Projeto BTP Mulheres Empreendedoras
Depoimento de Camila Fernandes de Oliveira
Entrevistado por Jonas Samaúma e Ane Alves
São Paulo, 09/11/2020
PCSH_HV941
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina
P/1 - Então, eu queria que você dissesse o seu nome completo e a sua data de nascimento.
R - Meu nome é Camila Fernandes de Oliveira, eu nasci dia 05/11/1987.
P/1 - Então Camila, eu queria agora que, se você pudesse, que fechasse os olhos e aí você agora com uma vara de pescar fosse pegar a sua lembrança mais antiga, a sua memória mais velha, da sua vida.
R - Eu acho que a minha memória mais antiga é da época do ensino, o pré, antes da gente iniciar o ensino regular, no prezinho. Acho que a minha memória é brincando com o meu primo, tinha por volta de uns cinco ou seis anos, acho que essa é a memória mais... Longe, bem antiga.
P/1 - Vocês estão brincando de que?
R - Ah, a gente adorava brincar de bicicleta, de queimada na rua, esconde-esconde. Eu acho que fui uma das últimas gerações que tinha essa interação um pouco maior na rua, né? Então a gente brincava na calçada, e enfim, na casa um do outro também. Era bem variado.
P/1 - E você brincava era com o seu primo?
R - Com o meu primo e com outras pessoas, outras crianças da rua. Era um bairro bem populoso, então tinham muitas crianças vizinhas e a gente acabou crescendo junto, então sempre tinham muitas crianças pra brincar, a gente fazia várias brincadeiras, de esconde-esconde, queimada, jogava Banco Imobiliário, andava de bicicleta.
P/1 - E qual era o bairro?
R - Então, eu nasci em Santos, mas eu fui criada no Guarujá, então o bairro em que eu moro hoje é onde eu moro desde criança, desde pequena, que é o Jardim Monteiro da Cruz, então eu já estou a mais de 30 anos no mesmo local.
P/1 - E aí nesse lugar... Porque isso é em Santos, né?
R - No Guarujá.
P/1 - No Guarujá. Hoje você mora no Guarujá também?
R - Sim.
P/1 - Aí nesse bairro, como é que ele era nessa época, comparado a hoje, como é que era ele?
R - Ah, eu acho que a maior diferença o longo dos anos, porque é um bairro de casas populares, então a configuração dele não mudou muita coisa ao longo dos anos, a não ser as casas que com o tempo a gente vê reformas, as fachadas mudam, na rua era antigamente de paralelepípedo, agora são ruas asfaltadas. Tem algumas diferenças também em relação ao verde, eu acho que antes tinham mais árvores, isso eu acho que é uma das coisas que eu mais sinto saudade de quando eu era criança.
P/1 - Você tinha brincadeira de subir na árvore também, essas coisas?
R - É, eu não porque eu sempre fui mais boazinha, agora meu primo e meus colegas, eles realmente gostavam de pular muro, subir em árvore, essa não era a minha praia.
P/1 - E aí dessas brincadeiras, tem algum dia que você tem alguma lembrança mais forte assim?
R - Olha, esse primo que eu cresci junto, o nome dele é Daniel, ele era bem arteiro, então eu lembro de um dia que a gente estava brincando no quintal da casa dele e a gente tinha andando de bicicleta o dia inteiro, chegou à tardezinha a gente entrou e ele continuou muito agitado, e eu acho que ele meio que queria se exibir um pouquinho, dizer que sabia mexer na bicicleta, na parte mecânica, e ele virou de cabeça pra baixo e mexendo na minha bicicleta ele acabou machucando o dedo, ele literalmente arrancou o dedo dele fora (risos). Então esse dia foi bem tenso. Mas deu tudo certo no final das contas, assim, a história terminou com um desfecho feliz porque ele foi para o hospital e conseguiu reimplantar e acabou tudo bem. Mas acho que essa foi a memória mais forte, assim, de arte de criança que eu... Foi uma baita arte.
P/1 - Nossa, forte essa história. E vamos começar lá pelo princípio, você tem algum conhecimento da história dos seus avós?
R - Dos meus avós? Bom, eu não conheci os meus avós nem por parte de pai nem por parte de mãe. Sei que o meu avô materno ele era pescador, então, a família da minha mãe ela é proveniente do Rio Grande do Norte e eles moram num vilarejo chamada Areia Branca e o meu vô tinha vários barcos de pesca de lagostas, então o meu avô materno era pescador. Minha avó materna era dona de casa, ela eu cheguei a conhecer, e por parte de pai o meu avô era catraieiro, então ele trabalhava nas catraias, que até hoje a gente tem esse tipo de transporte entre Santos e Guarujá, e a minha avó, também por parte de pai, sempre foi dona de casa. E ela também é a única vó que está viva ainda, é com quem eu tive mais contato na minha infância.
P/1 - Que é a avó por parte de pai?
R - Por parte de pai, é a avó paterna.
P/1 - E qual é a lembrança que você tem de contar com a sua avó?
R - Bom, eu ficava algumas vezes, finais de semana na casa dela, ela sempre foi muito amorosa, eu lembro de passar a tarde, depois que eu saia da escola ir na casa dela e tomar café da tarde, enfim. Assistir desenho com o meu primo, então são boas lembranças.
P/1 - E aí... E ela era... E ai já (desembocou?), seu pai? Ai se você puder contar também um pouco a história dele.
R - Bom, meu pai... Meu pai quando ele era criança, ele chegou a trabalhar um tempo com o meu avô, no transporte, na catraia, e depois ele começou a trabalhar em açougue, e ai ele, a vida inteira dele, foi no comércio, então durante muito tempo, muitos anos, ele foi a açougueiro, depois ele abriu o próprio negócio dele, teve alguns açougues no Guarujá, e hoje eu já não tenho mais tanto contato com ele, no momento já não sei mais o que ele faz atualmente. Mas essa é a história dele.
P/1 - Ah, você não tem mais... Mas na sua infância você tinha?
R - Sim, sim. Cresci junto com, ele e minha mãe eram casados e aí se separaram tem mais ou menos uns cinco anos.
P/1 - E ele conheceu sua mãe como?
R - Eles trabalharam juntos, tinha um mercado no Super Centro, se eu não me engano era até o Carrefour, eu acho, e minha mãe quando tinha por volta de uns 18 ou 19 anos trabalhava nesse mercado, acho que ela era caixa, se eu não me engano, e meu pai trabalhava no açougue dentro desse mercado. E foi lá que eles se conheceram.
P/1 - E a sua mãe, você sabe alguma coisa da história dela?
R - Bom, a história da minha mãe é bem sofrida, assim, ela é uma mulher muito batalhadora. Ela veio do Rio Grande do Norte, com nove anos, pra morar na casa de uma tia aqui em Santos. Então a família da minha mãe era de uma proveniência muito humilde e a minha avó materna mandou ela pra ter uma condição de vida melhor aqui na casa de uma tia em Santos. Então ela veio com nove anos e ao morar com essa tia, na verdade ela auxiliava em casa, era meio que um emprego, então ela já começou a trabalhar muito nova e aqui ela também teve um pouco mais de oportunidade de estudar, apesar de não ter estudado além da oitava série, mas ela se esforçou ao máximo e começou muito nova em relacionamentos, se casou super novinha. Então depois que ela se casou com o meu pai ela ficou em casa para cuidar dos filhos e é isso. Mas ela sempre foi muito guerreira. Depois de virar dona de casa, de encher... Somos em quatro em casa, somos quatro meninas, quatro filhas, e ao longo dos anos ela sempre acabava fazendo alguma atividade, algum trabalho pra auxiliar em casa, então ela é uma mulher fibra.
P/2 - Qual o nome dos seus pais?
R - Bom, o nome da minha mãe é... Bom, vou falar o apelido dela, Nilda. É pelo nome que todo mundo conhece, o nome dela real mesmo é Ironilde, que também é um costume do nordestino, ter uns nomes muito diferentes, juntar nome, enfim. Mas todo mundo conhece ela por Nilda. E o nome do meu pai é Valter. Então, Nilda e Valter.
P/1 - E falando assim de nome, você sabe o porquê você ganhou seu nome?
R - Camila?
P/1 - É.
R - Bom, eu sei que quem escolheu na verdade esse nome foi o meu pai, era um nome que ele achava bonito. E na época era comum que o pai registrasse os filhos, então as pessoas tinham o filho, a mãe ficava na maternidade e o pai que fazia o registro. Então foi um nome que agradou o meu pai, foi ele que acabou escolhendo o meu nome.
P/1 - E você é qual filha?
R - Eu sou a terceira de quatro, então eu tenho duas irmãs mais velhas e uma irmã caçula. E nós... Minha mãe foi bem escadinha, assim, minha irmã mais velha é 12 anos mais velha que eu, a segunda filha da minha mãe, seis anos mais velha do que eu, eu nasci, e ai a caçula foi acho que a última tentativa de eles terem um menino, meu pai sempre quis muito ter um filho homem, então acho que vieram quatro meninas de tanto ele insistir, e ai depois ele desistiu.
P/1 - E ela é quantos anos mais nova, essa última?
