Projeto Conte Sua História, Atados, Abraço Cultural
Depoimento de Selma Alves dos Santos
Entrevistada por Júlia Miranda e Karol Coelho
São Paulo, 4 de julho de 2018
Entrevista número PCSH_A_HV05
Realização: Museu da Pessoa
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/2 - Qual o seu nome, local e data de nascimento?
R - Selma Alves dos Santos.
P/2 - Local de nascimento?
R - Machacalis, Minas Gerais. 19/05/56.
P/2 - Quais os nomes dos seus pais?
R - Romeu Carlos dos Santos, Isaura Alves dos Santos.
P/2 - O que seus pais faziam?
R - Minha mãe, costureira; meu pai, motorista.
P/2 - E como você os descreveria?
R - Bom, eu não tenho muito o que descrever do meu pai, porque ele faleceu cedo. Mas a minha mãe, sim. Muito carinhosa, mas aos meus quatro anos fui morar com minha avó. Porque ela tinha mais filhos e minha avó tinha um carinho comigo. Eu, como criança, achei que deveria morar com ela e fui.
P/2 - E como era morar com a sua avó? Como era a casa?
R - Era uma casa no interior da Bahia, muito gostosa. Minha avó tinha, assim, um carinho de me acordar cedo para ir para a escola, de arrumar meu uniforme, porque fui uma neta paparicada, diferente dos outros netos. E aquilo me agradava muito, eu me sentia muito bem com eles.
P/2 - E eram você, sua avó e mais quem na casa?
R - Meu avô. Meu avô e a minha avó.
P/1 - Quantos irmãos você tem?
R - Nós somos sete irmãs.
P/1 - E como foi deixar todos os seus irmãos com sua mãe?
R - Para mim foi tranquilo, porque eu não queria dividir com eles, entendeu? Então eu queria ficar com minha avó.
P/1 - E como você acha que sua mãe se sentiu e passou esse período longe? E você retornou em algum momento?
R - Não, hoje eu sou estranha na casa da minha mãe. Por quê? Eu não vinha na casa dela. Tanto é que a gente cresceu e eu, com as minhas irmãs, a gente tem uma desigualdade, porque eu fiquei bem separada delas. A gente se reúne, mas assim... Não é sentimento de irmã, é como se fossem amigas muito íntimas.
P/2 - Quando você era pequena, quais eram as suas brincadeiras favoritas? Você tinha muitos amigos?
R - Tinha. Meninos. ‘Mãos ao alto’, eu não sei se vocês conhecem. ‘Cai no poço’, ‘pega-pega’, ‘queimada’. A gente era muito feliz, porque no interior a gente brincava de tudo um pouco.
P/3 - Como era essa brincadeira, ‘mãos ao alto’?
R - Hoje eles pegam essas armas... A gente pegava um pedacinho de pau, então a gente... Quem achasse: “mãos ao alto!”. Aí tinha que parar, passar para outro, o próximo ia procurar. Quando encontrava... Que hoje eles falam assim: ‘valeu’, ‘esconde-esconde’, ‘pega-pega’... ‘você vai me pegar agora’. Não, a gente: ‘mãos ao alto!’.
P/2 - E você também ia para a escola quando era pequena? Qual a primeira lembrança que você tem da escola?
R - Minha primeira lembrança? Assim... Eu tinha uma professora muito bacana, no pré. E eu queria sempre fazer a lição melhor do que os outros. Porque, naquele tempo, você tinha que ter o papel almaço, você fazia a lição e você tinha que fazer florzinhas, pintar. Eu queria, sempre, pintar melhor do que os outros. E ela levantava e minha lição para mostrar: “Olha, a lição dela é melhor que a sua”. Hoje não se pode fazer isso, falar melhor. Porque hoje dá briga. Mas naquele... No interior, não. Aí, para mim, essa é a melhor lembrança que eu tenho da escola.
P/3 - Pode continuar.
P/2 - E a escola era perto da casa dos seus avós?
R - Mais ou menos. Assim... Como eu posso falar para você? Uns dez minutos.
P/2 - E o trajeto, iam você e os seus amigos?
R - Todo mundo saía: “Vamos para a escola”. E ia todo mundo com o livrinho do lado, assim. Ia contando historinha e ia para a escola.
P/3 - Algum adulto acompanhava?
R - Não, porque interior... Não precisava adulto acompanhar a gente.
P/2 - E até quando você ficou na Bahia com os seus avós?
R - Eu fiquei até os dezoito anos. Aos dezoito anos eu vim para São Paulo. Era o sonho de vir para São Paulo. Eu vim para São Paulo aos dezoito anos.
P/3 - A gente vai falar desse sonho. Mas quando vocês estavam indo para a escola, todo mundo junto, teve alguma história assim, engraçada ou inesquecível?
R - Sim. Eu não sei se vocês conhecem, mas lá tem, como se diz, valo. Como eu posso explicar? Umas valetas na rua. Então, a gente combinava quem a gente ia empurrar dentro daquela valeta para a gente rir, porque ele ia chegar na escola sujo. Porque a gente já saía de casa em cima do horário, não dava tempo para voltar para trocar. Então, eu empurrei uma amiga minha e ela começou a chorar. E a gente: “Vamos correr para deixar ela aí”. Eu tinha o quê? Eu tinha acho que uns onze anos, capetinha eu fui. Bem capetinha.
P/3 - O que mais você fez?
R - Eu gostava de apontar pontinha de lápis, ficar na fila. Se você não ficar direito na fila, eu vou te furar com a ponta do lápis. Então eu furava com a ponta do lápis, essas coisas assim.
P/1 - Aprontava mesmo. Qual é a lembrança que você tem assim, mais forte? Você falou que sua avó lhe acordava cedo. Qual a lembrança que você tem mais forte com o seu avô? Tem alguma aproximação ou seu contato era mesmo mais com a sua avó?
R - Meu avô, tenho lembrança de que ele foi me ensinar o ABC. Porque eu não conseguia aprender, entendeu? Ele queria que eu repetisse e era para decorar. Então ele falou: “Se você não decorar, eu vou lhe bater”. E batia, naquele tempo batia mesmo, tinha isso. Aí ele pegou um chicote, que se fala, e deu nas minhas costas. Aí eu comecei a chorar e minha avó falou: “Levanta da mesa, pode levantar”. Aí eu levantei da mesa e fui para o quarto chorando. Então assim... Meu avô, ele não era carinhoso quanto a minha avó.
P/3 - E na escola tinha que decorar também? O ABC?
R - Tinha que decorar. Era tudo decorado antigamente. Você tinha que fazer cópia, você tinha que fazer redação. Mas assim... Você tinha que decorar as coisas. Não tinha essa de você olhar aqui. Não, era tudo decorado. Eu estou com sessenta e dois anos, imagina.
P/1 - Tem alguma coisa que você decorou nessa época, que não seja o alfabeto, e que você lembra até hoje, assim, de ter decorado? Sei lá, alguma lição específica?
R - É bem difícil eu te falar, mas eu gostava muito da história de Mendes Sá, mas eu não consigo contá-la.
P/1 - História do Mendes Sá?
R - Do segundo livro. Porque era assim: primeiro livro, segundo livro, terceiro livro. Então, são histórias do Descobrimento do Brasil. A gente gostava muito de ler. Mas hoje, sinceramente, eu não lembro de nada mais.
P/3 - Por que será que você lembra dessa história?
R - É porque a História... Antigamente, você tinha que estudar Geografia e História, era matéria decorativa e, no interior, tinha que decorar mesmo.
P/3 - Mas por que o Mendes Sá?
R - Não sei por que isso. Era uma coisa que eu gostava de ler, sobre a vida do Mendes Sá, entendeu? E gostaria muito que eu pudesse contar, mas acho que devido ao casamento, filho especial, foi muita coisa que eu esqueci.
P/2 - E você quer pular de fase já, ou...
P/3 - Não, vamos explorar mais quando ela era jovem.
P/2 - Eu ia perguntar: como foi essa sua decisão de vir para São Paulo? Se você veio sozinha.
R - Bom, minha tia já morava aqui em São Paulo. Ela foi passear com minha prima lá. Como no interior as coisas, assim... São muito difíceis para você ter, por mais que minha avó lutasse, com meu avô, com família, para as coisas... Mas eu queria ter igual aos outros. E ela não podia me dar. Aí eu falei para ela: “Eu vou para São Paulo com minha tia”. Ela disse: “Você não vai de jeito nenhum para São Paulo”. Eu falei: “Vou”. Sempre contestei. Sou de touro, você já viu. Minha tia veio embora e eu fiquei. Eu não vim, mas todo dia eu falava para ela: “Eu vou para São Paulo, eu vou para São Paulo”. Foi um belo dia, foi uma amiga minha para lá, eu falei com ela: “Estou indo para São Paulo”.
P/1 - De onde era essa amiga? O que ela foi fazer lá?
R - De Pouso da Mata, ela trabalhava aqui e foi lá passear.
P/1 - Como e quando você a conheceu?
R - 1972.
P/1 - E ela era amiga de escola? Ela era vizinha?
R - Ela morava perto da casa da minha tia. E a gente começou a conversar e tudo, e fizemos amizade. Ela veio embora para São Paulo, depois ela voltou. Quando ela voltou, minha tia falou para ela: “Nossa, a Celma está louca para ir para São Paulo”. Ela falou: “Vou convidá-la para ir”. Aí ela me chamou e eu vim para São Paulo.
P/3 - Voltando um pouquinho, que você falou de criança, que você era bem arteira.
R - Eu fui.
P/3 - Teve mais alguma arte que você aprontou, inesquecível?
R - Arte? Tinha uma senhora, ela tinha lá seus cinquenta anos. E ela, tipo assim, fifi, tudo o que eu fazia, ela ia contar para a minha avó. Aí eu ia para a igreja, mas eu não ficava, eu ia para a pracinha, para ficar brincando com os meninos. Porque minha avó não deixava eu sair por causa do meu avô. Não podia sair por causa do avô, o avô brigava e, para não criar atrito entre eles, eu fingia que não saía. Terminava a missa, eu ia, sentava do lado da senhorinha e ela não percebia que eu tinha saído - aí vinha. Só que, um belo dia, ela percebeu e falou para a minha avó. Eu falei: “Está bom, tudo bem”. No muro de casa... Ela estava lavando louça, aí eu subia pelo muro e ficava jogando areia na louça dela para ela lavar de novo. Então assim... Eu era super terrível. As pessoas iam lavar roupa no rio e tinha tipo uma ladeira. E eu ficava da ladeira, com os moleques - eu sempre gostei de moleque - jogando areia, fazendo aquela lama com aquela água assim, ficava jogando na roupa do pessoal. Para o pessoal terminar de lavar a roupa e a gente correr para tomar banho no rio. A gente adorava tomar banho no rio com os moleques, sempre gostei de moleque, tivesse duas ou três amigas era muito. Hoje tenho a minha prima, que está aqui em São Paulo, e mais uma amiga minha, que trabalha no Banco Itaú, na Paulista. E que nós três éramos pestes, que andávamos com meninos.
P/3 - Desde lá, daquela época?
