu nome, eles queriam colocar meu nome de Patrícia, mas na época dos anos 1980 todo mundo se chamava Patrícia, lá onde que ela estava internada, todo mundo era a Patrícia. Ela, “ah não, não quero mais que a minha filha se chame Patrícia não, todo mundo vai ser Patrícia. Minha filha vai ser Patrícia também?”. Aí eles ficaram tentando pensar no nome, e meu pai é fã do Elvis Presley, e ele lembrou da mulher dele, Priscilla Presley, e ele falou, “põe Priscilla então, põe com dois Ls, igual o dela, e minha mãe gostou e ficou esse nome, Priscilla, com dois Ls.
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P/1 - Que história, né? E que luta da sua mãe, você imagina, trabalho de parto no ônibus, saindo....
R - E é bem distante, ela saiu da zona norte, para ir para Baixada Fluminense, ela foi para um deslocamento muito grande, até hoje não existe uma ligação de transporte da zona norte com a Baixada Fluminense, você tem que pegar, fazer baldeação para você conseguir chegar nos lugares, e no meu nascimento ela marca muito isso. E quando eu vou para casa dela, quando eu pego esse ônibus eu lembro, eu quase nasci nesse ônibus, porque minha mãe hoje mora em Belford Roxo, mas esse ônibus passa, eu pego ele, o ponto final dele é aqui em Bonsucesso e ele vai até o ponto final de que a minha mãe mora hoje, que é Belford Roxo/Nova Alvorada, mas ele passa por São João de Meriti. E aí eu fico lembrando, eu quase nasci nesse ônibus, aí fico tentando imaginar onde que a minha mãe saltou para atravessar, fico tentando imaginar a trajetória dela, o que ela passou para conseguir parir.
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P/1 - Priscila, eu queria te perguntar um pouquinho sobre a história dos seus avós, se você conhece o avô, você contou dos seus pais já morando ali na Nova Brasília, mas antes um pouquinho. Qual é a história dos pais, dos avós por parte de pai, de mãe, por favor, se você puder contar um pouquinho por favor.
R - Então, minha mãe é de Belém do Pará. Ela tem 05 irmãos, e a minha avó de descendência indígena, o pai é desconhecido, ela não conheceu, não chegou a conhecer o pai, e ela entre os irmãos é um pouco diferente, ela tem umas características mais afro-indígena, uma coisa mais assim, ela é de Belém do Pará se eu não me engano é Pereru o lugar onde a minha avó nasceu, onde constituiu família, e meu pai ele é nascido em Recife Paulista, ele é de lá, e meu avô ele também guarda essas características afro-indígenas, é o seu João Gabriel, e minha avó tem uma descendência misturada assim de português com indígena. Eles casaram, e tiveram acho que uns 07 filhos, alguns morreram ou ainda estão vivos.
00:09:21
P/1- O nome dos seus pais, se você sabe a data de nascimento, por favor?
R - Então, minha mãe se chama Adalgiza de Jesus Monteiro, ela nasceu no dia 08/07, não sei o ano direito, porque ela sempre esconde, acho que é 60 e pouco, ela está com 60 e poucos anos, acho que 63 mais ou menos, e meu pai ele nasceu em novembro, dia 21/11, ele é 02 anos mais velho do que minha mãe, então já deve ter uns 64, e ela deve ter uns 62, 63 mais ou menos.
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P/1 - E o nome do seu pai?
R - É José Anchieta de Andrade, meu pai ele tem o nome de um padre, que parece que é um primo da parte da minha avó que ela queria homenagear, esse nome é bem português, José Anchieta de Andrade, bem português. Quem eu lembro mais é minha avó paterna, porque a gente foi alguns momentos para Recife, e eu lembro dela, meu pai trabalhou na Varig, e ele trabalhava em um daqueles carrinhos que se chamava punchbag que eram aqueles carrinhos que carregam a mala dos passageiros, que levam coisas para o avião, ele dirigia aquilo. Então, a gente conseguia, eles davam promoção de passagem, a gente com 13 anos eu consegui fazer a minha primeira viagem de avião, foi muito louco para eu viajar de avião e a gente conseguiu ir para conhecer a minha avó. Ela já esteve outros períodos aqui no Rio de Janeiro para cuidar da gente, quando a gente estava bebezinho, quando a minha mãe estava perto de ter, e a lembrança da minha avó que eu tenho é um sotaque muito forte, nordestino. Eu lembro que quando a gente chegava na casa dela lá no Nordeste, tem essa coisa de muita comida assim, e eu lembro que dava 06 horas da tarde, ela fazia um mesão, era muita comida, e aquilo ali era tipo um almoço e janta, a gente não jantava, a gente comia muito e você ficava satisfeito.
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P/1 - Comia o que?
R - A gente comia cuscuz amarelo, com carne seca, com queijo dentro que ela botava, aipim, peixe com coco que ela fazia, que eu adorava o peixe com o coco dela, enfim, muito suco de fruta, ela tinha umas frutas assim muito de lá de Recife que eu não estou lembrando agora, mas que tinha um sabor mais cítrico, eu lembro muito disso assim, meu avô não lembro muito, eu lembro assim vagamente dele, mas eu lembro que era aquele senhor pretinho assim, sabe? Assim, mais calado, né? Ele tinha questões com alcoolismo, inclusive foi a questão que acabou ele morrendo, ele teve uma doença decorrente do alcoolismo. Enfim, eu lembro disso da minha avó.
00:13:25
P/1 - E em relação, você comentou sobre a família origem indígena, negros, como é que você se reconhece em termos assim de etnicidade, de cor? Sua família é muito misturada?
R - Eu digo que eu sou afro-indígena, eu falo assim, eu me reconheço assim, mas infelizmente não tem essa categoria, categoricamente coloco como pardo, que nomeiam, agora o IBGE reconhece a gente como preto, só que eu também não me reconheço só como preta, eu também me reconheço como indígena de alguma forma, eu me vejo na família da minha mãe, na família do meu pai, também me reconheço como preta porque eu também percebo que tem algumas características que não pertence à família da minha mãe, que tem a ver com alguma coisa do meu pai, ou alguma coisa desse avô que eu não conheço da minha mãe, mas eu me reconheço como afro-indígena, e na parte da minha mãe isso é muito mais forte a questão indígena de Belém do Pará, inclusive ela está lá em Belém matando a saudade da família. Lá na minha mãe eu tenho várias lembranças, a gente chegou a morar lá um tempo, um ano, morando lá em Belém do Pará, eu lembro que a gente vivia na rua, minha avó tinha uma casa de roça, e a gente ficava no pé de fruta o dia inteiro, a gente comia, sei lá, eu comia um pão, um café e ficava o dia inteiro na rua, na rua não, nos pés de fruta, pé de manga, pé de...enfim, de muita coisa que a gente ficava lá, tenho uma vaga lembrança da minha avó, dela fazendo farinha, e que tinha um tacho gigante, dela fazendo farinha no tacho, que a gente ficava lá assistindo ela fazendo aquilo, eu lembro disso, que a gente tinha muita fruta, e a gente tinha lá os igarapés, que são pequenos lagos, e a gente ficava ali o dia inteiro tomando banho, comendo fruta e ficava nessa vida. Em algum momento alguém dava falta da gente e vinha gritando e a gente saia correndo pra casa. Era essa a vida da gente durante um ano. Foi a primeira separação dos meus pais, inclusive, eu tinha 04 anos de idade.
00:16:26
P/1 - Em relação a religiosidade da sua família, como é que era a religião da família, se você mantém essa religião por favor?
R - Então, é muito complexo essa pergunta, porque a família do meu pai ela se diz católica, tem uma questão do catolicismo e tudo mais, hoje em dia já nem tanto, hoje em dia ela tem uma coisa mais evangélica, e a minha mãe ela fala, sempre que em algum momento da vida dela começou a ser cristã, cristianismo evangélico, e aí um dia a gente estava conversando lá em casa e eu tive um tempo de uma trajetória de entender onde eu me reconhecia religiosamente, eu sempre fui uma pessoa muito religiosa apesar de não ter sido apresentada necessariamente para uma religião, e eu não entendia direito de onde que vinha isso, e aí minha mãe começou a ir para igreja evangélica, eu comecei acompanhar ela, porque tinha uma coisa de comunidade, uma coisa de você ter que chamar irmão, então tinha uma coisa meio comunitária ali, mas ainda assim eu não me identificava com os símbolos, com as coisas que se pregavam, até a obrigatoriedade das coisas, a imposição, essa coisa da descaracterização de você, eu não me enquadrava naquilo, eu fiquei durante um tempo por ter essa fé, por ser uma pessoa de muita fé.
00:18:26
P/1 – Por quê descaracterização de você?
