“De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças”. (Cecília Meireles)
Nasci as 23h nas mãos de uma parteira. Segundo minha mãe as corujas ficaram agitadas no galpão da estação de trem, em Sampaio Moreira. Meu pai era chefe da estação de ferro da antiga Mogiana e minha mãe fazia os deveres do lar. Tenho dois irmãos, mais velhos. Ocupei um espaço no coração de minha família, pois amenizei a dor da perda de um irmão que nascera antes de mim. Mudávamos muito devido a profissão de meu pai e várias histórias iam sendo contadas. Até que um dia meu pai se aposentou e disse para que minha mãe escolhesse qual cidade queria morar: Ribeirão Preto, Campinas ou São Paulo. Minha mãe meio atônica escolheu a primeira. Meu pai tinha visão do futuro e se justificou “nesta cidade as crianças terão escolas para estudar”. E, assim foi: mudamos para Ribeirão Preto. Cresci rodeada de crianças que brincavam na chuva, de amarelinha, soltava pipa, andava de bicicleta. Comi muita manga verde com sal e acreditem: adorava saborear suco de laranja com arroz cozido misturado!! Coisas da infância...
Quando adentrei o mundo da escola, deparei com mais responsabilidades e os deveres eram para ser cumpridos primeiros: era a regra primordial de meus pais. Em casa tinha dois alunos particulares: meu pai e uma gata chamada Nina: pêlos lustrosos e olhos verdes. Adorava ler para ela: dormia no meu colo e na inocência eu acreditava que ela entendia toda a narrativa. Já meu pai era o aluno que eu ensinava a soletrar as letras, pois neste mundo de faz de conta, eu sabia ler e ele não. Foi desta forma que trilhei o caminho de alfabetização. Penso que a escolha da...
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“De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças”. (Cecília Meireles)
Nasci as 23h nas mãos de uma parteira. Segundo minha mãe as corujas ficaram agitadas no galpão da estação de trem, em Sampaio Moreira. Meu pai era chefe da estação de ferro da antiga Mogiana e minha mãe fazia os deveres do lar. Tenho dois irmãos, mais velhos. Ocupei um espaço no coração de minha família, pois amenizei a dor da perda de um irmão que nascera antes de mim. Mudávamos muito devido a profissão de meu pai e várias histórias iam sendo contadas. Até que um dia meu pai se aposentou e disse para que minha mãe escolhesse qual cidade queria morar: Ribeirão Preto, Campinas ou São Paulo. Minha mãe meio atônica escolheu a primeira. Meu pai tinha visão do futuro e se justificou “nesta cidade as crianças terão escolas para estudar”. E, assim foi: mudamos para Ribeirão Preto. Cresci rodeada de crianças que brincavam na chuva, de amarelinha, soltava pipa, andava de bicicleta. Comi muita manga verde com sal e acreditem: adorava saborear suco de laranja com arroz cozido misturado!! Coisas da infância...
Quando adentrei o mundo da escola, deparei com mais responsabilidades e os deveres eram para ser cumpridos primeiros: era a regra primordial de meus pais. Em casa tinha dois alunos particulares: meu pai e uma gata chamada Nina: pêlos lustrosos e olhos verdes. Adorava ler para ela: dormia no meu colo e na inocência eu acreditava que ela entendia toda a narrativa. Já meu pai era o aluno que eu ensinava a soletrar as letras, pois neste mundo de faz de conta, eu sabia ler e ele não. Foi desta forma que trilhei o caminho de alfabetização. Penso que a escolha da minha profissão teve uma semente lançada neste período de minha vida. Este mundo mágico foi repentinamente rompido com o falecimento de meu pai e os meus dias se tornaram sombrios. Contudo a vida ensina a superar a dor e guardei a boa lembrança de um pai amigo e companheiro.
A infância foi aos poucos sendo deixada para trás e novas fases surgiram: o ginásio, o colegial e posteriormente a graduação em Letras. Da época da faculdade tenho boas recordações, mas foi um período árduo. Saia cedo de casa e retornava somente à noite. Minha mãe e minha avó materna sempre a me esperarem para falar do cotidiano da casa. As duas eram exímias costureiras e minha mãe soube alinhavar a vida após a morte de meu pai.
De lembrança boa tenho uma para contar: certo dia uma amiga levou um bolo recheado e resolvemos comê-lo na primeira aula, pois o quitute estava apetitoso. Um amigo nosso ao saboreá-lo deixou que o mesmo caísse no seu colo. Para nós, adolescentes, não teve como contermos o riso. A professora ficou muito nervosa e fomos convidados a sair da aula. Posso dizer que foi uma época feliz e o mundo parecia pequeno para nossos ideais.
Neste meio tempo já trabalhava em um escritório de contabilidade: serviço de rotina, nada a ver comigo. Surgiu em meados de 1985 uma oportunidade de lecionar no Estado para o primário como eventual e assim comecei a exercer a função de professora. Identifiquei-me com este ofício e fui me realizando, pois cada dia havia um fato novo a ser resolvido. Houve muitos acontecimentos na minha carreira, mas me recordo de um: estava com dor de garganta e pedi para que meus alunos conversassem baixinho para que eu não tivesse que falar muito. No dia seguinte ao entrar na sala de aula um embrulho todo amarrotado estava sobre a mesa com um bilhete que dizia “Professora estas balas de menta são para você. Espero que ajude a melhorar sua dor de garganta”. São estes gestos simples, mas embutido de carinho e generosidade que nos fazem crer que o magistério ainda é gratificante para aqueles que os exercem. Nos entremeios do destino fiquei efetiva e não tive como abandoná-lo. Encontrei pessoas que me ajudaram a crescer e que guardo uma eterna gratidão.
Tecer desejos é o que nos leva a algum lugar e no vai e vem da vida, que nos conduz a caminhos incertos, conheci meu marido através de uma amiga e uma nova etapa de minha vida se iniciou com o casamento. Construímos uma vida juntos: temos dois filhos, dos quais nos orgulhamos muito. O tempo ia passando, os filhos crescendo, mas um sonho acalentado em mim ressurgia de vez em quando: fazer o mestrado. Não sabia o porquê, mas aquilo me vinha à mente hora por outra. Os sonhos não têm que ser explicados. Por que os fazê-los? Quando a oportunidade chegou abracei-a com todas as forças que existiam em mim. E o desejo se concretizou de maneira brusca, árdua, mas gratificante. Hoje tenho outro olhar para meu aluno, acho que já é o suficiente.
Sinto-me realizada, alguns sonhos não realizei, mas ainda há o porvir e o futuro é uma realidade repleta de mistérios que só poderemos desvendá-los quando ele chegar...
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