R - Desde lá, daquela época.
P/3 - E banho no rio? Aconteceu alguma coisa?
R - Não, a gente só ia tomar banho, assim, de ficar ali fazendo festinha dentro da água, correndo atrás do outro, pega-pega. Porque interior não tinha outra diversão, não tinha cinema. Eu fui ao cinema... Estava com dezesseis anos quando inaugurou uma casa que passava filme. Mas assim... Você tinha que ir ao cinema às quatro horas da tarde para as seis horas estar em casa.
P/2 - E você lembra de algum filme que assistiu nessa casa, que lhe marcou?
R - Um de Jerry Adriani. Inclusive, tinha uma musiquinha assim: “Doce, doce amor, eu vou te levar para onde for”. Mas eu esqueci a história do filme, era bem Jovem Guarda.
P/2 - Você disse que tinha muitos amigos, meninos. E nessa fase da sua juventude, rolou algum namoro?
R - Escondido da minha avó. Namoro... O menino nem olhava para você, você segurava na mão, estava indo para casa, segurava na mão, já diziam que estava namorando. Ali você chorava, porque você estava apaixonadinha. Mas tudo assim... Tinha o filho do prefeito, que agora mesmo eu fui passear na Bahia, encontrei com ele, a gente sentou e começou a falar: “Nossa, Carlito, como a gente era bobo, pegava na mão e dizia que estava namorando”. Ele falou: “Celma, você era capeta, você era demais”. Mas as histórias assim...
P/1 - E quem foi seu primeiro namorado? Você lembra como foi? Mesmo se fosse só esse pegando na mão?
R - Meu primeiro namorado chama-se (Sinflau) [00:14:24] Dias. É italiano, ele era cobrador de ônibus. Aí, foi quando eu fui para a casa da minha mãe - eu ia de vez em quando - um final de semana eu fui lá e ele foi como cobrador. O ônibus quebrou, a gente começou a conversar, ficou conversando, foi lá para trás do ônibus sentar os dois na cadeira, segura na mão do outro, diz que estava namorando. Aí ficou um mês assim, de papinho, de papinho. Quando eu fui dar meu primeiro beijo nele, meu cunhado surgiu do nada e contou para a minha mãe, minha mãe foi contar para a minha avó, minha avó não deixou mais eu ir para lá.
P/2 - Ele era da cidade da sua avó ou da sua mãe?
R - Da minha mãe.
P/1 - Aí, toda vez que você ia para a sua mãe, você o via?
R - Via. Fingia que estava namorando, porque eu estava namorando com ele. Mas ele, acho que não estava namorando comigo.
P/1 - E você não conseguiu beijá-lo?
R - Não, porque meu cunhado surgiu do nada.
P/1 - E como foi seu primeiro beijo? Você lembra?
R - Meu primeiro beijo foi aqui em São Paulo, que foi o meu ex-marido.
P/1 - Vamos chegar no seu marido depois.
P/3 - E lá, quando você já estava mais crescida, era jovem, você fazia o quê para se distrair? Além do cinema, que você contou, tinha mais alguma coisa?
R - Tinha aquelas coisas de final de ano, de boi janeiro, de quadrilha, de clube, tinha aquelas festinhas no clube, mas tinha horário para ir. Você tinha que entrar no clube às nove horas, quando fosse onze horas tinha os primos, tinha o avô, avó, que vinha na porta do clube, mandava alguém chamar para vir embora - eram essas as diversões. Ou ir para a roça, para a casa das tias. Não tinha muita coisa a fazer.
P/3 - Descreve um pouco esses bailes. Como eram? As cenas assim, se você lembra, sabe? Aquela lembrança.
R - As cenas eram assim: eram uns cantores com umas bandas, como se fossem Roberto Carlos hoje - que não era Roberto Carlos. Era Escala (inint) [00:16:45], eram uns meninos que cantavam assim, entendeu? O que mais que eu posso dizer?
P/3 - Vocês dançavam? As roupas?
R - Dançava, dançava. As roupas, a gente gostava sempre de comprar roupa colorida para dar luz negra, aquela luz negra brilhando. No Carnaval, as marchinhas de Carnaval. Eu nem me lembro mais - porque eram tão antigas - nem lembro mais das marchinhas de Carnaval. Mas era sempre roupa colorida para estar aparecendo na luz negra. Coisa bem infantil mesmo.
P/3 - Era divertido?
R - Era superdivertido. Porque para a gente era divertido, não tinha outra coisa a fazer ali. Aquelas moças grandes tudo com o pensamento infantil.
P/1 - Você falou da cidade, que a cidade tinha ladeira, tinha o rio. Fale um pouco, qual o nome dessa cidade na Bahia?
R - Ibirapuã.
P/1 - E como era a cidade, assim? O que você lembra dela? Como eram as ruas? Quais caminhos você costumava fazer?
P/2 - Os caminhos que eu costumava fazer, assim... Meu tio morava numa rua em cima, chamada Brasília. A minha avó morava já bem na praça, na Avenida Getúlio Vargas. Então a gente sempre acordava de manhã, ia para a escola, chegava da escola, fazia a lição, depois dizia: “Vamos para a casa do meu tio”. Porque o meu tio tinha um quintal, aqueles pés de bananeira, a gente ficava pulando corda, brincando de pega-pega lá na porta. Aí: “Vamos para Brasília”. Outra hora: “Vamos tomar banho lá no rio”. Aí descia todo mundo lá para a rua Dom Pedro Segundo. A gente ia. Mas o rio era dentro da cidade mesmo. E a praça é a praça Dom Pedro, que tinha lá, onde tinha o Abrigo. Porque o Abrigo... Não sei se vocês conhecem, é uma estação rodoviária, que, antigamente, chamava Abrigo. Então, vinham os ônibus dos outros lugares e, chegando naquele terminal ali, paravam, o pessoal descia, os ônibus voltavam. Assim, tipo Nanuque, Serra dos Aimorés, Vila Progresso, essas coisas assim.
P/1 - Cidades vizinhas?
R - Cidades vizinhas.
P/3 - Por que chamava Abrigo, Celma?
R - Porque antigamente a rodoviária chamava Abrigo.
P/3 - As pessoas dormiam lá? Não?
R - Não. Olha, para você ver, estranho ou não, tinha quatro bancos, do lado tinha uma lanchonete, do outro lado outra lanchonete e os ônibus paravam de um lado ou de outro, no sentido... Por exemplo, sentido Nanuque é esse lado; sentido Vila Progresso do outro lado. E eles falavam: “Vamos para o Abrigo, vamos para o Abrigo”. Hoje, a gente sabe que é onde dormem as pessoas, onde acolhe as pessoas. Mas naquela época, era um vocabulário para a gente que estava certo.
P/3 - Rodoviária.
R - E hoje é uma rodoviária, a gente sabe que é uma rodoviária.
P/1 - E na praça? Você costumava ficar na pracinha? Porque praça, normalmente, em cidade pequena...
R - É uma pracinha com bancos. Por exemplo, o nome das lojas. José Cândido tinha uma loja, então tinha o banco lá de cimento com a propaganda, em bancos. E a gente ficava ali sentado, sem nada para fazer, vendo um grupo escolar que tinha (pedra para ser ver) [00:20:19], tomando um sorvete...
P/3 - Ali, no final de semana, tinha um movimento?
R - Tinha movimento, porque tinha feira. Então vinham os filhos... O pessoal da roça vinha e ficava ali: “Uma sandalhinha japonesa”, havaianinha, que hoje é Havaianas. E ficava ali brincando, super contente, feliz da vida.
P/3 - E quando foi ficando mais jovem, assim, foi crescendo? Aí tinha algum momento especial na praça?
R - É lógico, você ia para ver os meninos. Você ia ver os meninos, mas não tinha maldade naquela época. Ficava ali sentado, ele ia falar do que ele era da roça, o que ele capinou, que ele plantou feijão, que o feijão dele ia dar e que ele ia vender, que ele ia comprar uma calça, ia comprar uma camiseta, uma mochila. Esse papo, e a gente achava que estava um papo de namoro.
P/2 - E nessa época você trabalhava?
R - Não. Eu vim a trabalhar em São Paulo.
P/2 - São Paulo já? OK. Como foi a sua chegada em São Paulo? A sua primeira impressão?
R - Nossa, eu chorei muito. Porque para mim era outro mundo. Eu queria voltar, mas o meu orgulho dizia não. Então assim... Vim com minha amiga, ela já foi para o emprego e eu fiquei na casa da irmã dela para procurar emprego. Mas eu fiquei uma semana, assim, em choque. Porque é muito diferente do interior, eu achava que ia me perder, que eu não tinha ninguém mais. E fui me acostumando, aí fui procurar emprego.
P/3 - E o que lhe emociona tanto quando você lembra? Fale um pouco do seu sentimento.
R - Eu acho assim, que eu não devia ter vindo. Eu acho que eu devia ter ouvido a minha avó.
P/3 - E por quê? O que foi acontecendo? Assim... Como a Júlia perguntou, essa primeira impressão.
R - Porque aí nunca mais eu a vi, entendeu? Ela faleceu logo que eu vim para São Paulo e como assim... O pessoal do interior, eles têm um orgulho: “Eu não vou avisar para ela, minha mãe pediu para ela não ir, ela foi, então ela não vai saber”. Quando eu soube, minha avó já tinha sido enterrada. Então, minha avó para mim era tudo. É por isso que, Nossa, me emociono muito. E eu não fui mais em Ibirapuã. Não quis ir mais lá, porque eu acho assim, eu vou chegar, vou ver a casa dela, e cadê ela? Então isso ficou muito marcado. Eu não gosto do entardecer, quando vem aquele entardecer para mim, Nossa, se eu pudesse fechar os olhos e não ver. E eu já fiz muita terapia, mas não consigo.
P/3 - E seu avô?
R - Meu avô ainda ficou um tempo, depois ele faleceu também. Que era muito ligado um com o outro. Então assim... Ele morreu de saudade, em seis meses ele foi também.
P/3 - E sua mãe, você ainda voltou a visitar?
R - Voltei a visitar, ela veio morar em São Paulo, depois foi embora. Hoje ela é viúva, as filhas, algumas estão aqui, outras estão lá com ela, em Porto Seguro. Eu estive lá com ela o ano passado, estive um mês lá com ela. Hoje a gente é mais amiga.
P/3 - Você quer tomar uma água? Parar um pouquinho?
P/1 - E as suas irmãs vieram muito tempo depois? Como foi esse processo? Porque você ficou um tempo na casa da irmã da sua amiga, você ficou muito tempo lá? Como foi?
R - Eu fiquei na casa da minha amiga uma semana. Quando eu comecei a trabalhar, eu já fiz o meu cantinho. Aí eu aluguei uma casa e já fui procurar trazer minhas irmãs. Só que intermédio de trazer, eu não trouxe. No caminho para o serviço eu conheci o meu marido. Por ironia do destino. Olha como eu tenho a ver com cobrador de ônibus. Ele, sendo cobrador de ônibus, eu entrei no ônibus e assim, no cantinho. Ele: “Nossa, menina, por que você está triste?” Eu falei: “Eu não estou triste, estou com saudade de casa”. Ele falou: “Saudade de casa? Você não é de São Paulo?” Eu falei: “Não, eu sou da Bahia, vim para cá tem oito dias, comecei a trabalhar, estou indo para o trabalho”. Aí ele me deu o telefone dele. Voltando do trabalho, eu já não o vi. Eu falei: “Eu vou ligar”. Sossegada, eu. Aí liguei e comecei a conversar com ele.
