Projeto Centro de Memória das Comunidades Quilombolas de Paracatu
Entrevista de Dalmir Pereira de Souza
Entrevistado por Nataniel Torre e Fabíola Couto Costa
Paracatu - 28/11/2021
PCSH_HV1180
P/1 - Seu nome completo, sua data de nascimento e o local onde você nasceu?
R - Meu nome completo é Dalmir Pereira de Souza, nasci em 1965, 05/06, no município de Paracatu.
P/1 - Nasceu no município de Paracatu, mas nasceu na roça, né? Que lugar o senhor nasceu?
R - Nasci numa roça no município de João Pinheiro, que minha mãe me teve. Meu pai trabalhava de vaquerista, fala vaqueiro, aí me teve nessa roça. Aí eu vivi com a minha mãe…
P/1 - Qual é o nome do pai e qual é o nome da mãe?
R - Meu pai chama João Pereira de Souza, minha mãe chama Joaquina Pereira Costa.
P/1 - Pode contar essa história, por favor?
R - Aí como nós somos dos Quilombolas da região do Cercado, meu pai sempre trabalhava de vaqueiro, ficava uns tempos na fazenda, em outra fazenda. Aí minha mãe me teve nessa fazenda, aí convivi com a minha mãe até aproximadamente os 4 anos de idade, antes de ela falecer, ela teve um outro menino que chamava Paulo, meu irmão que eu não lembro direito, mas deve ter vivido um mês e pouco para 2 meses. Da fazenda, veio para Paracatu, meu pai veio para cá, eu era criancinha.
P/1 - A sua mãe já tinha falecido?
R - Não, ele veio junto com o nenenzinho e eu que era pequeninho, ia fazer 4 anos. Numa casa que era feita de palha e barro, aqui no bairro Nossa Senhora de Fátima, por cima era coberto com capim.
P/1 - Essa casa já estava feita quando vocês chegaram?
R - Estava feita, doação para ficar uns tempos lá, meu pai. Eu era criança, não lembro, mas não cobrava não. Aí veio uma chuva muito forte, essa casa caiu, os paus era aquelas madeiras roliças, essa madeira roliça foi e caiu em cima de nós. Aí minha mãe foi com o nenenzinho para o hospital e me levaram para uma casa, com meu irmão e uma irmã. Aí no hospital...
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Entrevista de Dalmir Pereira de Souza
Entrevistado por Nataniel Torre e Fabíola Couto Costa
Paracatu - 28/11/2021
PCSH_HV1180
P/1 - Seu nome completo, sua data de nascimento e o local onde você nasceu?
R - Meu nome completo é Dalmir Pereira de Souza, nasci em 1965, 05/06, no município de Paracatu.
P/1 - Nasceu no município de Paracatu, mas nasceu na roça, né? Que lugar o senhor nasceu?
R - Nasci numa roça no município de João Pinheiro, que minha mãe me teve. Meu pai trabalhava de vaquerista, fala vaqueiro, aí me teve nessa roça. Aí eu vivi com a minha mãe…
P/1 - Qual é o nome do pai e qual é o nome da mãe?
R - Meu pai chama João Pereira de Souza, minha mãe chama Joaquina Pereira Costa.
P/1 - Pode contar essa história, por favor?
R - Aí como nós somos dos Quilombolas da região do Cercado, meu pai sempre trabalhava de vaqueiro, ficava uns tempos na fazenda, em outra fazenda. Aí minha mãe me teve nessa fazenda, aí convivi com a minha mãe até aproximadamente os 4 anos de idade, antes de ela falecer, ela teve um outro menino que chamava Paulo, meu irmão que eu não lembro direito, mas deve ter vivido um mês e pouco para 2 meses. Da fazenda, veio para Paracatu, meu pai veio para cá, eu era criancinha.
P/1 - A sua mãe já tinha falecido?
R - Não, ele veio junto com o nenenzinho e eu que era pequeninho, ia fazer 4 anos. Numa casa que era feita de palha e barro, aqui no bairro Nossa Senhora de Fátima, por cima era coberto com capim.
P/1 - Essa casa já estava feita quando vocês chegaram?
R - Estava feita, doação para ficar uns tempos lá, meu pai. Eu era criança, não lembro, mas não cobrava não. Aí veio uma chuva muito forte, essa casa caiu, os paus era aquelas madeiras roliças, essa madeira roliça foi e caiu em cima de nós. Aí minha mãe foi com o nenenzinho para o hospital e me levaram para uma casa, com meu irmão e uma irmã. Aí no hospital veio a criancinha a falecer, que os paus tinham caído e depois de uns 3, 4, 5 dias, minha mãe faleceu. (chora) Aí ficou uns tempos, tinha uma senhora que chamava Francisca, que trabalhava no hotel que chamava Presidente, meu pai tava trabalhando, aí a tarde ela levava para nós uma marmitinha de comida para os 3, aí dividia. Os que eram mais espertos comiam mais que o outro, porque os outros eram maior.
P/1 - O senhor tinha quantos irmãos?
R - Meu pai foi casado 3 vezes, tinha uns irmãos mais velhos, mas era de outra mulher, nós éramos os mais novos.
P/1 - Eles já era adultos, esses da outra mulher?
R - Era adulto.
P/1 - Do seu pai e da sua mãe eram 3, é isso?
R - No caso 4, com o bebezinho que morreu. Aí foi mexendo e levou nós para região nossa, que era lá no Cercado Quilombola. E levou eu para casa de uma irmã do meu pai, o outro irmão meu, que era mais ou menos mais velho que eu 3 anos, levou para casa de outro tio, distância de uns 200 metros. E eu e essa irmã minha ficava na casa da tia e o irmão na casa do outro tio.
P/1 - Separou vocês nessa época. E o seu pai também foi para o Cercado?
R - Meu pai continuou trabalhando por longe, que eu era criança nem sabia por onde era, ficava muitos meses sem a gente ver. Aí aquela rotina, foi crescendo. Plantava as roças de arroz, a gente tinha aquele tamanhozinho, punha a gente para ir vigiando.
P/1 - Isso na casa dos seus tios?
