Projeto Museu Aberto
Depoimento de Maria José Santos Silva
Entrevistada por Lilian Cole e Marisa
São Paulo, 10/05/2003
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MA_HV007
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Gilsara Mattos Côrtes e Natália Ártico Tozo
P/1 – Zez...Continuar leitura
Projeto Museu Aberto
Depoimento de Maria José Santos Silva
Entrevistada por Lilian Cole e Marisa
São Paulo, 10/05/2003
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MA_HV007
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Gilsara Mattos Côrtes e Natália Ártico Tozo
P/1 – Zezé, qual é o seu nome completo?
R – Maria José Santos Silva.
P/1 – O local e a data de nascimento.
R – Eu nasci em Salvador, em 22 de abril de 1950.
P/1 – O nome de seus pais.
R – Meu pai era Mintas Pereira da Silva e minha mãe, Lindaura dos Santos Silva.
P/1 – E seus avós?
R – Paternos são Maria de Fátima França e Antônio Pereira. Os avós maternos, José Eufrásio dos Santos e Rosa da Anunciação.
P/1 – Qual a atividade que faziam seus pais e seus avós?
R – Bem, meu pai era operário e minha mãe dona de casa. Meu avô paterno fazia parte de um grupo que estava construindo a Estrada de Ferro no Recôncavo Baiano e minha avó era dona de casa e parteira. Minha avó materna era dona de casa e meu avô era comerciante, dono de um armazém próximo ao Porto de Salvador.
P/1 – E você sabe qual é a origem do seu nome, do nome da sua família?
R – Santos Silva. Eu acho que a origem é brasileira. Meus antepassados devem ter se apropriado desse “Silva”, porque os escravos se apropriavam das famílias que o exploravam e provavelmente tem essa origem. E por parte de mãe, tinha um avô que era filho de portugueses e provavelmente esse “Santos” deve ter vindo daí. Aliás, foi negado aos negros o direito de conhecer sua origem oficialmente.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho seis irmãos: dois homens e quatro mulheres.
P/1 – Você poderia contar um pouco como era o lugar onde você morava quando era criança? O bairro, a rua, a casa...
R – Bem, eu nasci no bairro da Caixa d’Água, que é um bairro afastado do centro de Salvador. Nós morávamos em uma rua que era a principal e era uma vila de casas. Eram umas dez ou quinze casas e nós tínhamos umas cinco casas com quintais abertos onde morava minha mãe, meu tio, cunhado do meu tio. Então eram todos parentes e muito conhecidos. Éramos todos muito próximos e muito unidos. E eu me lembro que quando era criança, a brincadeira era de quintal mesmo. Eu fui a sexta filha. Era muito unida com meus irmãos, então boneca mesmo eu tive somente uma, daquelas nada atraentes. Eu brinquei muito de bola com meus irmãos, meus primos. Tinha na época a brincadeira de “fura-pé”, que era um ferrinho onde fazíamos um traçado pelo chão, brinquei também de bola de gude e uma brincadeira de se esconder e ser encontrado. Os meninos se vestiam de meninas pra disfarçar... Eram brincadeiras muito frequentes e nos dias mais serenos nós brincávamos de hospital. Mas o que eu lembro mais fortemente eram essas brincadeiras bem de moleque, em lugares espaçosos, de quintal.
P/2 – E como era essa casa? Lembra-se de como era dentro da casa?
R – Era uma casa humilde, não era tão pequena; nosso grupo era bem grande. Eu falo isso porque vizinho à nossa casa morava um tio cuja casa era bem diferente da nossa. Meu pai era operário e tinha muito orgulho disso; mantinha um padrão de classe operária embora minha mãe tivesse origem de classe média e o irmão dela, vizinho nosso, mantivesse um padrão de classe média. Quero dizer, meus primos tinham bicicleta e nós não tínhamos, meus primos andavam de meia e sapato e nós andávamos de sandálias de couro cru, estudavam em escola particular e nós estudávamos em escola pública. Mas isso não impedia que fôssemos bastante unidos, e minha mãe e minha tia, cunhada dela, sempre foram muito unidas até mesmo na velhice. E são essas as referências que nós tivemos. O quintal da casa deles tinha balanço, era acimentado até determinado trecho, tinham lanche à tarde... O que não era algo muito frequente para nós, mas isso não impedia de sermos amigos e felizes. Até hoje nós mantemos relacionamento com esses primos que foram vizinhos todo esse tempo, e que são quase irmãos no sentido de sermos muito solidários um com o outro. Embora nós estejamos morando atualmente a 12 mil quilômetros, mantivemos a amizade muito próxima em aniversários, por exemplo. É a lembrança que eu tenho dessa fase.
P/2 – Como é que era o cotidiano de sua casa?