R - Porque é isso, é como se você...tem uma coisa que a igreja evangélica fala que é negação do mundo, você é uma nova criatura que quando você começa a estudar, você começa a lembrar dos cristãos novos, com a população indígena e a população preta. Quando você recebe um novo nome, que você recebe novas roupas, novos ensinamentos, então eu nunca me identificava com aquilo, porque nada podia. Nada que era eu, até o jeito de andar às vezes as pessoas reclamavam, sei lá, que eu andava rebolando e eu só estava andando assim, eu nunca me identificava com aquele lugar, apesar disso, apesar de ter essa necessidade religiosa e comunitária, e minha mãe permaneceu na igreja, e quando eu fiz 15 anos que eu vim pra Maré para morar com meu pai, eu ainda cheguei a frequentar a Igreja Batista, porque tinha uma coisa de equipe de louvor, de cantar, muito forte e eu gostava de cantar, foi aí que eu ainda fiquei um pouco mais, mas ainda assim não me identificava, eu fiquei nesse processo investigativo mesmo, religioso, onde que eu ia me encontrar. Recentemente, uns 02 anos atrás mais ou menos, eu estava com a minha mãe e eu já estava na minha religião o candomblé, e eu tenho um altarzinho que eu gosto de acender uma vela, rezar, enfim, botar um incenso, sou meio candomblecista, mas eu também acabo referenciando outras coisas também, e ela tinha uma mania de meio que criticar ali de alguma forma aquilo, aí teve um dia que a gente estava bebendo o vinho, porque na igreja evangélica para algumas pessoas o vinho é o sangue de Cristo, então ainda é permitido sangue, só que ela foi pesando a mão no vinho e eu também fui colocando mais vinho para ela ficar mais solta pra gente conseguir conversar, ela ficar mais livre assim pra falar, e teve um momento que ela passou em frente a minha mesa e falou assim, “você é igual sua avó”, a mãe dela. Falei: “é mãe?” “É, essas coisas assim”. As coisas assim, o que mãe? Aí ela, “a sua avó tinha essas coisas assim de deixar o cabelo para o alto e enfim, esses negócio aí que você gosta”. Aí eu fui botei mais vinho para beber, e ela foi se soltando mais, ela contando histórias assim da minha avó, coisa que ela nunca fez na vida dela, e que depois que a igreja cristã começou a entrar na minha família da parte materna, eu praticamente não sei nada da história dos meus avós assim né? Como é que eles aprenderam isso? Como é que eles sabem isso? Como é que eles sabem subir no no pé de açaí dessa forma, entendeu? Que ninguém aqui nessa sala, com certeza nem eu consigo subir daquele jeito. O que é isso? De onde que vem isso? E aí que ela foi dizendo, ela falou que minha avó tem essa descendência indígena, então tudo ela plantava e aí ela plantou um tipo de mandioca, que é a mandioca que faz farinha e que faz tapioca, essa mandioca quando você tira do chão, ela vem com um veneno, então tem todo um preparo para fazer, para você tirar, para ser consumida, e quando você vai ralando ela, ela faz uma água, você espreme aquela água e aquela água é muito doce. Ela falou que teve uma vez que os pintinhos vieram e tomaram daquela água e caíram meio se debatendo, aí ela virou, pegou uma cuia, virou em cima dos pintinhos, fez uma coisa lá, rezou e tal, tirou a cuia e os pintinho começaram a andar, Aí eu falei - é mesmo mãe? Ela, “é, isso acontecia sempre, aconteceu uma outra vez, que o porco também comeu, tomou a aguinha”,e ela foi no mato, pegou uns matos e começou a bater no porco falando algumas coisas, e o porco se sacudiu e levantou, e aí ela só contou isso a pouco tempo atrás, da minha história de vida toda, eu sempre quis saber sobre mais coisas da minha avó, ela nunca contou, e hoje eu sei que minha avó possivelmente era uma rezadeira, uma benzedeira, alguma coisa assim, e eu entendo porque que eu já tinha essa ligação espiritual, da onde que vem isso, essa coisa de você não se enquadrar muito bem naquela leitura ali, sobre esse sagrado, de entender que existe o sagrado, de entender que ali possivelmente tenham pessoas evocando esse sagrado, mas de você não comungar com aquela forma, aquele formato ali, aquela nova criatura de ser. Acho que minha avó foi ficando um pouco mais idosa, foi meio que deixando, (‘vou entrar pra igreja, porque pelo menos lá a gente senta e fica lá’), e as coisas foram sendo esquecidas e demonizadas. Tudo é demônio, tudo não presta, tudo vai para o inferno, e aí foi se esquecendo, se esquecendo, se esquecendo, e a gente foi sabendo cada vez menos sobre nós, e naquele momento ali eu tive a oportunidade de saber um pouco mais de mim, quando a minha mãe identificou em mim a minha avó, e começou a contar sobre a minha avó.
00:25:59
P/1 - Queria te perguntar sobre, você tem um colar?
R - Fio de contas.
P/1 - Então se puder comentar pra gente prosseguir, eu queria que você contasse um pouco sobre as suas memórias de infância aqui no Rio?
R - Como eu disse, eu tive essa passagem ali no cristianismo, só que ainda não estava me identificando, e no contato com a arte, de ter um lugar de questionar, de procurar entender o porquê eu estava incomodada com aquilo, eu comecei a perceber que aquilo não fazia parte de mim. Teve um momento que eu comecei a fazer uma busca mais individual, sozinha, mas ainda assim eu tinha muita necessidade de uma comunidade, de estar em comunidade, e teve também uns momentos que eu fui meio descrente do próprio Deus, por conta, sei lá, quando a gente começa a ler várias coisas, a entender o mundo desse contexto político, de tanta maldade, de como isso se concebe, eu comecei a questionar, ficar com muitas questões mesmo e acabei dando uma afastada, mas eu comecei a perceber que eu não estava emocionalmente bem, eu sentia que alguma coisa não estava bem em mim, porque era como se de alguma forma eu estava negando alguma coisa minha mesmo. Eu percebo que muito antes, quando eu era criança eu já tinha essa coisa de fazer uma reza, e quem me ensinou a rezar? Ninguém, eu não lembro, eu não tenho uma memória da minha avó ensinando rezar, ou se eu escutei, eu não lembro efetivamente, mas eu lembro de fazer isso, então eu já tinha isso. Eu fiz um caminho bem longo, eu fui para a umbanda tentar entender o que era aquilo, porque entendi que eu não era cristã evangélica, falei, bom, vou para a umbanda ver, e fiquei um tempo lá. Fui para o budismo, para o kardecismo, participei de algumas mesas para entender como era aquele universo, porque eu queria realmente encontrar uma religião que eu me identificasse, que eu não tivesse ido lá por imposição, (você tem que ir lá porque senão tem um inferno). Eu queria ir porque eu me identificava com aquela comunidade, aquela forma de emanar esse sagrado, e eu fui, tive uma oportunidade, uma amiga que, inclusive é formada comigo na PUC, falava que tinha conhecido um grupo indígena, e eu ficava assim - poxa, eu queria muito conhecer, porque isso também fala de mim. “Um dia eu te levo”. Eu não sei como ela conseguiu uma viagem para uma aldeia em Belém do Pará, e ela sabia que a minha família era de lá, então esse grupo étnico talvez teria muito a ver comigo mesma, ela falou assim, “Priscilla a gente vai tentar viajar para visitar uma aldeia, os kaiapós, e a gente quer, vou tentar botar você”, eu falei - não acredito! Ela conversando lá com o cacique, conseguiu botar todos nós, e fomos para lá, e aí foi muito estranho aquela sensação, porque quando eu cheguei lá, quando estava lá, a gente ficou lá durante 08 dias, a sensação que me dava, era que eu não estava indo visitar, a sensação que dava, era que eu pertencia aquele lugar, era como se eu tivesse voltado, era essa a sensação que eu tinha, fico até arrepiada de falar, era essa sensação que dava, era como se tivesse voltado, e quando a gente chegou as crianças fizeram uma fila, abraçava a gente e falava na língua, né? Tipo, seja bem-vinda, que bom que você chegou, que bom que você chegou, e eu ficava assim, só chorava, chorava e chorava, aí elas ficavam perguntando para mim, “capriri?” você está triste?
Eu falava - não, estou muito feliz, eu estou, sei lá...sentindo nem sei o que. Foram 08 dias muito intensos, e em muitos momentos ali eu lembrava da minha avó.
P/1 – Por quê?
R - Lá eles também tinham um tacho, quando eu vi eu comecei a chorar, que eu lembrei da minha avó de fazendo farinha, fico até emocionada, e eu tinha essa sensação de que eu estava voltando mesmo, foram 08 dias muito intensos, teve uma sensação também disso, de como essa cultura branca o quanto ela é impregnada, essa cultura branca heterocentrada, de negação do nosso corpo, nosso corpo de mulher e tal, quem no último dia elas fizeram uma festa, a aldeia fez uma festa pra gente, que era até o dia que eles iam celebrar a colheita, acho que era de açaí, eu não lembro do que, e a gente se pintou, todo mundo ficou pintado, foram 04 meninas e 01 menino. O menino participava de tudo, de tanguinha, e a gente estava cheio de restrição, por conta do peito, da negação, mas como é que vai ser a nossa imagem pode ficar por aí, mas como! A gente ficava em uma loucura assim interna, teve uma hora que a gente falou assim, - cara, mas pelo amor, não, vou tirar, chega! Porque não é possível! Como esse sistema machista fica dentro de nós. Qual o problema da gente mostrar o nosso peito! Essas pessoas não identificam o corpo dessa forma, não é essa leitura, por que isso ainda fica dentro de nós, e o cara está de tanguinha assim, e a gente está aqui não vivendo a experiência por causa disso, e foi quando elas vieram cantando para incentivar, pra gente ir dançar com elas. Foi uma experiência muito rica, muito intensa mesmo. Inclusive eu fiquei com muita dificuldade de voltar. Será que eu volto mesmo pra lá, sabe? Será que eu não fico aqui de vez? Eu achei muito difícil, eu fiquei com uns questionamentos dentro de mim. O que me faz voltar? Eu lembrava das minhas missões, quero voltar para Maré, ainda tenho coisas para fazer lá, vou retornar. Eu saí com desejo bom, e quando eu voltar, eu quero ir para um lugar que eu me sinta um pouco dessa forma, como eu quero me sentir em comunidade, eu quero me sentir em uma família. Eu nessa busca lá na Umbanda tentando entender, mas ainda não me identificando com aquele lugar. Eu tive uns sonhos, estava me sentindo muito confusa também, e descobri que tinha alguma questão religiosa a ser resolvida em relação a mim, e no jogo de búzios, lá tinha uma mãe de santo, que era como se ela fosse uma madrinha daquele lugar, era como se ela ajudasse aquela casa de santo, aquela casa de umbanda que não era dela, mas ela ajudava, e aí ela falou, e eu fiz algumas coisas, mas ainda ela me convidou para ir até a casa dela, que era de candomblé, mas ainda eu sentia que não sei se era lá, até que eu fui para um aniversário de uma amiga, encontrei outra amiga e eu fui falando sobre isso, e ela falou, “se você quiser visitar a minha casa, você vai lá”, acabei chegando encontrando a minha casa de santo, que hoje eu estou lá uns 05 a 04 anos, e há 03 anos eu sou feita de santo. Essa conta representa que eu sou filha de Oxum, ela é minha mãe, ela é dona do meu ori, muito bom, eu sinto isso quando eu estou lá, como se eu estivesse na minha família, como se eu estivesse voltando, é um lugar de refúgio mesmo, eu tenho passado muitas situações nessas situações de pandemia.
