P/1 – Primeiro, Heloísa, eu vou pedir para você falar para gente o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Wilson Alves Belfort. Nascido 15 de agosto de 1986, Porto Velho, Rondônia.
P/1 – Agora o nome completo, data e local de nascimento, se você se lembrar, dos seus pais, do seu pai e da sua mãe.
R – Data de nascimento do meu pai eu não vou lembrar, mas o nome do meu pai é Juscelino Alves Pedrosa, da minha mãe é Astrogilda Alves Belfort e todos são de Porto Velho, nascidos em Porto Velho, Rondônia.
P/1 – Os dois nascidos em Porto Velho. E o que seus pais faziam?
R – O meu pai era segurança de uma fundação da minha cidade e a minha mãe trabalhava de faxineira nas casas dos outros, até antes de eu vir para cá.
P/1 – Conta para gente como é que era o temperamento dos seus pais. Descreve um pouco seu pai e sua mãe.
R – Meu pai é separado da minha mãe. Eu não vivi muito com a minha mãe, mas eu morei com ela uns tempos, minha mãe era super legal, passava o dia trabalhando, nunca brigou comigo, nunca foi chata. Agora o meu pai também é um cara muito cabeça quente, que trabalhava demais, a gente ficava na rua, aí brigava porque a gente ficava na rua, solto. Mas super normal, bem legal.
P/1 – E como é que é a casa em que você passou a sua infância? A casa e o bairro? Aonde era e descreve um pouco para gente como era a casa, como era o bairro.
R – Então, era uma casa bem humilde de madeira, bonita, um quintal bem grande, tinha vários pés de fruta, tinha pé de manga, eu gostava de me divertir brincando, subindo nos pés das árvores. O bairro era um bairro tranquilo, bom, rua de cascalho, bem humilde, mas bem legal, tudo bonitinho, nada fora do lugar. O povo também era bem respeitador, os vizinhos eram bem legais, respeitava a gente, ajudava a gente, quando meu pai ia trabalhar e deixava a gente sozinho eles ficavam de olho na gente, maravilhoso.
P/1 – Qual que era o bairro?
R – Hoje se chama Bairro Eletronorte.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho três irmãs e um irmão.
P/1 – Qual que é o nome deles?
R – Um é Vilson, outro é Viviane, Bruna e Beatriz.
P/1 – E na infância do que vocês brincavam? Com quem você brincava? Você brincava com seus irmãos?
R – Eu brincava com meus irmãos, brincava com outros amigos também, a gente brincava mais de pique-esconde, eu brincava muito de elástico, pular corda, brincava de boneca com as minhas amigas. Jogar bola nunca fui muito bom de jogar bola, mas às vezes a gente jogava entre as meninas e os meninos. Gostava de subir em árvores, brincava bastante de subir em árvore, ficar pulando galho, tipo assim, eu gostava de subir em um pé de árvore, quando ficava vento muito forte, eu ia lá para cima da árvore e ficava balançando junto com o vento, que eu amava fazer isso. Maravilhosa a minha infância, eu brinquei bastante.
P/1 – E tem alguma lembrança, assim, uma história de infância que você sempre se lembre, que você conte para outras pessoas? Uma história marcante mesmo, dessa fase, assim, da infância.
R – Dessa fase da infância uma história bem marcante? Ah, tem uma fase, foi logo quando eu mudei de bairro, que eu fui para esse bairro da Eletronorte e tinha umas meninas que eram muito famosas no bairro, tinham uma casa bonita, casa com piscina, pai bom. E tinham muitas bonecas, eu brincava com elas, mas naquela época, tipo assim, menino brincava com menino e menina com menina e eu por aparentar um pouco mais feminina do que masculino, o que aconteceu? O meu pai foi uma vez me chamar, que eu estava lá brincando com elas, já era tarde da noite, aí o pai da minha amiga falou assim: “Essa sua filha é muito esperta, que idade ela tem?” Isso é uma coisa bem marcante, tipo assim, ô meu Deus, meu pai acho que nunca vai esquecer e nem eu.
P/1 – Você lembra da reação do seu pai ou de como você se sentiu?
R – Então, meu pai abaixou a cabeça e foi embora, mas não brigou comigo, não falou nada, mas eu senti que, tipo assim, ele quase falou para o cara: “Não é menina, é um menino”. Mas era foi isso, uma coisa bem marcante da minha infância.
P/1 – E escola Heloísa, com que idade você começou a frequentar a escola?
R – Eu comecei a frequentar com sete anos a escola. Eu tentei estudar, como não tinha pai sempre do lado, eu fui para escola, estudava. Eu fui um aluno problemático também, às vezes eu respondia a professora, como eu não tive educação dentro de casa, respondia à professora, eu falava que ia ao banheiro e ficava no pátio conversando ou ia para quadra, ou, às vezes, eu pulava o muro e ia para rua.
P/1 – Era perto da sua casa a sua escola?
R – Era perto da minha casa, umas três quadras para baixo. E eu fazia isso, eu pegava o ônibus e ia para o centro da cidade com as minhas colegas, aí eu estudei e não estudei.
P/1 – E como é que era a escola, você lembra assim para descrever?
R – A escola não era muito bonita não, sabe? Mas era bem legal, todo dia a gente chegava na escola e tinha que cantar o hino nacional, todo mundo naquelas filas, bonitinhos. Eu lembro disso e lembro também de alguns meninos que ficavam zoando, me chamando de macho-fêmea. A escola era bem legal, tinha um pátio bem grande, o professor de Física era maravilhoso, dava atenção para gente, era isso.
P/1 – O professor de Física, você disse? Eu ia te perguntar isso agora se tem algum professor marcante, que você se lembra.
R – Eu acho que é o de Física e a professora de Matemática, foi os que eu mais me dei bem, porque eu sempre gostei de bater cabeça, sabe? A professora de Matemática gostava porque eu era uma pessoa que já fazia, não pensava nem duas vezes, ela já falava e, às vezes, acertava. E o professor de Física também, porque ele é uma pessoa que me entendia, mais do que o meu pai, ele via que os meninos zoavam comigo, que isso é uma coisa que eu tinha que me acostumar, por causa que lá na frente, como hoje, ia fazer efeito.
P/1 – Mas você tem algum episódio, assim, que você se lembra com o professor de Física, por exemplo, de uma conversa?
R – Não, só dessa conversa aí, dessa conversa que uma vez ele pegou os meninos me judiando, sabe? Mandando eu virar homem, me batendo, e aí ele foi conversou comigo e que isso é uma coisa que eu tenho que ter muita coragem de enfrentar, porque eu era criança e não sabia o que eu ia ser, mas eu sempre tive um lado para ser mais mulher do que homem, entende? E é isso, eu sempre brinquei com meninas, eles me chamavam de macho-fêmea. Ele via isso, a professora de Matemática também via, o povo da escola também via, mas os dois foram os únicos que chegaram até mim, conversaram comigo e falaram se é assim, assado e é assim. Então, os dois são maravilhosos.
P/1 – Você lembra do nome deles?
R – Não lembro, só lembro dessa conversa.
P/1 – E o nome da escola você se lembra?
R – Nome da escola se chamava Eduardo Silva.
P/1 – E aí você ficou nessa mesma escola até o quarto ano primário?
R – Não, eu fiquei lá até a segunda série, aí já fui para outra escola que se chama Nações Unidas, foi onde eu comecei a fazer supletivo. Eu parei um bom tempo, tipo assim, eu fiz a primeira até a segunda série, pronto parei e fui morar na casa dos outros, aí eu morava na casa dos outros e eu não estudava.
P/1 – E conta para mim por que você foi morar na casa dos outros? Você saiu de casa, foi isso?
R – Meu pai casou de novo com a madrasta, minha madrasta não tratava a gente muito bem, para gente almoçar a gente tinha que ajudar ela a limpar a casa, limpar o quintal, lavar banheiro, olhar as filhas mais novas dela, aí a gente almoçava, então, essas coisas eu não gostava e fui morar na casa de uma colega que via a situação, tipo assim, se eu chegasse em casa no horário que eles me falaram eu dormia dentro de casa, se eu não chegasse, eu dormia fora. Então, aconteceu umas coisas disso aí de eu me atrasar ou me eu empolgar na brincadeira com o povo da rua, chegar em casa a porta está fechada, eu bater e não abrir. Aí eu tive que sair de lá e eu fui morar com a minha colega.
P/1 – Que idade você tinha?
R – Acho que eu tinha uns nove anos de idade.
P/1 – Bem nova. E você disse que depois de entrar na escola você saía muito da escola e ia para rua fazer outras coisas. E o que você ia fazer na rua? Quais eram as atividades?
R – Ah! É uma coisa bem feia, mas eu fazia, eu e minhas colegas entrava nas lojas, roubava chocolate, pegava brinquedos, roubava brinquedos, a gente teve sorte de nunca ser pega, até que um dia a gente viu uma pessoa ser presa por causa que roubou um xampu. Aí, a gente botou um ponto final, a gente quando tinha dinheiro entrava para comprar e quando não tinha a gente não entrava a gente ia para uma praça chamada Poli, a gente ia para lá e ficava conversando. Tinha pessoas que ofereciam maconha, bebida, as mais velhas, entende? Porque ao redor de lá tem outros colégios mais legais, então tinha isso, tinha outras pessoas que ficavam conversando, curtindo, bebia coca, amava beber coca na praça.
P/1 – E na casa dessa sua colega, como era o nome dela? Que você foi morar com nove anos?
R – É Keiciane.
P/1 – Keiciane. E como era na casa dela? A família, a casa?
R – O pai dela se separou da mãe dela aí foi embora, aí ficou eu, ela, a mãe dela que era Antônia, a Cíntia, a Joice e Daniele, moravam sete mulheres ao total e eu. A Cíntia casou, foi embora e ficou só nós três, e a mãe dela tinha uma padaria, tinha um bar-lanchonete e eu ajudava lá, eu ajudava a limpar a padaria, ajudava a cuidar da Keiciane, porque a Keiciane era pequena, sabe? Mas o quê? Ficava no bar, não podia ficar até tarde, né? Mas ficava às vezes no bar, cuidava, levava cerveja até na mesa do cliente. Teve algumas vezes que eu fiz alguns sanduíches para ajudar na lanchonete, quando elas estavam muito ocupadas eu fazia sanduíches.