R – Meu pai era analfabeto, mas tinha uma preocupação muito grande com nossa educação, então a nossa rotina era a de ele ter uma participação muito presente. A rotina consistia em quase todos irem à escola pela manhã e voltarem na hora de almoço. E à tarde eram atividades no quintal: ir atrás de goiaba, já que tinha um pé de goiabeira próximo à nossa casa assim como uma cajazeira em um quintal de uma casa um pouquinho mais distante... Era essa a rotina. Sabia que às 16 horas tínhamos todos que correr pra casa pra tomar banho e a sopa era às 18 horas? E aí nesse intervalo sentávamos todos pra fazer a lição da escola: os maiores ensinavam aos menores e quando meu pai chegava, embora ele e minha mãe fossem analfabetos, nós tínhamos que mostrar o caderno pra verificarem se havíamos feito a lição e só depois podíamos ir pra cama. Minha mãe tinha o hábito de contar histórias pra gente, então um pouquinho antes da cama ficávamos todos amontoados no sofá... No colo... Todos aconchegados para ouvir as histórias dela. Essa foi mais ou menos a rotina quando criança. E logo um pouco mais pra frente, já mais velhos, meus irmãos mais velhos começaram a trabalhar muito cedo, o que permitiu a mim e à caçula estudarmos mais tranquilamente. Eles arcaram com a responsabilidade praticamente junto com meu pai. Aí já era outra rotina: eles trabalhando e nós já não tínhamos aquela vida tão tranquila de diversão. O bairro, da mesma forma, com o tempo foi se modificando. Aí já levávamos muito mais a sério a escola e os estudos, e as brincadeiras já começam a ser brincadeiras de sala, por exemplo, meu pai nos ensinou a jogar baralho, a dançar e coisas do tipo. Eu lembro que nas manhãs de domingo depois do café mais prolongado ele não nos obrigava a ir à missa, mas minha mãe ia, então quem quisesse ir com ela, ia, e quem não quisesse, ficava em casa. E aí era som, rádio, ele ensinando a dançar, conversávamos sobre as coisas que estavam acontecendo e o meio dia chegava rápido. Então era aquela feijoada e o almoço interminável. Eventualmente nós íamos ao cinema no bairro próximo. Lembro-me que a cada um ou dois meses, íamos três de nós, depois iam os outros quatro. Em momentos especiais íamos todos juntos. É isso.
P/2 – E na adolescência você se lembra de ter grupos de amigos? Como eram os programas?
R – Bem, nós primos fomos criados todos juntos, então sentar na porta de casa já era uma festa. E começaram os namoros. Praticamente nós organizávamos, por exemplo, o carnaval um pouco antes do carnaval e sentávamos pra discutir como seria a roupa, como teríamos o dinheiro, como é que iríamos nos agrupar pra formar o bloco pra podermos sair. Lembro-me que passava o carnaval e já começávamos a nos preocupar com a festa de São João e tudo isso. Quanto aos primos, os mais velhos organizavam os aniversários. Era tanta gente... Eu tinha um tio que tinha dez filhos, o outro vizinho tinha seis. Os vizinhos eram compadres entre si; os que não eram parentes eram compadres. À noite, quando nos permitiam ficar até mais tarde na porta pra conversar, ficávamos vigiando ou protegendo o namoro um do outro. Então era a escola e esse convívio de vizinhança e parentes.
P/1 – Você lembra quem foi seu primeiro namorado?
R – Lembro, porque é meu marido até hoje.
P/1 – Lembra bem.
R – Eu não namorei cedo, eu tinha muita liberdade com meus primos, tirava-os pra dançar, íamos sempre pra festas em grupos. Eu não esperava o “chá de cadeira”: demorou me tirar pra dançar, eu tirava pra dançar e a coisa era assim... Mas a segurança do grupo me fazia sentir querida. Se eu queria dançar, ia lá e resolvia. Então as festas eram uma referência forte.
E eu conheci meu namorado, meu primeiro namorado, já na faculdade. Antes tinha um, mas não chegava a ser namorico. Eu sempre achava os meninos meio bobos até porque, eu tive essa formação com meus primos, meus irmãos, era muito parecida com eles, era muito independente. Então não era fácil também pra um menino fora daquele grupo encarar a menina rebelde.
E tinha um colega de escola que me paquerava, mas ele era tão quieto, tão bobo, que nunca me atraiu. E conheci o Machado já no primeiro ano de faculdade, embora fosse um namoro meio que “não gosto, é só um namoro”. Não era algo que na época era muito comum formalizar: “Fulano está namorando comigo”... Não, nós éramos muito amigos e na hora de nos separar descobrimos que havia alguma coisa maior e aí eu disse: “Ah, vamos ficar juntos”. Ficamos pouco tempo juntos, nos separamos e depois nos reencontramos. Não sei se o momento agora é de contar essa história.
P/1 – Pode contar sim.