R - A última, caçula, um ano e oito meses. Então a gente cresceu, a gente tem praticamente a mesma idade, né? Quase gêmeas, a gente pentelhava muito desde pequena.
P/1 - Era isso que eu queria perguntar, como é que era a relação de você com as suas irmãs, como é que vocês brincavam, o que vocês faziam, como é que era?
R - Então, com as mais velhas, a de diferença de 12 e 6 anos, eu não cheguei a brincar porque era uma diferença grande, né? Então eu era criança e elas já estavam, uma adolescente, a outra um pouco mais adulta. Agora com a caçula, a gente realmente cresceu juntas e é aquela história de cão e gato, né? Irmãos... Eu acho que é padrão em todas as famílias, a gente sempre tem muitas brigas, mas também se ama muito. Então basicamente em casa a gente brigava demais, por tudo, mas na rua eu brigava pra defender ela, eu era mais velha, então só eu podia brigar com ela. Mas é engraçado, porque apesar de ter proximidade de idade, a gente tem uma personalidade muito diferente uma da outra, então enquanto eu sou um pouco mais calma e concentrada, ela é muito ativa e energética, então ela sempre tá fazendo alguma coisa, sempre tá aprontando alguma coisa. Então eu me lembro de quando era criança a minha mãe correndo atras dela em casa porque ela tinha aprontado algo, enfim, e eu sempre ficava de boa porque eu não aprontava tanto quanto ela. Então ela sofreu mais, quando eu era pequena ela ficou muito mais de castigo, era terrível.
P/1 - Como era a sua casa? Você poderia me descrever um pouquinho como é que era?
R - Bom, inclusive a casa que eu moro hoje é a mesma casa que eu cresci. É uma casa de três quartos, uma sala, agora temos uma suíte e um banheiro, e quando eu era criança tinha uma cozinha enorme, ai depois que eu cresci eu reformei a casa da minha mãe e a gente diminuiu a cozinha, e agora ela tem uma suíte pra ela. Mas eu lembro de muitas festas de aniversário, como é uma casa com quintal, uma casa grande, a gente sempre reunia todo mundo lá, principalmente em aniversários e em festas de final de ano, Natal e Ano Novo. Então... Eu sempre morei em casa, então é um ambiente que eu me sinto mais confortável assim, acho que foi muito bom ter crescido em uma casa.
P/1 - E você tinha muitas amigas? Você tinha amigas, essas da rua?
R - É, tinham muitas vizinhas da mesma idade, então a gente era um grupinho de mais ou menos umas dez crianças, se eu não me engano. E fora isso tinha sempre as amizades da escola. Eu sempre fui um pouco mais tímida, então eu confesso que eu não era a mais popular da sala, eu não tinha tantas amizades, apesar de falar com todo mundo, eu sempre fui um pouco mais... Introvertida. Então da época da escola, eu lembro, até a oitava série assim, de quatro grandes amigas, que a gente estudou praticamente todos os anos juntos, juntas, e depois no ensino médio... Aí no ensino médio o meu círculo de amizades aumentou um pouco mais, só que as amigas que eu tenho até hoje, que eu carrego pra vida, são essas da época da escola assim, do primário, do colegial.
P/1 - E o que te marcou na escola?
R - Na escola eu acho que a percepção de que o estudo realmente pode transformar a vida das pessoas. Eu tive professoras inspiradoras, principalmente... Eu sempre tive muita sorte com professora de português, professora de literatura, então na escola eu acabei adquirindo o gosto por leitura e acabei vislumbrando as possibilidades que o estudo pode dar para as pessoas. Então a escola foi primordial, e eu lembro que era um ambiente que eu me sentia acolhida, eu gostava, as escolas pelas quais eu passei e tinham bons ambientes, boas pessoas, então foi uma época muito boa, tenho uma certa nostalgia.
P/1 - Era escola particular, escola pública?
R - Sempre estudei em escola pública, e por incrível que pareça, as escolas que eu estudei eram muito boas, pelo menos na minha época, e depois quando eu fiz faculdade, aí sim eu comecei a estudar em uma universidade privada, mas a minha trajetória inteira, desde o prezinho até a conclusão do ensino médio, foi em escola pública.
P/1 - E aí essas professoras elas eram inspiradoras como, o que nelas inspirava?
R - Olha, eu sempre sentia à vontade de elas passarem o conhecimento. E algumas tinham histórias incríveis, eu tinha uma professora de português que morou fora e aí ela contava das experiencias que ela tinha tido e das cosias pelas quais ela tinha passado, e a forma como a gente interagia na sala de aula era realmente um momento de troca, então eu me sentia instigada e inspirada por elas. Acho que nesse sentido.
P/1 - E aí você falou que os livros começaram a te tocar, você lembra quais livros você chegou a ter contato na sua infância, adolescência?
R - Deixa eu ver se eu me recordo o título do primeiro livro que eu li... Eu acho que eu não vou me recordar do primeiro livro que eu li... Mas acho que um dos que mais me marcou nessa época... Porque assim, eu comecei a ler livros de literatura mesmo até um pouco tarde, acho que por volta da oitava série, por ai... Sétima série. E um livro que me marcou muito foi "Capitães de Areia", do Jorge Amado, acho que foi um dos que eu mais gostei de ler nessa época.
P/1 - Que massa. E o que te expandiu, o teu contato com a leitura?
R - Realmente assim, quem lê livros vive mil vidas, então assim, toda vez que você entra em contato com uma história, seja através de um livro ou outro, hoje a gente tem vários meios de comunicação, né? Você pode conhecer histórias de inúmeras formas, mas eu acho que o livro tem o poder de transportar para uma outra realidade, para um outro lugar, te faz conhecer outras perspectivas, então para mim o livro é como se fosse um ticket para qualquer lugar do mundo, qualquer época. É uma máquina do tempo e ao mesmo tempo acho que é uma fonte inesgotável de prazer.
P/1 - Nossa, que definição. Você além dessa fonte de prazer que é o livro, o que mais te dava prazer, te dava alegria, na infância?
R - Bom, eu tinha muita vontade de viajar. Como eu cresci numa... Eu sou proveniente de uma família de classe média baixa, então eu sempre tive o básico, nunca me faltou o básico, mas eu não tinha nada além do básico, então viajar era uma coisa que na minha infância eu não tive, e isso era algo que eu adorava imaginar, e os livros acabam ajudando nisso também, então eu acho que viajar era uma coisa que fazia muitos planos e foi muito bacana crescer e poder realizar alguns desses planos, então era algo que eu gostava de fazer, de me imaginar em diferentes lugares.
P/1 - Ah, você imaginava. Mas você chegava a viajar pra esses lugares?
R - Quando eu era criança, não. Agora, sim.
P/1 - E o... Eu ia te perguntar, assim... O oposto, né? Se teve algum momento difícil, traumático, que você passou na infância.
R - Olha, traumático eu acho que não. Mas uma coisa que me incomodou muito na adolescência, principalmente que é uma fase de transição, a gente tá meio esquisito, é tudo meio esquisito, e eu tive muito problema com espinha. Nossa, tinha espinha demais, então a minha autoimagem era algo que me incomodava muito quando eu era adolescente, então eu tinha muita insegurança, eu lembro que em decorrência disso, de ter espinha, de ter pele oleosa, eu era insegura enquanto adolescente. Então nunca tive nenhum problema, nunca sofri bullying, nunca tive nenhuma experiencia negativa em relação a isso, mas eu não gostava da minha auto imagem quando eu era... Quando eu tinha essa idade, a adolescência foi difícil um pouco por conta disso, mas acho que fora isso não tive nada tão grave assim.
P/1 - E aí como é que foi a adolescência? Além disso, como é que foi essa entrada na adolescência?
R - Pra te ser bem sincera, eu acho que eu não percebi muito assim, eu me recordo, eu sempre, desde muito nova, tive um pouco de consciência sobre as coisas ao meu redor, sobre a interação com a família, com a sociedade, eu não percebi uma diferença tão grande na minha maneira de pensar, com a adolescência, sabe? Eu acho que a adolescência só abriu os meus olhos para as responsabilidades que eu ia ter mais a frente, eu acho que foi um momento de reflexão mesmo e de pensar em como que ia ser o meu futuro, como eu queria que o meu futuro fosse, e aquela fase que você não conhece quase nada. E até pelo fato de eu não ter viajado quando era criança, não tive contato com muitas realidades diferentes da minha, então eu não tinha nada muito palpável assim para o futuro, sabe? Então nessa fase eu lembro de ter dúvida sobre muitas coisas.
P/2 - E o que você fazia pra se divertir na adolescência?
R - Na adolescência? Bom, fora ler que eu adorava, e eu considerava diversão (risos), eu gostava de ir pra praia, enfim, encontrar minhas amigas. A gente fazia sessão de cinema uma na casa da outra, de ficar assistindo TV, conversando. Nessa época eu trabalhava muito também, eu comecei a trabalhar muito nova, então com quinze anos eu estudava à noite, trabalhava de dia e fazia curso aos sábados, então o meu tempo era um pouco corrido (risos). O tempo que me sobrava era geralmente para descansar e aí eu acabava lendo, encontrando alguma amiga, enfim. Eu sempre fui muito tranquila, então na época da adolescência, que é uma época natural que as pessoas gostam de sair, ir pra balada, se divertir, não era muito a minha praia. Então eu passava geralmente o meu tempo ou descansando, lendo, indo pra casa de alguma amiga, era um pouco mais tranquila. Minha mãe deu sorte comigo. A minha irmã já foi terrível (risos). Eu era sossegada.