R - Criança. Passarinho tinha milhões, não era igual hoje, tinha demais. Aí você tinha que dar conta de vigiar mais ou menos direito, porque tem um passarinho que chama jandaia, gosta muito de comer arroz, tora o cacho, o cacho cai no chão, aí os criadores apertavam a gente.
P/1 - E era muito grande essa lavoura de arroz?
R - Não muito grandes, vamos supor uma extensão, uma lavoura de uma pessoa fraca naquela época, dos maiorzinhos, 300 metros de comprimento, outros 250 de arroz, outros 500 metros de comprimento. Ali vinha aquele tanto de pássaro preto, periquito, jandaia, chegava escurecer. E ali você fazia as pelotinhas de barro, punha para secar, barro branco, fazia um bodoque, não sei se vocês conhecem, bodoque é um negócio tipo uma flecha, com embornal. E era o tempo todo correndo, gritando, que dizer, a roça não era desmatada, era no machado e foice, e tinha os trieiros no meio do arroz para você correr entre o meio e gritando.
P/1 - Por que essa era a forma de espantar os pássaros?
R - É, jogando pedra. Gritava o dia todo e jogando, você corria. Tem aqueles tocos mais grossos que eles cortavam, mas tinha aquela mais finos que não apodrecia e cortava meio chanfrado, de vez em quando o canto do pé pegava naquele chanfrado descalço, cortava. Você sentia só a dor e o pé enterrava no barro, e tinha que continuar aquele trabalho. Que eu digo assim: é diferente talvez dos reis, mas, a menina muito nova está aí, mas era um trabalho muito duro, escravo mesmo.
P/1 - E vocês eram tudo criança nessa época? Não tinha tempo de brincar, tempo de nada seu Dalmir?
R - De vez em quando, o senhor percorria as roças, aí via uns cantos que a jandaia tinha derrubado, aí falava: vou te colocar na água de sal, para deixar os bichos comer. Se eu passei, eu conheci o avô dela (Fabíola entrevistadora) que chamava Justino, que era mais velho que eu, também passou pior. E por aí continuou, a vida desse tipo. Aí foi crescendo, eu estava vigiando uma roça de arroz, se esteve lá no Cerrado? Lá na casa de dona Celina.
P/1 - Mas isso aí o senhor já era adolescente ou já era adulto?
R - Eu estava com uns 10 anos para 11 anos. A última roça de arroz que eu vigiei foi na casa da dona Celina, lá no Cercado, na beira daquela ponte, não sei se vocês foram lá. Atravessou a ponte, aquela baixada ali era uma roça de arroz e naquela época ali tinha muita água, a água passava por cima daquela ponte, tempo de eu criança, 40 e tantos anos atrás. Um dia, deu de tardezinha - foi a tarde que dona Celina teve duas meninas, gêmeas, Luci e Luciele - e eu vigiando essa roça de arroz, quando estava escurecendo eu vinha, buscava água e punha para esquentar, porque ela tinha o marido dela que chamava seu Manoel, aí punha água na beira da cama, que ela teve as 2 meninas na roça. Aí ela conseguia pôr o dedo na água, para ela dar banho nas nenenzinhas. Até eu dei banho nas nenenzinhas, quando elas eram pequenininhas, dava banho e entregava na cama, aquelas meninas não devem saber disso, mas até isso eu fiz. Um dia mais ou menos umas 14h, acredito eu, que eu nem sabia o que era hora direito, falou assim: seu pai está aí. Que era na região do Cercado, ele estava trabalhando por outras regiões. Eu fiquei em uma alegria, aí com um pouco saiu uma conversa, “seu pai veio te buscar”. Que nós estávamos estudando naquela escolinha fraca lá na roça. E aí o dia foi passando e nada, eu lá na roça de arroz vigiando e olhava toda hora e não vinha ninguém chegar, foi até escurecer. Quando escureceu, que deu a hora da janta, nas portas, eles falavam batente, que era um seco que tinha assim de madeira, toda porta tinha. Sentei lá naquele batente, olhando para o escuro, vi um vulto de uma pessoa que vinha. E o filho conhece o pai, mais ou menos uns 20 ou 30 metros que eu calculo hoje, eu levantei desse lugar e sai correndo e pulei no meu pai e falei: me leva embora daqui, meu pai. Ele falou: eu vim buscar vocês. Não estou retratando maldade em ninguém lá. “Eu vim buscar vocês para estudar”. Aí todos nós viemos para a cidade.
P/1 - Aí vocês vieram para Paracatu?
R - Ele foi para outras regiões trabalhar.
P/1 - Mas por lá? Ao redor da comunidade?
R - Vamos supor, tem o Cercado, vocês conhecem sentido Belo Horizonte, que eles falam Córrego Rico, tinha uma carvoeira por ali, ele estava por aquele rumo, sempre trabalhava mais na cozinha, fica ali, tinha 20, 30 pessoas derrubando árvore no machado ele estava lá, para organizar aquela cozinha. Aí ficava 2, 3, 4, 5 meses.
P/1 - Esse tempo que o senhor ficava na casa dos tios, a lavoura de arroz era de vocês ou de um fazendeiro?
R - Essas lavourinhas de arroz que tinha, era do pessoal da comunidade Quilombola. Por exemplo, se eu estava na casa do meu tio, que chamava José Gonçalves, e lá como a gente é tudo parente, se na casa dos pais dela, por exemplo, do avô dela, se lá onde eu tava, estava meio fraco, parado, e lá no avô dela estava precisando de uma pessoa, falava: vai para casa de fulano. Aí eu tinha que pegar um saco que tinha, com aquelas roupinhas que tinha, rasgada mesmo.
P/1 - Aí você ia lá para a casa do parente dela para trabalhar lá?
R - Chegava lá, só falava assim: de manhã cedo você levanta e vai capinar aquele mandiocal, ou amanhã cedo você levanta e vai vigiar aquela roça de arroz, ou amanhã cedo você levanta para capinar a roça de arroz. E cedo, era quando o dia estava clareando. Tinha, vamos supor, chá e café, era muito normal, às vezes você tinha vontade de tomar café, a maioria dos novos não tomava café, eles não davam, dava algumas vezes, era só o chá.
P/1 - E essas lavouras era para a subsistência da comunidade ou eles produziam para vender para fora também?