R – Então, nós participávamos do movimento estudantil e o Machado morava na residência universitária junto com um colega de faculdade. Ele fazia Engenharia e eu estudava História Natural e nos conhecemos em uma festa. Mas também tinha aquela coisa de grupo nessa época e era muito comum o pessoal que morava na residência universitária e nós, nos encontrarmos aos domingos e irmos filar o almoço da residência universitária, porque nós não almoçávamos normalmente. Mas como tinha a praia e a gente voltava da praia e continuava aquele papo de ouvir música, com isso nós ficamos... Não declarava “namorado”, mas era parceiro mais frequente, um amigo mais próximo. E nas perseguições políticas da época ele era Presidente do Diretório da Escola de Engenharia Mecânica e teve que sair de lá. Nessa fase que ele andava meio escondido nos encontramos, aí começamos a levar aquele relacionamento mais a sério. Mas já sobre essa perseguição, sobre a possibilidade de não se encontrar, mesmo assim ficamos numa fase com esse tipo de namoro. De vez em quando eu ia encontrá-lo, já que eu tinha que levar recado do pessoal do partido, então foi um namoro meio tumultuado, não era aquela coisa de ir ao cinema uma vez na vida, era um tipo de namoro meio clandestino também. E mais tarde, eu também participava. Na época eu estava ligada ao Partido Comunista do Brasil e depois que ele saiu de lá, um ano e meio depois, foi tido como morto, desaparecido, mas tinha uma possibilidade dele estar vivo junto com algumas outras pessoas. Então convidaram-me pra ir à São Paulo e daqui eu recebi um recado pra ir ao Pará. Eu substituiria uma pessoa que deveria ir ao Pará, mas que não poderia por causa da perseguição política que na época era mais acentuada. Ele também estava substituindo outra pessoa e nos encontramos por acaso no Pará. E aí não voltamos mais. Quero dizer, eu não podia voltar pra casa, claro, por causa da perseguição e ficamos juntos até hoje.
P/1 – Vocês se reencontraram no Pará sem saber? Não foi combinado?
R – Existia uma remota possibilidade, mas foi uma coincidência eu estar substituindo uma pessoa e ele também. Então ficamos juntos morando no Pará do ano de 1975 a 1980 e aí já éramos completamente clandestinos. A família em casa não sabia onde eu estava e o que eu estava fazendo, se eu era casada ou solteira. Eu lembro que uma vez eu mandei um cartão pelo aniversário da minha mãe e fiz uma ligação telefônica nesse período.
P/1 – Nesses cinco anos?
R – Nesses cinco anos. E me lembro que quando voltei pra casa em dezembro de 1980, porque cheguei em casa no dia de Natal, eu liguei antes e falei: “Estou voltando e estou levando o meu marido e minha filha”. E aí não sabiam se era bebê, se era criança... Eu me lembro que queriam comprar presente e não sabiam, mas a minha filha já estava com três anos e eles não sabiam nada. Foi uma fase difícil aqueles anos.
P/1 – A sua filha nasceu no Pará?
R – Nasceu no Pará em 1976.
P/1 – E você tem outros filhos?
R – Não, eu perdi outro, aliás, nasceu morto, então é isso.
P/1 – E você saiu de Salvador pra ir para o Pará?
R – Para ir ao Pará. Na época nós viemos aqui pra São Paulo, porque era uma forma de sumir no Brasil. E daqui fui para o Pará, e era passagem obrigatória na época ir por Anápolis, não tinha transporte direto. Íamos para Anápolis, dormíamos lá e ficávamos esperando um dia inteiro pelo transporte que ia para Belém. E fiquei em Belém até 1980.
P/1 – E aí foi pra onde?
R – Aí vim para São Paulo e estou aqui pensando em um dia voltar para a Bahia.
P/2 – Eu queria perguntar uma coisinha: nessa sua história, como foi ser mãe pra você vivendo assim do jeito que você vivia longe da família?
R – Difícil, muito difícil, até porque, como eu fui a sexta filha, eu não tive essa oportunidade de irmã mais velha que cuida de bebê. Nossas condições de nos relacionarmos com os amigos eram muito restritas, porque não podiamos abrir a vida, tinhamos que nos proteger porque todo mundo era suspeito até segunda ordem. Nós estávamos vivendo numa situação de fugitivos, se escondendo na verdade, então eu lembro que fui pra maternidade sozinha. Eu estava na escola trabalhando e comecei a sentir uma dorzinha, chorava muito, mas ali eu mantinha a pose. Saí e fui pra maternidade e quando eu cheguei lá o médico disse: “Olha, dá pra esperar, mas cadê seu marido? Cadê sua bagagem?”. Eu cheguei lá com o material de trabalho, ele examinou e disse: “Não é pra agora, você volta e chama seu marido, traz as suas coisas e daqui a umas duas ou três horas você pode voltar”. E ele me deu uma carona até em casa e aí eu liguei e deixei um recado para meu marido passar em casa, porque estava na hora do bebê chegar. Pouco depois ele chegou em casa e foi aí que nós voltamos já com as coisas do bebê para a maternidade. Ele é filho único, não tinha nenhuma prática com criança e nem eu. Uma colega de trabalho dele foi nos visitar, viu o drama e ofereceu pra nos ajudar; quando eu saí da maternidade, uns três dias depois, eu fiquei na casa dela por duas ou três semanas e ela me ensinando a dar banho e a fazer mingau. Na época amamentar não tinha essa cultura de importância que tem hoje e a ideia de que qualquer coisa podia acontecer conosco, tinha que fazer o leite já pra criança mesmo muito nova pra ficar independente de nós. É um dano grande, mas era uma situação que sempre trabalhávamos, porque de repente podia acontecer. Nós sempre tentamos, desde muito cedo, deixar que ela ficasse independente pra qualquer emergência de nos separarmos, mas não foi preciso. Foi muito difícil, e isso traz sequelas para a juventude e a maturidade na relação mãe e filha, mas se resolve com o amor.