P/1 - Sobre o que vocês conversaram?
R - Foi perguntar quanto tempo eu estava em São Paulo, de onde ele era. E sabe quem ele era? Namorado da minha amiga.
P/1 - A que te trouxe para São Paulo?
R - A que me trouxe para São Paulo.
P/3 - Você nem sabia?
P/1 - Como foi que você descobriu?
R - Porque ele perguntou com quem eu vim para São Paulo. Eu falei: “Eu vim com Germínia”. Aí ele: “Minha namorada. Mas eu terminei com ela”. Olha, desculpa, mas os homens já vinham com proposta da mentira já no começo. “Terminei com ela”. E a gente ficou uns oito dias batendo papo. Ele me convidou para ir ao cinema, que era ali em Santo Amaro, na Avenida Santo Amaro - antigamente tinha um cinema. Fiquei meio assim, falei: “Vou”. “Vamos”. Assistimos o filme, voltamos, ele me deixou em casa. Na segunda-feira cedo, eu estou indo para o trabalho, ele falou: “Você me espera para ir no ônibus comigo”. Porque eu trabalhava em Moema, morava no Jardim Míriam. Eu esperei. E assim foi, surgiu o namoro. Só que quando ela descobriu... Que eles estavam brigados e tinham terminado e que eu estava namorando com ele, ela ficou minha inimiga. Só que eu não tinha culpa, eu não tive culpa. Porque aí não fui eu que fui atrás dele, ele que veio namorar comigo, ele que veio falar comigo. Já tinha uns quinze dias que eu estava namorando com ele, eu senti muita saudade de casa. Só que eu não fui até em casa. Em vez de eu ir em casa, eu fui até Belo Horizonte, para a casa da minha tia, porque eu não queria voltar para trás. Para a casa da minha tia, fiquei na casa da minha tia uns oito dias, ele ligava todo dia, todo dia, todo dia, todo dia. “Eu não consigo ficar sem você, você vem embora, não sei o quê, não sei o quê”. Voltei para São Paulo. Cheguei em São Paulo, já tínhamos alugado casa, tudo. Eu falei com ele: “Mas eu não vou ficar em São Paulo, eu não consigo ficar aqui”. Ele falou assim: “Você vai ficar aqui, porque a gente vai ficar junto agora, você não vai mais para lugar nenhum, vamos ficar junto de verdade”. Aí alugou a casa e eu fui morar com ele. Fiquei cinco anos com ele. Quando nasceu o meu primeiro filho, aí ele falou: “Agora, para registrar, vamos casar, porque sem casamento como que registra o menino?” História diferente, porque hoje você registra. Aí fomos casar, casamos ali na Avenida Eucalipto, Moema. Vivi com ele vinte e um anos, até nascer o meu último filho, que é o Rafael.
P/3 - Quantos filhos vocês tiveram?
R - Três filhos.
P/3 - Fale o nome deles.
R - O primeiro, Mário Sérgio; o segundo, Emerson; e o terceiro, Rafael.
P/1 - Posso só voltar na história do primeiro beijo? Que daí seu primeiro beijo foi com seu marido?
R - Foi.
P/1 - Como foi esse primeiro beijo? Foi logo no dia em que vocês foram ao cinema?
R - Não, foi um beijo de rosto. O primeiro beijo foi dentro do cinema mesmo. O primeiro beijo, como se diz, de língua, foi dentro do cinema.
P/3 - E a sua sensação?
R - No início foi ruim, depois eu gostei. Depois eu gostei, sim.
P/1 - Eu acho que a Júlia pode continuar.
P/2 - Quando você chegou aqui em São Paulo, com o que você começou a trabalhar?
R - Eu fui trabalhar de babá.
P/2 - E como foi essa experiência?
R - Para mim foi ótimo, porque eu distraía quando eu estava com a criança, eu gostava de cuidar de criança, entendeu? Eu não gostava de levantar cedo. Então assim... Para ser babá, você levanta, cuida da criança, você volta a dormir de novo, junto com a criança. Então, para passear, eu gostava de passear, eu ia passear com a criança, os pais da criança. Hoje essa criança e a mãe são meus amigos.
P/3 - Como você arrumou esse trabalho? Porque foi pouco tempo. Você falou uma semana você já arrumou?
R - Foi, uma semana já arrumei trabalho.
P/3 - Como foi que você conseguiu?
R - Porque a patroa da minha amiga arrumou para mim. Foi ali na Jesuíno Maciel que eu fui trabalhar.
P/3 - Você lembra do primeiro dia? Quando você chegou? Fale um pouco como foi essa sensação.
R - O primeiro dia em que eu cheguei em São Paulo ou no emprego?
P/3 - No emprego.
R - No emprego? Eu cheguei para fazer a entrevista com ela. Aí eu falei que a Domitília, patroa da Germínia, tinha me indicado. Liguei para ela, ela atendeu, falei: “A Domitília falou que você está precisando de uma babá e eu cheguei em São Paulo há pouco tempo, eu gostaria desse emprego”. Ela falou: “Vem aqui em casa para a gente conversar”. Aí confirmou com a Domitília se era eu e tudo, a Domitília deu todas as informações que era eu, eu fui. Ela pegou minha documentação, olhou a carteira, ligou para a Domitília de novo. E quando foi no segundo dia, eu já vim para começar a trabalhar com ela. Eu entrava, naquela época, às seis horas e ia embora às seis da tarde.
P/3 - Era um bebezinho?
R - Era um bebê. Ele tinha quatro meses.
P/3 - E você tinha experiência com bebê?
R - Ela ficava dentro de casa, então ela ajudava. Como a gente do interior tem muito carinho com criança... Hoje você precisa ter um baby-sitter para cuidar de criança, precisa fazer um curso de babá, mas naquela época não. Naquela época, as pessoas tinham mais confiança em você e eles ficavam mais dentro de casa. Então assim... Ensinava, tinha mais paciência, mais tempo para ensinar.
P/3 - E você se deu bem nesse trabalho?
R - Dei, fiquei nesse trabalho muito tempo. Fiquei o quê? Uns seis anos nesse trabalho. Aí depois fui para outro, de babá também, que todos hoje são amigos.
P/1 - E você só trabalhou de babá ou você teve outras funções?
R - Não, só de babá mesmo.
P/1 - O que você mais gosta nesse trabalho? O que você menos gosta?
R - Do trabalho doméstico?
P/1 - É, de cuidar de criança.
R - Do que eu gosto? De tudo eu gosto, não tem do que eu não goste. É como eu disse, eu só não gostava de levantar cedo. Então assim... Levantar, cuidar da criança, voltar para a cama com a criança. Porque hoje é muito diferente, hoje tem a escolinha para levar, tem o Inglês, tem a natação. E antes não, antes a criança só saía de casa depois de um ano, dois anos, quando começava a frequentar uma escolinha, começava a frequentar natação.
P/3 - Você teve alguma história marcante com as crianças? Com alguma criança?
R - Eu tenho com o João Pedro.
P/3 - Conta para a gente. Se você quiser contar.
R - Eu conto, sim. O João Pedro era muito chorão. E eu queria fazer uma coisa para ele parar de chorar. Brincava de pega, escondia dele, fazia careta... Pronto, fazer careta para ele era o fim do mundo, aí que ele chorava mais. A mãe dele saía, eu falei: “Eu vou fazer careta para o João Pedro até ver onde que ele vai ficar chorando”. É tanto que hoje ele tem vinte e quatro anos, vinte e cinco, e quando ele me vê: “Você fazia careta para eu chorar até soluçar”. Então assim... Para mim é uma história, uma coisa que marca. Que sempre que eu o vejo, ele lembra disso, a gente começa a rir.
P/3 - E você, dessa vez você falou: “Vou fazer careta até...”. Aí, o que aconteceu? Você lembra?
R - Aí ele chorou até dormir. Se fosse hoje eu iria presa.
P/2 - E quando você folgava, o que você fazia?
R - Eu ia passear no Parque do Ibirapuera.
P/2 - E como eram esses passeios? Você ia sozinha?
R - Com o namorado. A gente ficava passeando, ia comer pipoca, ficava jogando pipoca no lago, para os peixes, essas histórias. Eu sempre gostei de coisas tranquilas. Ia passear no Zoológico. Isso que eu gostava de fazer.
P/3 - Você falou que quando chegou aqui, foi aquele impacto. Depois, como foi ficando a cidade para você?
R - Eu fui me acostumando e fui gostando. Fui gostando de São Paulo. Hoje a minha paixão é São Paulo, eu não consigo ficar fora de São Paulo. Mas quando eu cheguei, Nossa, eu tinha muito medo. Muito grande. As ruas, uma parecida com a outra. E você ouvia história que gente sumia, que matou fulano, então você ficava... Já vinha tudo na sua mente, aquilo.
P/3 - E nessa época em que você chegou, que você estava falando que tinha esse medo, tinha alguma coisa que lhe encantava? Ou não?
R - As luzes. As luzes. Eu ficava deslumbrada com aqueles focos de luz, aquelas coisas. Para mim, era maravilhoso.
P/3 - Tinha alguma diversão aqui? Assim... Independente de namorado, alguma coisa que você fazia, que você gostava de fazer aqui? Alguma distração?
R - Eu gostava muito de passear no parque, eu gostava muito do Zoológico.
P/1 - Como foi a primeira vez que você foi no Zoológico?
R - Como foi? Achei lindo, porque eu queria passear, ver os bichos. Quanto mais eu andava, mais eu queria andar, entendeu? Essas coisas assim.
P/3 - Teve algum susto?
R - Sim, na hora em que o leão veio para cima eu achei que ele ia sair dali, aí eu assustei, sim. Mas no mais, foi tudo tranquilo. É muito gostoso.
P/3 - Quer continuar?
P/2 - E as amizades que você fez em São Paulo? Como foi? Onde você fez essas amizades?
R - As minhas amizades em São Paulo, que eu fiz, foi depois da separação. Porque casada, o meu marido tinha muito medo de que eu o deixasse. Então assim... Como eu não fui para baile, como eu não ia para coisas para ter amizade, porque ele fazia muito medo, ele dizia: “Se você for para o baile é muito perigoso a gente sair”. Então assim... Só saía mesmo para o Parque Ibirapuera, Zoológico, um shopping... Quando inaugurou o Shopping Ibirapuera, esses lugares assim. Então, depois que eu separei é que eu fui fazer as amizades, entendeu? Hoje eu tenho as amigas. Eu tenho a Maria Lúcia, que é mãe do Luiz Paulo. Eu tenho a Andreia. Mas também sou muito selecionada com amiga, porque eu sou muito curta e grossa. Então, eu seleciono. Tenho a Aline. Amigas, amigas são essas três aí.