00:36:27
P/1 - Obrigada por compartilhar realmente linda essa experiência de procura e de encontro que você viveu. Você falou sobre essa volta à Maré, sobre as procuras. Eu queria que você contasse primeiro um pouquinho sobre o período da sua infância antes de você vir morar aqui na Maré. Onde é que você viveu com a família, não sei se foi em Nova Brasília. E se você tem irmãos? Dar o nome dos irmãos e contar um pouquinho da infância pra gente, e da sua chegada aqui na Maré?
R - Então, os meus pais quando eles se conheceram, eles foram morar em Nova Brasília ali naqueles conjuntinhos lá no Complexo do Alemão, eu não cheguei a morar lá muito tempo, cheguei a morar até os 03, 04 anos quando eles se separaram, e aí eu fui morar 01 ano com meus irmãos e minha mãe lá em Belém do Pará. Então eu tenho 02 irmãos que são do mesmo pai e da mesma mãe, que é o Fagner e o Douglas, eles passaram mais tempo nesse lugar lá, e quando eu tinha mais ou menos 03, 04 anos, meus pais separaram, eu minha mãe e meus irmãos fomos para Belém do Pará e meu pai ficou aqui no Rio, ficamos lá em Belém do Pará um ano e meio a dois mais ou menos, quando meu pai foi buscar a gente lá em Belém do Pará meio que arrependido, e quando a gente voltou, a gente não voltou para lá, a gente voltou para uma outra favela que é Vigário Geral, e lá eu passei uma parte da minha infância, dos 06 anos até os 08 mais ou menos que eu morei lá, mas não deu muito certo o retorno deles dois e eles se separaram definitivamente. Minha mãe foi morar em Belford Roxo, antes ela foi morar em outros lugares, morou em Irajá e depois conseguiu uma casa própria em Belford Roxo, um terreno para morar, e meu pai depois mudou, ele foi morar no Conjunto Esperança e depois foi morar na Vila do João, e a gente já era um pouco grandinho, eu já era adolescente, tinha 14 anos, e os meus irmãos um pouco mais velhos, nesse período que ele veio morar pra cá ele já estava casado, ele casou de novo e ele teve outra com a Laudiene, teve outro filho que é o João Gabriel que tem o nome do meu avô, e eu cheguei a morar um tempo com eles, porque quando meus pais separaram eu fui morar com a minha mãe, depois a minha mãe conseguiu uma casa lá em Belford Roxo. Minha mãe também casou de novo, e a relação com o padrasto não deu muito certo, e aí eu vim morar com meu pai aqui no Conjunto Esperança. O que eu lembro de Belford Roxo era as amigas, eu tinha muitas amigas lá, elas inclusive ficaram muito tristes que eu ia embora.
00:40:26
P/1 - Você fez escola lá, começou a escola lá, qual foi a escola?
R - Eu estudei a sétima série e a oitava série lá, depois eu terminei o ensino médio mais para cá na Maré, na verdade nem era aqui na Maré, eu estudava na Penha.
00:40:51
P/1 - Mas como é que era um pouquinho essa casa em Belford Roxo, quer dizer, como é que era as relações entre você, padrasto, dos irmãos, da vizinhança, e se diferenciava muito do viver em Vigário Geral?
R - Diferenciava muito, muito mesmo, a qualidade de vida lá, muitas questões, saneamento básico, essas coisas eram bem mais empobrecidas, era lama, eu lembro que a grande parte até a chegada da minha escola, da minha casa até chegar na minha escola era tudo lama, lama mesmo, e eu lembro que muitas vezes eu ia chorando para escola, porque limpinha, arrumadinha e toda suja de lama. Para conseguir estudar eu fazia um trajeto bem grande de bicicleta, porque o ônibus não parava para estudante, ou quando parava, o único que parava pegava todos os estudantes, era impossível entrar naquele ônibus, teve um dia que eu falei assim, - chega, vou de bicicleta, eu pegava estrada, eu lembro que nova, 12, ,13 ,14 anos fazendo isso, e era um trajeto longo, bem distante, eu não consigo nem medir de quilometragem, mas era bem distante, e eu fazia de bicicleta, amarradona, porque era uma forma de chegar na escola.
00:42:39
P/1 - Você gostava da escola? Era um ambiente que você gostava de estar?
R - Então, eu gostava mais ou menos, não era um ambiente que eu gostava de estar, porque era muito precária as coisas, Belford Roxo, a escola era precária, eu lembro que tinha goteira na minha sala, mas eu vi um esforço dos professores, eu lembro que nessa escola a gente fez uma festinha de rainha da primavera, eu consegui vender os bilhetinhos e ser a rainha da primavera, então teve momentos muito legais, eu lembro que a gente andava muito e eu gostava assim, Belford Roxo a gente tem isso, pelo menos na época era mais tranquilo, era bem roça, você conseguia andar tranquilamente sem passar por nenhum perrengue, nenhum problema. Eu visitava as minhas amigas, as minhas amigas iam me visitar em casa, isso foi durante um bom período dessa amizade, eu tinha uma vizinha, a Carol que morava do meu lado, e Belford Roxo é muito preto, é bem preto, e essa minha vizinha é loirinha e a gente já contrastava muito entre nós duas, e nós duas entre as pessoas, e a gente percebia, como que era para ela, o fato dela ser uma loirinha naquele lugar, era como se fosse, (nossa, que linda) e a gente percebia isso, essa diferença.
00:44:30
P/1 - Isso te marcou de alguma forma, quer dizer, essa era uma questão que você já pensava, enfrentava e já vivia?
R - O engraçado é que não tanto, acho que pelo fato de ser muito preta assim em Belford Roxo, eu não percebia tanto assim a questão...percebia, mas ficava aquela coisa meio assim, eu só percebi muito mesmo quando eu fui para PUC. Que foi assim, - Nossa, eu sou muito preta mesmo, sabe uma coisa de você perceber o quanto você é muito diferente, e como você incomoda naquele ambiente, só por você existir, só por você estar ali, foi a primeira vez que eu percebi de fato, mas nas favelas, na Baixada, não percebia isso, tinha os apelidos que é bem racista que a gente acabava reproduzindo isso entre nós, que era bem feio, bem horrível mesmo.
P/1 - Quais por exemplo?
R - Essas coisas que crianças acabam reproduzindo, de chamar o menino mais pretinho de buiú, essas coisas assim, de implicar com a menina que tem cabelo crespo. A gente inclusive lá em Vigário Geral, tinha uma amiguinha que ela tinha o cabelo bem crespo, e os meninos implicavam com ela, a gente parava de falar com os meninos, era muito legal, a gente parava de falar com os meninos, comigo era mais a aparência mesmo, a boca, falavam “boca de cavalo”, essas coisas assim que geralmente acontece com as pessoas que parece mula, e aí lembrando de mulata, você vai entendendo porque os apelidos existem, e os apelidos racistas, quando a gente é criança dentro desse universo preto a gente não entende, a gente se chateia, mas a gente não entende que isso é racismo, quando a gente cresce, vai para o ambiente branco é que a gente percebe o quanto a gente é negado, o quanto a nossa presença incomoda nesse ambiente e tudo mais.
00:47:09
P/1 - Eu queria muito que você fizesse essa reflexão, mas eu vou voltar um pouco para sua vinda para Maré. Como é que foi essa vinda, essa chegada, a escola, até a opção de, por exemplo, fazer o curso universitário na PUC, por favor. Como é que foi essa vinda? Você veio morar com seu pai? Onde é que você morou? Um pouco dessas suas memórias de juventude.
R - Quando eu fiz 14 anos mais ou menos, estava um desentendimento muito grande lá com esse padrasto, muitas brigas também entre ele e minha mãe, eu não quis mais viver naquela situação de violência, e eu 14 anos tive que tomar uma decisão muito difícil no sentido de entender que aquela vida não era minha, e falar, - não, mãe, eu tenho que ir embora, não dá para eu ficar mais aqui, e eu tive que ter essa consciência de falar, não, eu vou terminar, porque quando eu decidi isso era agosto mais ou menos, eu vou terminar a minha série para não me prejudicar, não sei se eu vou conseguir vaga em outra escola, vou terminar para ir, e eu vim morar com meu pai, e meu pai estava saindo de lá, antes de morar em Vigário Geral ele ainda voltou a morar no Complexo do Alemão, morou ainda ali, estava saindo do Alemão indo morar aqui no Conjunto Esperança, quando eu tinha 14 anos, e eu decidi morar com meu pai quando eu fiz 15, que é quando eu já tinha passado de ano, também era complicado porque era nós 03, os 03 filhos e mais eles dois, uma casa que não tinha quartos, tinha um quarto só que era o quarto deles, e era muito complicado de você não ter espaço para você e ter que dividir, não tem uma certa privacidade, um canto seu. Eu acho que eu só consegui ter essa ideia de um lugar para mim, quando eu falei para o meu pai que eu ia morar sozinha. Eu falei, - pai eu vou caçar meu rumo, vou embora, vou morar sozinha, foi quando eu entendi, me entendi nesse lugar casa, minha casa.
00:49:45
P/1 - Quando é que foi isso?
R - Quando eu tinha 21 anos mais ou menos, que eu decidi sair de casa, ele ficou bem triste, e engraçado que tinha o maior conflito, porque meu irmão novo tinha nascido, e eu virei meio que mãe dele. Eu não aceitava algumas coisas, eu falei ‘cara, acho que eu estou me metendo muito’, o filho não é meu e eu não quero ser mãe do meu irmão, eu quero ter a minha vida, e foi quando eu saí de casa, eu fui morar no Parque União.
00:50:25
P/1 - Como era essa tua primeira casa?