P/1 - E você trabalhava, qual foi esse trabalho que você arrumou?
R - Bom, eu quando tinha 14 anos me inscrevi... Eu sou muito a favor de políticas afirmativas, e como eu sou proveniente de uma família de classe média baixa, no meu bairro tem um programa, que na verdade não só tem no Guarujá, tem em várias cidades, que é o Círculo do Amigo do Menor Patrulheiro, então é o que hoje em dia a gente chama de aprendiz, que são adolescentes que tem a oportunidade de fazer cursos e aí são encaminhados pra um primeiro emprego, para o mercado de trabalho. Então eu participei de uma seleção, tem o processo seletivo, que é até bem concorrido, porque os cursos são muito bons, e aí na minha época eu fiquei acho que uns seis meses fazendo cursos de diversas áreas diferentes, tanto para aprender a se comunicar melhor, eu cheguei a fazer datilografia (risos). E, bom, tinham várias coisas e depois de seis meses, de acordo com a avaliação, eles iam encaminhando os adolescentes pro mercado de trabalho, e com 15 anos eu comecei a trabalhar na Prefeitura do Guarujá. Então eu trabalhei uns dois anos e meio no RH, foi meu primeiro emprego, um emprego com carteira assinada, então foi bem bacana, porque nessa época, com o salário desse emprego, eu consegui me inscrever no curso de inglês, que era uma coisa que eu queria muito fazer. Enfim, hoje é caro, naquela época era muito além da possibilidade da minha mãe e do meu pai, então eu comecei a fazer inglês com o salário desse primeiro emprego e também ajudar em casa, então foi muito bom assim essa oportunidade.
P/1 - Nossa. E aí... Mas me conta um pouquinho mais, como era a rotina desse trabalho?
R - Bom, no RH da prefeitura eu fazia muito serviço burocrático, então, órgão público, eu organizava os arquivos, então todos os atendimentos, fichas dos funcionários, escaneava documento, tirava xerox, tinha algumas contas da Prefeitura que tinha que pagar, algumas certificações, levar documentos de um setor para o outro, então como o RH concentra muitas coisas de vários setores, porque lida com, enfim, cadastro de todos os colaboradores, então eu acabava uma boa parte do tempo também indo levar e buscar documentos em outras áreas da prefeitura. Então era meio que um trabalho multitarefas, era um pouco burocrático e também de trazer e buscar documento.
P/1 - Teve algum, nesse trabalho, teve algum episódio que foi marcante na sua vida?
R - Então, eu acho que assim, enquanto primeiro emprego, além da oportunidade de concretizar alguns objetivos, foi muito importante pra eu aprender a lidar com pessoas. Como eu trabalhava no RH e tinha contato com funcionários de diversas áreas diferentes, eu acho que foi o primeiro choque de realidade em lidar com pessoas, em um ambiente profissional. Então foi acho que o mais enriquecedor, ter esse contato com pessoas de personalidades diferente, enfim... Era bem desafiador, porque era um setor um pouco conflituoso, as vezes as pessoas iam lá, normalmente, na maioria das vezes, porque tinha problemas, então estavam meio bravas já. E acho que isso enquanto adolescente, ter o contato com esse tipo de conflito e de pessoas de diversas personalidades, me ajudou a desenvolver um pouco a minha inteligência emocional. Acho que não teve nem um episódio específico mais.
P/1 - E no inglês, como era esse curso de inglês que você falou?
R - Então, eu fazia um curso de inglês bem próximo do meu trabalho, no centro do Guarujá, inclusive eu não sei se eu posso falar o nome, do local?
P/1 - Pode.
R - Então, eu fiz inglês no CNA, no centro do Guarujá, então eu trabalhava, depois eu ia as vezes pro inglês. Depois mudou pro sábado, e era um local que assim, eu... Eu adorava, porque na época de escola, quando eu falei que as minhas professoras eram inspiradoras, e em específico a professora Rosana, que era uma professora de português, que tinha morado fora, foi ela uma das pessoas responsáveis pela minha vontade de aprender ingles, porque eu percebi que aquilo ia possibilitar ter contato com pessoas do mundo inteiro, era realmente algo que ia quebrar várias barreiras, então o inglês era importante para mim por causa disso, porque eu queria conhecer pessoas de outros lugares. E o CNA é muito bacana porque é uma escola que os professores só falavam inglês, então você tinha muito a percepção realmente de estar aprendendo o tempo todo. E eu gostava, era uma época assim, que realmente eu ia aprender, mas eu não sentia o peso daquilo, porque por mais cansada que eu estivesse, era algo que eu gostava, de ouvir, de falar, enfim.
P/1 - E você tinha os amores assim também, na adolescência?
R - Na adolescência? Olha, todo adolescente, né? Então, tem aquele lance da auto imagem, não sei se você lembra, que eu não me sentia muito confortável com a minha auto imagem na adolescência. Mas eu tive alguns meninos por quais eu me apaixonei, gostei. Fiquei com poucos, eu sou uma pessoa muito seletiva, e namorar sério, namorar sério, não, porque eu sempre fugi disso, o que acontece, as minhas duas irmãs mais velhas, elas namoraram e casaram muito cedo. E eu não queria aquilo para mim (risos). Então eu meio que fugia de relacionamento na adolescência, porque eu também, eu estava tão focada em ter um futuro melhor na época e me sobrava pouco tempo, então assim, eu tive umas paixonites, mas quando me pediu em namoro, eu geralmente saia correndo (risos). Não cheguei a namorar sério nessa fase.
P/1 - E você, tipo, chegou a beber, começou querendo fumar?
R - Então, essa parte eu sou meio caretinha assim. Eu não tenho nenhuma religião, mas meus pais eram cristãos, então eu fui criada com valores cristãos, tudo mais, mas eu acho que até pela minha personalidade, por eu ser mais tranquila, assim, eu nunca tive vontade de beber cedo, eu comecei a beber acho que eu tinha uns 21, 22 anos, por aí. Foi quando eu realmente tive contato com álcool, de gostar de tomar cerveja, vinho, enfim, de aproveitar bebida alcoólica. E fumar, fumar era uma coisa que sempre me incomodou, meu pai ele é fumante, e eu lembro que quando eu era pequena eu pegava os cigarros dele e enterrava no jardim de casa, porque eu odiava o cheiro, a fumaça. Então cigarro nunca tive nem vontade de experimentar, cigarro. Então em relação a isso, minha adolescência foi bem, bem tranquila.
P/1 - Aí você falou também que você ajudava em casa, né?
R - Sim.
P/1 - No que era que você ajudava?
R - Então, porque assim, com o primeiro emprego, além da carteira assinada e tudo direitinho, tinham benefícios, então a gente recebia além do salário vale alimentação, então o vale alimentação ficava pra minha família, então a minha mãe ficava com o vale alimentação pra ajudar com as compras em casa, um pouco mais da metade do meu salário na época era pro curso de inglês né, que era bem caro, então era o curso de inglês mais o material, e aí o que sobrava disso ficava pra mim, então era mais ou menos essa a divisão na época.
P/1 - E aí você disse que lia muito também nessa época?
R - É, eu gostava de ler bastante. Eu vou te falar que eu gostava de ler os livros que eu me interessava, porque pra ler o que era obrigatório, mandatório na escola, eu achava meio chato.
P/1 - E era o que, que te interessava?
R - Ah, eu sempre gostei de literatura, de romance, de livros de aventura, então...
P/1 - Mas quais?
R - Olha, eu te falei de "Capitães de Areia", de Jorge Amado, que foi um dos que mais me marcou, agora lembrar um livro da adolescência, que eu li... [pausa] Não vou conseguir me lembrar de muitos títulos...
P/1 - Não, tranquilo
R - Acho que eu não vou me lembrar.
P/1 - E aí você disse que, por exemplo, na adolescência era um período que você tinha, que você começou a ter muitas dúvidas.
R - Sim.
P/1 - Alguns questionamentos. Que questionamentos e duvidas eram essas que você percebeu?