P/1 – Claro. E você foi para o Pará substituindo uma pessoa em quê?
R – Olha, eu te falei que era ligada ao Partido Comunista do Brasil e as condições eram muito difíceis, então tinha um ponto num determinado dia do mês que eu tinha que estar trajando roupa tal, carregando um jornal tal e fazer uma pergunta para uma pessoa que deveria estar com uma roupa tal e caminhando sentido cidade. Então qualquer pessoa do partido poderia, dentro do esquema de segurança, estar naquele lugar respeitando esses códigos. E eu era uma professora, tinha credibilidade. Além de ser militante eu tinha condições de não estar sendo perseguida pela polícia. Então foi por essa situação que eu tive que substituir a pessoa que deveria ir, que na época estava sendo perseguida.
P/1 – E você foi como professora?
R – Sim. Eu sabia que talvez não pudesse voltar, porque a situação em 1974 era das mais difíceis do país e eu fui para o que desse e viesse. Podia acontecer um incidente qualquer como aconteceram vários nos dias anteriores que a polícia atropelava, entre aspas, não é? Ou podia reencontrar e formar uma nova família. Podia ir para o campo, podia acontecer... Eu estava disposta, tanto que quando eu saí de casa eu disse pra minha família, pra minha mãe que eu tinha terminado a universidade e já estava trabalhando e que iria fazer uma pós-graduação em São Paulo. Uma história meio furada, mas foi isso que eu contei pra minha mãe, para as minhas irmãs, pra todos esses amigos tão próximos. E quando cheguei aqui é que segui como eu falei pra vocês, para o Pará. Mas a história é que eu estaria aqui estudando mesmo quando eu não dava notícias. O pessoal me procurava aqui em São Paulo e pensava: “Está estudando tanto que não dá notícia”. Mas logo depois ficaram sabendo, porque eu tinha uma irmã que fazia um curso. Duas irmãs estavam na universidade e elas sabiam mais ou menos que eu poderia estar em dificuldades. Para uma delas eu cheguei a contar os momentos difíceis, alguns amigos foram presos, outros desapareceram, então elas sabiam que eu não podia passar notícias, informação, aí elas seguravam a onda com minha mãe, mas ao mesmo tempo ficavam inquietas. Eu tenho uma irmã que fez duas viagens a São Paulo pra ficar sentada na Praça da República ou na Praça da Sé esperando que em algum momento eu fosse passar por ali. Diz que vinha e ficava sentada ali esperando que eu pudesse passar por lá em algum momento.
P/2 – Dessa turminha da infância, nenhum deles teve o percurso político que você teve?
R – De infância não. Foram pessoas solidárias e importantes na hora da repressão: tanto pra fornecer notícias como para proteger amigos meus, guardar material.
P/1 – E como você começou a trabalhar depois que se formou em História Natural? Você começou a trabalhar em Salvador?
R – Antes eu já trabalhava, porque eu sempre fui professora, e quando eu fui fazer História Natural passei a ter maior chance de ensinar no ginásio, mas eu comecei no ensino primário.
P/1 – Por ter feito Magistério?
R – Por ter feito Magistério. Na verdade eu fiz o Magistério e fiz o curso Científico, porque eu queria ser Química. Achava chique avental branco, mas meu pai achava que toda mulher pobre tinha que ser professora, porque se casassem provavelmente os maridos não iriam permitir que trabalhassem, e ser professora era uma forma da mulher trabalhar e criar filhos, que era uma profissão de mulher. Então eu fazia curso científico ao dia e Magistério à noite. Mas quando eu comecei a ensinar, eu realmente me empolguei e gostava mesmo. Hoje eu reconheço que é o que eu faria, porque é um contato que me renova muito esse contato com jovens e com escola.
P/1 – E você começou ensinando em São Paulo?
R – Comecei em Salvador, no Pelourinho, que hoje é uma área bonita restaurada, mas na época era uma área de decadência de meretrício, e eu comecei como estagiária na Escola Azevedo Fernandes. Eu me lembro que meu pai praticamente incentivou para que eu fosse fazer estágio lá porque era uma área para a qual ninguém queria ir porque era zona. Ele dizia que as crianças não tinham nada a ver com isso e que precisavam de pessoas que se dedicassem, que a mulher se fazia ao respeito. E eu comecei lá em função até desse estímulo que ele fazia de vez em quando. Ele passava por lá porque era caminho do trabalho dele. Lá tem uma rua chamada Maciel que era uma rua de prostituição, mas era o caminho mais rápido para eu chegar à escola em que eu estudava. Então ele disse: “Não tem que parar, não tem que conversar com ninguém. É seu caminho e você não vai fazer um percurso mais longo porque não pode passar por ali”, e eu passava. E acho que todo esse caldeirão de incentivos e circunstâncias me levaram a desenvolver a vida que eu venho tendo.
P/1 – E depois dessa primeira escola no Pelourinho, como é que foi esse caminho profissional?