R - Era um quitinetezinho, muito pequeno, muito pequeno mesmo, era um comprido, e aqui ficava minha cama, e para lá era cozinha e no fundo era o banheiro, era muito pequeno mesmo, mas eu me senti muito livre de ter o meu espaço, de poder arrumar minha casa na hora que eu quisesse, e ser dona da minha vida. Nesse período, eu já estava querendo entrar na faculdade, estava lutando para entrar. Eu estava trabalhando no projeto da prefeitura de saúde para juventude, e tinha um dinheirinho que dava para eu pagar o aluguel e me sustentar, mas eu me sentia super bem de estar ali naquele espaço que era meu.
00:51:28
P/1 - Escolheu o Parque União por algum motivo?
R - Eu escolhi porque era mais barato que eu podia pagar, e porquê de alguma forma, era próximo dos meus amigos, que eu tinha bastante amigos aqui na Nova Holanda, também tinha esse trabalho com grupo de teatro, falei - eu vou ficar por aqui que é mais perto para mim, minhas coisas estão por aqui e foi por isso.
00:52:26
P/1 - Priscila você comentou sobre seus amigos, na sua juventude aqui antes de você se mudar para o Parque União, e projetos ligados a artes aqui na Maré, se você pudesse comentar por favor dessa juventude, como é que vocês se reuniam, que tipo de trabalho artístico que vocês faziam, qual era a temática que vocês estavam ligados? E que não sei se de alguma forma isso também ajudou e te incentivou, motivou para sua entrada na universidade, o curso que você escolheu, por favor?
R - O trabalho com a arte vem junto com a saúde, é muito interessante os dois, eu vivo, eu penso dessa forma, a minha vida profissional, e eu vejo que na verdade sempre foi dessa forma, quando eu comecei a fazer teatro foi em um projeto da Prefeitura da Secretaria Municipal de Saúde voltado para juventude, e dentro desse projeto eu comecei como monitora, depois comecei como dinamizadora, depois virei monitora, depois virei professora de teatro, eu fui indo, e esse projeto tinha essa coisa do próprio jovem ser a pessoa que vai estar de frente com outro jovem educando, trazendo as questões, não é um outro adulto, ou uma pessoa mais velha que vai estar nesse diálogo, esse jovem é formado para fazer isso, e nesse processo eu tinha psicólogos, vários profissionais e também teve a necessidade de chamar professores de teatro, porque como a gente tinha que falar, tinha que ter esse molejo, esse traquejo para falar com os jovens, trabalhar essa coisa da inibição, como é que faz isso, eles acharam interessante chamar professores de teatro, e nesse período tinham duas figuras, que era Joana Levi e a Isabel Penoni, que elas estavam na Maré dando uma oficinas, e aí conversaram com elas, e elas entraram para o projeto, a partir daí eu só fazia muita oficina de teatro, eu comecei a me envolver muito mesmo, e também na parte de saúde eu me envolvia mais com a questão da psicologia. Eu lembro que antes disso eu já estava voltada para saúde, já tinha feito uma formação de técnicas de enfermagem, e via essa oportunidade, essa vaga de trabalho nesse projeto, eu falei - cara, legal vou entrar e achei que tinha tudo a ver, e nessa coisa de me formar como técnica eu estava envolvida nessas 03 áreas, começou em 2001 mais ou menos, essa coisa desse envolvimento com as 02 áreas, a saúde e a arte, lá em 2005, 2007 mais ou menos terminou esse projeto da Prefeitura, e esse grupo de teatro de oficina continuava, as professoras buscavam outras formas de continuidade, conseguiu parceria com a Redes, com o Instituto Ayrton Senna, fazia essas oficinas, eu também fui monitora nesse trabalho, e a gente foi ficando, foi ficando, foi ficando, teve um grupinho que ficou mais tempo, e elas também com desejos de permanecer, de ter um grupo, de consolidar esse grupo. A gente chegou a fazer uma turnê pela Maré, rodando nas 17 comunidades com um trabalho de rua que a gente fez, que a gente montou que era muito interessante, a gente trabalhava e também falava sobre as questões mesmo de como é esse corpo, habitar esse lugar, esse espaço, e ao mesmo tempo como é que esse espaço é visto fora, as pequenas guerras, as guerras internas, essas guerras fora que é promovido, quando a gente pensa sobre a questão do Estado, como é que o Estado entra dentro do espaço, do território de favela e tudo mais, a guerra de você ocupar o seu próprio corpo e adentrar os outros espaços, então nesse trabalho que a gente fazia, que era inclusive Você faz parte de uma guerra o nome do trabalho, a gente circulou nas 17 comunidades.
00:57:45
P/1 - Mas só uma questão: vocês eram atores, mas ao mesmo tempo coautores do trabalho? Quer dizer, o fato de viver esta realidade, de sentir, ter sensações, sentimentos, conhecer essa realidade, fazem de vocês coautores e atores dessa proposta do trabalho de vocês. A maior parte era o morador daqui da Maré?
R - A maior parte. As únicas pessoas que não eram moradores eram as diretoras, as professoras diretoras, que não eram moradoras, e a gente faz esse trabalho de coautor. Era um trabalho muito intenso de pesquisa, porque era uma pesquisa identitária, e ao mesmo tempo uma pesquisa territorial, que a gente estava no território visualizando coisas que tinham uma identidade muito forte, que dizia muita coisa, e a gente trazia como matéria para gente poder trabalhar e construir o trabalho teatral. Então, a gente fez esse trabalho de rua, e a gente nesse momento estava achando que seria uma grande oportunidade, inclusive de ter um repertório para gente poder pensar em um possível edital, uma possível venda de alguma coisa pra gente conseguir esse momento de consolidação, e foi quando a gente consolidou a companhia, que a gente conseguiu o edital de montagem de espetáculo, e a gente montou o nosso primeiro espetáculo que se chama Qual é a nossa cara?, que é o meu preferido, meu bebê.
00:59:31
P/1 - Que ano não foi?
R - Foi em 2000 e...meu Deus, 2000 e...não estou lembrando, mas enfim, a gente tem ali o negocinho que dá pra gente ver.
00:59:45
P/1 - E o nome da companhia?
R - É a Cia Marginal. Nesse momento é que a gente pensa sobre o nome, foi bem interessante, porque a gente estava nessa sala inclusive, a gente tava pensando, “mas a gente precisa de um nome, né? Porque quando a gente fez essa turnê por aqui, era grupo de teatro que não sei o que, um nome gigante, uma coisa gigante, “isso não pega, nossa é muito ruim esse nome”. A gente ficou não gostando daquele nome e pensando que tinha que ter um nome que representasse mais a gente. A gente se encontrava acho que era quarta e sexta, 02 dias na semana, e na quarta vieram alguns nomes, eram os nomes estranhos assim amarelados, umas coisas assim estranhas, - gente, não dá, esses nomes não está muito legal não, e eu fico com aquilo, pensando o que seria o nome, o nome que trouxesse essa coisa da identidade da gente, e eu fiquei pensando sobre isso, cheguei a conversar com alguns amigos falando sobre, e comecei a escrever possíveis nomes, e aí eu falei, - Companhia é legal, acho mais bonito do que grupo, mas companhia, escrever Companhia é muito ruim. Eu botei Cia é mais legal, mas Cia também parece que é a Cia dos Estados Unidos é uma coisa de duplo nome ali, falei - gosto de Cia, eu botei Cia, aí tem essa coisa da gente pensar, comecei a pensar sobre o nosso trabalho, a gente chegou a conversar sobre isso, do quanto o nome tem que falar sobre nós, o nosso trabalho ele fala sobre uma identidade nossa e quanto essa identidade ela está a margem, está de alguma forma excluída, e ao mesmo tempo, o quanto a gente também acaba preferindo estar nesse lugar ali meio da borda para poder conseguir fazer o que você quer, não, eu vou ficar nesse lugar de resistência, porque é o lugar que quero dizer o que eu sou assim, não vou entrar para uma grande emissora, mergulhar naquele lugar, porque talvez aquele lugar não permita que eu diga sobre o que eu quero dizer, e também não quero não trabalhar isso, fazer outra coisa, virar trabalhadores de telemarketing, como aconteceu comigo antes da gente ganhar esse edital, porque acabou esse projeto da Prefeitura e a gente ficou nessa, mas não, a gente é isso, a gente está à margem, a gente está marginalizado. Então esse debate ficou na minha cabeça, eu passando por aqui pela Brasil tinha um outdoor assim grandão, que era a Cia dos Ternos. e aí eu imaginei o nome Cia Marginal grande ali, eu falei - é esse nome, eu vou levar esse nome, e cheguei aqui com o nome, falei - gente, eu tenho um nome, um nome fantástico e ele trouxe esse debate que a gente tinha feito. Eu falei - esse nome eu acho que ele representa muito a gente, pelo fato do que a gente falou anteriormente, de como o nosso trabalho é a margem, ele está à margem, ele é marginalizado, então nós somos a Cia Marginal, aí todo mundo, “caramba esse nome mesmo” e ficou.
01:03:42
P/1 - Maravilhoso como você pensou nele, eu acho muito expressivo a arte que vocês fazem, e assim algumas questões, né? Quer dizer, esse era um teatro, era feito na Maré, pensando na Maré, esse é um teatro que se propõe a ser apresentado a um público na Maré e vocês pensavam também em apresentações fora da Maré. Quando ele era apresentado aqui, como ele era recebido, havia diferenças de recepção do grupo, quando era apresentado em outros lugares?
R - Então, o nosso objetivo era poder ter um espaço de arte em que nós pudéssemos nos ver, e que as pessoas desse território também pudessem se ver. Tanto aqui o primeiro trabalho que a gente fez se chama Qual é a nossa cara?, o trabalho, o espetáculo se chama Qual é a nossa cara?, o Qual é a nossa cara?, é uma pesquisa dos construtores da Nova Holanda, as pessoas que criaram a Nova Holanda, e não é assim os grandes nomes, às pessoas que aparecem na mídia, é o seu Joaquim que faleceu ano passado, são pessoas que fizeram, construíram essas casas, são pessoas que lutaram por esses lugares aqui, então o nosso trabalho tem essa marca dessa pesquisa interna, desse corpo que ocupa esse lugar, esse território, quem é esse território, o que esse território tem a dizer, e também entendendo que esse território ele faz parte de uma cidade. Esse território faz parte de uma cidade, e esse território não pode ser negado, ele não pode deixar de ser visto e ele também tem beleza, ele também é lindo, é rico, então a nossa pretensão era essa de a gente se identificar com aquilo que a gente está falando, falando de coisas que faz parte da nossa vida, e ao mesmo tempo que os nossos também olhassem pra gente se identificasse, e que a gente pudesse levar isso para fora, “ó, a gente existe, a gente é cidade também, a gente ocupa também a cidade, a gente faz parte da cidade, a gente é Rio de Janeiro, a gente é Brasil, tudo isso aqui compõem esse lugar, e a gente também quer ser visto, ser falado e ser ouvido”. Então tinha esse norte assim.