P/1 - E onde você as conheceu? Como conheceu?
R - A Maria Lúcia eu conheci no (GAPS) [00:38:44], entendeu? É uma história também...
P/3 - Deixa eu voltar um pouquinho. Como foi quando você teve seu primeiro filho? A sensação?
R - Meu primeiro filho foi maravilhoso, foi ótimo. Sensação boa, era tudo de bom, porque eu queria, entendeu? Então, muitas alegrias. O segundo também foi maravilhoso.
P/3 - Quando você teve os filhos, você continuou trabalhando?
R - Não, não trabalhei, fiquei em casa só cuidando deles. Aí o meu esposo já tinha feito Farmácia, já tinha emprego melhor, então eu já ficava em casa cuidando das crianças.
P/1 - Qual é a diferença de idade de um para outro?
R - O mais velho tem quarenta, o do meio tem trinta e seis e o Rafael vai fazer trinta.
P/1 - E você já teve a experiência de cuidar de filhos de outras pessoas, antes de cuidar dos seus. O que você viu de diferente de cuidar dos seus filhos e dos filhos de outras pessoas, como um emprego?
R - Com o emprego é muito mais responsabilidade. Dos outros é mais responsabilidade do que os seus. Porque os meus eu já criei diferente, os meus, eles dormiam no quarto deles, sozinhos. Os meus já podia dar o castigo e o dos outros você não pode dar o castigo, entendeu? Então, para mim, eu estava mais segura com os meus.
P/3 - Fale um pouco sobre isso, Celma. Cuidar dos filhos dos outros e não poder fazer isso como você achava que deveria. Como que resolvia, então?
R - Resolvia... Você tinha que falar com a mãe: “Olha, eu fui dar banho, ele não queria tomar banho”. “É para tirar fralda, ele não quer sair da fralda”. Aí ela ia conversar com ele, porque eu não tinha autoridade para fazer isso.
P/3 - Sempre tinha que conversar.
R - Sempre tinha que falar com a mãe ou com a avó. A avó tomava a atitude. Você tinha que dar carinho, brincar, falar: “Não pode mexer”. Até aí tudo bem. Mas quando chegasse a falar mais firme, tinha que ser a mãe ou a avó.
P/3 - E você começou a se afeiçoar às crianças, ou tinha que ficar distante? Como era?
R - Não, eu tinha afeição. Porque assim... Se eles ficassem doentes, eu já chorava junto com eles também. Nunca tive que ficar distante. É isso que eu digo, a diferença dos meus filhos para os filhos dos outros, que os meus filhos eu deixava no quarto, dormir sozinho. E os outros, eu tinha que esperar dormir e tinha que ficar do lado, dormir do lado também, para vigiar à noite. Ou qualquer choro mais forte, chamar a mãe.
P/1 - Você dormia nas casas em que você trabalhava?
R - Às vezes tive que dormir.
P/3 - No quarto com as crianças.
R - No quarto com as crianças.
P/1 - E você está falando das ordens que você pode dar para os seus filhos, mais forte do que para... E, além das ordens, qual é o sentimento que muda, dos filhos dos outros em relação aos seus filhos?
R - Porque o sentimento é maior, de mãe. É seu, é meu. E dos outros, você sempre tem que saber que uma hora você vai desgrudar dele, que não é seu. E aquilo assim... É uma dor. Porque você se acostuma.
P/1 - Como era quando você tinha que sair de uma casa? Por exemplo, você saiu, mudou de emprego, saiu de casa. Como era essa mudança? Por que você mudou de casa para trabalhar?
R - Chegava uma época em que as crianças cresciam. Então te dispensavam, mas já te indicavam para outra. Porque eu fazia um ciclo de amizade e tinha respeito para com as pessoas, as pessoas tinham comigo, então ficava preocupado: “Olha, já está perto de fulano...”. Por exemplo: “A Maria vai para a escola, então já está perto de você deixar a Maria, então vamos trabalhar isso aí, vamos procurar outro, vamos conversar com ela, ir conversando para que vocês desapeguem”. Mas, uma vez por mês, eu ia na casa, entendeu? Então assim... É sofrimento.
P/3 - Para a criança?
R - E para a gente.
P/1 - E como era depois esse processo, para você olhar para outra criança diferente? Você visitava a outra uma vez por mês e agora você tinha que cuidar daquela criança. Como era a adaptação? Mudava muito o jeito de uma patroa para outra?
R - Mudava. Até que ela pegasse a confiança em mim, ela estava sempre por perto. Depois que ela pegava a confiança, não, ela já deixava a sós.
P/3 - A gente está querendo que você conte bastante, porque esse trabalho de babá, a gente quer saber como é mesmo, como é esse sentimento. Você falou: “É uma dor”. Tem como descrever uma cena, um momento com algum deles? Que você estava indo embora para outra casa? Se você quiser escolher um para contar.
P/1 - Se teve alguma despedida marcante.
R - A última, que foi a Sofia. Eu fiquei com ela até os quinze anos. Quando foi a festa de quinze anos eu participei como visitante, não participei como babá. E foi muito dolorido, porque ela também era apegada comigo. Porque a mãe dela é médica, saía e eu fazia todos os gostos dela. Se ela não quisesse almoçar, eu ia buscar comida fora para ela. E a gente grudou e começou a chorar. Então isso foi muito marcante. Ela foi embora para a Inglaterra e a gente não se fala mais.
P/3 - Quinze anos? Era uma moça já.
R - Já, uma moça. Ela estudava no Sagrado Coração de Jesus, ali perto da Escola Suíça, não sei se vocês conhecem, em Santo Amaro.
P/3 - E quando ela foi crescendo, ficou adolescente, teve algum momento, assim, que foi marcante também?
P/1 - Por exemplo, você não teve filha, não é?
R - É, esse é meu apego com ela.
P/3 - E teve algum momento que você pode contar para a gente, de quando ela foi crescendo, deixando de ser criança, se teve alguma história, assim, marcante?
R - As histórias de quando ela viajava, que sempre ela ligava para mim. Assim, por exemplo, ela foi para Serra Negra com o colégio, aí ela ligou, “Celma, eu esqueci minha escova de dente”. Eu falei: “Mas, Sofia, compra aí”. Ela falou: “Ah, eu tenho vergonha de falar”. Porque ela é muito tímida. E eu peguei o motorista, fui em Serra Negra levar uma escova de dente para ela. Quando eu cheguei, a mãe dela: “Mas você fez isso?” Como é que ela dizia? “Você, cada dia que passa, está deixando a Sofia mais presa, você tem que deixar ela se soltar”. Mas, para mim, era um sofrimento para ela e para mim, eu ficava sofrendo de cá. Então assim... Quando ela ficou mocinha também foi para mim que ela correu e falou, eu que fui correndo comprar um Modess para ela. Então essas são coisas marcantes que eu achava interessante, assim... Por que não a mãe dela? Por que eu? Mas eu, porque eu é quem ficava com ela direto, a mãe não ficava.
P/2 - E na sua casa, quando você teve o seu primeiro filho, o que mudou na sua casa e na relação com o seu marido?
R - Sim, na minha casa mudou a rotina da casa. Porque eu tinha que dar mais atenção para o meu filho do que as coisas de casa, então as coisas de casa eram a última opção, ele sempre era a primeira opção. E o meu marido assim... A gente já começou se distanciando, já começou com o primeiro filho. Não era mais aquele marido que eu tinha, porque a necessidade que eu tinha de estar do lado dele, eu não podia, eu tinha que estar do lado do filho, e o meu filho era a primeira opção, não tinha como.
P/1 - Você vendo outras mães precisando de babá e deixando seus filhos com uma babá. Se você tivesse condições, você contrataria uma babá para cuidar dos seus filhos?
R - Jamais.
P/1 - Por quê?
R - Porque o carinho de mãe para um filho faz falta. Quando ele chega na adolescência, que ele vai passando a adolescência, isso provoca um conflito. Então, se ele sente falta na infância - como eu sinto falta hoje da minha mãe - eu acho que ele também... Eu acho e tenho certeza de que sente falta, então isso fica muito ruim.
P/3 - Alguma situação mostrou isso? Que você lembra? De algum deles ou da Sofia?
R - Mostrou, da Sofia.
P/3 - Fale um pouco como você observou isso.
R - Eu observava assim: quando ela com a mãe e a mãe ia para o quarto com ela, ela falava com a mãe: “Não, não vou te ouvir, eu vou ouvir a Celma”. Quando ela estava na sala assistindo televisão, que ela estava sentada do lado da mãe dela, e que eu sentasse, ela vinha para o meu lado. Eu falava: “Vai sentar com sua mãe, Sofia”. “Não, quero sentar do seu lado, não é toda hora que ela está aqui”. Então isso, para mim, eu ficava pensando: “Poxa vida, o que dá deixar a filha sempre com a babá e não dar o carinho para ela, aproveitar na hora que estão as duas a sós”.
P/3 - E aí você estava falando do marido, pode continuar.
P/1 - Pode continuar, Júlia.
P/2 - E com o segundo filho? Na verdade, você comentou que a primeira e segunda gravidez foram gostosas e tranquilas. E como foi a terceira gravidez?
R - A terceira gravidez é o seguinte: eu já não queria mais engravidar, mas veio, ótimo. Mas aí eu já tinha aquela sensação de que não era um filho normal, porque eu sempre tive medo de ser mãe de filho especial. Sempre tive isso, não sei por quê, mas quando eu via alguma mãe com filho especial, eu procurava me distanciar. E foi aquela gravidez, foi uma gravidez tumultuada, porque o meu marido não queria mais ficar em São Paulo, ele queria ir embora para Aracaju, porque ele era de Aracaju. E eu não queria ir. Eu já estava no oitavo mês de gravidez, ele falou: “A gente vai, sim”. E a mãe dele sempre dizia que a mulher tinha que acompanhar o marido para onde ele fosse. Mas o meu eu não queria, eu sempre fui autoritária, mas dizem que o amor fala mais alto. Aí, acompanhei-o. Chegando em Aracaju, completei os nove meses de gestação, mas sempre aquilo... “Meu filho vai nascer com problema”. Mas todos os exames diziam não, mas eu atraí. Eu não sei se eu estava atraindo, ou se eu já estava pressentindo e, nos exames, não descobria. Como até hoje não descobriu. Ele faz uma tomografia, faz ressonância, não tem nada no cérebro. Quando chegou no oitavo mês, que eu fui para o hospital, ele era para nascer no dia sete, foi nascer no dia quatorze. Nascendo o Rafael, passaram-se as setenta e duas horas horas, o médico já veio com a notícia. Ele perguntou: “Quem tem hipoglicemia na família? Tem algum caso?” “Não”. Ele falou: “Porque, olha...”. Um médico, quando chega para uma mãe e diz: “Você tem um filho... Pois seu filho é especial”. “O que é isso?”. Diz: “Você tem um filho que vai vegetar”. Tornei a perguntar: “O que é isso?” Ele falou: “Seu filho nasceu com problema neurológico, que aqui em Aracaju não tem como cuidar dele”. Ótimo. Tive alta do hospital, liguei para a minha tia em Belo Horizonte, peguei o Rafael, vim para Belo Horizonte, começou a minha trajetória de vida. Aí, esqueci os outros dois filhos, esqueci o marido e investi no Rafael. Fazendo a primeira tomografia nele em Belo Horizonte, aí o médico me chamou, falou: “Mãe, ele é um PC. A senhora vai ter que cuidar dele, ele vai ser, sempre, uma eterna criança”. Só que aí eu liguei para Aracaju, para o marido e falei: “Você vai ter que vir embora, porque aqui o tratamento de Rafael vai ser por aqui”. E trazer as crianças, porque para Aracaju não voltei mais. Aí ele veio para São Paulo, eu já vim de Belo Horizonte para São Paulo, aí começamos: Hospital das Clínicas, Hospital São Paulo, Hospital das Clínicas, Hospital São Paulo, e nada. O Rafael convulsionava vinte e oito vezes ao dia, chorava dia e noite. Aí ele já ia para um ano. E nada de endurecer, nada de nada, sempre aquela criança vegetando mesmo. Foi assim até os cinco anos.