R – Depois dessa escola primária, eu comecei a estudar na universidade e passei a trabalhar no ginásio no subúrbio de Salvador Plataforma. Fiz concurso público e acabei sendo nomeada para uma escola que estava eternamente em reforma, e passei a trabalhar nessa escola e numa outra da campanha do Educandário Gratuito, que era uma escola vizinha à outra. Eu tinha uma remuneração que dava pra transporte, faculdade, lanches e tal. Fiquei nessa escola um ano ou dois e acabei saindo dessa escola porque briguei com o filho do diretor; no ano seguinte a aula desapareceu por resistência à concessão de menino mimado. Daí eu fui trabalhar numa escola mais próxima de casa que é a Escola Anísio Teixeira. Da Escola Anísio Teixeira eu fui para a Escola Classe Um, que pertence à Escola Parque. Tudo isso no bairro próximo ao bairro no qual fui criada. Da Escola Classe Um é que eu fui para o Pará. No Pará eu comecei a trabalhar numa escola particular. Eu também dava aula de Biologia no colégio e no curso pré-vestibular. Daí eu fui trabalhar em uma escola do Estado, era a Escola Deodoro de Mendonça. Da Deodoro de Mendonça eu passei para a Fundação Laura de Andrade, que era uma Fundação que prestava serviços à Construtora Andrade Gutierrez. Embora estivesse no Pará, a Fundação Laura de Andrade tinha sede em Belo Horizonte, mas contratava pessoas para atuar no Sul do Pará. Essa área em que fui trabalhar era uma área próxima à guerrilha que houve. Houve guerrilha na época, sabia? E quando me chamaram pra trabalhar existia muita curiosidade sobre essa região, que era uma região na qual ninguém podia chegar devido às condições de controle absoluto do exército e das perseguições. Então quando surgiu essa oportunidade de trabalhar em uma região próxima eu achei interessante, mas a razão que motivou foi que meu marido estava desempregado na época. Ele foi fazer uma entrevista e na entrevista fizeram uma proposta a ele: “O emprego é seu se sua mulher vier trabalhar junto”. Ele fazia um estudo econômico na região e o contrato dele era de passar dez dias no interior e vinte dias na cidade, enquanto que o meu contrato era vinte dias no interior e dez dias na cidade. E nós ficamos dois anos e uns meses trabalhando com esse sistema: eu ficava em São Teles do Xingu, no Sul do Pará, que foge do Rio Xingu, e em uma fazenda que seria uma experimentação para um projeto de colonização no Sul do Pará, que é o projeto Tucumã, que dá origem à cidade de Tucumã e a uma série de outras cidades que atualmente vivem no noticiário de Rio Maria, Xinguara, que surgiu em função já dessa época com a abertura de estrada para a região.
P/1 – E depois de lá?
R – Eu fiquei no Pará até dezembro de 1980, quando chegamos aqui em São Paulo. Em 1981 eu já estava trabalhando na escola em Juquitiba, mas foi uma passagem muito rápida devido à distância e dificuldade de chegar até lá, que foram maiores que a remuneração. E de Juquitiba fui trabalhar no Intercap que é uma escola de Taboão da Serra, a dois quilômetros do centro. Eu passei a trabalhar na Escola Domingos Mignoni um pouquinho antes, próxima ao centro.
P/2 – São todas escolas...
R – São todas escolas estaduais. E da Escola Domingos Mignoni, que na época tinha o nome de Santos Dumont, fui trabalhar na Escola Armando de Andrade. E no final saí da Armando de Andrade e voltei um ano depois como diretora, para ficar também por pouco tempo, porque eu fiz concurso pra Escola Municipal e passei a trabalhar na Escola Municipal Iracema Marques. Fiquei no Iracema Marques até 1989, quando passei a trabalhar no Núcleo de Ação Educativa, que eram as Delegacias de Ensino na gestão da Luiza Erundina, que eram os NAEs. E terminando a gestão da Erundina eu voltei pra outra escola, a Alípio Corrêa. E da Escola Alípio Corrêa eu fui para o Synesio Rocha, onde eu me aposentei.
P/1 – Como professora?
R – Como coordenadora pedagógica.
P/1 – E nesse caminho todo...
R – Exonerei-me do cargo de Diretora do Estado e me aposentei como Coordenadora Pedagógica do Município. Na aposentadoria, não tinha nem saído a publicação ainda e eu passei a fazer parte de reuniões para um projeto da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo] com a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] coordenada pela professora Ana Maria Niemeyer, que discutia as relações de raça e gênero na escola pública aqui no Município de São Paulo. Nossa preocupação era estudar o silêncio do currículo escolar naquelas escolas, principalmente sobre a questão do negro, índio e o papel da mulher. Esse projeto é um projeto de quatro anos, que foi implantado em duas escolas no bairro do Campo Limpo – na verdade, na região do Campo Limpo no bairro do Jardim Umarizal –, uma escola municipal e uma estadual. Nós tínhamos um grupo de dez professores pelas escolas e nós discutíamos a prática e o conteúdo das diversas áreas, o motivo do silêncio e como revelar isso no dia-a-dia no currículo, nas relações. No final do projeto nós envolvemos também os pais numa ampla reunião. Após esse projeto eu colaborei com a ONG CEET [?], que desenvolveu no ano passado um concurso para professores que quisessem implantar na sua prática a questão das relações raciais. Premiou e revelou vários professores com um trabalho de sucesso inédito, porque sabíamos que havia essas preocupações e tem muitas pessoas preocupadas no país inteiro. Isso deu suporte e incentivo para professores darem sequência aos trabalhos em todas as escolas... E esse ano, foi fortalecido com a portaria que recomenda o ensino da cultura africana no período escolar.