01:06:27
P/1 - Mas vocês se apresentavam, onde vocês se apresentavam, como que era recebido pelos moradores?
R - E aí tem essa questão, a gente começou as primeiras apresentações fazendo aqui, no Museu da Maré, no Centro de Artes. Esses foram os primeiros espaços de apresentações, depois a gente começou a ir para fora, que foi com o segundo espetáculo que é a Ô lili, que esse espetáculo já fala de exatamente outras questões, dessa questão da liberdade, de como é que você tem liberdade, qual corpo é livre, então fazia todo sentido esse espetáculo ir para fora, não que não fazia sentido o outro não ir, mas foi justamente nesse momento, que teve esse momento anterior de mergulho em si, de dentro, do Qual é nossa sua cara?, pra gente falar assim, “então qual é o corpo que tem liberdade”, e quando a gente começa a perceber que o grupo que o maior grupo prisional é a população preta, é a população favelada, enfim...aí que a gente fala sobre isso, qual corpo que é preso, que corpo tem liberdade, e a gente vai levando essa questão para fora. Então, como assim os teatros, tem Miguel Falabella, tem um monte de gente que é muito bem pago para apresentar os seus trabalhos, e tem essa liberdade de ser ouvido e visto e nós não, esses grupos assim, que tem tanto a dizer, não têm?! Por que esses corpos não podem ocupar o palco?
01:08:21
P/1 - Como é que então foi a apresentação fora aqui da Maré, e outra coisa interessante, como é que era o processo criativo? Você estreava um texto, as falas vocês que pensavam, criavam, escreviam?
R - A gente que criava, escrevia e também contava com pessoas que também eram envolvidas, a Isabel Penoni com a direção, a gente também tinha dramaturgia que era Rosyane Trotta, então aquele trabalho ali de pesquisa e escrita, ela dava aquele arremate ali junto com a dramaturgia, junto com a gente, e é a mesma coisa acontecia com a direção, então era uma cocriação assim, a gente criava, a gente também dirigia, a gente também escrevia, a gente também atuava, a gente estava ali envolvidos naquela situação toda, inclusive em algumas montagens eu também participei do processo de figurino, de estar junto na questão do figurino, a gente era muito envolvido com tudo.
01:09:40
P/1 - Como é que foi o processo? Como é que foram as apresentações aqui na Maré?
R - Muito única assim, porque é um público muito atento, todos os movimentos eles estão ali prestando atenção e perseguindo você, e ao mesmo tempo muito calorosos, atentos e muito calorosos de participar, de rir, e lá fora tinha uma coisa assim, (será que eles são atores mesmo? Sabe aquela coisa de será que é ator mesmo? Será que não é um grupinho, um projetinho de ONG né?). Que é como acontece para eles, o povo favelado e quando eles viam o que a gente trazia, eles ficavam assim “nossa, parabéns, vocês são grupo de teatro, né”? Sempre fomos, vocês não sabiam! Então tinha essa coisa de não acreditar, de “a, mas vocês mesmos” ... somos nós mesmos que criamos.
01:11:00
P/1 - Mas de não acreditarem, o que você acha, que nesse sentido por virem da favela, pela questão do não acesso a uma formação artística?
R - Eu acho que de não acreditar, por deslegitimar. De não achar ator suficiente, “a veio da favela não é suficiente, a formação é de uma formação de grupos de teatro da favela, então não é à toa não passou pela CAL, não passou pela pela CAL não, pela aquela lá que tem na na Gávea, esqueci o nome, não passou por esses lugares, pela CAL, pelo Tablado enfim, então não são atores, mas ali tem uma formação de profissionais que formam aquelas pessoas e elas viram atores e atrizes, e a gente também teve formações de vários profissionais que fizeram esse processo de formação. Então como assim a gente não é formado? Então tem essa coisa de deslegitimar porque veio da favela, porque são favelados, pretos, enfim...estão falando, achando que sabem fazer arte, né. E aí quando via a gente falando sobre as coisas, os debates que a gente trazia, eles ficavam meio assim, “nossa, mas é...onde você aprendeu isso?” Aprendendo, a gente aprendeu na nossa formação. “Ah, mas você fez onde?" A gente fez nossa Companhia e tal. Então, assim, tinha essa coisa.
01:12:39
P/1 - Mas que sentimento ocasiona em vocês, quer dizer, o de deslegitimar o trabalho de vocês, de que forma isso impactava em vocês, no trabalho de vocês, em vocês pessoalmente?
R - Impactava de uma forma economicamente dizendo, inclusive até de você ver que o nosso grupo, mesmo a gente percebendo assim como é que era a recepção das pessoas que assistiam o nosso trabalho, como eram quando viam a gente como ator, tudo que a gente tinha capacidade de fazer, e o quanto era difícil tudo para gente e quanto para alguns não eram, “nossa, fulano já está...nem sabe fazer nada e já está fazendo um filme, não sei onde, entendeu? Super conhecido, e tudo mais”, e é isso assim, e aí a gente percebia o porquê, quais corpos, quais pessoas estão em quais lugares, porque quando são pessoas pretas favelados estão ocupando esse lugar de visibilidade de autores de algo, o quanto isso é tão deslegitimado, enquanto o outro começou a fazer aquilo agora ele já, nossa o bambambã, e nem é assim, começou ontem, só pelo fato dele ser uma pessoa de classe média, branca, burguesa ela já tem todo o espaço aberto, e isso a gente vê o tempo todo nos lugares de projeção, quando a gente vê televisão, quando a gente vê filme, a gente vai entendendo o porquê que para alguns grupos é muito difícil a gente se ver e se achar bonito e se achar pertencente ao lugar. Por exemplo, o meu irmão, o João Gabriel, ele tem muita dificuldade de entender qual lugar que ele vai ocupar profissionalmente, porque ele não vê pessoas parecidas com ele naquele lugar, quanto mais a gente não se vê, mais a gente se vê naquele lugar. E que é retratado, reproduzido em diferente mídias
01:15:10
P/1 - E que é retratado, reproduzido em diferentes mídias como você falou, em diferentes práticas artísticas também, né? Pode ser na televisão, no cinema, né? Eu acho que a beleza e a importância da Companhia Marginal são nesse sentido, né? E esse trabalho de coletivo e de coautoria, quer dizer, de se pensar, refletir sobre si, sobre o lugar em que vive, a sua origem, falar sobre si; mostrar, né? Eu acho que é a beleza do trabalho de vocês. E que assim eu não sei como, quanto vocês se apresentaram fora e como é que foi esse retorno da mídia, por exemplo? Vocês se apresentavam, como é que saia na imprensa?
R - A, muita luta assim, muita luta, muita luta pra conseguir o mínimo assim. Uma manchete no jornal, o jornal na televisão falar é muita luta para conseguir isso. A companhia foi para fora, foi para Portugal, isso não é dito, quando isso foi midializado. Uma Companhia que tem tanto tempo, uma trajetória grande, foi sempre uma luta, sempre percebi isso que qualquer coisinha, qualquer manchetezinha era uma luta para conseguir assim mesmo.
01:16:41
P/1 - Você ficou, ainda continua na Companhia?
R - Então, estou como parceira, eu sou fundadora da Companhia e eu não consigo me desvincular totalmente, eu continuo como parceira. Eu participei do último espetáculo que a gente vai rodar ainda muito ele, porque a gente só conseguiu apresentar uma temporada, depois veio a pandemia, que é o Hoje não saio daqui, que é inclusive uma pesquisa que a gente faz com a comunidade angolana daqui da Maré. E que os atores principais são os angolanos, são corpos de atores angolanos, eles são os principais assim. A gente quis dar esse destaque para eles.
01:17:29
P/1 - É uma leva recente, essa leva da presença angolana aqui na Maré?
R - Não, é desde 1980, quase 1990 que já tem a comunidade angolana. Desde o fim da guerra de Angola, porque a galera começou a migrar para cá, e a galera foi se solidificando, foi se fortalecendo aqui, foi se identificando com esse lugar, e a gente sentiu curiosidade de entender, mas porque tantos outros lugares, porque logo esse lugar houve essa identificação? É um espetáculo que a gente fala um pouco disso.
01:18:43
R - Nessa ida para fora com a Companhia e tudo mais, esse processo eu entendo assim, que cada espetáculo é como se a gente fosse ampliando um espaço a mais dentro desse processo criativo, tanto de ocupação mesmo.
P/1 - E marcando a cidade também.
R - O Qual é a nossa cara? ele era uma pesquisa dentro. Quem somos nós, quem são essas pessoas, e trazer a Maré para o palco. O Ô lili era essa pesquisa para fora. Que sistema é esse? Eu trazia Foucault, porque eu estava na faculdade, eu trazia Foucault para falar sobre esse lugar do vigiar e punir. Quem está vigiando. Quem tem que ser punido. Quem tem direito à liberdade, quem não tem? E aí com esse espetáculo construiu o Ô lili que fala sobre liberdade, e a gente fez o espetáculo no Planetário da Gávea, que aí era esse espetáculo para fora, totalmente para fora. Esse processo de composição, de criação e de proporção de crescimento, a gente fez esse processo primeiro do Qual é a nossa cara? que era essa pesquisa interna da comunidade, trazer a favela para o palco, de trazer a comunidade se vendo, e também a comunidade para ver teatro, depois a gente foi para o outro espetáculo que tinha essa perspectiva de entender o sistema, do que é a liberdade, qual é o corpo que é livre, qual o corpo que não é, essa coisa de quem vigia, quem pune, quais são os corpos que são passíveis a punição, quais são os corpos que tem que ser docilizado, (lembrando aqui de Foucault), a gente construiu o Ô lili, estreamos na Gávea, era um público misto, porque era um público fora que a gente conseguiu algumas pautas de divulgação. A diretora foi no Jô Soares, a gente conseguiu algumas pautas de divulgação, e também a gente tinha feito um público tanto de dentro quanto de fora, e que esse público foi também, teve ônibus da Maré que levou a galera para lá para assistir, porque também não fazia muito sentido pra gente, a favela está ali no palco apresentando, mas também a gente queria ver a favela no teatro, assistindo teatro, e a gente conseguiu fazer essa mobilização, e depois desses 02 espetáculos tiveram outros, o In_trânsito, o Tênis Naique, e agora o último que é Hoje não saio daqui, Então uma bela trajetória. Hoje eu não saio daqui, é vocês se pensando aqui
01:22:53
P/1 - Hoje eu não saio daqui, significa o que? É vocês se pensando aqui, ficando ,pertencendo, permanecendo?