P/1 – Foi seu primeiro trabalho?
R – É, vamos dizer que foi, mas é que eu morava lá, então eu ajudava, tinha respeito por isso, eu estava na casa dos outros e é chato você ficar lá de sofá deitado, como a filha dela, como a minha amiga ficava, a Keiciane. Eu não, quando eu via louça para lavar eu ia lá lavava, quando eu vi que estava suja a varanda eu ia lá limpava, então era isso. Foi maravilhoso, foi uma pessoa que me ajudou bastante.
P/1 – Durante quanto tempo você viveu com elas?
R – Eu fiquei até os dez, 11 anos, aí eu voltei para o meu pai de novo, voltei a estudar, aí eu fiz a terceira série e aí parei de novo.
P/1 – Como foi essa fase de voltar a estudar?
R – Então, foi uma fase um pouco já bem chata. Eu tinha um cabelinho se chamava surfista, que era meio indiozinho assim e eu gostava muito do meu cabelo, eu ficava balançando e o povo ficava zoando, me chamando de macho-fêmea. A professora já foi, eu já estava entendendo um pouco mais as coisas legal, já ia para escola estudar, não fazia mais isso, mas eu fiquei só um ano direto, aí eu parei de novo. Eu conheci outras pessoas, mesma história de novo, morar na casa dos outros, ajudar a fazer as coisas e parei de estudar, ficava na rua brincando, às vezes sentia um pouco, não sei se era inveja, se era ciúmes ou vontade, porque meus amigos todos estudavam e eu era a única que não estudava, que não ia para escola. Mas sempre peguei algum livro para estudar, para ler.
P/1 – Você acha que você largou a escola por quê Heloísa? Porque era difícil o relacionamento?
R – Eu acho que larguei a escola porque, não tem um porque, mas eu acho que por causa disso, por causa que eu não tinha pai e mãe para bater no meu pé, e sabe que mãe dos outros poucas querem te ajudar, eles querem mais mesmo que você limpe a casa deles, lave a louça deles, era isso que o povo queria de mim, sabe? E meu pai não estava nem aí para mim, minha mãe também nada, já fiquei anos, hoje estou há mais anos ainda, já fiquei até semanas, meses sem ver meu pai, sem ver a minha mãe, sem ver os meus irmãos morando nas casas dos outros, por aí. De vez em quando aparecia na casa do meu pai, aí ficava lá um pouquinho, aí sumia de novo, eu sempre morei na casa dos outros, sempre fui do mundo. Então, a escola foi isso, não sei porque eu parei de estudar, acho que por causa que eu queria mais ficar na rua do que na escola.
P/1 – E tem algum amigo marcante dessa fase?
R – Ah! Eu tenho vários amigos, sabe? Eu tenho amigas, eu tenho a Keiciane que foi uma amiga de fase muita legal, eu tenho a Helen que também foi de fase legal. E quando eu comecei a sair para baladinha, comecei a me divertir com as minhas amigas, já são outras amigas, aí tinha Renata, Monique, Darlen, Simone.
P/1 – Que idade você tinha quando você começou a sair?
R – Quatorze para 15 anos.
P/1 – E o que você fazia, assim, para se divertir? Para onde vocês iam?
R – A gente ia para um barzinho de pagode de sexta a sábado, se chama Habib’s, que era maravilhoso! De lá a gente ia com uns caras, amigos nossos, ia lá para pista do aeroporto e ficava lá aquele monte de carro, aquele monte de som, todo mundo bebendo, escutando aquelas músicas do sucesso, igual aquele negócio do Bonde do Tigrão, estava na época do Bonde do Tigrão, então, era isso que eu fazia. E dia de domingo a gente ia para Gingos Dance, que era uma balada bem legal, às vezes dava um pouco de treta lá, porque aparecia o Juizado de Menores, porque antigamente era bem, deu meia-noite, dez horas da noite eles davam uma fechada no lugar e revistava tudo, documento, alguma coisa assim. Não era todo mundo das baladas, mas a maioria das pessoas, algumas eles levavam para o Conselho Tutelar, outras mandavam para casa, era isso, se você estivesse acompanhado com alguma pessoa de maior responsável por você, você ficava, se não tivesse, tchau.
P/1 – Ia embora. E você mencionou o Bonde do Tigrão. O que mais vocês escutavam de música? Você gosta de música?
R – Eu gosto de música, olha, eu sempre gostei, não sei, eu acho que eu nasci, já tinha nascido um outro eu, eu nasci de novo, entende? Eu gosto muito de música antiga, adoro Maria Bethânia, eu gosto de Elis Regina, Marina Lima, eu gosto de Gal Costa, Ana Carolina. Hoje em dia eu curto mais Beyoncé, eu gosto da Beyoncé, Madonna, eu amo Madonna. Mas naquela época era Bonde do Tigrão, era Furacão 2000, uma coisa assim que tinha, e É o Tchan, amava dançar É o Tchan, As Meninas, e foi logo no início do começo do Babado Novo.
P/1 – E tem alguma música marcante dessa fase ou da sua vida? Uma música que você goste muito? Uma música preferida?
R – Uma música favorita que eu gosto bastante? Eu acho que é a música da Maria Bethânia que eu amo que é “Brincando de Viver”, eu acho muito bonita ela. E tem outras também que ela canta que é “Começaria Tudo Outra Vez”, essa é uma música muito legal e eu, às vezes queria começar minha vida do zero, sabe? Para voltar atrás. Hoje como eu estou velha eu estou vendo o bolado que eu fiz todo na minha vida, de não ter estudado, de não ter sido uma pessoa certinha para estar bem hoje em dia, né?
P/1 – Mas você não está velha.
R – Mas é um pouco de vergonha.
P/1 – Você cantaria um trechinho da música?
R – Da Maria Bethânia eu gosto dela (cantando): “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse meu amor. A chama no meu peito ainda queima, saiba, nada foi em vão. Aquela dama de lilás está dançando no salão, machucando o nosso coração,” acho que só essa parte que eu sei. E tem uma música também que eu amo é “Pais e Filhos” da Elis Regina, que é outra também que eu vejo, uma coisa, uma frase que eu acho muito bonita é aquela: “É você que é ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”. Eu acho que todo mundo tinha que ter isso na cabeça, porque o mundo é isso, todo dia é uma coisa nova, todo dia é uma pessoa nova que você conhece, então tem que estar aberto para tudo.
P/1 – E dessa fase da adolescência, tem uma história marcante? Também uma coisa que você sempre lembra ou tenha sido marcante, importante para você?
R – Não, na fase da adolescência não, não tem uma coisa assim, óóó. Mas eu lembro, às vezes, quando eu saía com as minhas amigas de eu estar estudando, eu voltei a estudar, aí eu fiz até a quinta série, mas eu não cheguei a fazer a quinta série, mas aí eu estudei direitinho depois que eu comecei a estudar à noite, fiz o supletivo nesse colégio Nações Unidas, e eu gostava quando acabava de ir para escola a gente se encontrava na pracinha, aí ficava lá até mais tarde, depois cada um ia para sua casa, às vezes a gente ia tomar sorvete e foi na fase que a gente começou a sair com pessoas mais velhas do que a gente para dar dinheiro para gente, entende? As minhas colegas, não era nem eu, tipo assim, eu era só a companhia.
P/1 – Que idade você tinha?
R – Quinze anos já.
P/1 – E você lembra como isso começou, Heloísa?
R – A sair com as minhas amigas?
P/1 – Você disse que vocês saíam com pessoas mais velhas, que era uma maneira de ganhar dinheiro.
R – Era. Não era prostituição, tipo assim, eram homens que queriam desfrutar da nossa juventude, que gostavam de menina mais nova e oferecia algo a isso, não oferecia uma bala, nem isso como o povo fala, mas oferecia dinheiro, levava a gente para o restaurante, comprava convites de balada para gente, comprava kit de bloco de carnaval para gente, e toda hora que falava: “Ah, eu queria um dinheiro para fazer isso”, dava. E a gente ia lá, ficava despida para ele e pronto, acontecia isso, mas as minhas amigas faziam mais do que eu, eu fiz isso uma vez quando pensava que eu era mulher, ó meu Deus, e foi a primeira calça jeans que eu comprei, eu fiquei muito feliz, sabia? A primeira calça jeans que eu comprei de uma marca chamada Damyller na minha cidade e ele me deu dinheiro, porque eu estava louca por essa calça, eu ia para uma balada também que se chamava Mix com as minhas amigas, foi a única vez que eu fiz isso, e o resto das vezes como eu era bibinha e andava com as meninas, então a gente só ia mesmo de companhia, eu ficava no carro quando eles entravam no motel, entende? Ou eu ficava na garagem da casa dele quando ela estava lá, mas era mais as minhas amigas mesmo.
P/1 – E nessa época você não vivia com seu pai mais?
R – Eu vivia, eu morava com meu pai, aí a minha madrasta foi embora e eu voltei a morar com meu pai, aí comecei a estudar e a fazer isso.
P/1 – E como é que você fazia para ganhar um dinheiro para fazer suas coisas?
R – Então, aí o que é que aconteceu? Como eu gosto de limpar casa, sempre gostei de limpar casa, é uma coisa que o povo me ensinou, eu fazia faxina na casa dos outros e ganhava 30, 20 reais, 50 às vezes, depende também da casa, o povo me dava: “Ah, toma uma ajudinha aqui”, me dava um dinheirinho, sabe? E eu fui ajudante de cozinha, eu ganhava 150 por mês, trabalhava de segunda a sábado e também ganhava meu dinheiro com isso daí. Mas teve uma época que estava muito chata, tipo, eu estava lá limpando o salão do restaurante e, às vezes, limpava a casa deles quando eles pediam, mas dava só o mesmo salário, sabe?
P/1 – Era em Rondônia isso ainda?
R – Em Rondônia.
P/1 – E quanto tempo você trabalhou, assim, com limpeza?
R – Eu fiquei nove meses. Aí, eu tenho um tio chamado Severino, que também ele é homossexual, eu ia para casa dele no final de semana e ele me dava dinheiro para ir para balada, quando eu falava assim: “Tio, eu queria comprar uma roupa nova”, ele pegava me dava o dinheiro e falava: “Então limpa o jardim para mim, limpa a varanda”, aí ele me dava dinheiro e eu comprava.