R - Era para o pessoal da comunidade. Tinha o arroz, por exemplo, o outro lá não tinha, o que acontecia… e eles não tinha dinheiro, aquele outro poderia ter arroz, mas para pagar com o trabalho. Se o outro não tinha, não vou dizer óleo, porque eu fui conhecer óleo de cozinha, eu já estava bem adulto, não tinha; o toicim, o outro lá tinha, dava para o outro para poder pagar com trabalho. Se o outro lá não tinha rapadura, arrumava também para poder pagar com trabalho. Aí por exemplo, se você tinha uma lavoura, roça farta, precisava de capinar, aí eles faziam também os mutirões. Aí você estava na sua casa com a sua esposa dormindo, o pessoal combinava tudo caladinho sem você saber. Aí tinha um que era primo dela, tio meu, e uns outros lá que tocava violão, igual meu pai que tocava violão, ele pegava o violão, você estava lá com sua esposa dormindo, daqui a pouco chegava na sua porta aquela turma de mulher, moça, até menino, até eu ia também, e começava a tocar na sua porta, que era uma “Treição”. Você estava lá quieto e eles lá cantando os versos até você abrir a porta. Abria, eles tocavam ali um pouco, aqueles que vinham já trazia um pouco de bebida, pinga, com todo respeito, naquela época eu lembro de muita gente andar com 38 na cintura.
P/1 - Andar todo dia com o 38 pendurado?
R - Ia dançar com uma moça por exemplo, dançando com o revólver aqui. E não tinha, eu mesmo, na região nossa, eu não lembro de um crime lá, todo mundo andava com essas coisas.
P/1 - O senhor estava contando da “treição”…
R - Fazia a “treição”. Quando dava no outro dia cedo, juntava os homens, ia para a sua lavoura, para a roça, quer dizer, lavoura é de gente rico, para sua roça, para poder capinar a sua roça, limpar ela com as enxadas. E as mulheres iam para casa para cuidar da casa, fazer almoço para os que estavam capinando. Aí, quando dava a hora do almoço, o almoço era 9h, 9h30 da manhã, quando muito, almoçava quando terminava de capinar sua roça, mas era para terminar mesmo, eles pegavam para valer. Quando era de tarde entregava sua roça pronta. Aí todo mundo ia para a sua casa, tomar seu banho, vestia sua roupa, aqueles que tinha a botina, quando estava aproximando o local daquela festa, eles pegava a botina e calçava. Os que não tinha, ia descalço. E ali era viola e sanfona tocando a noite toda e o pessoal dançando.
P/1 - Festejando o trabalho realizado.
R - Na maioria das vezes ia até a hora do almoço do outro dia, almoçava para depois…
P/1 - Emendava a festa até o almoço do outro dia.
R - É, para depois ir embora.
P/1 - Quando o senhor era criança chegou a ver essas “treições” acontecendo e o senhor fazia parte também?
R - Tinha o tipo de domínio deles, que eles não gostavam, vamos supor, tinha aquele tanto de homem, ía homem para roça, eu não ía, por exemplo, na noite, na festa, eu não poderia chamar ela para dançar, era o regime deles, porque eu não quis trabalhar, não quis ajudar a limpar a roça. Eu não podia beber.
P/1 - Podia ir na festa, mas não podia participar das coisas da festa?
R - Era melhor nem ir. Você não podia aproveitar, era isso aí.
P/1 - O senhor tinha contado que na infância parecia até trabalho escravo, por quê?
R - Por exemplo, eu tenho um sítio ali, tem uma plantação toda cheia de toco grosso, toco mais fininho, aí vai umas 2 crianças, no meu caso ia mais é sozinho, eu coloco eles para vigiar as coisas lá, eles tem que vigiar correto, gritando e correndo, arrancando lampo no pé, furando em toco, ali era o barro que curava, açafrão que curava - entre os meus dedos aqui, os dedões, vamos supor que entrava, cortando, furando - essa memória tem que ficar aqui, fica chato falar para o pessoal, mas eu, criado sem mãe, meu pai para outro lado, acabava o serviço aqui onde eu estava, aí falava: vai para casa de fulano. Eu teria que ir. Os mais velhos já era tudo conversado. E tinha que ir.
P/1 - O senhor ficava de empregado de todo mundo sem receber dinheiro?
R - Foi até quando eu peguei mais ou menos um tamanhozinho, acredito eu com uns 11 anos, mais ou menos, que eu fui trabalhar em uma fazenda da Rovenia, Agropel. Mas isso não era ela que fazia, tinha um senhor que morava lá, finado Cecílio, que era até aparentando nosso, morava lá na propriedade dela. Então lá tinha raízes para catar para limpar a terra, capinar no meio do arroz, que ela plantava também, dava muito broto, aí os homens ia e me levava a esse finado Cecílio, e tem um outro senhor que é vivo até hoje, Cândido, você conhece, fia? Também ia. Aí quando ia pagar os homens, que pagava o valor de uma pessoa adulta, o meu valor era metade. Só que aí o Cândido falava, “não, paga para ele, que ele fez o mesmo tanto nosso”. O único que falava era Cândido, “paga para ele o mesmo tanto”. Aí eles pagavam meio contrariado. Mas eu chegava também com o dinheiro, se eu estava na sua casa, eu entregava para você.
P/1 - O senhor tinha 11 anos e fazia a mesma quantidade de trabalho dos adultos?
R - Eu tinha que fazer. Fazia a mesma quantidade, mas a maioria dos lugares era dado. Nessa idade de 11 anos, eu passei a receber quando eu ia com esse Candido. Mas quando ia com outra pessoa, não recebia nada.
P/1 - Mas aí o pessoal lá queria te pagar metade, mesmo fazendo o mesmo trabalho de um adulto?
R - Era o regime deles. Aí a vida veio assim. Quando eu cheguei na cidade, igual eu te contei, um pessoal aqui na Bela Vista, deu a nós, tinha uma irmã minha, que morava no Salgado Filho, ali perto da CIPA, ela faleceu, tem a casa lá até hoje, das meninas, através dessa irmã minha, que era de outra mulher, conseguiu um lugar para nós ficar na Bela Vista doado. Nós ficamos uns tempos lá. Aí pousamos na escola.
P/1 - O senhor chegou a falar que foi na escola da roça.