R - O Hoje não saio daqui, tem esse lugar de retorno, porque o Tênis Naique foi para fora, foi para Portugal, e também o Tênis Naique não é um espetáculo que eu estou, mas ele traz uma discussão sobre o morador que se vê rendido por conta da violência do Estado, porque quando a gente pensa na questão do tráfico, é o Estado, tudo entra aqui, aqui não tem fábrica de nada, aqui não tem fábrica bélica, aqui não tem fábrica de droga, aqui não tem nada disso, então, como é que entra, né? O Estado tem uma conivência, o mercado do Estado, vamos pensar assim, então é uma guerra fabricada de alguma forma, o Estado entra fazendo guerra, é assim que ele se presentifica nesse território, e o morador que tem a sua história nesse lugar, pensa “cara, não dá mais para viver aqui, está difícil viver aqui, a gente não tem como dormir, não tem como trabalhar, crianças sendo baleadas, mortas, no Tênis Naique fica essa discussão dessa marginalidade. Quem é marginal, e como é que eu vou ficar nesse lugar, né? Estão me expulsando desse lugar, né? Eu me sinto expulsa, eu não me sinto mais nesse lugar. O Estado está minando tanto, tudo aqui está inconcebível, não tenho vida!
01:24:50
P/1 - Isso era uma reflexão do grupo de atores, do sentimento desses atores?
R - Sim sim, eu não participei do processo criativo, então acho que Jaqueline vai trazer melhor. Então o Hoje não saio daqui é esse retorno, amanhã eu não saio, mas hoje eu não vou sair, e o hoje tem essa extensão que pode ser eternizada, porque o amanhã pode ser o hoje também, e aí você vai vivendo o hoje, e tem essa concepção mesmo de marcar quem somos nós, quem é esse corpo que habita esse território e quem tem que ser visto, quem não tem que ser visto, como é que é isso, também fala um pouco sobre a questão da negritude, de como é ser preto em África, em Angola, como é que é ser preto no Brasil, como é que os pretos de Angola vê o preto do Brasil. É preto mesmo? Tem uma coisa, aqui a gente tem uma paleta de cores por conta das nossas composições indígenas, africanas, europeias, então tem uma paleta maior, e a galera olha e fala, “mas você se acha preto porquê? Você não é preto”. Então tem essa situação e a gente fala um pouco sobre isso no espetáculo também.
01:26:37
P/1 - E é muito interessante que é um grupo que traz uma cultura, né? Quer dizer, se insere em um lugar que tinha uma constituição, a princípio veio muitos nordestinos, mineiros, pessoal do Norte fluminense e agora, por exemplo, os angolanos aqui se inserem de uma forma diferente. É uma cultura diferente e já tem o quê? Uma ou duas gerações aqui?
R - Isso, acho que são três gerações. Três gerações.
P/1 - Um processo migratório, uma outra inserção em um espaço da cidade. Priscilla, você falou um pouco já da universidade, eu queria então que você contasse pra gente como é que foi a opção por fazer um curso universitário de Psicologia, e o que te motivou a criação do Espaço Casulo, que é um espaço de mulheres para mulheres aqui na Maré?
R - Nesse processo pré-vestibular, eu fiquei 04 anos para conseguir ser aprovada no vestibular, foi um processo de muita luta mesmo, e eu lembro que eu tinha passado na primeira fase da UNIRIO, e também tinha tentado para psicologia na PUC, e também tinha tentado Serviço Social na UFRJ. Aí eu falei, caramba e agora? Porque eram cursos que eu me identificava assim, e eles vieram por conta desse processo de formação profissional que já acontecia lá desde a juventude, na adolescência que eu era envolvida com a saúde e com a arte ao mesmo tempo. Eu não passei, não cheguei a passar na segunda fase da UNIRIO. Era muito diferente a prova do que é hoje, tinha que ler 03 livros, fazer uma dissertação sobre aquilo e não tinha uma preparação em um pré-vestibular comunitário, não tinha uma preparação para o THE de Artes Cênicas, não tinha. Então eu não sabia, eu fui fazendo da forma que eu achava que dava para ser e não consegui ser aprovada, e nesse meio tempo eu fui aprovada na PUC e na UFRJ, eu resolvi ficar na PUC porque eu entendi que eu tinha uma maior identificação com a psicologia. O teatro e a psicologia eram duas coisas que eu me identificava mais, e dentro desse projeto da Prefeitura que eu fazia, que se chamava ‘Adolescentro’ o nome eu era co-psicóloga, eu trabalhava junto com a psicóloga nos grupos terapêuticos, então eu fui me inserindo muito dentro desse viés, fui me identificando com a profissão, acabei virando amiga da psicóloga, ela me atendia também na época, só que a gente ficou tão amigas que não tinha mais como. Eu me via muito nesse espaço de atuação como psicóloga. E eu falei, bom, então eu vou para PUC, chegando lá foi bem assim, era engraçado porque quando eu entrei na sala, a sensação que me dava era que a qualquer momento o diretor ia bater na porta e falar levanta foi engano, porque eu não conseguia acreditar que eu tinha passado realmente. Acho que por conta desse processo de quem ocupa tais espaços, de quem ocupa o espaço acadêmico, como é que foi para eu ocupar esse espaço, o processo anterior. Então a sensação que me dava era essa, que a qualquer momento o diretor vinha me falar que foi engano, meu Deus, e ficava nessa situação. Depois da primeira prova que eu falei bom, estou fazendo, então é isso gente, estou aqui, e eu lembro até que eu tirei uma nota altíssima em Filosofia, tirei a maior nota, tirei 10. Tinha uma situação, porque a PUC era em um momento Prouni, e que era a primeira vez que a PUC recebeu uma grande leva de pessoas pretas e pobres, tinha, a Redes tinha uma parceria com a PUC e algumas pessoas já foram formadas por lá, mas eram 05 vagas, naquele ano era um ano que tinha uma leva muito grande, então a gente provocou uma coisa naquele lugar, e as pessoas achavam que a gente não ia conseguir passar, que a gente não era bom o suficiente. Tinha alguns professores que falavam isso.
01:31:46
P/1- Como é que isso era externalizado? Isso era externalizado, ou era sentido por vocês?
R - Era de falar. " Tal matéria é difícil, não sei se você vai conseguir, não sei como é que vai ser para você”, e quando acontecida de tirar boa nota, de que às vezes eu sentia que as pessoas queriam ficar perto de mim para fazer parte do grupo, porque sabia que eu era inteligente, mas eu não consegui fazer amizade na PUC, para não dizer que eu não fiz com a galera de lá que pertence a zona sul eu tive duas amizades, o restante era tudo bolsista favelada e que eram meus amigos, meu grupo de amigo, o restante era como se eu fosse uma estranha ali, não existia, mas eu já passei por bastante coisa, da professora ter nojo quando meu cabelo encostou nela, de falar, “sai daqui, seu cabelo está encostando em mim”, eu não entendi. O que que foi, por que isso assim? Eu sou preta, mas a minha cor e meu cabelo dentro dessa característica de racismo ele está no aceitável, ele não é tido como um cabelo incorporado como bonito, visto como bonito, mas é aceitável, tem a passabilidade, mas o meu grupo era grupos de pessoas pretas, então eu nunca passei por isso realmente assim de uma forma tão escrachada, e nesse dia foi que eu falei que eu não entendi, eu falei - ué o que está acontecendo? E foi que eu percebi e falei, - então é meu cabelo, eu nesse dia falei assim, - gente não encoste na professora que a professora está com problema, aí todo mundo começou a rir, e eu pensei assim, por que apesar disso tudo tem essa formação em saúde, na arte que me dava um aporte para enfrentar aquele lugar.
01:34:13
P/1 - Como é que você enfrentava essas situações do ponto de vista emocional, inclusive de enfrentamento, de diálogo, se colocando?