P/1 – E aí você parou de trabalhar então?
R – É aí eu parei de trabalhar.
P/1 – E quando você vem para São Paulo? Foi muito tempo depois disso? Que idade você tinha?
R – Eu vim para São Paulo acho que eu tinha completado 18 anos.
P/1 – Como é que você decidiu? Conta para gente como foi essa decisão.
R – Foi em 2005, final de 2005. Uma amiga minha chegou de São Bernardo do Campo para a minha cidade, eu conheci ele quando era homossexual, ele era homem se arrumava com calça coladinha, não de mulher, mas com roupa sempre meio afeminada, sabe? Ele veio para São Paulo, colocou prótese, botou silicone no bumbum, deixou o cabelo crescer e apareceu bem bonito, aí eu fiquei naquela ilusão. Ele chegou na minha cidade, me viu que eu já estava me arrumando, com 12 anos eu comecei a me arrumar de mulher, já não me arrumava mais de menino.
P/1 – Com 12 anos?
R – Com 12 anos.
P/1 – E você se lembra como é que foi tomar essa decisão?
R – Lembro. Eu comecei, como eu já comecei a andar com umas pessoas do meu tipo e elas já se arrumavam de mulher, mas elas se arrumavam de mulher só à noite, sabe? E eu comecei a me arrumar 24 horas, porque ficava feio você com roupa folgada de menino durante o dia, eu acho isso feio, e à noite você botava um shortinho curto, uma blusinha mostrando a barriga. Então, foi isso, como eu morei na casa dos outros e sempre as minhas amizades era mulher, eu ganhava as roupas delas aí eu pegava e usava as roupas delas. Comecei a me arrumar 24 horas, era um pouco estranho, sabe, porque eu não tinha muito modos de mulher, mas de criança, eu era criança.
P/1 – Bom, esse seu amigo voltou.
R – Esse meu amigo foi e me viu e falou: “Nossa, você é bem legal, você está tomando hormônio?" Eu falei: “Não, não estou tomando,” nem sabia o que era hormônio. E aí foi lá, me deu a dica, eu comecei a tomar Perlutan com Gestadinona, aí os bicos começou a ficar bonitinho, a aparência do rosto começou a ficar mais legal, o corpo começou a dar um formato mais legalzinho, aí ele falou: “Se você for para São Paulo você vai ganhar muito dinheiro lá, porque os homens lá pagam para ficar com você, com pessoas igual a gente,” que eu não sei o que. Ela me falou coisas boas, só me falou coisas boas, que ia ganhar dinheiro, que ia botar peito, que ia fazer a minha vida, que eu ia ter coisas legais (suspiro), e aí quando eu cheguei aqui não foi nada disso.
P/1 – Como é que você veio de lá?
R – Foi assim. A cafetina, a finada Jéssica, ela foi ligou e disse: “Ah, eu tenho umas meninas para levar,” aí veio eu, Heloísa, a minha amiga Jennifer, a Chiquilita e a Vanessa, e a o nome dele é Mária, a gente chamava ela de Mária, nós cinco. Ela já tinha vindo para cá só veio nós quatro de inexperiente, sabe? E a cafetina falou assim: “Ah, manda as passagens,” aí foi, mandou as passagens da gente e a gente veio de ônibus de Porto Velho para cá.
P/1 – A cafetina era de São Paulo?
R – É, morava em São Bernardo, ela morava no Calux, naquele bairro Calux e ela era de São Bernardo.
P/1 – E como vocês fizeram contato com ela? Como vocês se conheceram?
R – Foi a Mária, porque a Mária veio para cá primeiro, né? Fez a coisa dela tudo aqui e morava na casa dela, pagava a diária para ela e trabalhava para ela. Ela pediu se eu tivesse umas meninas novas para trazer para cá, que ela mandava o dinheiro da passagem, quando ela chegava aqui a gente pagava, tipo assim, a passagem era 300 e pouco, aí dobrava para 600, entende isso? Tudo era isso, tudo que ela fazia para gente, se fosse 100 era 200, ela cobrava como 200, e aí eu vim para cá.
P/1 – Como é que foi a viagem? Você lembra essa viagem de ônibus?
R – Foi uma viagem bem legal, a gente parava nos lugares, conhecendo pessoas novas, a gente almoçava nos postos ou então na parada que tinha, e foi vindo até que eu cheguei na Barra Funda, primeiro coisa que eu cheguei em São Paulo foi na Barra Funda, é uma coisa assim, como eu fiquei com medo de subir a escada rolante (risos), estava com uma mala, uma bolsa, como ia fazer para subir? Aí minha amiga já mais experiente botou logo e subiu e aí eu fui atrás, fui fazendo como ela, mas era tudo assim: “Óh! Meu Deus! Aí que homem lindo! Aí que mulher bonita!” Sabe? Pessoas de São Paulo, na minha cidade o povo é mais aparentado com índio, diferente daqui.
P/1 – Era a primeira vez em São Paulo.
R – Primeira vez.
P/1 – E como foi sua impressão da cidade? Qual que era a diferença de onde você estava vindo?
R – Ah! É muito, os prédios, as casas, os carros, muita gente atravessando em sinal, essas coisas assim, muito isso. E é uma coisa assim: “Meu Deus do céu, vamos começar”. Aí quando eu cheguei na casa, era um prédio de quatro andares, aí tinha um porão onde ficavam as meninas que não ganhavam muito dinheiro. O último andar era o andar das meninas que ganhavam dinheiro e que davam mais dinheiro para cafetina, entende? Fazia plástica com ela, botava silicone, peito, essas coisas aí, o último andar era isso, primeiro eu morei no porão, recém-chegada morei no porão.
P/1 – Onde era a casa?
R – Em São Bernardo, no bairro Calux.
P/1 – E como foi sua impressão quando você chegou e viu a casa?
R – Ah, vi aquele portão assim, um portão grande, preto, um muro todo amarelo, com as janelas todas fechadas pretas. Aí, veio um monte de meninas, umas peladas, outras com roupa, umas com o cabelinho curtinho, outras com cabelo grande, umas bonitas, umas de peito, outras bem bonitas mesmo, parece que eu nunca tinha visto uma transexual toda feita, sabe? O porão meio sujo, meio bagunçado, porque já era tarde as meninas estavam se arrumando para ir trabalhar, então era uma bagunça. Aí, lá em cima tinha a cozinha e na cozinha tinha uma laje bem grandona que você podia pegar sol, se pintar, fazer as coisas lá, né? Eu fui me acostumando, me acostumei, depois ficou legal, sabe? Mas eu sofri bastante, eu apanhei da cafetina. Meu primeiro programa aqui em São Paulo foi de cinco reais, eu não sabia nem o dinheiro, um cara me ofereceu, eu estava com fome. Minhas amigas que vieram comigo, elas trabalhavam à noite e eu fui trabalhar de dia, porque eu nunca tive pelo no rosto, sempre fui um pouco mais feminina, então fui trabalhar de dia, tentar de dia, e sofri algumas coisas, bastante.
P/1 – Quando você chegou, você se lembra da primeira conversa com a cafetina?
R – Então, a primeira conversa que eu tive com ela, ela me chamou de filhinha: “Nossa filhinha, nossa, você é bonita”. E tipo assim, eu fui a melhorzinha que chegou, eu e a Jennifer. A Lorraine, que é a Chiquilita, e a Vanessa já eram um pouco meio homem, meio afeminado, sabe? A Jennifer é loira, dos olhos verdes, bonita, aí o apelido dela foi de surfista e o meu de menina, sempre me chamou mais de menina, porque eu parecia mais menina.
P/1 – E ela te explicou?
R – Aí ela me explicou que eu tinha que pagar a passagem, a diária é 25 reais com almoço e o café preto, café preto só era o café, pão, leite, essas coisas você tinha que comprar com o seu dinheiro, entende? Que ela dava o café preto todo dia de manhã e o almoço à tarde. E a diária, todo dia, 25 reais, e a partir de amanhã já começa a gerar a diária, tem um táxi que tinha um menino, o nome dele era Celso, que levava a gente que é um ex-marido dela que levava a gente para trabalhar na rua, na Industrial ou em São Bernardo, ali na Lucas Nogueira Garcez. Ela explicou isso e falou que se alguém mexesse comigo e quisesse falar: “Ah, você não pode ficar aqui, para quem você paga?” a gente falava o nome dela: “Ah, eu moro com a Jéssica lá de São Bernardo”, aí o povo respeitava, não batia na gente, nem fazia nada. Foi isso que ela conversou comigo.
P/1 – E você estava contando como foi a primeira vez que você saiu, conta um pouco para gente.
R – A primeira vez, é uma rua assim, tipo assim, tinha uma rua bem grandona, atrás da Industrial e tinha um terreno cheio de árvores, só passavam os homens que queriam programa com garotas. Às vezes, passava umas pessoas sinistras, alguns pedestres bem estranhos, sabe? Eu estava lá, tipo assim, não sabia nada, não sabia como chegar, fica encostada nos cantos, ficava lá, os caras paravam, perguntavam o preço, e tinha uns que pensavam que eu era de menor, porque eu tinha rosto muito de novinha, então não saíam comigo e outros não estavam nem aí. Eu cobrava 30 no hotel ou no drive-in, sexo oral fazia 15 reais, e aí falava isso, e uns falavam: “Mas eu tenho tanto” às vezes, era tanto bater naquela tecla de o homem me dar o preço certo às vezes não aparecia, eu comecei a pegar para eu pagar minha diária, para eu não me emboloar com a diária, com a conta que eu tinha que pagar. E eu sofri com isso daí, eu não ganhei dinheiro, passei acho que uns três, quatros meses que eu ganhava dinheiro, mas ganhava mixaria, se fizesse 50 reais era muito mesmo. Eu comecei a ficar até de madrugada, comecei a ficar até à noite para fazer esse dinheiro, que eu tinha que pagar 25 da diária e dar pelo menos 20, 10 reais da conta, fora o táxi que era cinco reais, você sozinha era 20 e quatro, cinco de cada uma para trabalhar na Industrial. Então, eu tinha que fazer o dinheiro do táxi, o dinheiro para mim comer e isso daí, às vezes fazia, às vezes não fazia, teve dia de eu chegar sem nada na casa dela, eu estar devendo a diária, e está devendo a passagem, dela mandar eu voltar para rua, porque eu não trabalhei e fazer isso, me puxar pelos cabelos, me mandar de volta, sabe? Eu ter que me virar para poder voltar, essas coisas foi acontecendo.