R - Ah, eu acho que pra qualquer adolescente, um dos principais é em relação a carreira, então assim, o que você quer ser quando tiver na fase adulta você tem que decidir saindo da adolescência, então foi uma época em que eu ficava pensando o que eu queria fazer quando eu tivesse indo pra fazer uma faculdade, enfim, eu fizesse 18 anos. E foi uma época que eu lembro que uma vez a gente teve uma sessão de cinema na escola, e se eu não me engano, o nome do filme é "Pearl Harbor" e é uma história que aconteceu de um ataque japonês numa base americana. E eu adorava, além de livros, filmes de aventura também, e eu lembro que assim, esse filme em específico, contava a história de um piloto e na época eu fiquei com uma vontade maluca de ser piloto de caça, era o que eu queria, queria ser piloto militar. E eu fiquei uns dois anos com essa ideia fixa na cabeça, só que na época não podia, mulher, ser piloto de caça, não existiam mulheres pilotos. Hoje, na aeronáutica já tem e eu fico muito feliz de ver essa mudança, tem muita coisa que mudou, né? Da minha adolescência. Faz pouco tempo assim, mas nos últimos 15 anos, eu acho que em várias áreas a gente teve um progresso gigantesco. E aí eu lembro que durante muito tempo eu quis ser piloto de caça. Ai depois eu meio que desisti da ideia e no final das contas eu, por conta do inglês, acabei me interessando um pouco mais por geopolítica, eu lembro que eu tinha uma matéria que era... Não era geopolítica, era um outro nome... Não vou me lembrar, mas a gente discutia muito sobre religião, sobre política e era meio que uma matéria extra. E aí eu comecei a ter vontade de fazer algo relacionado a relações internacionais, a diplomacia, e aí foi a segunda fase, de eu querer seguir por esse caminho, por conta do inglês, de gostar de discutir sobre política e geografia. No final das contas, quando eu sai do ensino médio, eu, acho que foi em 2005, se eu não me engano, foi logo no ano que lançaram no Prouni, então eu acabei ganhando uma bolsa de 100% em administração de empresas e na época eu decidi cursar ADM, então eu fiz os quatro anos de administração e no último ano de Administração de Empresas eu acabei fazendo um estágio na área portuária, que é onde eu estou até hoje.
P/1 - Muita calma nessa hora, porque a calma é um meio de sabedoria. Como foi que você escolheu ADM?
R - Administração? Na verdade, ADM foi minha segunda opção. Como eu te falei, eu fiz, assim que eu sai do ensino médio, eu fiz o ENEM e foi o ano de lançamento do Prouni, e você tinha um... Se eu não me engano, duas ou três opções de curso que você gostaria de fazer, e ai o primeiro deles foi Relações Internacionais, que na época era o que eu queria muito, a segunda opção era ADM e a terceira eu acho que era alguma coisa relacionada a logística, não vou lembrar agora. E eram poucas as vagas, e eu lembro que na universidade que eu consegui bolsa, tinha uma vaga pra cada, cada área. E aí tinha um... Depois ele até ficou sendo meu colega, a gente acabou estudando junto, ele tirou uma nota um pouco maior do que a minha e ele conseguiu ficar em Relações Internacionais, e aí eu acabei ganhando a bolsa de 100% em ADM, em Administração. Então apesar de não ter sido a minha primeira escolha, eu decidi fazer o curso porque era um curso 100% gratuito, um curso universitário, e na época nenhuma das minhas outras duas irmãs mais velhas tinham ido a faculdade, eu fui a primeira da minha família a se graduar. Então foi uma grande oportunidade e eu fiz administração por conta disso, por ter ganhado a bolsa.
P/1 - E aí como é que foi o período da faculdade?
R - Ah, o período da faculdade foi... Foi uma fase interessante, porque é diferente, né? Você sair do ensino médio, daquela regra da escola, e a faculdade você tem mais liberdade, é diferente, então as regras são mais brandas e você tem contato com pessoas de diversas... Ou pelo menos na minha época, tinha esse pluralismo, tinha gente de diversas classes econômicos, diversos lugares. Eu lembro, eu fiz universidade na cidade de Ribeirão Preto, no Guarujá. Eu lembro que tinha gente que vinha de Mongaguá, de ____ (00:37:15:00), de outras cidades, então assim, foi um momento de ter contato com pessoas muito diferente, eu gostava daquele ambiente. E assim a liberdade de você transitar sem ser tão controlado, acho que a universidade tem essa diferença, do ensino regular pra graduação, você tem mais liberdade. E o fato de ter também ganhado um pouco mais de auto confiança nessa fase, nessa época, então eu me lembro de alguns professores, algumas matérias que eu gostava, de ter discussões em sala de aula, de ter uma interação um pouco diferente, então foi acho que o momento, acho que estar numa universidade é meio que um momento que você se sente entrando de verdade na fase adulta.
P/1 - Qual era a matéria que mais te pegava?
R - Nossa. Contabilidade (risos).
P/1 - Contabilidade?
R - Contabilidade, difícil. Você tá falando de pegar, assim, de eu ter dificuldade? Ou de gostar?
P/1 - Não, de você gostar.
R - De eu gostar... Nossa... [pausa] Ai... Acho que em Administração de Empresas, vai ser um pouco contraditório, mas eu acho que a matéria que eu mais gostei foi Direito Empresarial. Eu não sei porque, mas assim, no conteúdo dessa matéria, apesar do direito não ser o campo de atuação, mas ADM estuda um pouco de tudo. E direito empresarial eu tive um professor muito bom e eu gostava das discussões em sala de aula, então eu acho que foi a matéria que eu mais gostei. E logística também, porque logística... Enfim, estudava muitos conceitos diferentes, então foi uma matéria também que me interessou bastante.
P/1 - E aí, tudo isso que eu tô te perguntando, são pontos meio esqueletos, né? Tipo, estruturais, mas fora dessa estrutura, aquilo que acontece e você não planeja, que a coisa fala "nossa, de onde veio isso?" aconteceu alguma coisa assim, você teve algum dia diferente mesmo, algum episódio assim fora do normal na sua trajetória?
R - Acho que episódio não, mas eu lembro na época da faculdade tinha uma matéria que eu detestava, que era Educação Física, e eu não via a lógica de ser obrigada a fazer Educação Física. E no final das contas, eu acabei escolhendo judô, tinha algumas atividades de esportes diferentes na faculdade, e aí eu comecei a praticar judô e eu gostei. Então assim, é uma coisa que foi bem fora da curva porque eu jamais me imaginei fazendo judô e eu fiz porque eu tinha que fazer algo relacionado à educação física e eu acabei gostando.
P/1 - E aí então, aí o seu primeiro trabalho saindo da faculdade foi...
R - Então, na verdade... É, meu primeiro trabalho saindo da faculdade foi na área portuária. Porque eu nunca deixei de trabalhar, desde os 15 anos eu sempre estava trabalhando, sai da prefeitura, e aí eu trabalhei numa revendedora de carros, numa concessionária na área financeira, trabalhei um tempo com o meu pai também, e ai na época da faculdade, no último ano, que eu ingressei nesse estágio de planejamento operacional, na área portuária... Na verdade, era mais um programa de formação de pessoas, porque no estágio em si, de forma resumida, eles fizeram uma seleção e aí eram 30 pessoas no último ou penúltimo ano da faculdade, e a gente ia para uma sala de aula para realmente aprender sobre várias funções dentro do planejamento operacional do porto, então a gente recebeu ensinamentos sobre o planejamento de navio, de pátio, sobre supervisão de operações, então acabou que era uma grande escola, e aí eu fiz esse estágio no último ano da faculdade e quando eu estava concluindo eu comecei a trabalhar na Libra Terminais, que hoje infelizmente nem existe mais, mas foi meu primeiro emprego ai logo que eu sai da faculdade.
P/1 - E aí você poderia descrever então como é que era essa área portuária de Santos?
R - Então, hoje eu acho que fica até um pouco difícil, ficou tão bonita a ponta da praia, teve essa reformulação a pouco tempo, tem centro de convenções que construíram recentemente, mas na minha época, há dez anos, quando eu comecei, eu acho que era um pouco menos estruturada, um pouco mais sujo, enfim. Assim, a área portuária já estava mudando, desde que o porto foi privatizado muita coisa foi modernizada, os equipamentos, A forma de trabalhar. Na época que eu ingressei ainda era um lugar muito masculino e com uma estrutura ainda em desenvolvimento, acho que hoje ele tá um pouco mais próximo do que é o ideal.
P/1 - Como é que era essa parte de ser muito masculino?
R - Pra você ter ideia, quando eu comecei a trabalhar, eu tinha a função de "desperte", que na Libra eles chamavam de "monitor de navio", que é a pessoa que controla os recursos, então eu controlava todos os recursos pra abastecer o navio, então as carretas, os equipamentos de retaguarda que iam carregar os containers, eu sempre trabalhei em terminal de container, então dentro do porto existem a vários tipos de terminais diferentes, de cargas que são movimentadas. Eu, desde o começo, sempre trabalhei em terminais de containers, e como monitora de navio, eu era responsável por carregar as cargas, por descarregar e controlar os conferentes que ficavam a bordo do navio, e também os operadores. E nessa época não tinha nenhuma mulher nessa função, então eu comecei... Eu cheguei na empresa tinha já uma planner chamada Ana Paula, que eu acho que foi a primeira planner, se eu não me engano, no porto de Santos, e na função de monitora de navio não tinham mulheres, eram só homens, então todas as equipes só tinham homens. Hoje já é um pouco mais comum você ver mulheres, tanto na parte operacional, quanto na área de planejamento. Então no início eu sofri um pouco de resistência, foi difícil no começo, até por conta de juntar o fato de ser mulher e ser muito nova, porque eu entrei na área portuária eu tinha 22 anos, tinha 22 pra 23... É, acho que 22. Então foi um começo um pouco desafiador.