R - Tinha uma escola lá. Uma mulher que chamava Roda dava umas aulinhas para nós e tinha o finado Joaquim Couto, pai do Rubens, ele era muito inteligente, dava umas aulinhas para nós.
P/1 - Aí vocês iam lá nas terras dele, juntava as crianças da região e ia lá?
R - Aí depois, quando eu te contei, que o meu pai trouxe nós para cá, pois nós aqui na escola, no Tenista. Quando chegou nós aqui da roça, naquela época muitos meninos, eu e meu irmão, aí quando era a hora do recreio, queria pegar nós, quando saía, queria pegar nós, aí quase todo dia nós apanhava. Eu tenho um sobrinho que hoje em dia mora em São Paulo, é da minha idade, filha de uma irmã minha, parte de pai só, como nós estávamos apanhando, falou: não, nós vamos lá buscar eles, aí interveio para nós não apanhar muito.
P/1 - Mas apanhava por que, por serem da roça?
R - Rejeitando nós.
P/1 - Os meninos da cidade rejeitando os meninos do campo?
R - É, queria se aproveitar. Aí quando eu cheguei aos meus 13 anos, foi em 79. Aí tem uma firma que ela é ativa até hoje, chama Vale do Rio Grande. Essa firma fichava a pessoa de menor, aí eu falei: vou trabalhar. Pedi ao meu pai. Tinha uma prefeitura que era aqui nessa rua, lá perto do Servidor, tirava carteira de trabalho lá, aí meu pai me levou lá para tirar carteira de trabalho de menor. Aí me fichou, lá perto do Cercado mesmo, tem um sem terra lá hoje.
P/1 - Mas aí era para morar aqui na cidade e ir para lá trabalhar?
R - Não, aí ja fui com 13 anos para trabalhar lá.
P/1 - Mas para ficar lá também?
R - Para ficar lá. Lá era próximo ao Cercado. Aí a firma pagava a gente correto, só que também era duro, nós era criança ainda, debaixo de chuva, sol.
P/1 - Lá você fazia o quê?
R - Era reflorestamento de pinho. Que lá hoje tem aquele sem terra, mas antes era tudo pinho dessa empresa. A partir dali, eu fiquei lá 79, acho que, final de 80, eles me mandaram para a Bahia.
P/1 - Para trabalhar com a mesma coisa?
R - De menor ainda, aí eu peguei e fui…
P/1 - O senhor ficava sozinho lá ou estava perto de algum parente?
R - Aqui tinha mais ou menos 50, 60 pessoas, uns 45 homens e umas 15 mulheres. Os homens ficava para cá e as mulheres pra lá, outro alojamento, que era de palha. Era empresa, mas era de palha também.
P/1 - O senhor ficava morando nesse alojamento?
R - Junto com esses homens. Chegou um ponto lá que acabou aqui, aí eles mandaram uns para o Catalão e outros para a Bahia. Me mandou para a Bahia. Naquela época, era muito normal. Cheguei lá na Bahia. Aí o pessoal falava que lá o povo matava, o pessoal daqui tinha aquele negócio. Aí fui trabalhar.
P/1 - Nisso o senhor tinha uns 14 anos, 15 no máximo?
R - 15 anos. Eu trabalhei nessa firma 7 anos, até eu casar. Conheci essa esposa minha, que estou até hoje, trabalhava nessa empresa. Nós somos da mesma idade. Eu sou do 05/06/65, ela é de 24/06/65.
P/1 - Como é que foi lá na Bahia?
R - Quando chegou lá, o que tinha que fazer era capinar, plantar as mudas na época das chuvas, que eles faziam viveiros, quando era época das chuvas, que muda gosta de chuva. Lá na Bahia tem uns pés de coqueirinho, deste tamanhozinho aqui, eles dão uns cachinhos com muitos coqueirinhos, mas cheio de espinhos, você furava muito a mão nesses espinhos, não era eu não, todos que mexiam com isso. Foi mexendo…
P/1 - Lá também morava em alojamento?
R - Alojamento. Aí fui adequando e vendo os movimentos. Aí um rapaz deixou eu pegar em uma máquina. Aí eu fui abrindo mais a cabeça. E lá trabalhava um primo meu de motorista, conversei com esse primo e ele falou com o chefe: podia fazer um teste com ele, um trator. Trabalhei lá 3 anos e meio nessa atividade mais dura, depois trabalhei 3 anos e meio na atividade mais leve que foi na máquina.
P/1 - Aí já aprendeu a dirigir a máquina, e depois era só na máquina?
R - Tinha 32 máquinas lá e um bocado de caminhão, aí eu fui para máquina, até chegar aquela rotina. Minha mulher também trabalhava aqui em 79, nessa mesma firma, que ela era menininha, tinha 13 anos também.
P/1 - Quando ela começou a trabalhar ela também tinha 13 anos?
R - 13 anos também.
P/1 - Mas aí ela estava em Paracatu. Que a sua esposa é de Paracatu?
R - Dormia lá junto com as mulheres adultas e quando era para vim, vinha. Tinha muitas mulheres lá que chegava em mim, que nós éramos do mesmo tamanho, que o meu alojamento era perto, o dela era longe. Um monte de mulher chegava em mim e pedia roupa minha, podia ser velhinha, para poder vestir nela, que ela estava molhada. E por aí, veio a história.
P/1 - Mas aí quando o senhor foi para a Bahia, ela foi também?
R - Ela foi também. Mas a empresa que levou.
P/1 - Ela foi nessa levada de pessoas que saíram daqui de Paracatu para trabalhar na Bahia?
R - Só que nós não namorávamos. Nós éramos meninos e o pessoal brincava, “olha os namoradinhos”. A gente ficava morrendo de vergonha. Aí a vida foi passando, até que chegou no que chegou.
P/1 - Mas a esposa não é do Cercado?
R - Não, minha esposa é daqui. Paracatuense também.
P/1 - E lá tinha algum tipo de diversão?