P/1 – Quanto tempo você ficou?
R – Eu fiquei morando com ela, fiquei nessa situação acho que uns quatro meses, até eu pegar a malícia da vida, saber trabalhar, comecei a aprender trabalhar, entende? A ganhar dinheiro. Então, eu comecei a me intoxicar de hormônio, toda semana, em quatro em quatro dias eu tomava uma Perlutan e uma Benzenustril, às vezes tomava Perlutan e misturava com a Benzenustril. Então comecei a inchar, o peito começou a ficar mais bonito, eu comecei a ter uma forma mais feminina, o cabelo começou a ficar mais grande. Aí, eu comecei a ganhar mais dinheiro, aprendi a me arrumar, aprendi a me maquiar, sabe? Comecei a ganhar um pouco a mais de dinheiro. Teve uma vez que eu nunca vou esquecer, em São Paulo, que eu peguei um cara, a primeira vez que eu fiz 110 reais na minha vida, foi um dia assim, estava chuvoso, porque era isso chovia bastante, estava um pouco frio e eu fiz 110 reais, fiquei tão feliz, sabe? E já fazendo planos com o dinheiro: “Ah, eu vou dar tanto para cafetina, vou lá tomar meu hormônio, amanhã eu quero comer isso”. Eu nem cheguei em casa, peguei uma carona para voltar para casa, que a gente voltava de carona, sabe?
P/1 – Mas pedia carona?
R – Eu pedia carona, o cara parava: “Onde você mora?” “Ah, eu moro no Calux, assim, assado” “Ah, você mora na casa da Jéssica, na cafetina?” “Sim, moro lá”. Aí ele falou bem assim: “Vamos lá, eu conheço ela, ela lava o carro dela lá na minha oficina,” aí eu me senti confiável do cara. O cara falou assim: “Quanto que você cobra?”, eu falei: “Ah, eu cobro 40 no hotel e 20 no carro e o sexo oral eu cobro 10 reais”, porque era uma rua em São Bernardo, aí ele falou assim: “então vamos para o motel que de lá eu levo você para sua casa”. Eu fui para o motel com ele numa rua, é um lugarzinho onde tem muita represa, é bem fechado e é muito mato, e é isso, tem muita fazenda, essas coisas aí, ele disse: “O dinheiro do motel eu dou para você e vamos para uma rua assim, assim, assado” eu falei: “Tudo bem,” quando chegou lá era uma rua de cascalho, mato de um lado, mato do outro, tinha umas luzes bem longe, sabe, e cachorro latindo, escutava cachorro latindo, a única coisa que tinha viva ali era só isso, cachorro latindo, aí ele falou assim: “Ah, vamos descer do carro,” aí eu peguei só o lubrificante, o gel, o papel e fui lá para trás com ele, ele falou: “Vamos fazer fora do carro porque esse carro é muito pequeno,” era carro de duas pessoas, fomos para fora do carro, quando chegou lá, eu peguei preservativo, eu fui colocar “não, esse preservativo aí me incomoda, eu vou pegar um aqui no meu carro,” tipo assim, eu peguei só isso, deixei minha bolsa lá dentro, deixei meu casaco, tirei o sapato, estou lá, o homem pega, entra no carro e pá, vai embora, e eu correndo atrás dele, muito frio, estava chovendo, meu guarda-chuva ficou lá dentro, meu sapato, meu casaco, minha bolsa. E aí foi que eu perdi a minha carteira de trabalho, meu CPF, os únicos documentos que eu trouxe, o meu RG sumiu um dia antes de eu vir para cá, chorei bastante, muito, eu chorava e só pensava no meu pai, porque foi a primeira vez que eu peguei, na nossa vida a gente chama isso de doce, o cara aprontou com a gente é doce, foi a primeira vez que eu peguei uma coisa assim que eu me arrependi de ter vindo para cá, sabe? Mesmo que a cafetina tenha me batido, eu não estava ganhando muito dinheiro, eu não me arrependia disso, porque a gente sempre pensava no amanhã melhorar, e nisso daí foi a primeira vez que aconteceu isso comigo, eu chorei tanto, eu chorei tanto, eu estava num lugar que eu não conhecia, eu fui andando, andando, eu cheguei num ponto de um local que tinha um posto, eu pedi informação aí um caminhoneiro: “Nossa, você está longe de casa, meu!”. Foi lá, me ajudou, até que eu cheguei lá na rua onde eu trabalhava e de lá consegui ir para casa. Cheguei, contei que eu fui assaltada, ela não acreditou, me bateu, puxou meu cabelo, me chutou, foi isso. Foi uma coisa assim que, foi a primeira vez que aconteceu isso comigo, que me arrependi de ter vindo para cá, vim iludida, cheguei aqui não era nada que a minha amiga me contou.
P/1 – Você não tinha medo, no começo você não tinha medo?
R – Muito medo, eu tinha bastante medo de entrar no carro dos outros, porque queira ou não eu via filme, aqueles filmes americanos, essas coisas de mulher prostituição que parecia depois saía num cliente e o cliente ia lá e, pã, saía dali, eu tinha medo que acontecesse isso comigo. Então, eu só ia nos hotéis que eu conhecia e da onde que eram perto do lugar onde eu trabalhava, longe dali eu não ia, não entrava nos carros dos clientes, porque as meninas falavam que o homem podia me levar para outro canto e fazer a mesma coisa que o outro fez, entende? Então, foi isso.
P/1 – E vocês ficavam próximas? Você disse que, às vezes, vocês iam num carro com quatro pessoas.
R – Eu trabalhava nessa rua atrás da Industrial, elas trabalhavam na rua do Cooperhodia, tipo assim, como eu não tinha prática, não tinha silicone na bunda, eu era gayzinha, então eu tinha que ficar lá perto das gay. Tinha travestis que não se incomodavam comigo, entende? De eu não ter silicone, de eu não ter prótese nos seios não se incomodava não estava nem aí, mas tinha outras que não deixavam a gente ficar, que era na rua do Cooperhodia, não deixavam eu ficar meio entre elas eu tinha que ir para rua das penosas. Eu era considerada uma penosa, porque eu não ganhava dinheiro, eu não era muito bonita, tinha esse negócio aí, aí eu tinha que ir para rua das penosas que era lá embaixo na Industrial. Elas ficavam tudo separadas e, às vezes, se encontravam no final da noite, eu não sabia voltar, me perdi bastante para voltar até eu aprender o caminho de casa eu me perdi bastante, tinha cara que sabia chegar no Calux, eu via algum ponto de referência que eu marcava: “Ah, eu moro ali perto”, o cara me deixava e eu ia andando. Então é só chegar no Calux é um prédio onde mora bastante travestis, todo mundo sabia onde era, mas eu me perdi bastante, eu sofri bastante com esse negócio de começo.
P/1 – E nessa situação que você perdeu todos seus documentos, que ele levou tudo embora, você estava vivendo ainda com a Jéssica, né?
R – Morava com a Jéssica.
P/1 – E depois como você fez para sair dessa situação? Para fazer sua documentação de novo.
R – Eu cheguei aqui em 2006, passei 2007, 2008, 2009, até agosto de 2009 eu estava sem documento, passei bastante tempo sem documento, sem nada. Uma colega minha tirou xerox do RG dela e eu entrei nos hotéis com isso, com o RG dela e falava para mim que sempre que um policial me abordar eu dizer que não tinha RG, tinha que esconder, porque se ele me pegasse com o RG ele podia alegar que eu tinha roubado o RG, eu estava com o RG de outra pessoa então ia dar problema. Até que eu conheci um cara e o cara me ajudou, ele pediu para eu fazer exame de doenças e precisava de documento, para ver se era uma pessoa legal, saudável e com quem estava se envolvendo, entende?
P/1 – Como vocês se conheceram?
R – Na rua. Ele saía com as minhas amigas e um belo dia eu estou lá trabalhando, ele para mim, pergunta o preço, aí vamos para o hotel, ele começa a falar um pouco meio enrolado, ele é francês. E ele ajudava muito as minhas amigas, trazia perfume importado para elas, 212, Chanel, dava dinheiro para elas transarem com ele sem preservativo, elas me contavam isso, dava 300, 400 reais, então ficava marcado. Quando eu conheci ele, logo de cara ele não fez isso comigo, nem nada, e eu sempre tive isso de chegar no hotel, já pegar o preservativo, lubrificante na minha bolsa, e quando ele começou a falar meio enrolado e fazia um negócio assim, não, não sei o quê, aí veio na minha cabeça o que a minha amiga me disse do francês, aí eu perguntei: “Como é o seu nome?” e ele: “Francis” “Ah, a minha amiga Paola conhece você”, então já fiquei esperta com ele. Eu comecei a sair com ele, ele começou a vir da França e me ligar, trazer presentes, me dar dinheiro, aí ele pediu para eu fazer um teste, que ele falou que queria ficar comigo, que ele era uma pessoa que era limpa, dizia que era limpa, que não sei o quê, queria ter um relacionamento mais legal comigo, eu falei: “Tudo bem,” ele falou: “Olha, te dou 600 reais para você arrumar seus documentos e para você fazer o exame”. Foi quando eu fui no Correio, como eu não trouxe nenhum registro, não trouxe nada, fiquei tipo assim indigente aqui em São Paulo mesmo, eu tive que fazer o quê? Ir no Correio para conversar no cartório da minha cidade para mandar o registro pelo correio, até que eu fui, acho que foi no dia 12, nove, dia 13 de agosto que eu fiz meu RG em São Paulo, até agora eu não tenho CPF, não tenho título de eleitor, mas eu tenho o número do CPF, título de eleitor eu nunca fiz.
P/1 – Mas tem o RG.
R – Mas tenho o RG.
P/1 – Eu queria te perguntar, você falou de abordagem policial, você passou por isso alguma vez?
R – Passei. Não querendo assim ser legal, está vendo meu pé aqui meio inchado? Eu sofri muito com policiais, muito mesmo, eles chegavam chamando a gente de demônio: “Ah! Seus demônios! Vocês estão fazendo o que aqui? Já falei para não ficar aqui,” não sei o que. Tipo assim, meu pai me ensinou isso, quem quer respeito, respeite, se o policial chega me chamando de demônio eu não vou chamar ele de anjo, aí eu começava e foi no tempo que eu conheci a doutora Karen, o Mike, que eles me ajudaram bastante nisso.