P/3 - Quando o médico falou “ele é PC”, você entendeu o que ele estava falando?
R - Eu perguntei para ele o que era PC, ele disse que era uma criança com lesão cerebral.
P/3 - O parto foi normal?
R - Cesárea. Aí, aos cinco anos, eu me inscrevi na AACD. Chegando na AACD, quando eles me chamaram, o doutor Eduardo, que era o médico diretor geral da AACD, ele conversava com as mães com criança com PC. Ele encaixou o Rafael, conversou comigo, explicou tudo que teria que fazer. Isso, os outros filhos estavam para trás já, eu só lembrava do Rafael, nem marido também eu não lembrava mais. E o meu negócio era investir no Rafael, que eu não aceitava que o Rafael continuasse naquela situação. Eu queria mais dele, tudo dele, aí eu já era uma louca. Taxada como louca, onde eu chegasse eu fazia o escarcéu. Cabelo, só levantava, prendia e vamos procurar você, Rafael, quero você como meu filho, como os outros. Eu não aceitava a diferença. Começou a fazer TO e a medicação. Aí uma medicação não dava certo, outra medicação não dava certo. Aos dez anos eu conheci o doutor (Adib) [00:56:11], que é o pai da Luciana.
P/2 - Eu queria saber... Você disse que deixou os seus filhos um pouco de lado para cuidar mais dele. Quem cuidava deles? Como que foi essa relação? Eles sentiram muito? Como eles se relacionavam com o Rafael?
R - Eles sentiram. O pai, um pouco ou nada fazia. Mas, por exemplo, se eu ficasse o dia todo na AACD, quando eu chegava em casa, o do meio, que é o Emerson, ia ficar com o Rafael na cama para eu ir fazer o que eu não tinha feito durante o dia em casa. Entendeu? O mais velho não, o mais velho é mais apegado ao pai, então ele não me dava essa assistência, ele ficava mais grudado ao pai.
P/3 - Quem cuidava deles em relação a comida, essas coisas que tinha que fazer? Escola? Como era essa rotina?
R - Eu e o pai. Mas o pai pouco, eu sempre mais. Eu de cá, eu falava: “Está na hora de ir para a escola”. A comida eles tinham que comer fria, para não se queimarem.
P/3 - Fale um pouco, assim, conte essa rotina um pouquinho mais. Como era assim, o dia? Como é que fazia?
P/1 - Por exemplo, no dia em que você tinha que levar o Rafael na AACD, como é que era?
R - Eu dizia: “Amanhã, eu vou levar Rafael na AACD, então a comida está pronta, vocês não liguem o fogão. O Mário Sérgio estende a roupa que ficou na máquina para mim, o Emerson seca a louça, depois vocês vão para a escola e quando chegar, fiquem dentro de casa, não é para abrir o portão para ninguém, não é para ir para a casa de ninguém, porque senão quando eu chegar vai todo mundo apanhar”. E assim eles faziam.
P/3 - O Mário Sérgio tinha oito?
R - Era. E o Emerson...
P/1 - O Emerson tinha...
P/3 - Uns quatro.
R - Uns quatro para cinco anos.
P/1 - E eles iam para a escola sozinhos?
R - O Mário Sérgio levava o Emerson. Que eu sempre localizei... Já vim para São Paulo e localizei um lugar para morar perto da escola e tudo. Quando eu vim, entendeu? Porque eu vim de Belo Horizonte para São Paulo, eles já tinham vindo de Aracaju para São Paulo. Mas tudo assim, aonde eu estava, eu estava com a cabeça arrumando tudo, cuidando do Rafael e cuidando de todos.
P/3 - E você arrumou casa, tudo, você ou seu marido? Como era isso para resolver as coisas?
R - Eu arrumei a casa. De lá de Belo Horizonte eu liguei aqui para São Paulo. Porque como eu tinha deixado Eldícia, uma vizinha minha... Eu falei com ela: “Localiza uma casa para mim, assim”. Porque ela já sabia da história do Rafael, que Rafael tinha nascido PC e tudo. Ela localizou a casa ali no Campo Belo, ali na Otávio Tarquino de Sousa. Então ali é uma localização perto do colégio. Tinha uma escola do outro lado da 23 de Maio. Bandeirantes, do outro lado da Bandeirantes. Aí, o Mário Sérgio trazia o Emerson na escola, voltava, quando Mário Sérgio vinha era perto, então não tinha como você ficar... Eu me preocupava, mas dava para você ficar...
P/3 - Atravessava a avenida?
R - Atravessava a Bandeirantes para vir para a escola.
P/3 - A gente sempre pergunta os detalhes. Como você conseguia que eles fossem sozinhos, voltassem, tudo isso que você está contando? Tinha um jeito de você lidar com eles que tudo isso funcionava?
R - Porque eu confiava no mais velho. E o menor ia obedecer a ele. E assim... Sempre tinha uma mãe que ia e que vinha junto, sabia do meu sofrimento com o Rafael, como elas diziam - e como de fato é um sofrimento - e o pai que não era muito ligado naquela situação. Ele ia trabalhar, ele trabalhava na Vila Mariana, saía cedo, então dava aquela mãozinha, aquele jeitinho. Não era todos os dias que eu saía com o Rafael, era duas, três vezes por semana. Então, nessas duas, três vezes por semana... Por exemplo, segunda, quarta e sexta, então ia dando aquela olhadinha. E eu confiava. Se falasse: “Não abre a porta”, eles não abriam. Hoje eu cito para as minhas netas: “Vocês não obedeceram o quanto meus filhos me obedeceram e o quanto eles até hoje obedecem”. Entendeu? Elas dizem: “Hoje é diferente”.
P/3 - Quer perguntar, Júlia?
P/2 - E nos dias em que você ficava em casa com eles, como era a rotina? Eles eram unidos? Ajudavam você?
R - Sempre foram unidos. Quando eu ficava com eles, falava: “Vou levá-lo à escola”. O Mário Sérgio: “Não, não precisa a senhora me levar, eu vou sozinho, só leva o Emerson”. Porque o Emerson sempre foi, e hoje é o meu xodó. O mais velho está distante agora. Ele não, ele mora perto de mim e é o meu xodó. Aí eu ia levá-lo na escola, ia levando o Rafael no carrinho, ia buscá-lo, fazia o que eles... Por exemplo: “Quero bolinho de chuva”. Aproveitava que aquele dia estava em casa, fazia, olhava a roupa deles, olhava o caderno. Sempre tentando agradá-los, mas sempre eles sentindo a minha falta. Diziam, eles falavam.
P/1 - Como era essa conversa com eles? Quando eles falavam? Em que momento eles falavam que sentiam sua falta?
R - Por exemplo, estava no quarto com o Rafael, eles na sala. Aí eles falavam: “Poxa, mãe, você só fica com o Rafael”. “Mas seu irmão tem problema”. “Mas que problema? Não vai sarar nunca?” E aí: “Não, filho, seu irmão vai ser sempre assim. Nós que devemos cuidar dele”. O Emerson dizia assim: “Vai, sim, meu irmão vai sarar um dia, vai brincar conosco”. Só que chegou um certo tempo em que eu tive que tirar o Emerson da escola. Porque, como eu vou dizer? Ficou difícil. Porque aí o Mário Sérgio já estava moço, ele sempre acompanhava o pai para a rua e não ficava dentro de casa comigo. Eu não tinha como pôr alguém para ficar comigo. E tinha uma necessidade dos exercícios do Rafael serem feitos em casa, porque também não tinha, financeiramente, como pagar uma fisioterapeuta para vir. E a AACD lhe ensinava e você tinha que fazer em casa. Então eu falei com o Emerson: “Emerson, você vai ficar um ano afastado da escola”. Ele: “Mãe, fico sim”. Foi em cima do mês dez, onze anos, coisa assim. Aí ele ficou... Ficou um ano sem ir para a escola. Hoje não ficaria, hoje o governo bateria na minha porta. Então ele me ajudava a fazer exercício com o Rafael, ajudava a dar banho, que o Rafael já estava ficando maior.
P/3 - Como era a relação deles nessa época? Você lembra de algum momento, alguma coisa que o Emerson falou?
R - O Emerson, sempre o que ele falava, ele dizia: “Mãe, meu irmão vai andar, vai falar igual a mim”. Ele sempre tinha esse pensamento positivo. Por quê? Eu acho que sentia necessidade de ficar liberto do irmão, porque ele tinha que ficar ali preso, com o irmão na cama, ou na sala, para eu ir fazer o almoço, para eu ir passar uma roupa, para eu limpar uma casa, lavar. Então, ele tinha que ficar do lado do irmão, porque o irmão convulsionava muito. E quando convulsionava, tinha que virar de lado. E eu já dei essa responsabilidade a ele cedo, que era o que mais prestava atenção no irmão e o que mais queria interagir com o irmão, entendeu?
P/3 - Teve alguma vez que você se surpreendeu com essa interação entre eles? Que você não esperava?
R - Ele tentando fazer o irmão andar.
P/3 - Conte como foi.
R - Ele estava lá no quarto com o irmão e eu esqueci. Falei: “Nossa, estão tão quietos, o Emerson e o Rafael, que eu vou ver”. Aí saí correndo. Quando eu cheguei, ele estava pelejando, tinha amarrado a fralda no Rafael, para o Rafael andar. E ele amarrando a fralda e pelejando para o Rafael andar. Só que o Rafael caído lá, eu comecei a rir, falei: “Emerson, você não consegue. Para que você fez isso?” Dei aquele grito, ele se assustou, pegou o irmão no colo e colocou na cama de novo.
P/3 - Quer perguntar, Júlia?
P/2 - Tem algum momento do mais velho que, por ser mais próximo do pai, algum momento marcante dele com o mais novo, que você lembra?
R - Não, porque ele sempre se distanciou e é distante, ele é distante do irmão.
P/3 - Você diz que ele ficava mais com o pai. E durante a semana? Como é que acontecia? Como é que funcionava ali? O pai ia trabalhar...