R - Lá na Bahia? A norma de trabalhar era assim, que seja na máquina, que seja na ferramenta, pegar 6h da manhã e para 6h da tarde. A rotina era essa. Tinha 1h de almoço. 6h da manhã e 18h da tarde. Os domingos, por exemplo, se parasse ali para as 15h, aí tinha aqueles campos de terra, os que quisessem jogava uma bolinha lá. Eu, por exemplo, conheci essa esposa minha lá, mas lá também, mesmo depois de namorados, era ela lá e eu aqui, não podia aproximar, se não dispensava. Tinha os alojamentos grandes, lá trabalhava mais de 600 pessoas. Alojamento grande aqui para os homens e um alojamento grande lá para as mulheres. Só que o seguinte, cada um lá na sua atividade.
P/1 - Se o pessoal da empresa pegasse alguma coisa, dispensava?
R - É! Mas aí nós começamos a namorar, e foi assim: vou falar quinzena, mas era 17 dias, quando vinha nós nos encontrávamos aqui e tal.
P/1 - Aí quando você voltavam para cá namorava mesmo?
R - Lá namorava de conversar, distância. Namorei com ela, com um ano, eu casei, casei na igreja e no civil.
P/1 - Aqui em Paracatu?
R - Aqui em Paracatu.
P/1 - E nisso o senhor ainda estava trabalhando nessa empresa?
R - Eu já vinha pedindo pra ela sair. Quando faltava 30 dias para nós casar, falei que ela podia sair. Aí ela saiu…
P/1 - E veio para cá, para Paracatu?
R - Eu continuei na Bahia. Quando estava faltando 1 dia para casar, tem a cidade de Formoso, aqui em Minas Gerais, faz divisa com a Bahia, a firma me levou até lá, eu peguei um ônibus em Santa Isabel, vim até o Anaide. Do Anaide, pegou outro para cá. Aí cheguei aqui e casei.
P/1 - Nisso o senhor tinha quantos anos?
R - Casei no sábado, quando foi na terça cedo, eu tive que retornar para a Bahia e largar ela aí. Na época que eu casei mesmo, eu ia fazer 21 anos.
P/1 - Você ía fazer 21 já. O senhor casou com ela e voltou para a Bahia porque continuou na empresa?
R - Continuei mais 3 meses, para poder pagar o resto de umas contas que tinha. Só que a firma não queria que eu saísse, eu mexia com máquina, passou a gostar de mim. Depois de casado, vai lá, a gente sofre e perde a oportunidade. A empresa também conhecia ela, os engenheiros. Eles queriam que eu fosse pra lá, mesmo com o meu pouco estudo, para ser um chefe, pra mim tomar conta do projeto, mas é projeto, lá é grande, que você anda horas de carro pequeno.
P/1 - E tem bastante gente trabalhando como o senhor falou?
R - Lá é grande. Aí eles queriam que eu fosse pra lá pra tomar conta. Aí eu fui e rejeitei, falei: não vou.
P/1 - Por que o senhor queria vir para cá, para Paracatu, para ficar com a esposa aqui?
R - Eu queria vim para cá. Só que eles davam o direito de eu levar ela pra lá.
P/1 - Mas o senhor preferiu vir para cá?
R - É. Me dava 2 carros na época para ficar comigo lá. Não tinha telefone, o rádio amador para me comunicar lá da Bahia em Uberaba, que a Central era em Uberaba, se eu visse alguma coisa de diferente lá no projeto, eu comunicava Uberaba. Mas aí eu fui e dispensei, falei: não.
P/1 - Mas por que o senhor não quis?
R - Acredito eu, a mente não muito boa, porque eu perdi uma oportunidade que eu poderia… mesmo com pouco estudo, ter dinheiro não é tudo na vida não, mas poderia ter uma vida melhor hoje. Mas não tá ruim, mas poderia estar melhor, financeiramente.
P/1 - Rejeitou lá e veio para Paracatu?
R - Aí comecei a minha história aí, desses 21 anos. Trabalhei aqui, trabalhei ali. Aí com um pouco, um rapaz ia para o Pará, surgiu uma oportunidade numa fazenda aqui. Ele falou assim: tem um serviço numa fazenda, vou te levar no escritório para você pegar esse serviço lá. Aí me levou lá. E quando o fazendeiro falou: você arruma a turma e vem. Nossa! Lá perto do Cercado, bem próximo, onde tem umas fazendas. Era para colher umas abóboras japonesas. Quando eu cheguei, que eu vi aquele tanto de lavoura, mas era grande, muitos hectares mesmo. Arrumei a turma aqui e foi, ninguém tinha prática, cansou, gastou um dia todo para cortar elas e encher um caminhão. Encheu aquele caminhão e veio embora para a cidade, o fazendeiro trouxe. Aí eu agradeço muito a minha esposa, “não fica com esse serviço não, é muito cansativo”. Só que o lucro, que ele me pagou o caminhão, deu para pagar a turma bem direitinho e sobrou para mim mais ou menos equivalente a uns 5 dias de serviço. A minha esposa falou: você não podia continuar. Aí eu fui continuando meio forçado, a turma precisava, eu precisava. Aí nessa rotina, eu fiquei 11 anos trabalhando para esse fazendeiro. Todo ano ele plantava e o serviço era meu, passava pra mim, eu ia com a turma.
P/1 - Mas não era o que o senhor queria?
R - Que eu mexia com máquina na Bahia, quando eu cheguei em Paracatu e fui mexer com máquina aqui. Só que o seguinte: eu estava trabalhando para você na sua fazenda, eu estava em cima da sua máquina trabalhando, de repente, não existia guincho, muqui, quase, chegava um caminhão lá de calcário, tinha pouca caçamba, daqui a pouco chegava o que comandava, “vamos ali para você descarregar um caminhão”, você tinha que descarregar o caminhão de calcário na enxada e na pá. Com pouco, chegava um caminhão carregado de adubo, de saco, “vamo ali”. Chegava lá um caminhão de adubo para você descarregar. Falei: não. Já que nem uma coisa nem outra, eu vou logo manual. Larguei máquina para o lado. Parti para o manual, foi onde surgiu essa oportunidade lá, nessa fazenda. Nessa atividade que eu mexia, mexi com ela 18 anos, mexendo com turma para mim.
P/1 - Nessa época não estava na máquina, era no muque, na mão mesmo?
R - Na mão mesmo. Eu ia na sua fazenda, tinha um serviço de 3 meses, você fichava eu e a turma, outra fazenda já não fichava, a maioria não fichava, ia na outra fichava, ia em outra não. E por aí, veio.