P/1 – E nessas escolas quanto nas escolas estaduais, você trabalhou na maioria delas como professora?
R – Como professora. Eu tive pouco tempo como Diretora. Eu não assumi essa função burocrática, era um período de falta de professores, então frequentemente eu estava em sala de aula assumindo o cargo de coordenadora praticamente na hora que decidi me aposentar. E foi uma decisão com um pouco de resistência para começarem as discussões sobre a reforma da Previdência. Eu tinha mais tempo, já tinha passado dois anos do período que eu podia me aposentar, então não sabia o que vinha pela frente e acabei optando pela aposentadoria depois de dois anos resistindo a isso. Mas todo período foi como professora e de vez em quando eu tenho umas recaídas.
P/1 – É uma profissão que faz isso.
R – Contagia.
P/2 – Se desse pra você falar um pouquinho dessa sua relação de professora com os alunos, o ambiente escolar... Como era isso pra você? Pois desde o começo, mesmo antes de se formar na universidade, você já era professora e trabalhou com uma clientela bem diferenciada. Quais momentos te marcaram? Que situação dessa relação você se lembra até hoje?
R – Eu tinha fama de mãezona embora eu fosse enérgica em alguns momentos. Na hora a disciplina atrapalha a comunicação e o poder tem que se fazer presente. Mas de um modo geral, como eu trabalhava com Ciências, que é uma disciplina que encanta muito as crianças, nós tínhamos aulas práticas para daí partir para a teoria. Então sempre eu trazia novidade para a escola, eu acompanhava os jornais, levava pra escola, então fugia da sala de aula formal e estimulava o ensino em grupo; jogava as carteiras para o fundo, saía para o quintal... Era uma aula que tinha ibope. E só depois das práticas que nós as discutíamos e íamos para o ensino teórico. O que também me encantava era a literatura infantil, histórias que pudessem ajudar a trazer o conteúdo. Eu me lembro que eu incentivava muito a leitura do livro “Gente, Bicho, Planta” da Ana Maria Machado, que é aquela história em que a cidade na mesma hora em que estava rica, cheia de gente, fervilhante, de repente ficava abandonada, os homens saíam, e o motivo pelo qual acontecia isso. Aí vinha um cientista e começava a fazer perguntas para as pessoas, ia ao cemitério e via as datas que tinham morrido... Tudo isso encantava. Eu adorava trazer mistério para que eles percebessem a relação das coisas, que na verdade o que acontecia era que a produção era muito grande e os grãos atraíam os animais, e como não tinha como proteger, apareciam muitos ratos e acabavam destruindo as plantações e os homens tinham que sair pra trabalhar em outros lugares. As mulheres, solitárias, passavam a gostar de gato, e os gatos comiam os ratos, e aí de novo floresciam as coisas, e essa história servia para discutir um pouco essa relação. Quero dizer que a partir das histórias infantis a criança fazia descobertas. Eu usava também bastante filme. Eu me lembro que eu chorava assistindo “A Cura”, um dos últimos filmes que fizeram sucesso e que eu passei para a faixa de quinta à sexta série. Acho que já assisti aquele filme umas vinte ou trinta vezes e todas as vezes eu chorava. Mas é a história também de uma criança que tinha um coleguinha que tinha AIDS e eles queriam descobrir a cura da AIDS. Então eles saiam com uma cadernetinha pelo quintal procurando plantas, analisando-as e andavam mais, porque queriam sempre mostrar reação, e isso servia pra mostrar que uma informação científica está em todo lugar: na conversa com as pessoas, em observar a natureza... E isso facilitava muito a minha relação com eles.