P/1 – Como é que foi? Você quer falar sobre isso? Você pode falar sobre isso? Como vocês se conheceram? Em que situação?
R – A situação que eu conheci a doutora Karen, estava dentro da cadeia, eu vou contar antes da cadeia.
P/1 – Conta por que você foi para cadeia.
R – Então, esses policiais sempre chegavam abordando a gente com palavras horrorosas, chamando a gente de demônio, de traveco, de não sei o quê e jogavam spray de pimenta, xingavam a gente, só não falavam que a gente era bonita, mas o resto, pronto. E o que é que aconteceu? Eu sempre batia boca com eles, eles falavam isso, falavam aquilo, eu não achava certo, eu falava: “Vai subir favela, meu! Policial, para mim, tem que ir atrás de ladrão, não mexer com pessoas que estão trabalhando, eu não estou despida, eu nunca trabalhei pelada, não estou mostrando partes íntimas, eu estou numa rua parada, me desculpa, você não pode fazer nada com isso.” Como eu batia boca com eles, eles pegavam me algemavam e me lavavam para delegacia, chegava lá e ficava lá, conversava com eles, falava porque eu falei isso, porque eu respondi ele, porque eu desacatei o policial, eu falava: Porque ele fez isso, fez assim, assim, assado, e para mim ele é um funcionário, eu acho que o funcionário tem que chegar dando boa noite, tipo assim: ‘Meninas ou meninos ou travecos, não pode ficar aqui, o vizinho daqui não gostam,’ se ele chegasse assim legal, ele ia ser tratado legal, mas ele não chega, ele chega xingando a gente, extrapolando, então eu me esquento também vou lá e falo coisas que não deve falar, me desculpa, eu não sei conviver com um policial desses, e aí foi indo, foi sumindo. Aí teve uma fase que eles começaram a andar de bicicleta na rua onde a gente trabalhava ali no Butantã, antes do portão da USP, e começaram a andar de bicicleta com a gente, andar de pé, andar com viatura, às vezes, pegavam a gente tudinho, botavam a gente dentro do camburão e ficavam andando com a gente na rua todinha, andando pelas ruas de São Paulo ali até cansar a gente, às vezes, levavam a gente para delegacia, deixavam a gente lá dentro da delegacia até quatro, cinco da manhã. Aí, teve uma vez que eu estava lá, esse dia é um dia bem legal, eu estava bem bonita, logo que começou o ano de 2008, eu estava bem bonita, o cabelo escovado, eu tinha o cabelo vermelho bem vermelho, estava escovado, fiz unha, estava com um sapato que eu tinha acabado de ganhar de Natal muito bonito, vestido bonito, eu estava bem bonita, bem arrumada, aí, uma policial feminina que nunca gostava de mim, sabe? Onde que eu estava, na muvuca em que eu estava ela sempre: “Mão na parede!”, descia com a mão assim, eu botava a mão na parede, jogava a bolsa para um lado, não sei o quê, revistava a gente, chamava a gente de homem, extrapolava que a gente era homem, que não sei o quê, eu discutia com ela, chamava ela de recalcada, de frustrada: “Me desculpa por você ser mulher e não ter a imagem que eu tenho, você ser gorda, olha esse seu cabelo horroroso,” aí eu xingava ela, a gente brigava, ela me levava para delegacia, aí eu ficava algemada lá. Teve uma vez que eu estava algemada lá, bem vestida, aí o delegado chega: “O que é que aquela moça bonita está fazendo ali algemada?”, aí ela responde: “Que moça bonita? Isso aí é um homem,” e eu respondo para ela: “Me desculpe, mas eu sou o tipo de homem que põe você e várias mulheres dentro do bolso, tá? E você que é mulher, Deus me livre, tu é judiada, minha filha” e a gente discutia, começou a discutir, ter essas coisas aí. Teve um belo domingo que eu fui para rua de ônibus, parece que uma coisa que ia acontecer, fui para rua de ônibus olhando as pessoas, olhando os prédios passando, cheguei na rua trabalhando, fiz uns três programas, aí lá vem ela, eu vejo ela lá na esquina abordando minhas amigas, minhas colegas, aí eu pego, vejo elas e vou para dentro do hotel, e aí ela para uma cafetina da Europa que passava na rua, olhava as meninas bonitas e se elas quisessem ir para Europa, e parou as meninas, chamou elas porque elas estavam andando sem cinto, com som alto, abordou elas e foi na frente do portão do hotel, aí eu comecei a falar para as meninas que a policial era o ó, ela xinga a gente de homem, é uma recalcada, uma frustrada, aí, a minha amiga que estava no hotel junto comigo falou assim: “Heloísa, para com isso por causa que ela vai querer entrar aqui dentro e vai querer te levar para delegacia,” eu fui lá parei, fiquei lá dentro da salinha, que tinha uma salinha no hotel, fiquei lá sentada, conversando com elas quando o funcionário do hotel falou assim: “Eles estão vindo aí,” aí tudo bem, e ela apontou para mim: “Você, me acompanhe,” eu falei: “Por quê? Não fiz nada” “Não, mas eu quero que você me acompanhe” “Mas eu não vou,” até que o policial me pegou à força e falou: “Não, você vai”, me arrastou até a viatura, me algemou, me botou na viatura, me levou, quando chegou lá, quando eu entrei dentro da delegacia ela olhou para mim e falou: “Você vai ficar presa por você me chamar de macaca,” eu não chamei ela de macaca, mas foi isso. Minhas testemunhas foram essas meninas que eu não conhecia e eu não conhecia, elas conheciam a cafetina que eu morava com ela, a Daiane, mas não me conheciam, foram minhas testemunhas, só falaram assim para o delegado: “Vocês viram se ela chamou a policial de macaca?” Elas falou que não, não vi nada, não conheço, não posso falar, mas como não tem testemunha, nem nada, a voz dela é mais forte do que a minha aí eu fiquei lá. O doutor Michael foi lá com as minhas colegas levou uma roupa para me trocar assim, assado e eles falaram que eu tinha já ido para outro lugar e não estava lá. Aí, como foi no domingo à noite isso, quando foi na segunda-feira eu fui transferida para outro lugar quando que tiraram fotos minhas, me mediram, me pesaram, depois eu fui para o IML, fiquei lá, mostrei tudo o que tinha, tatuagem, essas coisas toda. De lá me algemei com outros caras, fui para CDP1 de Osasco. Logo que eu cheguei o povo: “Nossa, mulher agora aqui com a gente?”, aquela coisa dos presos todos: “Vai ser minha, vai ser minha”, sabe? Eu cabelo grande, bem vestida com roupa de mulher, de sapato alto, chorando bastante, lembro, até quando o policial mandou tirar a roupa eu tirei toda a roupa, fiquei numa fila dos homens tudo pelado assim e eu no meio deles, cabelo grande, aí é na fase que vão cortar o cabelo da gente, eu lembro que eu chorei bastante. A policial amarrou meu cabelo todinho para cima, fez o negócio e ainda falou que meu cabelo dava qué: “Cabelo da mona dá dinheiro”, que era um cabelo grande, bem bonito, cuidado, cortou, depois passou a máquina, deixou minha cabeça no zero. Tinha dinheiro na bolsa, estava com uns 300 e poucos reais na bolsa, ele tipo assim, rasgou o dinheiro todo na minha frente, falou que eu não ia precisar de nada disso lá, meu telefone, minha bolsa, tudo ficou lá com eles, o RG da minha colega. Demorou um pouquinho, subi para cadeia, ele perguntou se eu tinha doenças, eu falei que não, não tinha doenças e ele falou: “Então cuidado que aí em cima você vai pegar,” aí eu chorei mais. Aí quando chego lá eu conheço uma travesti muito antiga, que o nome dela é Simony, foi presa porque ela roubava os caras na rua, pegava os caras, levava para loja, mandava eles comprarem as coisas no cartão, furtava assim, eu conheci ela lá dentro e ela me acalmou um pouco a mais. Demorou um pouquinho e me chamaram, quando me chamaram foi quando eu vi naquele quadradinho assim da cadeia, no portão eu vi a doutora Karen. A doutora Karen falou para mim ficar calma que ela ia me ajudar, e ali foi uma coisa assim maravilhosa, eu conheci ela num momento horrível na minha vida, mas ela foi uma pessoa que me deu esperança de que eu ia sair dali, sabe? Depois de 15 dias eu saí, parecendo uma lésbica, com roupa de homem com aparência de mulher, com o alvará de soltura, mostrei para o homem do ônibus, eu não tinha dinheiro, não tinha nada. As minhas coisas, o amigo de um cara que eu conheci lá na cadeia, que a mãe dele tirou para mim, depois eu tinha que ir lá na casa da mãe dele buscar. Eu vendi meu telefone para comprar pasta de dente, xampu, sabonete para mim usar na cadeia, sabe? Essas coisas assim: Nescau, leite em pó, tudo que podia entrar. Quando eu saí as coisas chegou, chegou as coisas e eu deixei para as minhas colegas que estavam lá, deixei para elas, aí voltei para casa onde eu morava das meninas onde eu morava e foi bem difícil.
P/1 – Nessa época você estava morando na casa de uma outra cafetina?
R – Ela era conhecida como Daiane, Daiane do Ceará, uma pessoa bem legal. Eu nunca chamo ela de cafetina, mas é isso que fala, né? Cafetina. Mas é uma pessoa bem legal que ajuda a gente, sabe? E não é igual a Jéssica, não foi igual a Jéssica, também a Jéssica só sabia ganhar dinheiro e a gente não ganhava muito dinheiro. E lá já era ao contrário, você não pagava diária, você pagava por semana, toda segunda-feira 150 reais.
P/1 – Nesse outro lugar?
R – Nesse outro lugar. E o café era à parte, o café era cinco reais, o almoço era nove, se você quisesse, 200 reais você usava a internet, você usava o computador aí você pagava 200, se você não usasse computador era 150. Então, eu pagava 150, que era chato tinha que ficar discutindo: “Ah, é a minha vez,” não gostava disso.
P/1 – Você disse que ela ajudava vocês, mas em que sentido?