P/1 - Mas desafiador como?
R - Bom, primeiro pelo fato de ser um ambiente altamente estressante, porque o porto ele trabalha por produtividade, então é um ambiente competitivo, é um ambiente que você a todo momento tem que produzir, tem que alcançar metas. Então... Fora isso, era um ambiente de trabalho de turnos, então eu comecei a trabalhar no porto e já no turno, então eu trabalhava madrugada, trabalhava nos finais de semana, feriado. Então é um ritmo diferente de trabalho. E além disso tudo, o fato de as coisas acontecerem de uma forma muito dinâmica, então quanto você trabalha no controle operacional, você tá lidando com pessoas que estão a bordo do navio, você tá lidando com pessoas que estão carregando a carga na retaguarda, você tá lidando com os supervisores, e com pessoas que são estivadores, e com conferentes, então você lida com uma gama de pessoas de diversas áreas e de diversos níveis. E assim, a forma de comunicação no porto também, por ser um ambiente muito masculino e não ter mulheres, pelo menos quando eu cheguei, foi eu e mais duas colegas da época de estagio, que fomos contratadas juntas, e a gente acabou ficando em equipes diferente. Mas a tratativa é um pouco mais firme, é um pouco diferente, e assim, no começo as pessoas estranhavam ou tentavam agir de uma forma... Alguns tentavam proteger e ser mais educados e bonzinhos, e outros na verdade queriam te testar, pra saber se você estava ali porque você realmente tinha capacidade ou não. No início, eu acho que o maior desafio era provar que eu tinha capacidade de fazer e desempenhar a mesma função que todos eles, então... Por conta da idade e por conta de ser mulher, acho que esse foi o principal desafio a ser vencido no início. Depois, com o tempo, ganhando experiência e a confiança das pessoas, foi ficando cada dia mais fácil, mas no início tinha essa suspeita, essa desconfiança, né? "O que essa pirralha tá fazendo aqui", sabe? E eu trabalhava com gente com... 20, 15... Às vezes até 30 anos mais velhas do que eu na época, então foi ____ (00:46:41:00).
P/2 - E como os seus pais encararam você ir trabalhar no porto, assim, num local bem masculino?
R - Bom, a minha mãe não ficou muito feliz (risos), ela não gostou muito da ideia. Mas assim, eu sempre fui uma pessoa muito determinada para as cosias que eu queria, e na época do estágio eu gostei muito da área, eu... Assim, a Santos Brasil é uma empresa que está próxima da minha casa, foi lá que eu fiz o estágio de planejamento operacional e eu sempre tive vontade de trabalhar ou com relações internacionais ou com comércio exterior, mas eu nunca me imaginei na área operacional. E depois que eu fiz esse estágio, eu fiquei encantada pela função de planejadora de navio então uma das coisas que eu mais queria era ser ship planner. Então quando me ofereceram essa oportunidade de trabalhar na Libra como monitora de navio, eu via como um primeiro passo para chegar no meu objetivo, que era ser planejadora de navio. Minha mãe ficou um pouco assustada, achou que eu não ia conseguir trabalhar de turno, enfim... É engraçado, porque as vezes até as pessoas que sãos mais próximas acabam duvidando um pouco da gente, né? Mas quando a gente quer algo de verdade, eu queria e aí eu aceitei o desafio, e não tive tanta dificuldade como eu achei em relação ao turno em si. E em relação ao ambiente masculino, como eu sempre tive uma postura um pouco mais séria, até acho que pela minha personalidade, nunca foi um problema. E das vezes em que pessoas, enfim, foram folgadas ou falaram alguma coisa, sempre soube me impor. Então acho que o fato de gostar muito de justiça, então desde pequena, assim, questão de debater política, geografia, isso tinha muito a ver com colocar a ideia de justiça, externalizar, discutir sobre o que é justo, o que é correto. Então quando eu via injustiça ou coisas que não eram corretas, eu nunca me amedrontei. Então assim, das vezes que as pessoas tentaram me intimidar, não surtiu muito efeito. Na verdade, tem o efeito acho que contrário, né? Quando você quer muito algo e as pessoas ou duvidam de você ou de alguma forma querem te desmerecer, as vezes isso acaba sendo um combustível para você provar que as pessoas estão erradas.
P/2 - Tem alguma saia justa assim que você passou com assédio, para relatar pra gente?
R - Ah... Eu acho que... A questão do assédio, eu acho que é mais uma coisa um pouco velada. Assim, como eu tenho essa postura um pouco mais séria, nunca sofri nenhum assédio disparado, nunca tive nenhum problema com isso. E até me considero sortuda, mas assim, tem uns comentários, tem os comentários maldosos, e eu acho que o tempo, o tempo tem o benefício de mostrar quem são as pessoas. Então eu acho que eu acabei adquirindo o respeito de todo mundo com o tempo e por saber me impor. Então eu nunca sofri nenhum assédio direto assim, por incrível que pareça, apesar de trabalhar numa área muito masculina, apesar de lidar com pessoas... Aí, claro, já teve momentos em que houve discussões e que as pessoas quiseram desmerecer alguma decisão, alguma coisa que eu tinha feito, por justificar que eu tinha pouca experiencia ou que eu não sabia do que estava falando, e na verdade não era isso, era exatamente o oposto. Então nesses momentos eu tive que ter uma postura um pouco mais séria, eu me lembro de uma discussão que eu tive uma vez com um conferente, logo no começo. E eu tinha pedido para ele fazer algo a bordo, eu tinha pedido pra ele mudar a operação, que cada conferente fica responsável por um conjunto de equipamento, tem o portainer, que é um equipamento que leva o container a bordo e também que descarrega, e aí tem o conjunto de pessoas, de estivadores, de carretar, que estão atreladas àquele equipamento. E o conferente ele é meio que o responsável por tomar conta, ele que vai falar para o operador onde cada container vai a bordo. E eu lembro de ter dado uma instrução pro conferente e ele foi mal educado, me respondeu atravessado no rádio. E a gente começou a discutir. E eu tinha pouco tempo de empresa, só que ele foi muito mal educado. E aí eu sabia que naquele momento se eu não mantivesse a minha postura muito firme, eu ia perder o respeito de todo mundo. Então eu discuti durante alguns minutos com esse conferente no rádio e aí o coordenador na época ouviu, e aí pediu pra gente parar de discutir, que ele ia conversar conosco, e aí no final do período ele chamou nós dois, e a gente sentou numa sala, enfim, expomos o que estava acontecendo. No final das contas, depois de um tempo, esse conferente acabou virando até meu amigo, então assim, uma pessoa pela qual eu até adquiri um carinho depois. Mas é muito daquilo, né? As pessoas acabam as vezes criando pré-conceitos, então assim, ele me viu muito nova, menina, nunca tinha trabalhado comigo, e assumiu que o que eu estava dando de instrução, de ordem pra ele, enfim, estava errado, não era o que ele queria fazer e ele estava acostumado a fazer o que dava na telha dele. E a gente teve essa discussão, então acho que foi o momento decisivo, que eu percebi assim "ah, não, eu consigo dar conta disso daqui". Porque... E assim, ele era, acho que o que? Uns... Acho que uns 30 anos mais velho que eu na época, eu devia ter uns vinte e pouco e ele devia ter mais de 50. Então acho que foi a coisa mais marcante que aconteceu nessa fase inicial.
P/1 - E aí você disse que tinha muitos desafios e que você foi superando, né? Ai, como é que você fez para superar esses desafios que tinha?
R - Olha, me esforçando (risos). Eu acho que uma das minhas características é que eu sou muito autocrítica, me cobro muito, então assim, sempre que eu tenho dificuldade em algo eu acabo me esforçando mais para superar aquilo. Então mesmo depois de ter me formado na faculdade também, eu sempre busquei continuar estudando, ir me aprimorando, e fazendo cursos, então na época eu entrei como monitora de navio, o que eu queria mesmo era ser planejadora de navio. Então eu fiz cursos na área para poder estar preparada quando aparecesse uma oportunidade. Na época, com o salário, o salário era bom, de monitora de navio, a área portuária em si paga bem, né? É uma área que remunera bem a gente aqui no litoral. E eu lembro que depois de um ano e pouco trabalhando, eu consegui juntar dinheiro pra fazer um intercambio. Então eu viajei pro Canadá e foi incrível, assim, foi uma segunda grande conquista pra mim.
P/1 - Opa. Por favor, você poderia contar um pouco como foi esse intercambio?
R – É, então, na época eu lembro também que a minha mãe não gostou muito da ideia (risos).
P/1 - Não, eu gostei da ideia.
R - (risos) A minha mãe não gostou muito da ideia do intercâmbio na época. O que acontece, acho que quando eu viajei eu tinha 23... É, 23, um ano e pouco depois de ter começado na área portuária, e ninguém da minha família tinha ido pra fora do país, então assim, na época a minha mãe tinha um pouco de receio, que ela não entendia muito, tipo assim... Meu, pessoal fala outra língua lá, você vai se perder, e eu nunca, pra vocês terem ideia da loucura, eu nunca nem tinha saído do estado de São Paulo, nunca tinha entrado num avião (risos). E aí eu juntei dinheiro e fui nas minhas primeiras férias para o Canadá, fiquei um mês lá. E foi incrível assim, foi sem dúvida uma das melhores experiencias que eu já tive.