R - Então, a minha sensação era que eu adorava aquele espaço, aquela estrutura ali, aquele lugar eu adorava. Não, eu adorava estar, mas o trajeto, duas horas de trânsito para chegar lá era difícil, mas quando eu chegava eu entendia assim, eu estou no filme da minha vida, todo mundo aqui é figurante, os figurantes muito feio que botaram aqui, mas essa é a minha história, era todo dia isso, o meu mantra, essa é a minha história, eu vou comer aqui mesmo no Pilotis aqui acabou, vou me aturar, eu tinha esse aporte acho que por conta dessa minha formação, de bagagem de mundo que eu trazia, de enfrentamento. Então eu lidava com os racismos diários, com as questões sociais também, porque também tinha coisa de “ah, você é da favela também”, então eram as duas coisas juntas dessa forma. Eu não vou deixar de fazer porque você quer, mas nesse dia eu fiquei com muito medo da professora, falei, - eu vou ser reprovada, porque ela deu uma risada assim, deu um riso tipo vou pegar lá fora, e eu falei assim, - gente eu vou ser reprovada, depois eu fui para o refeitório com os meus amigos, alguém comentou na sala no dia, “essa fulana ela não muda”, alguma coisa assim sobre a professora, eu falei, - cara, eu vou perguntar para os meus amigos que estudaram com ela no semestre passado para saber o que aconteceu, e fiquei sabendo que teve um dia que ela estava dando uma aula sobre inteligência, e ela falou que população preta era mais inteligente corporalmente, é aquela coisa que geralmente branco fala sobre nós, só que nesse dia ela se deu muito mal que o único aluno preto que tinha era desembargador e estava fazendo a segunda faculdade dele em Psicologia, aí ele levantou da sala e foi fazendo tudo que ele podia fazer para processar ela, foi na reitoria, foi na direção, estava correndo um processo contra ela. Falei assim, - a, então ela não vai me reprovar, e foi muito louco esse dia, esse semestre, porque nessa mesma aula sobre a inteligência, ela fez a mesma coisa, nesse dia éramos 03 pessoas pretas, eu lembro que os outros foram se afundando na cadeira, se afundando e eu olhava para um lado, olhava para o outro, e falei, - eu não acredito que ninguém vai falar nada, e ela falando, e ela tinha trazido um documentário sobre um cientista preto que descobriu uma área cerebral, que tinha uma função emocional e que ninguém tinha descoberto ainda. Falei, - porque eu não falo sobre isso, esse homem está provando que inteligência é inteligência, não tem cor, e ela vai e fala a mesma coisa, ela falou a mesma coisa. Ela falou, “gente, eu fui mal interpretada em uma aula uma vez que eu dei, falando sobre inteligência porque as pessoas não entenderam direito, o que eu quis dizer, eu estava querendo dizer que a população preta tem uma inteligência corporal”. Aí eu falei, - não acredito, ela repetiu de novo, e eu falei assim, - eu não entendi. Ela, “porque as pessoas estão com problemas em relação a ouvir isso”. Aí eu falei, professora, então se a senhora não está conseguindo entender, é porque deve ser a senhora está com algum problema. Aí fez aquele mudo assim, sabe? Quando você só escuta o grilo, cri cri, e nada, ela foi, “vamos falar sobre outra coisa”, e foi falar de outro assunto, foi quando eu fui descobrir toda a questão em relação a ela, e me deu um alívio no sentido saber que eu não ia ser reprovada por racismo, e se isso acontecesse, eu poderia procurar lá, endossar mais a questão racial, mas era sempre assim na PUC, assim de refeitório.
01:39:12
P/1 - Que estratégias, que coisa horrível, a necessidade de criar estratégias para ser aceita no ambiente ou se sentir não aceita, né? Autoestima ou preconceito, no ambiente universitário do curso de Psicologia, né?
R - Exatamente, era bem louco essa questão toda, de como eu ficava assim, gente se aqui a gente está se formando para cuidar de pessoas, e se essas pessoas tratam assim determinadas pessoas, como é que elas vão conseguir ser psicólogas, né? Eu ficava pensando nisso, e acho que também por isso que fortaleceu mais essa vontade de retornar para Maré, de me formar e voltar para Maré, porque eu falo, não, eu que tenho que atender, eu quero atender os meus iguais, atender os meus, oferecer o melhor, que eu estou aqui lutando para voltar e entregar, porque tudo isso que eu consegui de estar aqui, de chegar aqui com essa força, foi graças a tudo isso que eu passei, eu tinha essa coisa de não, eu vou voltar para Maré, vou ter que fazer alguma coisa na Maré, eu quero atender na Maré, eu tenho que retornar isso para Maré, de pensar sobre isso, de como pode ser importante o espelhamento de você olhar, encontrar alguém que não entende por um esforço que a pessoa faz de tentar te entender, mas entende mesmo passando na pele o que você está dizendo para ela, e de não buscar...deve ser alguma questão que você tem mal resolvido na tua formação infantil com o pai. A gente falar, não, isso aqui pode ser racismo, de estar conversando sobre isso quando a pessoa diz, quando a pessoa traz, eu passei racismo, e compreender, não achar que a pessoa está sendo vitimista, como às vezes acontece uns maus colegas por aí.
01:42:00
P/1 - Priscilla, você mencionou do retorno, de trazer essa sua formação para ajudar de alguma forma ou para poder contribuir aqui na região da Maré, o seu trabalho como psicóloga. Eu queria saber o que te motivou a criar o Espaço Casulo, queria saber se você atende também, você tem um consultório aqui? E esse Espaço Casulo que é o espaço de mulheres para mulher, e o nome Casulo, de transformação, não é? Então se puder por favor falar desse retorno, e o que te motivou.
R - Eu sempre estive no front de manifestações, de engajamento com grupos, de reivindicações, tanto para Maré, quanto abaixar a passagem de transporte público, em tudo isso sempre fui muito envolvida, e nesse processo já de formada, eu tinha nesse processo de formação eu tinha esse pensamento de retornar, nessa mesma época que eu estava me formando, a gente estava recebendo várias, notícias de amigas que estavam passando por situações, de pessoas muito próximas que tinham sido morta, que tinha passado por violência muito pesada mesmo, e a gente pensava assim. Qual o espaço dentro do território que pode de fato acolher essas mulheres? Que entenda, inclusive essas questões territoriais desse espaço, que tenha todo esse recorte da violência do Estado. Como é que essa pessoa que está passando por essa violência, ela é acolhida de fato? E a gente vê que as pessoas não se sentem seguras de fazer uma denúncia, ou de chegar no posto de saúde machucada, não se sentir segura de fazer esse tipo de coisa, e a gente começou a pensar que talvez seria interessante a gente ter um espaço que pudesse acolher nós mulheres, que fosse um espaço muito mais do que só pensar sobre a doença em si, mas de pensar nas potências. Que potência essa mulher carrega? Como é que a gente pode fortalecer isso para que ela se fortaleça e vá para o mundo, e vá ocupar o lugar que ela quer no mundo, não é um lugar que querem deixá-la. Eu consegui conversar com algumas amigas sobre isso, eu falei, - poxa, a gente podia abrir um espaço, e as amigas gostaram da ideia, e a gente conseguiu abrir um espaço no Timbau, e no espaço acontecia algumas muitas atividade, e dentre elas o atendimento psicológico que eu comecei a dar, mas o espaço em si ficou um ano só comigo administrando, porque eu estava ainda nesse processo de como é que a gente organiza isso, depois que esse processo que a gente conseguiu fazer, eu comecei a atender, e agora a gente tem 07 anos, esse ano a gente está completando 07 anos, e agora a gente está nesse período de pandemia, mas a gente também celebra, porque depois destes 07 anos, a gente conseguiu um edital na Fiocruz, a gente conseguiu um financiamento para um trabalho que a gente já fazia, que era com gestantes, que é com doulagem, que é essa acompanhante, que está ali dando todo o aporte para mulher gestante, no momento em que ela está parindo, porque as mulheres elas passam por bastante violências obstétricas, e quando é mulher favelada e preta, a violência é muito maior. Então a gente conseguiu desenvolver um grupo, A Roda de Gestantes, e nesse ano a gente conseguiu um financiamento da Fiocruz para fazer esse um projeto um pouco maior, que tem um aporte um pouco maior para essas gestantes, principalmente as gestantes que estão em situações de riscos.
01:47:06
P/1 - E como se deu a opção de trabalhar com mulheres e para mulheres?
R - Essa situação que estava acontecendo nesse período do início de violência, eu percebi que não tinha um espaço em que a mulher não fosse colocada como culpada. Por exemplo, é muito difícil fazer uma denúncia na delegacia, até aquele ano ali se eu não me engano não tinha um espaço para realmente acolher essa situação de violência da mulher, e a gente ficava com esse questionamento, sabe? O que que a gente faz diante da necessidade mesmo, sabe? Existe uma necessidade, e a gente precisa de um espaço que a gente seja acolhida, e que mais do que isso, que a gente consiga se fortalecer, que a gente consiga sair dessas situações de violência e conseguir ver a nossa potência, e estar em um lugar que a gente queira. Então a ideia do nome Casulo tem isso, o Casulo ele tem um momento das fases, por exemplo, a borboleta antes dela ser borboleta ela é um lagarto, ela está vendo no mundo nenhuma perspectiva, numa perspectiva plana. Ali ela passa uma diversidade de coisas, e até que ela consegue entrar em um outro lugar que é um lugar casulo, que é o lugar que ela entra, que ela vai para dentro, que ela vai desenvolvendo coisas ali dentro dela para o lugar que ela deseja estar, quando ela consegue romper com aquele momento de amadurecimento, e de sentir segura consigo, que ela está nela mesmo. O casulo faz parte dela quando ela está segura em si mesma, em que ela consegue romper e ir para uma outra fase da vida, e nessa fase da vida ela consegue ter uma perspectiva mais ampliada, uma perspectiva maior, de plano, e ela pode pousar também, então se ela guarda também as outras experiências de lagarta, casulo agora é borboleta, então é um lugar de você poder voltar para dentro e entender quais são os seus desejos. O que você quer fazer, qual é a tua potência? Quem você é? O que te faz ser quem você é, o que você quer ser? E é um desejo seu, não é um desejo imposto, você não está obrigada, você não pertence ao outro, você pertence a você e para você poder ir para um lugar que você quiser, estar no lugar que você quiser, ser o que você quiser. Então Casulo vem desse lugar de você ter esse lugar de encontro, de segurança, de estar entre os seus, de estar trocando, de estar partilhando, compartilhando a sua experiência de ser mulher, na sua perspectiva, porque cada mulher é uma, do como é ser criança, como é ser mãe, como é ser mais velha, você vai compartilhando esse momento.
01:50:50
P/1 - Que tipo de atividades vocês desenvolvem nesse espaço? É bacana a história,
o trabalho com as doulas. É muito importante, porque é um momento muito importante da vida da mulher, esse momento da gravidez e do parto. Vocês trabalham com meninas jovens, com adolescentes, vocês trabalham em um coletivo, fazem roda de conversa, quais são os temas mais abordados?