R – Nesse sentido, se você quisesse fazer uma plástica ou se quisesse ir para Europa, era isso que ela ajudava.
P/1 – Ela ajudava a financiar? A pagar?
R – Ajudava, tipo assim, o peito era cinco mil, pã, dez mil pagava para ela, ela ajudava nisso aí. Ela era mais boa, ela entendia a gente, entende a gente. Quando as coisas estavam horríveis assim ela conversava: “Ó, está acontecendo isso, acontecendo aquilo, você não pode ir por esse caminho,” como as meninas que usavam drogas ou começavam a beber e estavam extrapolando, atrasando semana, ela conversava. A Jéssica não, a Jéssica já batia, mandava você de volta para rua, a Daiane nunca fez isso, sabe?
P/1 – Quanto tempo você ficou na Jéssica?
R – Eu fiquei na Jéssica até o começo de 2007.
P/1 – E você não pensava em sair, assim, em voltar para casa?
R – Não. Eu não sabia como voltar, porque eu não tinha documento, não tinha nada. Aí a minha amiga Jennifer, a mais bonita, pegou e veio para capital morar com a Elizete. A Elizete tinha apartamento na Paulista, na Augusta, na Frei Caneca, na Paim, na Nove de Julho, na Avenida Faria Lima, ela já é uma cafetina mais bem legal, sabe? A minha amiga morava com ela e eu vim passar uns tempos com a minha amiga, porque minha amiga colocou silicone na bunda, estava de repouso e queria me ver e eu fui ver ela, ela foi e falou: “Vem morar para cá comigo, assim, assado, sai de lá.” Eu passei um bom final de semana aqui, estava pensando ainda se eu ia vir ou não para cá, e quando eu chego lá, uma colega minha que eu gostava muito mesmo, amava ela, morreu de overdose na porta de casa, então ali eu já não tinha mais como ficar naquele lugar, entende? Aí eu decidi e vim embora para São Paulo. Eu fui lá, me acertei com a Jéssica, não devia mais nada a ela, as diárias atrasadas, a passagem, tudo, já tinha pagado. Eu já estava na fila de colocar o peito com ela, aí eu fui e cancelei isso, tipo assim, eu vim embora de lá em maio, eu ia colocar o peito em junho, porque tinha tudo marcado essas coisas, tinha outras meninas na minha frente.
P/1 – Ela conhecia o médico que fazia de todas as meninas?
R – É, o doutor Pulga, que é bem conhecido, aí eu conversei com ela: “Ah, está bom, só paga para mim a semana que você está me devendo”, dos dias que eu fiquei na casa da minha amiga lá, que foi sexta, sábado, domingo e segunda e a luz e água que chegou, aí paguei. Mas o meu erro foi que eu trouxe uma menina da minha cidade, da segunda remessa que vieram da minha cidade, eu trouxe ela comigo e ela estava devendo silicone. A gente foi lá para minha colega, quando eu chego lá a minha colega falou: “Eu vou apresentar vocês para Elizete, a Elizete vai dar um apartamento para vocês duas morar.” A minha colega estava com um RG falso de uma outra pessoa e eu falei para ela que não tinha RG, fui uma pessoa sincera, falei a verdade, então ela deixou eu ficar lá. Mas quando a minha amiga foi lá e apresentou um RG falso, tipo assim, no RG a pessoa era morena e ela era branca? Ela tinha o nariz grande e a pessoa tinha o nariz bonito? Então, a Elizete não gostou, brigou com a gente e por causa da minha amiga eu tive que ir embora também, mandou a gente embora na mesma hora do escritório dela. A gente foi para casa da minha amiga que falou de outra cafetina, uma da Cruzeiro do Sul, que nem lembro o nome dela. Lembro que a gente foi para lá, passou um bom tempo lá e a Jéssica me ligou: “Ah, eu vou te pegar, você está multada,” porque eu tinha que pagar mil reais para ela, por causa que eu trouxe a menina comigo, eu falei assim: “Você me desculpe, eu não trouxe ela, ela quis vir, eu chamei e ela veio e me desculpa, ela falou que não estava devendo nada para você,” como a gente saiu de lá tipo fugida, eu ela sabia que eu ia embora a outra não, a outra saiu fugida entende? Ela queria que eu voltasse para casa dela para eu pagar a multa e que a outra voltasse para pagar lá as coisas que devia para ela, que depois a gente podia ir embora à vontade. Eu não voltei, falei assim: “Se ela quiser, ela volta,” mas uma vez eu cheguei lá, fui trabalhar no jockey, no Butantã, eu cheguei em casa, a minha colega não estava lá e as meninas falaram: “A cafetina veio aqui, levou a sua amiga, levou a sua mala e falou para você ir embora, para você pagar a multa, que multou porque você trouxe a menina para cá” e é isso. Eu só fiquei com a roupa do corpo que eu fui trabalhar, fiquei sem nada.
P/1 – Isso foi quando?
R – Foi em 2007, foi começo de 2007, acho que era maio, era tempo que estava começando o frio, eu me lembro.
P/1 – E você voltou para casa dela?
R – Não voltei, recomecei, minha amiga me acolheu de novo na casa dela, aí eu morava lá escondida, sem a Elizete saber. Ela me ajudou, me deu uma roupa, me deu uma calcinha, me deu um sutiã, me deu uma blusa e uma calça, o sapato e a bolsa eu tinha, e eu fui trabalhar. Foi um dia que eu fiz, quanto? Acho que eu fiz uns 800 reais, foi um dia que eu ganhei muito dinheiro, tipo assim, carne nova? A carinha novinha, meio bestinha, os caras gostam disso, vê a pessoa meio assim e aí já vão logo em cima como urubu. Eu ganhei muito dinheiro, foi quando eu fui no shopping, comprei um monte de roupa nova, comprei sapato, foi quando lançou a Melissinha da Hello Kitty.
P/1 – Você comprou?
R – Comprei a Melissinha da Hello Kitty. Foi a primeira vez que eu comprei roupa aqui em São Paulo, foi a primeira vez que eu fui na Colcci comprar uma roupa para mim, comprei uma blusa que tenho até hoje eu tenho ela, está bem velhinha, mas eu não jogo é uma peça de lembrança, conhecia a TNG, comprei calça na TNG, umas regatas e foi indo, aí comecei de novo. Até que eu morei um tempo com a Jennifer, fui morar no Ibirapuera, ali entre o Shopping Ibirapuera e embaixo era, como se chamava? Bandeirantes. Aí, fui morar com outro cafetão, chegando lá pagava 600 reais por ele por mês, descia na Indianópolis, trabalhava na Indianópolis, que era mais perto de casa, não foi muito legal por causa que ele mexia com macumba e quando as pessoas não é apegadas nisso, eles começam, tipo, atrasar sua vida, entende? Essas coisas ruins, eu não estava ganhando muito dinheiro, peguei saí de lá, estava precisando de um lugar e foi quando eu conheci as meninas que moravam na Daiane quando eu fui para lá.
P/1 – E Heloísa, nesse tempo todo você nunca pensou, assim, em não se vincular a um cafetão ou a uma cafetina?
R – Como assim?
P/1 – A não estar vivendo?
R – Não podia, não podia.
P/1 – Não tinha essa opção, por exemplo, você estar sozinha, ou por conta própria?
R – Morar num hotel ou num lugar próprio, não podia isso. Se você fizesse isso elas batiam em você, tinha esse negócio também, você tinha que morar com alguma cafetina para você ter proteção, sempre teve isso, antigamente tinha isso, hoje em dia não tem mais, mas hoje está horrível.
P/1 – Então não era uma opção?
R – Não era opção, não podia.
P/1 – Era perigoso?
R – Era perigoso. E as meninas cortavam seu cabelo, cortavam sua cara, te batiam, tomavam sua bolsa, pegavam seu dinheiro, então era isso. Então, eu fui morar com a Daiane, tive que morar com a Daiane, tipo assim, era só a Daiane, porque na Elizete não podia voltar por causa daquele negócio que tinha acontecido, então ela não me aceitou, e na Daiane não precisava de nada disso, só precisava mesmo ganhar dinheiro, pagar a semana dela, a luz e a água, pronto. Então, foi isso, fui morar com a Daiane, conheci umas meninas, pensava que eram amigas, mas eram amigas só quando você tinha dinheiro ou algo para dar para elas. Como eu sempre gostei de roupa normal, nunca gostei de shortinho mostrando polpa da bunda ou mostrando barriga, sempre gostei de roupas legais e as outras meninas como gostavam de mostrar peito, bunda, tinha só roupa de garota de programa e eu sempre tive roupa de você sai para qualquer lugar, para ir almoçar, ir para um restaurante, ir para o cinema, e eu me lembro que quando elas queriam minhas roupas emprestadas eu pegava e emprestava, jurando que eram minhas amigas.
P/1 – Deixa eu te perguntar. Você tinha mencionado o Francis, que foi o francês que se interessou por você. Mas eu queria saber da sua parte, se você lembra qual foi a sua primeira paixão?
R – Minha primeira paixão em São Paulo ou da minha vida inteira?
P/1 – Pode ser da vida, a mais marcante.
R – Ah! A mais marcante sabe qual foi? Foi um menino que eu gostava dele, o nome dele era Júlio César, eu conheci ele na escola, tipo assim, ele estudava no colégio da minha amiga Helen, no Rosa Fé, e toda vez eu ia buscar Helen e de lá ia para casa dela e ficava lá com ela e ele era primo dela, a casa dele é uma casa bonita, de piscina, ele tem uma família boa, o pai dele é contador, a Helen também tem uma família boa, todo mundo é bom, não sei o que aconteceu eu gostei dele, foi o primeiro menino que eu gostei, e eu gostei até grande, sabe? Até os meus 17 anos eu gostei, era aquele tipo de pessoa que você olhava ele, aquela coisa gostosa, sempre vinha aquele (suspiro) só que a gente nunca teve nada, eu só gostava dele mesmo bastante e foi a paixão mais inesquecível. Aqui em São Paulo eu conheci o Luciano, também foi outro homem que eu gostei.
P/1 – Como vocês se conheceram?