P/1 - Por que?
R - Bom, primeiro pelo fato de estar concretizando um sonho, porque lembra quando eu era mais nova eu adorava me imaginar em lugares, viajando? Então assim, eu não tinha tido até o momento oportunidade de viajar para nenhum lugar longe, de fazer nenhuma grande viagem. Então foi... A concretização de uma liberdade, de uma independência, eu me senti mais independente quando eu fiz essa viagem. E saber que eu era capaz de ir para qualquer lugar do mundo, porque nunca nem tinha entrado num avião, e aí eu peguei um avião e fui pro Canadá, um país que fala outra língua. E eu, apesar de adorar inglês, dá um pouco de medo. Eu nunca tinha viajado sozinha também, então assim, foi... Foi um conjunto de novidade que fez dessa viagem algo muito especial, muito marcante. E lá eu acabei fazendo amizades com pessoas do mundo todo, então é muito legal ter essa troca de experiencias, e foi por isso que no começo eu iniciei o curso de inglês, porque eu queria ter contato com pessoas do mundo inteiro. Então quando eu fiz o intercambio, e aí na sala tinha gente da Suíça, da Índia, da Arábia Saudita, então era muito legal, tinha um coreano. Então assim, foi uma experiencia muito bacana, muito marcante.
P/1 - E qual era a coisa mais diferente do Canadá?
R - Olha, eu... Na verdade, o que foi engraçado quando eu cheguei no Canadá, é que eu me senti um pouco em casa, porque eu escolhi Vancouver para ir, e Vancouver é uma cidade portuária, então assim, além disso, Vancouver tem "ferry boat", então assim, eu literalmente me senti em casa porque eu estudava de um lado da cidade e eu tinha que atravessar o canal, então tinha essas similaridades, apesar de ser um lugar completamente diferente, uma estrutura maravilhosa, eu lembro muito dos parques, tem um parque em Vancouver, o Stanley Park, é um dos parques mais bonitos do mundo e eu me lembro de um dia que eu aluguei uma bicicleta com algumas amigas e ai a gente foi dar uma volta e é um lugar assim, que é incrível. Tem uma ciclovia que vai margeando assim todo o canal e tem muitas arvores, tem esquilo, tem lago, enfim, é um lugar mágico, assim. O Canadá é muito bonito. E Vancouver, o fato de ter uma cidade, ao mesmo tempo tanta natureza, porque tem muita arvore, tem muito parque, você tá no centro da cidade, você pega um ônibus e em cinco minutos você está numa estação de esqui, então é muito maluco, é uma realidade completamente diferente da nossa. E foi também a primeira vez q eu vi neve, então...
P/1 - E você chegou a pensar em ficar por lá?
R - Ah, sim. Era o meu sonho, meu plano inicial era morar fora, e era uma das coisas que eu mais queria. E o Canadá sempre me atraiu porque lá... Bom, além do inglês dele ser muito fácil de entender, é muito tranquilo, eles são um povo que... Eles são abertos para imigração, a gente sabe que tem alguns países que são um pouco mais resistentes a imigrantes que tem, enfim, mais preconceito, e lá tem muito asiático, tem muita gente nos diversos lugares. Eles na verdade têm uma política governamental que incentiva a migração de pessoas pra lá. Então assim, a liberdade de sentir segura, de caminhar na rua, de andar com celular, isso é uma coisa que, pra brasileiro, quando você chega, até você se ambientar, é diferente. Eu lembro que teve uma amiga minha que me convidou um dia para ir numa festa e assim, a gente chegou super tarde, e ela andando na rua com o celular na mão, tranquila. E aí eu falei nossa, que lugar incrível, né? Você se sente segura de estar andando sozinha na rua, com o celular, sem se preocupar. Então a segurança foi uma coisa também que me chamou muito a atenção.
P/1 - E aí, queria voltar só um pouquinho, você falou que quando você falou la pra sua mãe, assim, que você estava... Trabalhar no porto, que era algo que você queria muito, aí você venceu os desafios, né? Por que era algo que você queria muito? De onde vem esse "querer muito trabalhar com isso”?
R - Bom, eu acho que na área portuária em específico, na área operacional, quando eu fiz o estágio, a parte de planejamento de navio é como se fosse um quebra-cabeça assim, eu tenho uma personalidade um pouco mais introvertida, então, assim, eu junto com os outros estagiários ficava por hora aprendendo a programar, planejar o navio, e você usa um sistema operacional para fazer isso e o sistema faz parte do trabalho, mas boa parte do trabalho é feito de forma manual, você tem que analisar o plano, você tem que eliminar conflitos, você tem que distribuir a carga de um jeito que a produtividade vai ser maior, então eu entendi que o trabalho na área portuária nunca ia ser o mesmo, então o fato de trabalhar numa coisa que todos os dias, apesar de você ser... Desempenhar uma função, você vai ter uma atividade diferente, porque nenhum navio é igual ao outro, nenhuma operação é igual a outra, e acho que até a grandiosidade mesmo, a gente que mora no litoral e vê os navios passando no canal todos os dias, eu sempre ficava imaginando como que era a operação daqueles navios, mas eu nunca me imaginei fazendo parte disso, então nesse estágio, quando a gente começou a aprender essa parte, foi algo que me encantou demais. Sem falar o contato também, porque assim, o planejador de navio, além de ele fazer todo o plano do navio, quando o navio atraca ele é responsável por ir a bordo e aí ele tem que pegar a aprovação do plano com o comando do navio, com o imediato ou com o capitão, então você também tem interação com pessoas do mundo inteiro, de uma certa forma. Então assim, além desse contato com pessoas de outros lugares, o fato de ter sempre a novidade, sempre estar fazendo algo que, apesar de ser a mesma atividade, nunca é igual. Isso é o que mais me encantou dessa função.
P/1 - E aí quando você volta do Canadá, você voltou para o mesmo trabalho?
R - Então, quando eu voltei do Canadá, eu fiquei só um mês de férias.
P/1 - Ah, foi um mês.
R - É, eu tinha juntado dinheiro e aí fiz intercambio de um mês, voltei, e eu continuei como monitora de navios, e depois de alguns meses abriu uma seleção, uma interna, pra função de planejador de navio, na época. Então aí eu concorri e passei, consegui ser promovida. Então depois que eu voltei do intercambio, alguns meses depois, eu consegui a promoção para ship planner. Que era o que eu realmente queria fazer desde o começo.
P/1 - Era o que? Desculpa
R - Era o que eu realmente queria fazer desde o começo.
P/1 - Perai, qual era a função?
R - Ship planner, planejadora de navio. E aí eu fiquei por, acho que um ano, um ano e um pouquinho, como planejadora de navio na Libra, e logo na sequência, eles estavam admitindo pessoas para um terminal novo, que é onde eu trabalho hoje, que é a Brasil Terminal Portuário, então na época eu já vislumbrava crescer, e como a empresa estava começando, e como toda empresa que inicia você tem uma oportunidade maior de crescimento. Eu me candidatei pra mesma função, e aí eu fui admitida e comecei a trabalhar na Brasil Terminal Portuário antes mesmo de ter operação de navio, então eu estou lá desde o início. Eu planejando o primeiro navio do terminal, então foi muito bacana.
P/1 - Nossa, conta aí pra gente, o que uma planejadora de navio faz na prática?
R - Então, na prática, o planejador... Tem dois tipos de planejador de navio, tem os planejadores de navio dos armadores, que são os donos dos navios, e aí esses, eles são responsáveis por cuidar do navio na rota inteira que o navio faz, e são eles que enviam o plano de carga pro terminal. O planejador do terminal, o ship planner do terminal, ele é responsável por pegar esse plano que é recebido do armador, do planner, que a gente chama de planner central, e aí a gente, de acordo com o que tem de carga distribuída no pátio, vai fazer essa conexão entre como o navio tem que sair, qual a condição de saída do navio que eu tenho no pátio. E pra fazer isso, a gente usa sistemas operacionais e tenta distribuir a carga de uma forma que a produtividade seja a maior possível. Então o planejador de navio ele é a pessoa que vai escolher cada container do pátio onde que vai ser embarcado dentro do navio. Então a gente tem alguns critérios durante o planejamento, então o planejador de navio ele tem que se atentar pros portos, para o peso, segregação de carga, então tem vários tipos de cargas que vão a bordo do navio, tem cargas que são perigosas, (imos?), tem unidades ______ (01:03:46:00), que são containers especiais refrigerados, que podem levar desde comida até medicamento. Então o planner é responsável por escolher cada unidade do pátio onde vai ser embarcada dentro do navio.
P/1 - Olha só. E aí como é que foi então planejar o primeiro navio?