P/1 - E foi meio se sustentando desse jeito aí e ficou esse tempo todo trabalhando nisso?
R - E foi cansando. Vou parar de mexer com a turma, aí parei. Comprei um ônibus usado e comecei a puxar turma para os outros. Aí foi onde eu puxei para a empresa Tamasa que mexe com asfalto, com essa continuidade aí. Até hoje eu estou nessa rotina aí. Fiquei uns tempos sem pagar INSS, aí falei: não, tem que pagar. Levei uns anos aí pagando.
P/1 - Está muito longe da aposentadoria?
R - Tá longe!
P/1 - Você ficou muitos anos sem pagar o INSS?
R - Porque eu comecei a trabalhar em 79, nessa firma eu fiquei 7 anos fichado, era rural. Aí depois fui trabalhar para um fazendeiro, vamos supor, 3 meses, outro 2 meses. E por aí foi assim. Outro, 4 meses. Aí trabalhava 3 meses, ficava 4 sem fichar, foi indo até eu falar assim: agora para onde eu for, eu vou pagar. Aí venho pagando o meu e o da esposa.
P/1 - Pelo menos garantir.
R - Se fosse num caso que tivesse a continuidade, de 79 até hoje, já tinha aposentado.
P/1 - Sim. Porque o senhor até falou que era esse trabalho rural….
R - Tem uns anos que estou pagando, pago o meu e o da esposa.
P/1 - Lá no Cercado, como era a cultura do lugar, quais eram os costumes do lugar?
R - Os costumes era esses que eu te falei, mutirão, “treição”. Aos domingos, reunir o pessoal. Sempre reunia muito na casa de uma senhora que mora perto da casa da dona Celina, que chama dona Gida, que o esposo dela era o finado Jorge Ferreira. Juntava muita gente lá na casa deles, gostava de ir lá passear. Era os casais de namorado, falava namorado, mas aquele tipo diferente, não é igual hoje não.
P/1 - Tinha costume religioso lá?
R - Tinha costume religioso. Fazia as rezas. Antes fazia um monte de biscoitos. Vamos supor que ia ter a reza amanhã ou depois, já começava os preparativos um dia antes, que eles mesmos fazia as gomas. Goma você sabe o que que é, mais ou menos? Fazia as gomas. Ralar a mandioca. Sobrava o resto da mandioca que ralava, punha no pilão, socava; Socar arroz, para a gente cozinhar para comer. Você tem que saber socar. Você não pode montar o tufo com força, tem que ir batendo devagarinho, vai batendo meio devagar que vai soltar a palha, aí conforme aquela palha vai soltando, vai misturando no arroz que está sem descascar, ele vai ficando mais fofo, aí você vai aumentando, para você não quebrar muito o arroz, Porque se você começar dando muita pancada, quebra tudo.
P/1 - Aí depois que ele está socado faz o que, peneira?
R - Depois que tá bem socado, você vai, põe na peneira e sopra, tira aquela palha e vai limpando ele, porque ele não vai ficar 100% limpinho, vai ficar alguns caroços sem descascar, aqueles caroços você vai e tira tudo.
P/1 - E esse que depois vai cozinhar?
R - E se tem algumas partes mais quebradas, as mulheres tiravam, os muito quebrados para ficar metade mais inteiro, melhor para cozinhar, isso aí.
P/1 - Tinha igreja lá no Cerrado?
R - Não! Na minha época… hoje lá tem uma igreja, na casa de dona Rita, perto da casa do Cesinha. Sempre eles rezavam muito nas casas. Eu não lembro qual santo que eles falavam. Eles rezavam muito na casa de um tio meu, que chamava Fernandes, lá em cima.
P/1 - Mas aí as pessoas se reuniam para ir na casa do Senhor Fernandes para rezar?
R - Todo ano tinha.
P/1 - Não tinha padre, não tinha nada?
R - Não tinha padre. Todo ano tinha na casa desse tio Fernandes, eu chamava ele até de vô, era tio, mas chamava de vô Fernandes, vô Zé Gonçalves, era tio, mas chamava de vô. Na casa que eu ficava. A irmã do meu pai, que era minha tia, eu chamava ela de vó, onde eu ficava, e por aí ia.
P/1 - Seus avós também eram do Cercado?
R - Meus avós eram do Cercado, mas o que eu conheci vivo dos meus avós, foi só o Miguel Ferreira Costa.
P/1 - Que ele era pai do seu pai?
R - Pai da minha mãe. Agora o pai do meu pai e a mãe, eu não conheci.
P/1 - Mas eles também eram do Cercado?
R - Eram do Cercado. Os pais dos meus pais, eram os primeiros moradores da divisa lá em cima. Aí depois vinha Fernandes, que é o pai de Joaquim Pedro, vinha José Gonçalves, aí vinha descendo, Jorge Ferreira, que é a casa de Mané Gida, onde vocês foram, vinha casa da Dona Celina, de José Pereira, do outro lado casa de Joaquim Couto, mas na frente casa da Silva, José da Silva, mas na frente Ciriaco. Ciriaco era marido de Dona Celeste. Celeste eu conheci que era irmã da minha mãe, que era lá mais bem embaixo. Aí o meu avô, Miguel Ferreira, quando eu conheci ele não tinha mais minha vó, morava sozinho. Era uma ignorância, meu avô, durão. O meu avô Miguel Ferreira era irmão de Fernandes, senhor Fernandes.
P/1 - Ele morreu quando o senhor era criança ainda?
R - Morreu eu já era bem adolescente.
P/1 - E aí a comunidade era desse jeito, tinha todas essas famílias? Todas essas famílias tinham contato?
R - Igual eu te falei, tinha a de Paulo Gonçalves, Honório, Lembro disso tudo. Mané da Silva, o Manelão, que era marido de Dona Celina, finado Herminio, por aí ia, finado Justino, que era avô dela. A dona Eli, que era avó dela, todos foram do meu tempo lá.
P/1 - E como é que está a comunidade hoje?
R - Praticamente todos tiveram que sair, para sobreviver. E para as fazendas dos outros, vim para cá. Inclusive, tem até alguns deles que trabalham aqui na Kinross.
P/1 - Mas algumas pessoas da comunidade ainda estão lá?