R – A gente se conheceu, tipo assim, o carro dele quebrou e aí ele pediu ajuda para segurar o negócio para ele mexer lá, sabe? Eu fui ajudando, ajudando, ele me conheceu, aí ele falou assim: “Nossa, você é bonita, você é travesti?” eu falei: “Sim” “Nossa! Não parece,” a gente começou a conversar, conversar, até que apareceu o pai e a mãe dele perguntou quem eu era, ele falou que eu era uma amiga dele que tinha ido para o shopping e o carro quebrou e assim, assim, assado. Eu fui para casa dele, a gente começou a ficar, a gente ficou acho que uns quatro meses, mas até quando ele começou a usar drogas eu me afastei, sabe? A mãe dele não dava dinheiro, eu pegava e dava para ele comprar droga e ficava no hotel, mentia para mãe dele, falava que a gente estava na casa da minha mãe e a gente estava no motel, ele estava lá fumando pedra com maconha. Aí, foi quando uma vez eu olhei para ele assim e falei que não dava mais certo, mas foi o primeiro homem, primeiro e único que eu namorei, mas o povo pensava que eu era mulher, me levava para casa dele, me apresentou para mãe dele, o pai dele era meio surdo, ele trabalhava lá com negócio de carro, mecânico, e a mãe dele era dona de casa, eu ajudava quando ia para lá sexta, sábado e domingo eu passava o final de semana com ele, eu ajudava ela na casa, limpava, lavava a louça do almoço. Então, foi um cara bem legal, marcou nisso daí, de eu conhecer a família dele, o irmão dele que tinha chegado dos Estados Unidos, foi bem legal nisso, mas o Júlio César foi a primeira paixão mesmo, bem legal.
P/1 – E da sua vida profissional, Heloísa, teve algum momento que você pensou e quis fazer alguma outra coisa?
R – (suspiro) Então, está chegando essa oportunidade agora, eu estou pensando nisso agora, que eu vou fazer 27 anos já, estou ficando velha e a prostituição, o negócio que eu trabalho, quando você está jovem todo mundo quer você, depois que você fica velha, você fica tipo igual a uma boneca velha, tipo assim, e você vai cobrar um preço, ele vai falar que tem tanto e você vai ter que começar a fazer de novo isso, porque você já não está mais nem bonita, nem é mais aquela coisa toda, sabe? Eu estou pensando nisso agora, estou pensando na velhice, de eu estar com 30 anos e estar naquele lugar ainda, até falei, se eu chegar nessa fase com 30 anos e não tiver nada na minha vida, não tiver arranjado alguém que me ajudasse, ou saísse dessa vida, arranjasse um trabalho, ou voltasse a estudar, eu penso nisso, eu pensando nisso agora. Se não tiver acontecido nada na minha vida daqui até lá eu penso, falei que ia me matar, por causa que ia ser uma vergonha. As pessoas falam assim: “Por que você não vai para sua cidade?” Mas eu fico pensando: “Voltar para minha cidade? Meu Deus do céu!” Meu pai ia chegar e falar assim: “O que você fez lá?” Meus amigos vão falar assim: “Nossa, mas você não ganhava bem?” tipo assim, as fotos do Facebook que eu mostro, do Orkut, eu me divertindo em lugares bons, vão ver que eu estava ganhando dinheiro e tipo assim: “O que foi que você fez, não desfrutou de nada? Só balada, roupa boa, restaurante bom? E aí, o que você trouxe? Ah, roupa bonita, perfume caro? Isso? E uma casa? E o diploma de alguma coisa?”.
P/1 – Você voltou alguma vez para lá?
R – Nunca voltei, tem nove anos que eu estou aqui.
P/1 – E você tem contato, assim, com a sua família, carta, telefone?
R – Não. Desde que cheguei aqui a cafetina levou minhas coisas de volta para lá, tirou uma agenda que eu tinha de contatos de pessoas que moravam perto do meu pai, que eu perguntava dele, e aí fiquei sem contato, nunca falei com ele como eu voltei para cá. A única pessoa com quem falei foi com meu tio Severino e foi, pronto. E aí, como no negócio do Orkut, conheci uns amigos, a Helen, a família dela, meus amigos próximos, minha amiga Jamaira, que mora perto da casa do meu pai, eu pergunto sempre por ele: “Como está meu pai, como estão meus irmãos? Fala para eles que eu estou bem,” eu mando mensagem para conseguir telefone do meu pai para mim ligar para eles, mas não tenho resposta, nunca tenho resposta disso. Só falam que meu irmão está bem, que minha irmã estava grávida, estava grávida, é isso. Mas eu estou pensando agora em mudar.
P/1 – E você pensa em alguma coisa que você gostaria de fazer?
R – Como eu gosto muito de proteger os outros eu queria ser advogada, sabe? Mas para chegar a ser advogada eu tenho que voltar a estudar, terminar os estudos, fazer uma faculdade, e eu agora vou trabalhar nisso daí. Estou pensando em ir embora para minha cidade, porque lá eu não vou ter que me preocupar com aluguel, de ter que comer, de ter que pagar rua para mim trabalhar, entende isso? Eu pago rua para trabalhar, então, eu vou ser uma pessoa que eu posso achar um emprego, ter paciência de achar um emprego. E como eu vou ganhar só por mês e aí eu estou na casa do meu pai, não vou ter que pagar nada, só tenho que ajudar ele, claro, mas é isso. Então, estou pensando em voltar para minha cidade e começar de novo, do zero, mas a coragem ainda não bateu, sabe? De “Eu vou embora,” ainda não bateu.
P/1 – Mas você é jovem mesmo, não fica falando isso que você está velha, porque você é jovem, é verdade.
R – Eu sei, mas eu acho que eu perdi muito tempo. Posso falar uma coisa? Uma coisa que eu fico vendo, meus amigos todos já estão tudo bem na vida, já são casados, até filhos acho que já têm, todos já têm seu trabalho, a sua casa. Tem alguns que acho que devem morar com o pai, mas o seu bom emprego já devem já ter, sabe? E o que eu tenho? Não tenho nada. Eu só mudei de aparência, fiquei mais bonita, sei conversar, sei sentar hoje em dia, sei respeitar o próximo, aprendi isso. E é isso, acho que vou levar para lá só mudança, que eu mudei, que eu estou mais bonita, só isso, e roupas boas, e isso, é chato isso.
P/1 – Por que você não colocou peito e por que você não quis ir para Europa?
R – Por causa que elas cobram 15 mil euros, por isso que eu não quis ir para Europa. E medo de passar tudo o que eu passei aqui em São Paulo, passar lá, porque dizem, a gente fala assim, que lá é a terra onde o filho chora e a mãe não vê. Eu estou no Brasil, sei me comunicar com você, sei me comunicar com o próximo e lá não, lá é outra língua é outras pessoas, tipo assim, você lá chega, compra o ponto, lá o ponto o ponto é 200 euros, o ponto onde você vai trabalhar, fora isso que lá não é igual aqui, os policiais chegam abordando, a polícia já leva presa, qualquer coisa que te pegar você vai presa lá, que não é aceitável a prostituição na rua, essas coisas assim. E também tem o negócio de três meses, se te pegarem lá eles te deportam sem nada, só com a roupa do corpo, eu tenho medo disso. E que lá as meninas trabalham numa rua muito deserta, deserta mesmo, que só é mato, elas fazem programa dentro do mato ou dentro do carro. Fora isso, as meninas me contam que já foram para lá e me contam, outras me contam coisas legais e outras me contam a realidade, que eu gosto dessa daí, não gosto da invenção só do: “Ah, eu alugo carro conversível, pago 100 euros por dia, moro num bom, os homens de lá dão bolsa da Louis Vuitton, dá perfume importado, telefone da Apple”. Não gosto de escutar isso, porque isso daí é quem tem sorte acontece isso, quem não tem sorte.
P/1 – O que as suas amigas te contam, as que foram?
R – Me contam que os homens de lá são maravilhosos, que eles gostam de andar de mãos dadas com a gente, gostam de levar a gente para restaurante, dá presentes, não são igual de São Paulo que só vê você entre quatro paredes ou à noite dentro de um hotel. Não é todos, hoje em dia está melhor, só que os homens de PG, de garoto de programa, de rua, eles são assim, tem outros que não, que querem levar a gente para jantar, querem levar para o cinema, só que quer desfrutar da gente, quer que a gente transe com eles em troca disso, eu não sou dessas, me desculpa, então não faço isso com eles aqui. E elas me contam isso, me contam que são muito maravilhosos, outros tiram você da vida, que te dá prótese, te deixam você uma mulher, fazem mudança de sexo, nem todo mundo tem sorte de acontecer isso, mas a maioria foi. Eu tenho uma amiga, Melanie, ela foi para lá um garotinho, usava peruca, roupa, era bem masculino ela, e ela conheceu um empresário lá, um italiano muito bom que ele usava droga, aí ele dava muito dinheiro para ela, até que chegou um certo ponto que ele gostou tanto dela, que não deixava ela trabalhar na rua mais, acabou com as contas dela tudo, e depois ele apresentou ela para família dele, aí foi fez as cordas vocais dela, botou seios nela, botou prótese no bumbum, botou prótese nos seios, deixou ela uma menina, uma mulher. Depois ele pagou a cirurgia de mudança de sexo para ela, veio para o Brasil, comprou dois apartamentos para ela, um que é ali na Santo Amaro que é bem grandão, eu acho que é no prédio ‘bolo de noiva’, fala isso, né? É nesse prédio, muito lindo o apartamento dela e comprou uma quitinete, para tipo assim a quitinete paga o condomínio do apartamento, né? E comprou a quitinete e o apartamento para ela viver bem, para ter um aluguel e a casa dela própria, ele ajudou ela bastante, mas não é com todo mundo que acontece isso, ela foi a única que eu saiba, dessas amigas que eu conheci, ela foi a única que eu conheci que aconteceu isso bem legal. Hoje em dia ela desfruta de tudo isso aí, viu que não estava precisando dele para mais nada e terminou com ele, veio para o Brasil, começou a sair, usar drogas, começou a sair com outros caras e deixou ele de lado, mas pelo menos ele deu uma boa coisa para ela. Ela que é burra de ter feito isso, mas é isso.
P/1 – E você chegou a receber alguma proposta para ir para Europa?