R - O pai ia trabalhar, ele ia para a escola e já foi logo procurar emprego, para fugir.
P/3 - E arrumou?
R - Arrumou. Ele foi trabalhar em farmácia, de entrega de medicamento. Que naquela época podia trabalhar cedo. Depois desse da farmácia, ele foi trabalhar na Seleta. E sempre foi se distanciando de casa, sempre distanciando. Tentou morar sozinho, aí voltou de novo. Mas casou cedo, logo, para sair do problema.
P/3 - Que idade ele tinha?
R - Ele estava com dezenove anos.
P/3 - Celma, você falou que o Rafael foi até cinco anos, depois até dez. Fale um pouco dessa fase, algum momento também que sempre a gente fala que foi marcante, sempre tem um motivo mais forte. Sempre foi difícil, mas tem um momento assim...
R - Do Rafael, o momento mais feliz da minha vida - e marcante - foi quando o Rafael começou a falar. Eu cheguei com ele da AACD, sentei no sofá e fui fazer o mamá dele. E o Emerson sentado do lado, para ele não cair. Aí, quando eu vinha com o mamá, ele falou: “Féia”. Porque até hoje ele me chama de velha, ele não chama de mãe. “Féia, dá!”. E aí para mim, aquilo... Porque os médicos disseram que ele não ia falar. Para mim aquilo foi, Nossa, como eu chorei, como eu abracei, foi muito importante para mim. E foi importante quando ele começou a andar também. Tudo foi assim. Ele começou a andar e falar com onze anos.
P/3 - Conte esse dia em que ele começou a andar.
R - Eu vinha subindo com ele da instituição que tem ali na Bandeirantes, AB. Não, é uma instituição que ficava no Escoteiro. Ele fez a fisioterapia e tudo, aí eu vou saindo com ele no colo. Eu falei: “Rafa, vamos andar com a mamãe, você já está mocinho, a mamãe está cansada”. Aí desci. Quando eu desci, que eu peguei na mãozinha dele, ele começou a dar os primeiros passos. E aí depois deu aquela carreirinha e parou. Eu falei: “Que legal, mamãe, você está andando, mamãe”. Aí o abracei. Daquele dia ele deslanchou a andar, para mim foi importantíssimo. Aí eu quis ir para a AACD para falar para o doutor Eduardo: “Está vendo? O senhor queria deixar meu filho lá internado, oh meu filho andando. Você disse que não compensava lutar por ele, que ele ia vegetar, ele já está falando, agora já está andando. Não, meu filho vai ser feliz, sim”. E aí eu procurei investir, investir, procurei levar nos lugares.
P/3 - E ele continua andando?
R - Continua andando. E quando eu conheci o pai da Luciana, que ele foi para o GAPS, aí ele abraçou a causa. Com um ano que eu estava na Luciana, aí começou o atrito comigo e com o pai, maior ainda. Porque aí eu comecei a ver a necessidade do pai. E o pai não participar, não querer participar daquilo, eu falei: “Não”. Chamei os filhos, o Emerson e o Mário Sérgio, e falei: “Eu vou me separar do pai de vocês”. O Mário Sérgio não ligou, não deu a mínima. O Emerson só disse: “Mãe, eu acho que está na hora de a senhora fazer isso mesmo, porque meu pai não nos ama e não ama o Rafael”. Aí eu me separei. Mas separei assim, rapidinho. Quando ele voltou do serviço, a mala dele estava pronta. Eu continuei lá no GAPS, o pai da Luciana abraçou o Rafael, fazia tudo pelo Rafael. Depois que o Rafael estava com quinze anos, a gente foi fazer exames para ver, porque não era só PC. Aí a gente viu que tinha algo diferente, porque ele tinha os TICs dele, ele tinha assim... Ele não olhava a gente de frente, ele sempre de vista baixa. Fui para as Clínicas para fazer o exame, aí lá diagnosticou que ele era autista. Aí vai outra batalha, porque descobrindo que era autista, ele podia ficar no GAPS, como ele está no GAPS até hoje, às quartas-feiras. Mas ele precisava de uma escola para adaptação, para socialização. Aí eu fui para a Delegacia de Ensino, conversar. Sempre o “seu” Adib e a Luciana me acompanhando para fazer os exames e para poder conseguir a escola. Fui para a Secretaria da Saúde, a Secretaria da Saúde, Secretaria de Ensino de novo, até sair a vaga. Saiu a vaga para o Rafael, para a escola, aos dezenove anos.
P/3 - Celma, a gente está retomando. A gente vai voltar um pouco. Quando o médico perguntou para você: “Alguém na família tem...”, o que foi?
R - Se tem alguém na família com retardo. Eu disse: “Até o momento, que eu conheça, não. Não tem”. Ele disse: “Porque eu vou direto ao assunto: seu filho é retardado. Ele tem lesão cerebral, ele vai vegetar”.
P/3 - E alguém, alguma vez, nos exames todos, falou por que aconteceu de ele ter essas características?
R - Eles dizem que é falta de oxigenação. Porque era para eu ter um parto no dia sete, eles me fizeram no dia quatorze. Então assim... Como eu não tinha parto normal, passou muito tempo para nascer. Então ele nasceu com esse diagnóstico, com falta de oxigenação.
P/3 - Tinha estourado bolsa, essas coisas?
R - Estourou tudo, tinha estourado bolsa, tudo, e eles não faziam a cirurgia, esperando que tivesse parto normal.
P/3 - Quanto tempo ele ficou assim, depois que estourou a bolsa?
R - Sete dias. Eu estava quase em (eclamp) [01:14:08].
P/3 - Entendi. E sobre o autismo, eles falaram alguma coisa em relação a isso?
R - O autismo foi gerado de um mau tratamento, porque como um PC e muita medicação, muita convulsão, ele tinha convulsão muita, muita mesmo - vinte e oito vezes ao dia - ele foi cobaia no laboratório (Skib) [01:14:35], porque não tinha medicamento nenhum que controlasse essa convulsão.
P/3 - Isso pode ter...
R - Causado o autismo.
P/3 - Isso já foi falado?
R - Já foi diagnosticado.
P/3 - E você disse que ele foi... Essas convulsões... Conte um pouco, assim, como você conseguiu lidar com isso no começo, quando você não conhecia esse processo? Aí você disse que esses medicamentos... Ele virou até - você falou - cobaia de um laboratório. Esse processo, conte como foi.
R - Bom, como ele não controlava as convulsões, foi para as Clínicas, foi para a AACD, foi para o Hospital São Paulo. Um belo dia eu estava vindo das Clínicas, dentro do ônibus, ele começou a convulsionar. Como, muito curioso, (inint) [01:15:32] para cima, eu pedi ao motorista para parar e desci. Porque aí eu já estava sabendo lidar e já não tinha mais aquele desespero de gritar, de correr, pedir socorro. O motorista parou, eu desci, coloquei-o na minha perna e estava olhando para ele convulsionando. Aí, minhas lágrimas caindo. Quando eu olhei, surgiu um senhor de branco, olhou para mim e disse assim: “Eu vou te dar o nome de uma médica que ela vai cuidar dele”. Eu falei: “Moço, quem é você?” Ele falou: “Não interessa quem eu sou, eu já passei com ela e ela vai cuidar dele”. Aí me deu o telefone, que é a doutora Marisa Gonçalves. Ela cuida do Rafael até hoje. Eu saí dali, eu já fui... Porque assim... Eu vou daqui para onde for que tiver que ir, eu vou e o levo atrás, depois é que eu vou pensar. Aí, fui para o consultório dela, cheguei no consultório dela sem marcar, sem nada, entrei e ela falou: “Você fica por último para eu lhe arrumar um encaixe”. Ela me encaixou, ali comecei a contar toda a história de novo - como o Rafael nasceu, quantas convulsões ele tinha, aonde eu já tinha passado, todos os medicamentos que eu já tinha dado. Ela falou: “Olha, eu vou tirar toda a medicação dele e fazer uma oxigenação nele, no balão. Vou interná-lo no Hospital Santa Catarina”. Eu fui ao Hospital Santa Catarina com ele, ela internou, fez uma oxigenação em balão nele, me deu alta em três dias, eu fui para casa. Só que, chegando em casa, ele começou a convulsionar de novo. Eu liguei para o consultório, ela me atendeu, falou: “Celma, o laboratório (Skib) [01:17:31] tem uma medicação nova. Só que você assina para ele ser cobaia no laboratório?” Eu falei: “Não tem problema”. Eu assinei, eu queria controlar. Aí fui lá no laboratório, ele fez todos os testes e aí encaixaram o Treliptal e o Frisium para ele tomar.
P/3 - Você não ficou com medo que desse alguma...
R - Nada. Eu queria que ele saísse daquilo. È horrível. A pessoa fica toda torta, debatendo, debatendo, volta, torna a voltar, debatendo de novo, você não sabe se ele vai voltar, cada dia piorando, lesando mais o cérebro. É muito difícil para a mãe, eu estava danada, estava num jogo para perder ou para ganhar. Aí fui no laboratório, ele fez o teste, fez a medicação, Treliptal, Frisium. Ele começou a tomar. Em uma semana ele não convulsionou. Aí eu liguei para ela: “Está sem convulsão”. Ela continuou a medicação. “Mas vou te preparar, ele vai ter que convulsionar de qualquer jeito, porque isso é uma descarga elétrica, se ele não fizer essa descarga, ele vai ficar irritado, ele vai ficar agressivo, é como se tivesse que chover, estivesse fechando para chover e tem que chover, porque senão não refresca”. É como eu digo hoje: eu já tenho a Medicina sem precisar estudar. Com seis meses ele teve a convulsão. Ficou seis meses sem convulsionar. Que para mim aí já foi desespero, porque para mim... Eu sabia que vinha, mas já veio diferente.
P/3 - E ele foi ficando diferente?
R - Ele foi ficando diferente. As convulsões... Não tinha as convulsões, ele ia ficando mais calmo, ele dormia tranquilo, ele comia tranquilo. Porque, às vezes, ele tinha a convulsão comendo. E aí o sufoco meu para tirar a comida da boca dele, para ele não aspirar aquilo para o pulmão.
P/3 - Ele não ficou mais nervoso?
R - Não, ele ficava mais calmo, mais tranquilo, porque não tinha convulsão, não tinha dor de cabeça, a convulsão dá dor de cabeça, incha o cérebro. Quando ele teve a convulsão, com seis meses, que ele terminou de ter a convulsão, eu falei: “Doutora Marisa, o Rafael convulsionou e ele vai convulsionar de novo, porque o olhinho está virando”. Ela: “Observa quantos minutos e observa a unha”. Porque a unha ficando roxa, está dando parada.
P/3 - E aí o que faz?