R - Tá! Dona Celina, Folôzinho, Fortunato, dona Gida, por aí vai. Por exemplo, do lado do Rubens, eles não estão lá, mas vão lá direto.
P/1 - E o que o senhor acha que precisa fazer para melhorar a comunidade do Cercado?
R - A gente teve reunião, não sei te falar qual ano foi, de dois anos para mais, com INCRA. O INCRA falou para nós… foi até pessoa que faleceu, quem arrumou para levar lá, foi finado Joaquim Pedro. Eu levei o pessoal na casa de Dona Celina, o pessoal do INCRA pôs um telão, mediram aquelas terras todas lá, eles não falaram mal de ninguém, disse que o processo estava na fase 2, que o processo tinha que estar na fase 5, que eles estavam indo embora, mas se alguém quisesse saber como estava o andamento do processo, se estava no 3, 4, beirando o 5, quisesse informação, que alguém poderia ligar na central em Belo Horizonte. Só que acredito eu, que ninguém tenha ligado lá para saber como está o processo.
P/1 - Não deu continuação…
R - Ele explicou bem explicado, igual lá dentro, tem muita gente que não é de lá, não é natural de lá, aquelas pessoas que chegava no seu pai, por exemplo, querendo comprar. Eu acredito que para a lei, é tipo um grileiro. As pessoas fracassadas, vendia.
P/1 - Vendia para gente que não era descendente dos Quilombolas, que não é da comunidade.
R - Igualzinho o pessoal do INCRA falou, o pessoal que está aqui, não é tirar eles com pau e pedra, o processo na fase 2, o INCRA vai indenizar, eles explicaram para esse pessoal com todos os direitos que eles têm. Se eles têm gado com transferência de gado, se eles compraram aqui com direito de comprar outra terra, mas vai chegar uma época em que eles vão ter que desocupar a terra para vocês.
P/1 - A ideia é que desocupe a terra e todos os descendentes dos Quilombolas voltem lá para as terras?
R - Para ter a terra original. Se for juntar a comunidade hoje é muita gente, que foi crescendo, foi morrendo gente, mas foi nascendo gente.
P/1 - E que tem muita gente que não está lá. É descendente, mas está na cidade.
R - Tá na cidade, está aqui em Paracatu, está em outra cidade.
P/1 - E a ideia é unir esse povo todo de novo e quem quiser voltar para lá ter direito a sua terra?
R - Se eu chegar lá e tiver uma pessoa na propriedade, que diz que é dele, pode me perguntar o que eu estou fazendo lá. Talvez eu seja bem recebido lá na casa da Dona Celina, na casa de Folôzinho, na casa de Fortunato, mas por exemplo, não tem o Zé Barba lá dentro, talvez você está andando lá dentro, “a senhora está procurando o que aqui?”
P/1 - Já é considerada uma propriedade privada, gente que vocês não conhecem, não é da comunidade, não é dos seus conhecidos, não é das famílias. Isso acaba separando as pessoas… O Rubens falou da necessidade de juntar os Quilombolas recentemente até pelo direito à vacina.
R - Eu vi, até eu mesmo vacinei, porque o meu pai é natural de lá. Comuniquei sobrinho, “mas você é filho de quem?” “Sou filho de fulana, a fulana é filha de fulano”, aí viram que aquela pessoa é da origem lá. Falei para o Rubens, se ele quer ver alguma coisa, ou alguém de lá quer ver alguma coisa, tem que procurar o INCRA, porque tem o processo. Quando eles tiverem aí, acho até que demoraram demais, acredito eu que tem uns 3 anos ou mais, eles falaram que o processo estava na fase 2.
P/1 - E até para chegar na fase 5, que é para efetivar, para o projeto realmente fechar, ainda falta muito chão?
R - Se o processo tivesse andando, acredito que já estaria pronto. O ele está bem adiantado ou está paralisado. O Rubens mesmo, é uma pessoa boa, inteligente, você está ajudando um monte de gente, pode ligar em Belo Horizonte. Ele deu direito a qualquer pessoa, pode ligar no horário comercial, nós somos aqui do Cercado…para saber como está o processo, “a não, não tem processo de vocês aqui não”, ou está no 2 ou está no 3, ou está no 4.
P/1 - Precisava de alguém, ou da própria organização das pessoas para ficar cobrando o INCRA para continuar o processo… O senhor tem vontade de voltar lá para o Cercado?
R - Foi o que o pessoal do INCRA falou, voltando às origens, eles vão dar as condições, não grandes, mas um pouco de condições, por água potável, para as pessoas, não vou dizer coisa luxuosa, mas fazer uma coisa para morar, para quando quiser ir passear ter lá. Eles falaram isso para nós. E outra coisa também, que eu nunca vi em coisa estadual ou federal, esse pessoal do INCRA que veio aí, foi 3 homens, quando conversou comigo, eles até gravaram a minha conversa na minha casa. Eles falaram que nós Quilombolas temos o direito, mas eu não sei se tem algum órgão aqui que resolve isso, de 50% medicina, 50% dentista, 50% na faculdade. E outra coisa que eles falaram, que eu até ignoro um pouco, não sei se eu estou certo ou errado, que os Quilombolas, que eu nunca vi órgão estadual ou federal para falar isso, nem advogado, que os Quilombolas não precisam pagar INSS, eles falaram para nós, só que mesmo assim eu continuei pagando.
P/1 - Porque esse processo está parado, né senhor Dalmir? Mas o senhor tem interesse em ter suas terras lá?
R - Foi o que eles me perguntaram, lá na minha casa, e foi gravado, se eu tinha interesse em algum local lá. Eu falei assim: se voltasse, e eu pudesse falar assim, não contrariando ninguém, eu queria lá onde os pais dos meus pais ficavam. Nem o meu pai que viveu 100 anos, os pais dele ficava, que era o primeiro lá em cima, divisa com a empresa Passarelli.
P/1 - Esse território que era da sua família, dos seus avôs?
R - Ali tem um pedaço, Vereda do Galo, tem um pedaço ali que é do Cercado.
P/1 - Mas para acontecer é o que o senhor falou, precisa continuar esse processo do INCRA até chegar nessa fase 5.