Eu não me lembro de aluno que eu tenha reprovado. Brigava muito com meus colegas porque na hora do conselho para reprovar, eu era aquele tipo que defendia e que queria ver o aluno com a avaliação dele desde o início, o que ele rendeu a partir do que ele estava apresentando, como era a vida dele lá fora, como era a relação dele com a família, como ele era cuidado, pra podermos cobrar conforme a regra. Outro momento do qual me lembro no período em que passei no Pará, na Fundação Laura de Andrade, é o de fixar as famílias, porque naquela época ganharam a construção da estrada então eles tinham que trazer funcionários e, às vezes, bons funcionários tinham filhos e não podiam ficar distantes da família por muito tempo. Mas era muito caro o deslocamento, o transporte com frequência, então era interessante que esses funcionários ficassem no acampamento junto com suas famílias. Aí entra a professora pra montar uma escola, treinar professores que queiram trabalhar nessas condições e depois fazer o elo dessa escola criada no acampamento com a escola oficial numa cidade próxima que era São Teles do Xingu. E, além de fixar, nós organizávamos as mulheres para costura, produção de doce, que era uma forma de criar uma rede de amizade e uma motivação entre eles. Dentro desse trabalho nós descobrimos que a maior parte das pessoas não sabia ler e nem escrever. Então os colegas que sabiam ler e escrever saiam fazendo esse levantamento. Quero dizer, as crianças estavam resolvidas, mas os adultos não. Aí nós fizemos levantamento de vocabulário da região e do tipo de trabalho que eles desenvolviam. A esposa do administrador sabia pintar, então ela fazia aqueles cartazes ou trabalhava na contabilidade, disponibilizava duas noites pra participar e nós montamos um programa de apoio à alfabetização. No armazém nós obrigávamos que usassem a letra que todo mundo entendesse, as contas tinham que ser explicadas ali no balcão e o restaurante do acampamento à noite nós transformávamos em escola para adultos. Olha, pela linha do quadro alfabetizamos quase todos os funcionários porque era também diversão ir para aquele lugar à noite pra conversar dentro daquele trabalho todo. E começaram a chegar os ribeirinhos e nós fazíamos aos domingos competição de remo, de natação, organizávamos piquenique na floresta, andávamos pela floresta no final de semana, que eram formas também de educar, de se aproximar, de se conhecer melhor, de explorar o lugar onde estavam. E eu que queria atacar o capital, devo ter rendido bons investimentos para a empresa nessa fase. Eu me lembro que duas crianças nasceram nessa fase e o pessoal chamava “a professora” pra acompanhar o parto... Existia um clima de muita amizade e solidariedade e isso economizou horrores para a empresa no sentido de estar deslocando funcionários ou de ter que lidar com essa situação de mulher, até porque na região não tinham mulheres pra eles namorarem também. Tinha um esquema de ceder transporte pra namorar numa cidade próxima e que criava problemas, então tudo isso, olhando agora à distância, me faz poder dizer que prestei um grande serviço do qual eu batalhava contra, que era a solidez e o acúmulo de capital pra seja lá qual for a empresa. Mas tudo bem, eu fui feliz na época e para aquelas pessoas acho que foi muito interessante também. E foi o momento que nós fizemos contato com os índios Caiapós, que viviam na margem esquerda do Rio Fresco, que era a área que delimitava a fazenda. E foi a fase de aproximação com eles, que mais uma vez, era um serviço importante pra empresa que é dar esse clima de amizade com indígenas sem estar oficialmente ligada à FUNAI [Fundação Nacional do Índio] na época ou coisa assim, são momentos gratificantes que existiram.
Agora, já em São Paulo eu desenvolvi uma campanha “Diga Não à Pena de Morte” nos finais dos anos 1980. Era comum – não me lembro se era Amaral Neto –, eu me lembro que tinha um deputado que estava na Câmara com um projeto que queria aprovar a pena de morte no Brasil. Nós na época, estávamos no Jardim Ângela, Campo Limpo, que era uma área e continua sendo, uma área muito violenta, então é comum que tivessem esse desejo da pena de morte. Então nós começamos junto com um grupo de colegas, já no NAI [Núcleo de Atendimento Integrado], a fazer essa campanha. Nós juntávamos o pessoal da Comissão Justiça e Paz, um jornalista do Estadão, o Roldão Arruda, e um colega do movimento negro, o Juarez Tadeu e nós. Não tinhamos como fazer esse debate entre as escolas; nós fazíamos rifas pra juntar dinheiro, porque não tinha verba pra transporte, e pegávamos os alunos que estudavam a noite, pegávamos um ônibus que fazia uma linha entre e a Associação do Banco do Brasil no Campo Limpo, e lá no auditório fazíamos o debate. Eles faziam depoimentos, questionavam quem estava preso, quem ia preso no Brasil. Foi um grande momento de educação popular para todos nós esses debates. Nós fizemos uns oito debates e era gratificante ouvir pessoas que tinham feito depoimentos refletindo sobre quem ia ser assassinado e resolver o problema da pobreza do Brasil. Anos depois veio a situação do Carandiru, a chacina do Carandiru, confirmando quem estava lá e as circunstâncias em que viviam, revelando essas condições de que até aquela época quem tinha dinheiro não seria preso. Então essa foi a etapa na sequência desses debates sobre pena de morte. Surgiu o projeto “Repensando a Educação” num evento de amostra escolar; um grupo de crianças, de jovens, apresentou como amostra da escola porque assim cada escola poderia apresentar. Nós usávamos muito o espaço da Associação Atlética Banco do Brasil do Campo Limpo na época, e nós fizemos uma exposição onde cada escola apresentava. Eram cadernos, eram números de dança... Cada um apresentava uma coisa e esses alunos da Escola Levy de Azevedo Fernandes, apresentaram um rap chamado “Conceitos de Rua”. Eu me lembro que estava coordenando essa noite quando vi aqueles moleques subindo e cantando rap. Eu não sabia o que era rap. Estava surgindo em 1988, não, em 1989/90, se não me engano, daí eu chamei os meninos e nós começamos a conversar, daí nós articulamos depois no NAI o projeto “Repensando a Educação”. As pessoas da Secretaria de Educação apoioaram de imediato e nós desenvolvemos o projeto. Estava surgindo os Racionais que eram vizinhos da Escola Azevedo Fernandes. O Mano Brown morava numa casa colada à escola e o conceito de rua e o primo dele, Carlos, hoje já estão em projeção dentro dessa área. E aí nós selecionamos as escolas e levamos as letras deles, na época só tinha um LP [Long Play]; embora o professor resistisse às letras deles, a nossa preocupação era estudar violência na escola e no entorno da escola. Ali a professora de Português, depois de alguma resistência, discutia com os alunos as letras. E levávamos os autores para discutirem com os alunos no pátio da escola, geralmente em uma sexta-feira em que a frequência era mais baixa, e eles discutiam as letras. Fizemos surgir vários grupos de rap nas escolas. Para nossa surpresa, crianças que não sabiam ler, sabiam todas as letras de rap, cantavam e até faziam rap. Isso também nos ajudou a quebrar a resistência de diretores para que pudessem abrir o ensino noturno na região do Campo Limpo que na época era minimamente o início da gestão da Erundina. Não existia uma dezena de escolas, o total delas agora eu não me lembro, mas eram mais de oitenta escolas de primeiro grau que tinham ensino noturno, porque tinham medo de ter violência. Então após esse projeto, duas ou três escolas ficaram sem o ensino noturno porque era área rural. Mas esse projeto facilitou muito a discutir essa necessidade de conhecer o aluno que foi evadido e saber da realidade que acontecia fora da escola e a fazer uma reflexão também no conteúdo curricular, foi um momento bem interessante também esse.