R - Então, a nossa faixa etária é mais dos 25 aos 35, ou 40, são as mulheres que mais frequentam, não quer dizer que as outras não sejam bem-vindas, mas percebe que esse grupo é mais permanente, e a nossa temática é saúde da mulher, e quando a gente pensa saúde, a gente pensa de uma forma também ampliada, você ter uma saúde cultural, artística, de você poder ser dona do seu corpo, então lá tem dança pélvica, por exemplo, de você também saber o que seu corpo precisa, você conseguir desenvolver e ter acesso, conseguir relembrar, porque os nossos avôs, as nossas avós, lembrando da minha avó, ela fazia os remedinhos dela, ela pegava ali a erva e fazia o remédio dela, lá também tem oficina de fitoterapia, que a gente aprende, relembra na verdade aquelas medicações que a gente tinha na rua, que a gente tinha ali no quintal e pegava para curar coisas nossas, ou potencializar coisas para gente, a gente também tem a roda de mulheres, essa roda de mulheres é uma roda mais interna, porque a gente fala sobre questões diversas e muito pessoais, também fala sobre questão lunar, o que a lua influencia na questão menstrual, a gente fala sobre a questão menstrual, como é que é isso, tem oficina de ginecologia natural, além do atendimento psicológico e a roda de gestante, são várias oficinas que a gente vai tendo, já teve também defesa pessoal para mulheres, porque a gente foi percebendo que o fato de ser mulher, não era um medo só de você ser assaltada, né? Assim o corpo masculino ele representa um perigo, não sei se vocês conseguem aqui, nós somos mulheres, perceber isso, às vezes a gente está sozinha no canto, quando a gente vê o homem, a gente já toma um susto assim. aquele corpo ali ele representa uma coisa violenta, e a gente dentro dessa defesa pessoal a gente foi entendendo isso, como é que a gente coloca também o nosso corpo de uma forma em que a gente consiga não ser uma pessoa frágil, que a gente não acesse só a nossa fragilidade, porque socialmente nós somos educados a ser frágeis, pelo menos nós mulheres precisamos, a vida vai colocando a gente a brigar muito, mas a gente nesse lugar de troca, como é que a gente acessa o nosso lugar de não, a gente pode responder, a gente pode colocar o corpo em uma apostila, de um lugar de, não, você está olhando por quê, às vezes nem falar, só um gestual já é o suficiente para uma leitura, ou quais os mecanismos que você pode fazer ou de fato, para se defender em uma situação de quando alguém vem te estrangular, alguma coisa assim. Então são todas oficinas de potencialização, porque agora nesse momento de pandemia a gente até está fazendo distribuição de cesta básica para situações de risco, mas a gente entende que é uma situação pontual de uma situação extrema, mas a gente não acredita em um trabalho que vê somente o que a pessoa não tem, a carência, sabe? A gente quer fazer, realizar um trabalho que a gente vê a potência da pessoa, trabalhar em cima da potência, o que ela é, o que ela sabe fazer, o que a gente pode fazer e trazer para ela ampliar a potência. Não, você não tem isso, então, a gente vai te dar! A gente tem desenvolvido um trabalho.
01:56:00
P/1 - Estimular o enfrentamento e fortalecer, eu acho que autoestima também é importante.
R - Uma coisa que eu queria dizer, é que nesse processo longo dos 07 anos, nessas rodas, a gente foi percebendo também o quanto a gente não quer criar uma dicotomia, o mundo vai ser de mulheres e de homens, porque a gente tem os nossos pais, nossos amigos, os nossos irmãos, os nossos filhos e a gente quer que essas criaturas, essas pessoas também se encontrem com seu feminino, que olhe pra si e se veja como ela veio de um útero, a casa dela foi uma mulher, então que ela olhe para mulher e veja a mulher nela de alguma forma, esse feminino nele também, nas características dele, que ele traz da mãe geneticamente, a gente traz parte da mãe, parte do pai, e desse masculino identificar esse feminino em si, respeitar e entender não como um diferente, mas como um lugar de respeito, assim como você tem o seu lugar, essa pessoa do sexo feminino ou não necessariamente, se identifique como não seja nascida com o sexo feminino, mas se identifique com mulher, no caso das mulheres trans, enfim ou das pessoas gays, que ao adentrar, se ver nesse universo extremamente misógino, são totalmente execrado, se encontra em lugares de extrema violência, e a gente percebe. Quais são os grupos que são mais atingidos? Mulheres lésbicas, homens gays, trans, mulheres trans, homens trans, porque existe um lugar, onde existe um padrão e um lugar de privilégio, e quem está nesse lugar é o homem hétero, é esse homem hétero branco, então quando você foge dessa regra, quando você não está nessa regra, quando você não se identifica com esse lugar você é passível, é um corpo matável, então eu posso fazer o que eu quiser com aquele corpo, eu posso estuprar, eu posso matar, eu posso xingar, fazer todas as violências, porque o corpo possível disso tudo. Quando a gente vê as diversas violências diariamente.
01:58:53
P/1 - Priscilla, a gente vai encerrando eu te agradeço a reflexão, e gostaria de te perguntar hoje sobre o seu dia, você é casada, se você tem filhos, com quem você mora?
R - Eu moro com as minhas gatas, eu moro com Artemis e a Nefertiti no Timbau, lá no Mirante que é um dos pontos mais altos da Maré, então tem uma vista incrível lá da minha casa, eu gosto muito de lá, agora estou pensando em mudar, mas eu gosto muito desse lugar, hoje eu moro lá com as minhas gatas, sou solteira, não sou mãe ainda, mas pretendo um dia ser, eu só criei outras coisas, eu pari outras coisas, eu pari uma companhia, eu pari um espaço para mulheres, que eu também tenho muito orgulho desses filhos, ainda não tenho filhos carnais, é isso, estou parindo.
02:00:05
P/1 - E sobre sonhos, sonhos ainda a realizar, você pensa sobre isso?
R - A gente sempre sonha. Sonhar é o motor da vida. Eu quero continuar com o espaço, solidificar ainda mais ele, eu desejo muito também é um espaço maior, uma casa maior também, eu tenho uma pretensão, naquele espaço que hoje eu moro, que eu ainda estou pensando sobre, mas de uma coisa artística mesmo que esse espaço artístico pode ser, porque é um espaço bem potente esse lugar. Eu quero fazer mestrado, eu quero pesquisar sobre essas temáticas que me atravessam, sobre o porquê para determinados grupos é tão difícil amar e ser amado, o que é ser pardo, eu quero muito pesquisar sobre isso tudo, estou pensando sobre isso, quero entrar no mestrado, eu quero muito construir um trabalho que seja muito parceiro dos equipamentos públicos, dos postos de saúde, da saúde da família, eu quero muito fazer isso, eu tenho muitos sonhos, quero fazer filme também. Eu gostaria muito de fazer filme, eu ainda não tenho essa experiência com a tela, eu queria fazer filme, queria não, quero fazer filme.
02:02:00
P/1 - Algum tema especial que você gostaria?
R - Não, não tem nenhum tema específico não, só queria estar na telona.
02:02:10
P/1 - O que a arte traz para você que outros sentimentos, outras sensações, outras experiências não trazem, quer dizer, o que que a arte é pra você, você é artista, você é psicóloga, mas tem uma sensibilidade muito grande. O que esse envolvimento com a arte te traz, que talvez outros aspectos da vida, outros sentimentos não trazem?
R - A arte me traz a oportunidade de olhar o meu profundo, de olhar, de fazer contato com isso, com esse olhar. Olhar em um profundo e olhar o que eu vejo em torno de dizer, de tocar o outro, de tocar no lugar onde poucos conseguem, que é o afeto, a arte é um lugar de afeto, todo o espaço artístico, de expressão artística, a arte é um lugar muito especial, muito profundo, ela é uma ferramenta e uma oportunidade de adentrar esse profundo não só meu, mas também do outro, das coisas que me tocam, de como aquilo toca, e ao mesmo tempo é a oportunidade que eu tenho de fazer com que afete o outro, que toque em um lugar, em um ponto muito específico que é o afeto, de tocar nos sentimentos, e trazendo um pouco da psicologia, é uma memória muito difícil apagar, que é a memória afetiva, então quando você toca ali justamente naquele lugar, no lugar do afeto, você comunica de uma forma muito especial, que não é uma memória que vai apagar, daqui a pouco ela vai sair dessa porta e ela vai esquecer, talvez não lembre exatamente quando foi, como foi, mas vai lembrar daquele momentinho afetivo, eu e aquele que estava ali do outro lado, vendo o meu feito artístico, vai sentir assim, arte tem esse lugar muito especial, desse lugar de comunicação comigo mesmo, e ao mesmo tempo de me comunicar com outro, e também fazer com que o outro se comunique de alguma forma, porque o fato deu conseguir representar e trazer, não gosto muito desse lugar da representação, mas do fato de eu conseguir fazer esse espelhamento, da favela me ver, e eu pouco mostrar a favela, ou mostrar alguém que represente, que se olhe e fala assim “nossa aquilo ali me lembra algo que eu estou passando”, ou, “eu me vejo aqui naquele lugar ali”, para mim é especial, tem esse lugar comunicador, esse o lugar griô, que quando a gente lembra dos ancestrais, de comunicar, de falar de onde você veio, quem veio antes de você, ter esse lugar griô de poder falar para o outro, aquela história ali que você não sabia, ou nem sabe direito o que você está sentindo, é isso aqui, vamos falar sobre isso e contar, fazer essa contação no meu corpo, na minha arte, nas coisas que de alguma forma eu imprimo.
02:07:08
P/1 - O que você achou de dar esse depoimento hoje aqui para o projeto?
R - Foi bem incrível, foi bem tocante, fiquei emocionada em muitos momentos.
E agradecer, né? A todas vocês, estiveram aqui, que estão fazendo esse trabalho, e enfim, que juntas pudemos construir esse espaço de poder, materializar essa história de alguma forma, de botar em um lugar um pouco mais da matéria, além do meu corpo, e quem sabe deixar isso daí para os meus netos, para outras pessoas que forem assistir, quando essa matéria não existe mais.
02:08:02
Eu queria te agradecer imensamente, agradecer a sua disponibilidade em compartilhar conosco um pouco suas histórias de vida, da sua trajetória, das suas experiências e agradecer por tudo.
R - Obrigada também, obrigada a todos, obrigada!
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