R - É, então, quando eu comecei na BTP a gente ainda não tinha iniciado a operação de navios lá, eu entrei em março... Não, maio de 2013, e a primeira operação de navio foi em agosto desse ano, 2013. E eu me lembro que foi o MSC Challenger, que realmente era um desafio, porque era um navio considerado pequeno, enfim. A primeira operação tinha mais unidades vazias, não tinha nada de muito diferente em si, e como eu já tinha experiencia da Libra, não foi diferente do que eu já fazia antes, só o sistema operacional que era outro. Mas assim, planejar todo o navio, todo o navio que você planeja, por mais que ele volte 10, 20 vezes no porto, porque realmente eles têm rota e eles sempre estão retornando, nunca é igual. Então assim, acho que o que mais me marcou em relação a planejar o primeiro navio do terminal foi meio que o marco, de estar indo a bordo do primeiro navio a atracar, foi legal.
P/1 - E aí hoje você, depois desse primeiro navio, o que você fez?
R - Então, eu fiquei como planejadora de navio, como shipp planner, durante... Acho que uns três? Uns três anos mais ou menos.... Não, quatro. Quatro anos na verdade. De 2013 até 2017 eu era planejadora de navio, e aí em 2017 eu participei de um recrutamento interno pra uma vaga de coordenação, que é a função que eu exerço hoje, eu sou coordenadora de planejamento operacional. Então de 2017 até hoje eu migrei aí para a área de gestão, então eu sai de uma posição mais técnica pra gestão de pessoas.
P/1 - E aí como é que foi fazer essa migração pra gestão de pessoas?
R - Ah, é desafiador (risos), lidar... Eu acho que é mais difícil lidar com pessoas do que com planos de navio (risos). Então... É diferente, né? É diferente porque enquanto você tem uma função técnica, igual, você tem o plano do navio você sabe quantos containers vão embarcar, qual porto, peso, você tem... Números, você faz contas, é exato. E lidar com pessoas nunca é exato, então a subjetividade de fazer gestão de pessoas é um desafio. E é um desafio muito maior do que planejar navios. Então assim, nesses últimos três anos, eu participei de alguns projetos também dentro da empresa, então eu tive... Um pouco antes de ir pra coordenação, eu tive a oportunidade de trabalhar um mês na França, foi um projeto de mapeamento pra gente desenvolver uma ferramenta de automação no planejamento. Então essa experiencia foi muito legal.
P/1 – Por que?
R - Ah, eu... Primeiro que foi bom ver... Assim, fui pra França, eu fiquei num terminal no sul da França, eu e mais um outro colega de trabalho, a gente ficou um mês, para poder estudar um pouco mais sobre essa ferramenta de automação do planejamento de navios. E era um terminal que ficava em ___ (01:07:29:00), que é próximo de Marselha. E quando a gente foi pra esse terminal, assim, a gente sempre tem... Enquanto brasileiro, acho que é muito comum a gente pensar que tudo lá fora é maior e melhor, e foi bacana chegar lá e ver que assim, a gente, aqui, tinha uma movimentação, tinha um volume de trabalho muito maior do que eles. Então o nosso desafio, na verdade, aqui era muito maior. E depois de ter esse primeiro choque, porque a gente imagina uma coisa, as vezes a gente chega no local e é outra completamente diferente. O contato com as pessoas de lá também foi muito bacana, porque... No começo eu fiquei até um pouco receosa, a gente ouve falar que os franceses são meio mal educados e tudo mais, e o pessoal foi super receptivo, então foi muito legal aprender algumas coisas com eles e ao mesmo tempo entender e valorizar um pouco mais o conhecimento que a gente tem aqui, o que a gente faz por aqui, que também é fora de série. Então assim, o Porto de Santos é um dos portos de referência, a gente é o porto, o maior porto do américa Latina, e enquanto terminal de container, a gente tem uma movimentação muito expressiva aqui, então assim, é legal quando você vai para fora, você também acaba percebendo um pouco mais da sua própria identidade. Então foi bacana essa troca, sem falar, é claro, da oportunidade de viajar pela França. Então finais de semana eu ficava de folga, e aí eu e esse outro colega de trabalho a gente conheceu algumas cidades do litoral do sul da França, eu cheguei a ir até Paris, então foi... Foi uma baita experiencia, muito bacana.
P/1 - E além de trabalhar, você se diverte, ou se diverte trabalhando?
R - (risos) Não... Trabalhar... Então, eu acho que eu me divertia trabalhando mais quando era shipp planner, meio que era quase um jogo de tetris, então... Mas pra me divertir, o que eu gosto muito de fazer é sair pra um barzinho, pra comer, sair com os amigos. Eu continuo naquela pegada de não ser muito da balada, eu não gosto muito de sair e ficar... Engraçado, porque eu trabalho à noite inteira as vezes, então como eu trabalho de turno ainda, é comum que eu trabalhe na madrugada, trabalhe feriado, final de semana. Só que pra ficar em pé acordada a noite inteira eu já não curto, então eu curto mais coisas... Tranquilas, tipo um barzinho, e gosto de teatro, gosto de cinema, gosto de correr na praia, então gosto de coisas que me deixem um pouco mais em contato com a natureza. E continuo lendo bastante.
P/1 - É. E você continua daquele jeito, tipo, fugindo de relacionamento ou você arranjou algum namorado, casou?
R - É, então... Não, na época da adolescência realmente eu tinha minhas restrições, eu era uma pessoa mais arredia. Não, depois de adulta, eu namorei. Não namorei tanto, mas tive namoros sérios, tive três namoros sérios. Agora eu estou solteira, não estou namorando ninguém no momento, mas assim, eu acho que relacionamento não é só amoroso, né? Qualquer tipo de relacionamento, é o que faz a gente crescer, que faz a gente evoluir. Então eu não fujo de relacionamentos, mas eu não me meto em relacionamentos furados (risos). Eu acho que é importante a gente ser criteriosa, então assim, eu gosto de me relacionar com as pessoas, mas com pessoas que eu acredite que vale a pena e não é todo mundo que vale a pena.
P/1 - E aí você disse que também gosta de... Você tem lido o que ______ (01:11:14:00).
R - Então, nos últimos tempos eu tenho focado um pouco mais em livros de desenvolvimento pessoal, o que eu tô lendo agora é "O poder do hábito", mas eu sou apaixonada por literatura. Então assim, o que eu leio de desenvolvimento pessoal é para ajudar mesmo no dia a dia, porque tem muita técnica, muitas coisas que quando você lê um conteúdo um pouco mais específico, você acaba facilitando a sua vida. Então eu li um livro sobre ansiedade, que é muito importante pra quem trabalha na área portuária, há pouco tempo, e agora eu tô lendo esse que é "O poder do hábito". Mas assim, em paralelo, um livro que eu ainda não termine, entre livros que eu vou terminar esse ano, eu vou concluir, é "O mundo de Sofia", que é um livro bem bacana. É um livro que eu já li na adolescência e agora eu quero ler com mais atenção, com mais cuidado, então eu estou relendo.
P/1 - E aí você voltou da França e hoje você faz o que?
R - Hoje eu sou coordenadora de planejamento operacional, continuo na mesma função... Não, desculpa, na França, quando eu fui pra França, eu ainda era planejadora de navio. E aí eu voltei, depois de alguns meses teve esse recrutamento interno que foi misto, tinham pessoas concorrendo dentro da empresa e pessoas de fora também. E aí eu e um outro colega, eram duas vagas, acabou que eles promoveram pessoas da própria empresa, eu fiquei com uma vaga e meu outro colega ficou com a outra vaga, e a três anos e sete meses eu estou nessa função, então continuo como coordenadora de planejamento operacional. Nesse meio tempo, eu fiquei alguns meses como coordenação de execução, que é um pouco diferente, apesar de ser coordenação do mesmo jeito, a área de planejamento operacional ela se relaciona mais com o que acontece antes da operação do navio e com o controle da operação do navio em si, e aí a parte da coordenação de execução ela é mais relacionada aos equipamentos, aos aparelhos, às equipes que estão lá fazendo realmente a coisa acontecer na área. Então eu também fiquei alguns meses e aí depois eu voltei pro planejamento.
P/1 - E qual é o seu sonho de vida hoje?
R - Meu sonho de vida? Ah, conhecer o mundo. Viajar muito mais. Eu acho que viajar bastante, enfim, estar perto da minha família, eu acho família extremamente importante, então hoje moro eu, minha mãe e uma sobrinha, que eu ajudo a criar, então assim, a parte da família é algo que tem um valor muito alto, então assim, eu espero que no futuro eu tenha saúde pra curtir eles, pra viajar, enfim... Acho que é isso.
P/1 - Teve algum sonho, dormido, importante na sua vida? Assim, aquele sonho, sabe? Dormido mesmo? Sonhado... Não sonho de vida, mas sonho de dormindo mesmo.
R - Eu não entendi.
P/1 - Sabe quando você dorme e aí você sonha?
R - Arram, sim.
P/1 - Então teve algum sonho na sua vida que foi marcante para você?