R - Você tem que acionar o primeiro-socorro imediato, imediato, imediato. É vida ou morte. Aí eu observei, deu a segunda, deu a terceira e voltou ao normal, graças a Deus. E foi nesse processo. Até hoje, que ele está com trinta anos, ele tem que convulsionar pelo menos duas vezes por ano. Mas é tranquilo, é uma criança assim, você não acredita, se olhar para ele, que é uma criança que tem autismo e que tem o PC. Ele não aprendeu a ler, mas ele conhece todas as letras, ele sabe todo lugar, porque ele conhece todos os lugares, ele gosta do que é bom. A maior dele há três meses atrás: o irmão falando: “Outback, Outback, Outback”. Ele virou para o irmão e falou assim: “Isso é um restaurante?” O irmão: “É”. “Mas é francês?” O irmão dele disse: “Não”. “Pois eu quero, então, ir lá conhecer. Porque eu sou apaixonado por um restaurante francês”. O mundo do autismo. O mundo deles é brigar, querer conhecer mais, mais e mais. Então, voltando que eu conheci a Luciana...
P/2 - Onde foi que você conheceu e como foi que você percebeu que ela seria a pessoa que iria lhe ajudar?
R - O pai dela. Eu conheci o pai dela.
P/2 - Onde? Como?
R - Numa ONG. Porque assim... Sempre que tinha algo, tinha uma ONG para as crianças especiais, eu queria me infiltrar para eu saber lidar, entendeu? E tinha uma ONG ali no Brooklin, que o pai dela estava lá nessa ONG e eu fui lá - tinha uma festinha e eu fui com o Rafael. E lá o “seu” Adib se aproximou, começou a conversar comigo e tudo, e eu comecei a falar com ele. Aí ele falou que tinha uma ONG, se eu gostaria de levar o Rafael. Eu falei: “Levo”. Aí fui levar o Rafael. E a Luciana, ela dava aula no Essência, que hoje é onde o Rafael é aluno. Ali na (inint) [01:22:46]. O Rafael começou a frequentar lá no “seu” Adib, na ONG, que, antigamente, ficava na Giovani Gronchi.
P/3 - Como é o nome da ONG?
R - Na época era...
P/3 - Não precisa lembrar. Eu achei que fosse a atual. Não precisa lembrar.
R - É a mesma, só que ela mudou de nome, porque o pai dela faleceu, vou chegar lá.
P/3 - Conte a história.
R - (ACIF) [01:23:24]. Como o Rafael tinha uma necessidade fono e de ludoterapia... Lá tinha fono e não tinha ludoterapia, e a Luciana é ludo, ela é psicóloga... Então ele falou: “A minha filha vai vir aqui só para atender o seu filho, porque aqui na ONG não tem, mas fica entre parênteses, não é para comentar”. Graças a Deus sempre tive esse carinho com o pessoal. Aí, a Luciana começou a ir lá todas as terças atender o Rafael na parte de ludoterapia. Ficou, depois o pai dela adoeceu. O pai dela precisou afastar-se e ela foi cuidar da ONG. Quando o pai dela faleceu... O Rafael acho que estava com uns quinze anos quando o pai dela faleceu. Estava na época de festa, de Natal, de Ano Novo, ele era o presente para o Rafael - radinho, passear com o Rafael, levar Rafael num shopping. Para ele, isso era o que ele tinha que fazer, entendeu? Ele pegava o Rafael... Eu ia para a ONG, ele falava: “ Espere-me aí que eu vou sair um pouco com o Rafael”. E ele saía sozinho com o Rafael. Ia no shopping, comprava presente para o Rafael, no Natal, vinha. Quando ele faleceu, a Luciana ficou direto, aí fechou (CIF) [01:25:02] e abriu o GAPS, que é uma Associação de mães, com a Luciana, aonde é hoje. O Rafael continuou a ir para lá, só que o Rafael precisava de uma escola. Nesse tempo, eu já precisava também trabalhar para mudar minha cabeça, porque aquele foco para mim, eu não... Já não tinha mais vontade de lidar com aquilo. Queria, mas já estava um sofrimento para mim aquilo. Aí foi onde a Luciana indicou a Essência, porque ela já tinha trabalhado na Essência. Ela falou: “Celma, é Essência ou escola de autismo. Vamos ver se encaixa o Rafael”. Fiz os exames no Hospital das Clínicas, primeiro tem que passar lá no Hospital das Clínicas, fazer o exame, depois levar na Secretaria de Educação, depois levar na Secretaria da Saúde, você tem que fazer uma carta do seu próprio punho, dizendo qual é a sua necessidade da escola. E eu escrevi, dizendo a minha necessidade, que eu precisava trabalhar, que o Rafael não tinha condições de ficar na ONG uma vez, duas vezes por semana, que isso para ele também não estava resolvendo, que ele estava ficando agitado e que ele precisava socializar. E que só lá, não dá para socializá-lo. Aí saiu a bolsa para ele no Essência, ele começou a frequentar o Essência. E está até hoje. Só que assim... Ler e escrever ele não quer. Mas ele participa das culinárias, ele ajuda as outras crianças que entram, ele dá apoio, Nossa, eles ligam para mim às vezes emocionados pelo jeito que ele recebe, pelo jeito que ele cuida.
P/1 - Tem alguma história, por exemplo, de como ele recebeu alguém?
R - Tem história de lá de dentro. Lá, tem um menino que tem vinte anos. E assim... Às vezes vai algum brinquedo lá na escola para as crianças interagir, porque lá fora para interagir de cara é impacto para eles, eles não vão. E este pula-pula, o menino que entrou no pula-pula, pulava mais alto que o pula-pula, que eles estavam vendo a hora de cair para fora. E nenhum dos professores conseguia, os outros alunos não conseguiam. Aí o Rafael falou lá da sala: “Espera aí que eu já vou, já resolvo”. Entrou no pula-pula, abraçou o menino, sentou o menino no colo dele e falou: “Vamos descer, você é meu amigo, vamos descer comigo”. Desceu com o menino, colocou o menino na sala, o menino acalmou, eles já tinham ligado para a mãe do menino para vir buscar e quando a mãe chegou, que viu tudo calmo, o menino na sala de aula, perguntou o que tinha acontecido. A diretora levou-a para a diretoria e falou: “O Rafael fez assim, assim, assim”. Ela chamou o Rafael, que até aí ela tinha uma distância com o Rafael, porque achava que o Rafael era protegidinho da escola, e abraçou o Rafael. E me ligou: “Nossa, Celma, estou muito feliz, porque aconteceu... Na escola, o que aconteceu... O Rafael foi o único que conseguiu controlar o Rian”. A diretora também me ligou emocionada e disse: “Nossa, Celma, foi surpresa para nós, porque a gente não sabia como o Rafael ia agir. Ele gritou lá da sala: 'Eu vou resolver'. E veio e resolveu. Isso mostrou o quanto vocês foram importantes na vida dele, o que vocês passaram para ele, que é o que ele está passando para a gente agora”. E é assim o Rafael.
P/1 - Você falou que ele gosta de coisa boa. Você deu o exemplo do Outback, mas tem alguma coisa que ele gosta que você ficou surpresa quando descobriu?
R - Um tênis. O irmão dele chegou em casa calçado um tênis...
P/3 - Qual irmão?
R - O Emerson, que é o irmão dele hoje. O Emerson. O mais velho, assim... É bem afastado. Tem cinco anos que não vai em casa. Então é o Emerson. Aí chegou com um tênis em casa, da Adidas. Ele olhou e falou assim: “Nossa, gordo...”. Porque ele não chama... “Nossa, gordo, eu quero um tênis igual ao seu”. Aí o irmão dele: “Mãe, mas que moleque. Como é que ele quer um Adidas? Rafael, como é que você quer um Adidas?” “Porque é muito lindo, eu quero um tênis igual ao seu”. Aí o irmão comprou o tênis. É tanto que esse tênis... Ele dormiu com o tênis, na cama, com ele, do lado dele. E ele tem o tênis até hoje, deve ter uns cinco anos que ganhou esse tênis. Ele vai para a escola, tem o maior cuidado, ele chega, ele limpa, põe lá do lado dele. Esse copo aqui, isso aqui não estaria mais aqui, se ele estivesse aqui. Ele tira, ele não gosta de ver nada fora do lugar.
P/2 - Organizado.
R - Super organizado.
P/1 - E do seu filho mais velho, que faz cinco anos que não vai na sua casa, teve alguma conversa marcante sobre essa situação, que você teve com ele, e alguma situação, assim, que marcou mesmo a relação de vocês, entre ele e você e entre ele e o irmão mais novo?
R - O Rafael, teve sim. Porque já rapaz, eu fui conversar com ele, falar com ele: “Você não pode ser assim, desligado do seu irmão. Você precisa dar assistência”. Aí ele: “Meu jeito é esse e não tem outro jeito. Eu não sou obrigado a estar ligado nele”. Eu falei: “Tudo bem”. E ele comprou um carro e chegou em casa, estacionou o carro. O Rafael virou para ele e falou assim: “Dida...”. Porque todo mundo tem apelido. “Dida, eu quero dar uma volta no seu carro”. Ele falou assim: “Fala com seu pai para comprar um carro para você dar volta, que no meu carro você não vai dar volta”. Você como mãe... Eu disse para ele: “Ótimo, ele não vai dar volta no seu carro, só que você tira o seu carro da porta da minha casa e você também vai junto com seu carro”. Pronto. Então ele foi. Só que hoje ele é pai, ele tem duas filhas. A mais velha tem autismo. Leve, leve, leve, muito leve, que só a gente que sabe e o médico, que me chamou quando nasceu, para poder conversar comigo. Só que ele não aceita. Ele não aceita. Ela estuda no Colégio Adventista, teve que operar as pernas, porque além do mais ela nasceu assim, mas ele na dele, eu na minha. Ele respeita meu espaço, eu respeito o espaço dele.
P/2 - Você se relaciona com as netas? Como é?
R - Com essas aí não.
P/2 - O Emerson tem filhos também?
R - O Emerson tem. Uma de dezesseis e uma de três. Me relaciono muito bem, me relaciono muito bem com o Emerson. O Emerson é o pai do Rafael hoje, o amigo, o irmão, tudo.
P/3 - Ele mora perto? Você falou.
R - Mora perto.
P/3 - As netas ficam muito na sua casa?
R - A mais velha mora comigo.
P/3 - Como foi essa decisão?
R - Foi assim, meu exemplo. Ela sempre ia dormir comigo, sempre estava comigo. Aí um dia chegou para o pai e para mãe e falou assim: “Eu vou morar com minha avó”. E mora comigo. Ele curtia, tudo, ela. Ela vai na casa dela, mas ela tem o quarto dela em casa, ela estuda em Campo Belo, estuda o dia todo, daí ela entra... Das sete às cinco. Mas tudo o que ela quer é comigo, não é com a mãe.
P/3 - Que idade ela tem?
R - Vai fazer dezesseis.
P/3 - E ela e o Rafael?
R - Otimamente bem os dois. Rafael dorme no quarto com ela, porque ele não quis ir para o quarto dele mais e ela também não deixou. Os dois, assim, ele fala: “Nêga, a internet caiu, arruma para mim”. Porque ele pede tudo, eu acho que devido a ter sido criado assim. Mas ele sabe mexer. Mas chama ela. Ele vai comer qualquer coisa: “Nêga, eu guardei um pedaço para você”. Então não é tio e sobrinha, parece que são dois irmãos.