R - E o INCRA mediram essas terras, eles passaram no telão a quantidade de hectares que é… eles falaram, um dia se você entrevistar mais alguém do Cercado que teve nessa reunião. 3.264 hectares. Pega a divisa com a Passareli, passando pela usina de álcool aqui, você sai no …faz divisa com Entre Ribeiro.
P/1 - Essas terras que o senhor está falando, uma parte tem algumas família lá, outras são de proprietários privados, mas tem também empresas?
R - Tem pedaço de terra que era de lá, que vai estar de empresa, de fazendeiro.
P/1 - E que era do território dos Quilombolas?
R - Foi o que eles explicaram, o processo está na fase 2, quando chegar os direitos seus, ninguém vai sair com pau e pedra e tudo indenizado.
P/1 - E lá quando vocês chegarem, vocês forem retomar essas terras e para ter um estrutura… vai ter água..
R - As pessoas vão ter estrutura, ter água potável, ter lugar de ficar, para voltar às origens. Se voltasse, era bom. Vamos supor, se eu estou lá num sábado num domingo, você chegava, ia ser bem recebido, você não é de lá, mas é um cidadão.
P/1 - A sua casa, que o senhor está aqui em Paracatu, agora é sua?
R - É.
P/1 - O senhor conseguiu construir ou já estava construído quando o senhor comprou aqui na cidade?
R - Eu consegui trabalhando da forma que eu te falei, através desse serviço que o rapaz falou para mim. Eu estava com 20 e poucos anos de casado, trabalhando, aí consegui comprar ali um melhor, consegui comprar tijolo, fui fazendo um barraco, pequeno, fiz lá. Não fui para o luxo. Eu tenho que trabalhar, tenho que lutar, e assim foi.
P/1 - Você foi fazendo aos pouquinhos essa casa?
R - Tenho um menino e uma menina. O menino se formou para engenheiro e a menina se formou para engenheira de telecomunicações. Aí eu falei: eu tenho que dar o sangue, para na hora que eu partir. Como é que fala, aquela fase final que pega o certificado de engenheiro?
P/1 - Do CREA?
R - Desse aí.
P/1 - O senhor ficou morando aqui na cidade, agora trabalha como motorista. E a esposa?
R - A minha esposa há muito tempo que não trabalha, muitos anos. Antes, é até vergonhoso, no início de casado ela ia comigo, trabalhava manual.
P/1 - Porque depois que vocês saíram daquela empresa da Bahia, quando veio para cá, o senhor trabalhou junto com ela? Vocês não tinham filhos nessa época?
R - Quando nós tivemos a primeira menina, quando ela estava deste tamanhozinho, ela ficava com a vó e ela ia comigo, mas não era todo dia. Aí foi indo até, “não, tem que parar”. É melhor cuidar desses meninos.
P/1 - Logo depois veio o menino?
R - O menino é mais novo. E aí eu fui mexendo com turma daqui, dacolá, lutando. Igual eu falei para você, eu pensei: modo eu não sofrer muito, minha casa é simples. Eu vou ter que estudar esses meninos, vou ficar simples, comprar uma coisa pra eu trabalhar, para eu sofrer menos, pegar menos peso, para ganhar mais um pouquinho, para conseguir dar estudo para os meninos.
P/1 - E aí foi nisso que o Senhor começou a correr atrás dessa coisa de trabalhar como motorista?
R - Hoje com o trabalho que eu faço dessa forma, hoje eu não conseguia formar os 2, não conseguia não.
P/1 - Mas por que, senhor Dalmir?
R - Porque agora está bem mais caro as coisas. Quando eu terminei de pagar a faculdade do meu menino, a reta final estava em R$900,00 e pouco. Eu pagava a faculdade dele e fazia despesa de casa, água, luz e na época eles não estavam trabalhando.
P/1 - Hoje os meninos são casados?
R - Não! Tudo mora comigo.
P/1 - Eles estão morando com o senhor. Quantos anos eles tem agora?
R - Meu menino hoje está com 30 e a menina está com 32, por aí.
P/1 - Mas eles não casaram, não tiveram filhos?
R - Não, tá tudo em casa ainda.
P/1 - Mas agora os 2 trabalham e tem a vida deles?
R - É. Hoje em dia eles trabalham, não na área deles, mas estão trabalhando.
P/1 - Então eles já tem o dinheiro deles, cuida das coisas deles… E a esposa continua cuidando da casa?
R - Continua cuidando da casa e eles trabalham. E eu trabalho também, vou para outro lado, vai levando a vida assim.
P/1 - Tem alguma coisa que você lembra para a gente perguntar Fabiola?
R - Você quer perguntar se eu lembro do seu avô? Lembro muito bem do seu avô, da sua avó.
P/1 - Tem alguma coisa que o senhor gostaria de contar que eu não perguntei?
R - O que você ganhou, ganhou, o que você perdeu, perdeu. É isso aí, tá bom.
P/1 - O que o senhor achou de contar sua história para o Museu da Pessoa?
R - Foi bom contar a história. Hoje em dia tem muita gente, não quer falar mal de ninguém da comunidade, mas o que eu passei, não desejo para ninguém, para o meu maior inimigo. Na verdade, isso é duro. Vai pra ali, daqui a pouco vai pra lá, vai pra lá, é duro. Foi onde eu falei para a minha esposa, eu quero ver se eu ando descalço, mas eu quero que os meus meninos estudem. Nem que eles não consiga, mas estuda. Porque a pessoa que não tem uma oportunidade é duro.
P/1 - E o senhor trabalhou para tentar dar essa oportunidade para os filhos, que foi a oportunidade que nunca deram para o senhor?
R - É. A oportunidade que eu dei para eles e quero que eles respeitem os outros. Ver seu filho como gente, se você não tiver vivo mais.
P/1 - E se eles tiverem filhos, que os seus netos não passem pelas coisas que vocês passaram.
R - Respeitar os filhos deles. Eu não andei batendo nos filhos dos outros não, para eles chegar onde tá. Vocês podem topar ele na rua, ele é novo ainda. Ele me trouxe aqui, uma hora vocês podem topar ele, ele é novo, vocês conhecem aí.
P/1 - São uns meninos bons?
R - Bom! Talvez respeite mais os outros do que eu.
P/1 - Foi uma boa educação, senhor Dalmir. Obrigado pelo seu relato.
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