R - Sonho? Então, eu tenho sérios problemas com sonhos, eu dificilmente lembro o que eu sonho. É muito raro, muito raro mesmo. Eu lembro quando eu era pequena eu tinha... Na verdade nem pode ser considerado um sonho, acho que era mais como um pesadelo, eu tinha um receio, um medo, da minha mãe falecer quando era criança, que também eu acho que é bem comum de criança ter esse tipo de medo. E bom, eu tinha um sonho as vezes de um local meio escuro, enfim, como se fosse tipo um velório, assim, e eu tinha a sensação de que era da minha mãe, quando eu era criança eu tinha esse pesadelo as vezes. Mas no geral é difícil eu lembrar de sonhos. Eu sei que eu sonhei, mas não tenho a menor ideia do que.
P/1 - Teve alguma coisa na sua história de vida que você não falou e gostaria de falar?
R - De falar? Ah, eu acho que... Eu acho que não, acho que a gente abordou bastante coisa. Acho que assim... Talvez não que eu não tenha falado, mas eu acho que a parte de trabalhar no porto, de ter presenciado essa evolução, de ter visto a mudança, porque assim, eu comecei a trabalhar na área portuária tem 11 anos, então há 11 anos eu venho acompanhando muitas coisas mudando, e vendo as pessoas se profissionalizando, as máquinas evoluindo, a maneira, a forma de trabalhar, se alterando. Então, assim, eu acho que eu sinto orgulho de fazer parte dessa trajetória, dessa história, porque tem muita coisa que quando eu iniciei na área era bem diferente, então a questão de excelência, de realmente ter o cuidado de fazer cada vez mais processos eficientes e... Assim, eu vejo que a área portuária tem mudado muito a característica dela, que antes era muito braçal, era... Enfim, era muito baseado na força, então assim, você trabalhar no porto exigia que você tivesse força física e hoje é a força mental que faz a diferença. Então acho que ver essa transição, do trabalho braçal pra um trabalho mais analítico, mais técnico, então isso acho que é uma grande revolução e eu sinto que nesses últimos anos eu participei de boa parte dela. Acho que é isso.
P/1 - E qual você sente que foi a coisa mais importante que você deixou nesses 11 anos no porto?
R - Que eu deixei? Olha, como eu te falei, o relacionamento com as pessoas eu acredito de verdade que é isso que faz a gente crescer. Então assim, nesses 11 anos eu tive a oportunidade de me relacionar com muitas pessoas, de aprender com elas, e eu acredito de uma certa forma, eu acho que algumas delas também aprenderam comigo, então eu acho que é essa troca, eu acho que quando você interage com o outro você sempre está trocando. Você sempre está aprendendo alguma coisa, nem que seja aprendendo a como você não deve fazer algo. Então eu acho que é isso. E de uma certa forma, eu acredito que eu passo a imagem de que é possível, porque apesar das coisas estarem mudando, ainda não é tão comum ver mulheres em posições de gestão, ainda mais em posição de gestão em uma área que é operacional. Então assim, as coisas estão evoluindo, mas elas ainda não estão no formato ideal, então eu acho que de uma certa forma quando você, enquanto mulher e jovem, você ocupa uma posição, um cargo que não é muito comum, você acaba mostrando pras pessoas que é possível, então eu acho que talvez essa mensagem, de que é possível. Tipo, vim de uma família de classe média baixa, eu trabalho desde os 15 anos, eu batalhei por muito das coisas que eu tenho hoje. O fato de eu ter conseguido viajar pra vários lugares, ter viajado pra fora do país, de ser independente, então... Qualquer pessoa pode alcançar os seus objetivos, e eu acho que a educação é a chave pra isso. Então eu fico feliz de ver que cada vez mais o conhecimento é importante. Então o conhecimento realmente pode transformar a vida das pessoas e pode te levar a lugares que você nem imagina, então acho... Acho que talvez o legado que eu gostaria de deixar é esse, é de mandar essa mensagem de que é possível, que se você tem um objetivo, você pode superar os desafios que você encontrar pelo caminho.
P/1 - Enquanto mulher, você disse que muitas vezes não encontrou o ambiente ideal. Você podia explicar um pouquinho melhor isso, o que não era ideal pra você, que você encontrou?
R - Ah, eu acho que assim, o mais difícil... Olha, por exemplo, quando você tem referencias, é diferente. Eu quando comecei a trabalhar como monitora de navio, eu não tinha nenhuma referência, porque não tinham mulheres trabalhando ali, só tinham homens. Enquanto coordenadora de operações, eu não tenho muita referência porque não tem outras coordenadoras de operações na minha empresa. A gente tem muitas gerentes lá na BTP, então isso é até uma coisa muito bacana, não é tão comum ver isso. Então assim, o cargo de alta gestão é até muito mais equilibrado, e eu vejo e admiro isso na Brasil Terminal. Na área operacional, hoje, eu sou a única coordenadora, então eu acho que quando você tem referencias, fica mais fácil de você enxergar as possibilidades, então... Tanto é que até surgir essa vaga, essa oportunidade de coordenação no planejamento operacional, eu não tinha nunca cogitado ser coordenadora, eu não tinha cogitado ter um cargo de gestão. Talvez até porque eu não visse outras mulheres fazendo isso, então assim... Eu acho que até me perdi ao longo da tua pergunta. Ah, o ambiente ideal, então acho assim, eu acho que o ambiente ideal é um ambiente plural, que tenha... Que tenha realmente esse mix de homens, mulheres, gente de todas as etnias, as classes sociais, todo mundo acaba ganhando. Então assim, a visão de uma mulher vai ser, em vários aspectos, diferente do homem, que vai ser diferente de uma pessoa hetero, que vai ser diferente de uma pessoa que é homossexual, então assim, eu acho que quando você interage com pessoas distintas e quando você se vê representado, isso é um ambiente ideal, acho que um ambiente mais plural. E o ambiente portuário ele é maciçamente masculino em sua grande maioria ainda. Tá mudando, tem muita coisa ainda a mudar, mas assim, eu percebo que as coisas estão melhores, mas ainda tá longe do ideal.
P/1 - E aí você disse que, por exemplo, uma mulher ela traz um lado diferente do homem, o que você sente que na sua trajetória foi diferente, que você estava trazendo de diferente ali, incluindo que você foi a primeira, do que estava ali, você sendo mulher?
R - Acho que em relação a... Assim, existe muito conflito, no trabalho, no dia a dia, porque dentro de um terminal tem muita coisa acontecendo ao mesmo tempo que alguns interesses competem entre si. Então você tem a operação do navio, você tem uma outra operação que é com o cliente na retaguarda, então, os recursos são escassos, você tem que fazer muitas coisas com pouco recurso, é mais ou menos essa regra na maioria dos lugares. Então os conflitos são muito comuns. Então assim, eu acho que enquanto mulher, a maior diferença é tentar resolver conflitos de uma forma mais amena, eu acho que talvez o homem tenha o ímpeto um pouco mais de brigar pelas coisas e eu sempre tive um pouco mais de atenção em encontrar alternativa, eu acho que essa é a principal diferença.
P/1 - E tem um filme, que é um filme japonês que se chama "Depois da vida". E aí nesse filme, assim, acontece um... A pessoa ela só pode levar uma memória pra eternidade, assim, tipo, depois que ela morre, aquela memória vira a eternidade. Então por exemplo, se você pudesse escolher só uma memória de toda essa vida que você viveu, pra levar pra eternidade, qual memória você escolheria?
R - Acho que o nascimento da minha sobrinha. Acho que eu nunca chorei tanto na minha vida. (risos) a minha irmã caçula... Eu sou tia de cinco sobrinhos, eu tenho cinco sobrinhos, só eu _____ (01:23:21:00), e, modéstia parte, e o que acontece, os meus quatro primeiros sobrinhos são filhos das minhas irmãs mais velhas, e a minha sobrinha caçula ela é filha da minha irmã mais nova. E quando ela nasceu, e eu, de verdade, eu lembro que eu fui visita-la, que eu fui ver pela primeira vez na maternidade, eu simplesmente não conseguia parar de chorar. Eu acho que foi um dos momentos mais emocionantes que eu já tive, segurar a minha sobrinha caçula no colo, foi... Acho que foi o momento mais marcante que eu tive até hoje. Acho que essa memória eu levaria.
P/1 - E como foi para você contar a sua história hoje?
R - Então, é um desafio, principalmente porque eu sou um pouco tímida, eu sou introvertida, então falar, enfim, fazer entrevistas, geralmente eu fujo disso, o pessoal de comunicação da minha empresa pode atestar isso, eu já fugi várias vezes deles. E eu fiz aniversário há pouco tempo, então eu meio que me propus a fazer algo diferente, meio que foi por isso que eu também aceitei o convite de vir aqui contar um pouco sobre a minha história. E foi bom, não foi... Parecia um pouco mais assustador pensando em fazer do que fazendo. O legal do medo é isso, quando a gente tem medo de alguma coisa, eu por exemplo tenho medo de altura, uma coisa que eu não contei na verdade foi isso, eu já pulei de paraquedas, então, essa também é uma excelente memória, acho que talvez a segunda. E a gente geralmente tem medo de muitas coisas porque a gente projeta como vai ser, e quando a gente cria coragem pra ir lá e faz, geralmente é diferente e nem é tão assustador assim. Ou as vezes é, pular de paraquedas foi bem assustador, mas foi muito bom (risos). Foi lindo
P/1 - Muito obrigado.
P/2 - Obrigada, Camila.
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