R – Muitas. Como na semana passada minha amiga me chamou para ir para Alemanha, ela ia cobrar dez mil euros de mim, mas eu tenho medo de chegar lá e não dar certo, e no começo como vai ser? Ela vai ficar comigo lá três meses, e se nesses três meses eu não conseguir pagar os dez mil? E se nesses três meses eu não conseguir aprender a falar alemão, a atender o telefone? Essas coisas que tem que aprender a fazer lá, a conversar com eles, a atrair o cliente até a sua casa, se eu não souber disso? E para você pagar uma pessoa é 500 euros, não sei como é, mas é 500 euros para pessoa atender o telefone só para você, entende? Por mês ou por semana. E fora que as fotos lá, para você botar foto no site, que é mais 200 euros por semana, para você se alimentar. Como você não pode levar roupa, maquiagem, tudo isso daí para eles não perceberem que você vai fazer prostituição lá ela, também ela te dá o dinheiro, te dá não sei quanto euros para você comprar isso, maquiagem, roupa, para você estabilizar, um telefone, então é isso.
P/1 – E a cirurgia do seio?
R – Eu acho que eu tenho medo. Eu tenho medo de anestesia, tenho medo de deitar naquela maca e não voltar mais, eu estou esperando a coragem para colocar, eu acho que agora no meu aniversário eu quero me dar isso de presente, quero colocar os seios, porque eu já estou ficando velha, né? Já não combina mais, assim eu acho bonito mulheres de seios pequenos, então eu estou indo nessa ilusão de seios pequenos, de ter um corpo bonito, mas os seios pequenos. Eu nunca tive vontade de colocar, de estragar, de ficar feio (risos).
P/1 – Tem medo mesmo. A gente está encaminhando para o final, primeiro eu vou fazer as perguntas finais, mas se tem alguma coisa que a gente não te perguntou que você queira falar. Alguma história, qualquer coisa?
R – Eu posso falar de hoje, hoje eu estou bem. Por tudo o que eu passei em São Paulo hoje eu estou maravilhosamente bem, sabe? E aprendi com a vida, aprendi mesmo, aprendi que a gente não tem amigos, se não for seu pai e sua mãe.
P/2 – E a Lina?
R – A Lina nem é amiga, ela é uma mãe, maravilhosa! Ah, eu conheci pessoas maravilhosas, elas que me seguram aqui, eu não quero ir embora. Conheci homens muito bons também que gostam de mim, que quer me ajudar. Conheci um agora que quer me ajudar, que quer que eu faça um curso, porque eu até chorei com ele, quando chegou agora em janeiro, dia cinco de janeiro fez nove anos que eu estou aqui e dia seis de janeiro fez nove anos que eu estou nessa vida, e ele perguntou: “O que você tem?” Eu abaixei a cabeça: “Nada” O que vai ser o amanhã? Tipo assim, porque queira ou não queira, quando você está jovem todo mundo te quer, quando você ficar velha tem uns homens que vai gostar de sair com você, só que nem todos eles vão querer sair com você, porque negócio de prostituição todo ano, todo dia, toda hora vai chegando uma menina nova, então você vai ficando tipo para trás. Tem homens que vão sair com você, porque você é uma pessoa legal, conversa, é confiável, então tem isso também que conta. E eu conheci um cara muito legal que está fazendo parte da minha vida agora, que quer que eu faça um curso, quer que eu volte a estudar, que está me ajudando. Conheci pessoas, como a doutora Karen, Mike, meu amigo Johnny, meu amigo Fábio, que eu posso chamar de amigo mesmo, que eles qualquer coisa que acontece comigo eles me levam para casa deles, conversam comigo, me ajudam quando tem que ajudar, isso que é amigo, nas horas difíceis, não é na hora que você tem dinheiro, não é na hora que ele quer sair para um lugar e você tem que ir junto com ele, amigo não é isso, isso você tem que chamar de colega, colega de balada, colega de tudo isso daí, né? É isso. Hoje eu só não sei se eu sou feliz, mas eu tenho uma vida boa, vivo bem hoje em dia, sei para onde eu vou, sei o que eu tenho que fazer, hoje eu entendo de ganhar dinheiro, hoje eu entendo como eu tenho que guardar dinheiro para o amanhã, de eu ficar doente, de acontecer um acidente, porque teve pessoas que gostam de mim e que me falou isso, porque as outras pessoas só falavam assim: “Ah, vamos comprar roupa? Vamos fazer isso, vamos fazer aquilo? Vamos no salão.” E nunca falava assim: “Você guarda o seu dinheiro? Você faz isso? Você faz aquilo?”
P/1 – Hoje em dia você guarda dinheiro?
R – Hoje em dia eu guardo dinheiro, hoje em dia eu sei até quanto eu posso gastar, o quanto não posso gastar. E todo dia eu trabalho, então todo dia eu tenho que tirar um tanto e todo dia tenho que escrever lá: “Hoje eu fiz 150, hoje eu fiz 300, quanto que eu gasto para no mês eu começar a economizar.” Ele me ensinou isso, estou gostando de conhecer ele, é uma pessoa legal, só que o único defeito dele é que ele é casado, entende isso? Mas ele é maravilhoso, independe de tudo isso daí.
P/1 – Heloísa, eu queria te perguntar, fora o trabalho o que você faz no seu tempo livre para se divertir o que você gosta de fazer?
R – Eu vou para casa do Johnny e do Fábio. A minha tia, que é tia deles, eu chamo ela de tia, tem uma fábrica de sorvete e tem o Lucas, que é neto dela, eu vou para lá e cuido do Lucas, é o que eu gosto de fazer, gosto de ajudar ela a vender o picolé. Como as pessoas trabalham muito ocupadas e têm que vender o picolé, eu fico atendendo as pessoas que chegam lá e passo o final de semana com o Johnny, o Johnny gosta de escutar música sertaneja, eu vou para o barzinho sertanejo, eles bebem. Eu só bebo Bonafont (risos), onde eu for ele sabe que tem que comprar Bonafont, eu tenho que ter a Bonafont, então eu fico nervosa, fico estressada. Minha diversão é isso hoje, é sair com eles, churrasco, ou a gente fica em casa, assiste a um filme, tem isso hoje em dia, né? A gente nunca foi para cinema não, o Fábio e o Johnny são casados, são dois homossexuais casados que gostam muito de mim, a família, minha tia, também gosta muito de mim. Então, minha diversão hoje em dia é isso, eu não saio mais para balada, não saio mais para coisas que eu fazia antigamente com pessoas que não gostavam de mim, sabe? Que só queriam me afundar, me oferecer drogas, bebidas, essas coisas, ainda bem que eu tenho uma cabeça bem legal para isso daí, eu nunca entrei e nunca experimentei, então é isso.
P/1 – Vou fazer as duas perguntas então para gente fechar. A primeira é: Qual é o seu sonho ou quais são seus sonhos hoje?
R – Ah, meu primeiro sonho é achar um homem maravilhoso, que gostasse de mim, que me ajudasse, você sabe o filme Uma Linda Mulher, né? Eu sou inspirada nesse filme, eu caí no mundo da prostituição, queria que na minha vida acontecesse igual a um filme, achar um homem maravilhoso que me ajudasse, que não gostasse que eu fosse trabalhar, que tem ciúmes de mim ou que não queria me ver com outras pessoas e me ajudasse nisso. Meu sonho é esse, achar um homem maravilhoso, que me ajude, que vê que eu estou precisando de ajuda e ficar do meu lado. O meu sonho é esse e terminar bem, acho, de um dia olhar para trás, ver pelas coisas que eu passei e de estar na varanda com as minhas amigas conversando, lembrar das coisas ruins, das coisas boas e de onde a gente está hoje, sabe? Eu fico pensando nisso, no futuro disso, e meu sonho é eu estar bem.
P/1 – E como é que foi contar a sua história aqui?
R – Foi legal. Foi bem legal, gostei, às vezes, posso ter feito umas coisas horrorosas, mas eu gostei de contar a minha história, é bom contar. Eu não gosto muito de contar para as pessoas lá, porque tem pessoas que ficam falando: “Ê presidiária, você que fez aquela chupetinha de cinco reais”, querendo usar as coisas da minha vida para me humilhar, para me tirar, brincadeiras chatas comigo, entende? Então, eu não conto muito, mas as pessoas que me conhecem bem, que às vezes tem tempo de me escutar, eu falo das coisas que eu já passei na vida, de quando eu fui presa, dos policiais. Elas me conhecem como “Quebra-quebra” porque eu quebrei muito carro, eu discutia com os policiais, eu enfrentava eles, quando eles judiavam das minhas amigas eu dava pisão na viatura.
P/1 – Você quebrava carro policial?
R – Não quebrei carro policial, mas quebrava os carros de clientes que tiravam onda com a nossa cara, que chegava lá com um monte de homem: “Ê traveco, João!” A gente pegava uma pedra jogava no carro deles, assustavam eles e iam embora, eu fiz isso. E teve uma colega minha que falou bem assim: “Olha, eu estou vendo sabe o quê? Que um dia você vai levar um tiro de alguém, porque você faz isso e tem muitas pessoas que amam seu carro e não quer saber, que, tipo assim, matar travesti é como passar um passarinho, uma formiga, e não vai dar em nada, porque você não tem pai, não tem mãe, não tem ninguém por você aqui, e você é muito bonita, muito feminina para ficar pegando uma pedra no chão, jogando nos carros dos homens e fazendo isso, sabe o que você faz? A melhor coisa é você olhar para eles, respirar e se mostrar, pegar o cabelo, fazer assim com o cabelo, mostrar o corpo, acho que é a melhor coisa que você pode fazer e pedir desculpa para ele se incomodei: ‘Me desculpa se eu te incomodei, não era minha intenção. Só estou aqui trabalhando, esperando algum homem bonito sair comigo para me pagar.’” Ela sempre me ensinou essas coisas boas, sabe? Ela é trans, tem uma vida muito boa, ela tem 29 anos, uma pessoa maravilhosa, me dá conselhos. Então, eu aprendi a viver um pouco a mais, comecei a olhar o mundo com outros olhos através dos olhos dela, do jeito que ela começou a me falar as coisas, de eu fazer isso, fazer aquilo, de estar bem. De você ir para rua trabalhar sem ter que preocupar: “Ah, eu quebrei o carro do Fulano, será que ele vai voltar para me bater, para me matar?” Então, ela me mostrou isso.
P/1 – Está certo, muito obrigada, Heloísa.
R – Obrigada você.
P/1 – Foi um prazer.
R – Também foi um prazer ficar aqui, conversar com vocês.
FINAL DA ENTREVISTA
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