P/2 – Aproveitando essa pesquisa que você está falando, como era sua relação com os professores? Porque, pela sua história, você trabalhou muito como professora formada da rede, você teve experiência de trabalho com pessoas que não eram professoras, mas que fizeram todo um trabalho de alfabetização com os trabalhadores lá numa região do Pará. E nós que conhecemos escola sabemos dessa resistência que você teve quando chegou com um grupo de meninos para discutir o rap, pois o professor acha que isso não é conteúdo. Então, como era sua relação com os professores? Como é que você vê isso? Como você pensa a aprovação do professor hoje? O papel dele?
R – Olha, nessa fase do projeto “Repensando a Educação” eu representava o núcleo educativo. Eles resistiam, mas eu estava representando um órgão ao qual eles deviam atender, porém dependia muito da sensibilidade de cada um. A resistência era muito forte porque não era somente a mim, era ao PT [Partido dos Trabalhadores] como um todo. No início da gestão, nós, principalmente nessa região, enfrentamos muita rejeição e era mais de desacreditar, mas sempre tinha alguém do tipo: “Não! Vem! Me deixa olhar! Vamos fazer!” e, quando começava isso, a relação professor-aluno melhorava muito a disciplina, era notório, porque de repente a escola passou a falar de uma coisa que o aluno entendia e passou a ser respeitado porque ele sabia mais daquilo que o próprio professor. Então isso mudou muito e facilitou depois dos primeiros contatos com a primeira, segunda escola. Já foi mais fácil. Mas a relação era muita de rejeição, de: “Vocês são loucos? Onde já se viu isso? Tem que seguir o formal!”. Uma coisa é baratear a educação e não é isso que nós queríamos, nós queríamos partir do conhecimento do aluno do entorno da escola, da realidade, do ambiente em que nós estávamos, para chegar a um ensino organizado universalmente. Mas aos poucos nós concluímos essa fase, a gestão da Luiza Erundina, porque foi exatamente essa a fase. O trabalho de educação foi muito reconhecido, respeitado e acho que até hoje se comenta sobre isso, que as escolas melhoraram muito esse tipo de aceitação porque paralelamente surgiu a oportunidade de treinamento de professores mais frequentes. Curso de formação, serviço e todo um movimento de apoio ao trabalho do professor. Essa resistência aos poucos foi desaparecendo praticamente. No final nós éramos chamados para ir à escola: “Olha, dá pra agendar?”. O esforço que nós fazíamos pra deslocar aluno para a área que tinha evento... Já o professor da escola dava um jeito de conseguir transporte, então ficou mais fácil. Isso é o que foi o mais difícil.
P/1 – Bom, temos pano pra manga para um monte de coisas, mas eu vou começar a encerrar perguntando: como é que foi participar dessa entrevista e contar sua experiência?
R – Bem, eu confesso que em um primeiro momento dá aquele: “Meu Deus!”, dá uma insegurança, mas depois... Eu reconheço que tive uma experiência bastante rica com o Magistério, como professora e de vida. E eu acho que devo isso aos colegas, porque muitas das coisas que eu falei aqui, a minha irmã, as minhas colegas, as mais próximas talvez nem saibam, porque foram partes muito separadas, segmentadas. Foi uma oportunidade, eu acho que gostei de estar aqui, acho que quebrou aquela resistência, é natural. Nós devemos isso à memória nacional e agradeço o convite.
P/1 – Nós que agradecemos. Foi muito interessante ouvir as histórias todas e acho que é isso mesmo: ela nos possibilita conhecer a memória e a história da educação. É muito legal poder fazer esse registro. Obrigada.
R – Obrigada a vocês.Recolher