P/3 - E faz tempo que ela mora lá com vocês?
R - Desde os quatro anos.
P/1 - E como é sua relação com a sua nora? Com a esposa do Emerson?
R - Ótima. Bem, tranquila. Ela não tem mãe. Então assim... Ele, quando casou, já disse: “Você tem uma bagagem, tem minha mãe e meu irmão”. E nos damos bem, bem mesmo. É igual mãe para filha, o que eu tenho que falar para ela, eu falo. Eu ia mandar foto dela aí, depois eu falei: “Não, deixa eu cortar você”. Ela falou: “Está bom, está bom, eu não faço parte da família, pode deixar”.
P/2 - E como é a sua relação com seu ex-marido, e dele com o Rafael?
R - Minha nada, Rafael nada. Eu cortei perante o Juiz. Porque toda vez que ele visitava o Rafael, fazia mal para o Rafael. Rafael tinha convulsão. Então assim... Se eu não posso te dar uma pensão, eu te dou carinho; se eu não te dou carinho, eu não te dou nada. Então, ele não visita o Rafael, o Rafael não visita ele. Ele tem outro casamento, tem uma filha. E o Emerson também não tem. Vou chegar logo: não tem relacionamento nenhum com ele porque, como ele disse na infância: “Mãe, meu pai não ama o Rafael, ele não nos ama, então a decisão é sua”.
P/2 - Depois que você se separou dele, porque você estava só em casa, sem trabalhar, como que você cuidou financeiramente da casa?
R - Eu e o Emerson. O Emerson, do que ele ganhava, ele pagava a água e a luz.
P/3 - Ele trabalhava em quê?
R - O Emerson começou em farmácia, depois ele foi para mercado e depois foi para conferente do Bradesco. Depois ele trabalhou no laboratório (Skib) [01:36:00], que ele é um excelente químico, só não exerce a profissão mais hoje. E assim a gente ia dividindo as coisas.
P/1 - Ele se formou? Estudou?
R - Estudou, formou em Química.
P/3 - E você diz que não dava nem para trabalhar fora. Você arrumou um trabalho?
R - Depois eu arrumei um trabalho.
P/3 - Em que época, assim, que você conseguiu? Quando você se separou?
R - Quando eu me separei não dava. Depois.
P/1 - Quando você se separou, o Emerson já trabalhava?
R - Já. O Rafael já tinha uns dezoito anos, já tinha muito tempo que eu estava separada já.
P/3 - Que você começou a trabalhar? A gente queria entender assim, que quando o pai deles, seu marido, saiu de casa, ele tinha que idade, o Emerson? O Rafael, aliás.
R - Rafael? Já tinha doze. Espera aí. Deixa eu ver. Hoje a filha dele está com dezoito anos. Ela tinha um ano quando nós separamos.
P/3 - Ela?
R - A filha do meu ex-marido.
P/3 - Porque ele já estava com outro relacionamento?
R - Eu não sabia, mas já teve uma filha. Ela estava com um ano.
P/3 - Você falou que ela já está moça.
R - Está com dezoito anos.
P/3 - E como foi para você, realmente, se sustentar financeiramente até o Rafael ter dezoito? Como que você conseguiu?
R - Não, isso assim, eu tinha a minha família, eu tinha o LOAS do Rafael, que é o que o governo dá. E como a gente não pagava aluguel, a gente tinha que aprender a lidar com isso aí.
P/3 - Vocês não pagavam aluguel?
R - Não. Porque a gente tinha a nossa casa.
P/3 - Essa parte a gente pulou.
P/1 - Pulou.
P/3 - Está certo.
R - Então a gente tinha que aprender a lidar com isso aí. Aí foi crescendo, que ele foi trabalhando, foi ganhando melhor, o Emerson, e eu também. O Rafael ficou na escola o dia todo. Aí eu vendia roupa para fora, eu fazia bolo, essas coisas, ia fazendo os orçamentos da casa.
P/2 - Teve um momento em que você disse que depois que se separou foi quando você começou a criar as suas amizades. E, nesse momento, o Rafael também já estava na escola. Então... Como foi a sua relação consigo mesma? Como você começou a fazer essas amizades, a aproveitar a sua vida?
R - Não, as minhas amizades, assim... Eu batia papo, se eu fosse almoçar com alguém... Eu ia esperar o Rafael vir da escola, ou se ele estivesse na ONG, eu esperava terminar para poder ir comigo - eu nunca separei Rafael das minhas amizades e dos meus passeios. Ele sempre estava incluído no meu passeio. Porque eu achava que era a forma de eu socializá-lo também.
P/3 - E suas amizades você fez onde? Essas três.
P/1 - Você citou três amigas.
R - A Maria Lúcia?
P/1 - As três.
R - As três: a Maria Lúcia, Aline, a Cida. A Aline? Foi do nada. Assim... A gente começou a conversar e ela sendo minha vizinha, mas eu não era amiga dela. Era vizinha na casa dela, eu na minha. A gente começou a ser mais íntima, a conversar, ela engravidou, foi mãe de gêmeos, aí que a nossa amizade ficou forte, de sentar, tomar café uma com a outra, bater papo, ter aquele carinho - a gente tem um carinho muito grande. A Cida foi no Posto de Saúde. Eu fui no Posto de Saúde, aí fui até levar o Rafael para tomar vacina. Eu estava descendo, ela falou: “Você mora por aqui?” Eu falei: “Claro, sou sua vizinha”. Falou: “Nossa, eu não sabia que você era minha vizinha, eu nunca te vejo”. Eu falei: “Porque às vezes eu entro e saio dentro de casa”. Mas vizinha, um quarteirão. Ou ela tinha que ficar na calçada para ficar me vigiando, ou eu tinha que ficar no portão para vigiá-la. Entendeu? Aí hoje a gente é vizinha há muito tempo e se tornou, assim, amiga de bater papo. Se ela for em algum lugar, me convida para ir; se eu for, vou convidá-la. E a Maria Lúcia? Maria Lúcia é uma história bem diferente, Maria Lúcia, ela começou a frequentar o GAPS. Ela era casada. Só que o marido dela era assim todo grosso com ela e o menino, e eu me lembrava do Gilberto. Teve uma vez que ela chegou no GAPS e o marido dela desceu-a do carro e foi embora, assim, de uma vez. E ela entrou. Eu falei: “Depois que você deixar o Luiz Paulo lá, vamos conversar?” Ela deixou o Luiz Paulo na sala, voltou, a gente sentou cá fora, eu comecei a conversar com ela. Falei: “Nossa, como é que você aguenta um cara grosso desse jeito?” Já fui separar a mulher. “Porque você precisa cuidar do seu filho. Agora, você fica nervosa... Você vê, ele saiu, você puxou o menino, foi lá para dentro. Maria Lúcia, isso não é vida, não, menina. Você tem seu apartamento, você dá aula, para e pensa”. Eu falei assim, falei assim, mas a dita cuja vai lá e fala para o marido que eu dei o conselho para ela. Ele proibiu de a gente conversar. Só que ela não deixou de falar comigo, continuou conversando. Um dia, eu estava na rua, ela vinha para a ONG e eu estava indo. Aí ela parou o carro para me dar uma carona. Entrei no carro e o cara, atrevido, falou para mim: “Sabia que eu não gosto que você fale com a minha mulher, nem ande com a minha mulher?” Eu falei: “Cláudio, mas por quê?” Cínica eu. Aí ele disse assim: “Porque você fica dando maus conselhos para a minha mulher”. Falei: “Se eu fosse sua mulher, já tinha me separado de você há muito tempo”. Foi a última vez que eu conversei com ele. Cheguei no GAPS, desci, obrigado, falei: “Maria Lúcia, quando você estiver com o seu marido não me dê mais carona e acabou por aqui. Você e Luiz Paulo eu abraço, te quero muito bem, a Juliana”, que hoje ela é instrumentadora cirúrgica. Resumindo, Maria Lúcia chegou umas três semanas no GAPS: “Estou separada”. Falei: “Ah, acredito”. “Poxa, Celma, o Luiz Paulo estava convulsionando e ele brigando comigo, xingando, que a culpa era minha”. Eu falei: “Está vendo, Maria Lúcia, quando eu falei com você?” “Está bem, amiga, dê a mão aqui. Vamos, pode crer que eu estou junto com você”. E ficamos amigas, de ela me ligar, se precisar ir ao médico eu vou, fico com ela. Se ela precisar ir ao médico eu vou com ela. No GAPS, o que ela precisar e depender de mim, eu estou ali junto com ela. Se ela me ligar uma hora da manhã, quiser falar, eu ouço; se eu ligar para ela, ela ouve. Se tiver que brigar, falar: “Não me liga que eu estou com raiva de você hoje”, não me liga. E é essa a nossa amizade.
P/3 - Você disse que carregava o Rafael no colo. Até grande, até uns onze anos. Essa coisa de ter que fazer tudo isso, pensando um pouco na cidade, que você chegou aqui, tem algum momento assim que foi também importante, de você contar para a gente, você tendo que carregá-lo, levar para lá, levar para cá?
R - Um momento importante para mim foi essa hora que ele andou.
P/3 - Mas antes de ele andar, que você tinha que pegar ônibus com ele.
R - Era sempre difícil. O importante era andar, porque é difícil. Porque eu estava no ônibus cheio, eu estava ansiosa, com medo de ele convulsionar. Se eu estava andando, eu estava cansada porque não tinha como fazer. De outro lado, eu carregava uma bolsa de roupa, porque eu estava naquela expectativa de que ele ia convulsionar e eu tinha que trocar a roupa - porque faz xixi, essas coisas. Então assim... O meu melhor momento e de toda alegria disso tudo foi quando ele começou a andar. Para mim tirou o peso das minhas costas.
P/1 - Qual o momento em que você se sentiu mais forte?
R - Quando ele começou a falar e andar. Que eu vi que tudo que eu estava fazendo estava tendo retorno para mim.
P/3 - E depois que ele falou essas primeiras palavras?
R - Ele deslanchou a falar. Pedia água. Ele só não sabe explicar onde está doendo. Ele fala: “Estou com dor”. Aí você precisa procurar com ele aonde é, pegando, para ele poder falar aonde é a dor. Entendeu? Mas ele pede tudo - isso está ruim, isso está bom.
P/3 - Ele expressa os sentimentos?
R - É muito difícil ele expressar. E esse tempo todo, acho que o Rafael chorou duas vezes. Mas se ele estiver muito confuso, ele com a Luciana se entendem, ela chega e fala para mim: “É isso, isso e isso”. Agora, comigo mesmo, eu não consigo tirar dele isso.
P/3 - E você estava falando - a gente deu um intervalo - quando você quis colocá-lo numa escola. Uma escola que não é essa Essência. Foi outra escola.
R - Foi. Na Ciranda.
P/3 - Era escola pública?
R - Não, era uma escola assim, a gente pagava naquela época cem reais. Eu acho que o Rafael estava com treze para quatorze, quinze anos, alguma coisa assim. Porque eu queria colocá-lo numa escola e acabou sendo a Ciranda. Porque era assim: eu punha, mas eu mesmo tirava, porque não era aquela ali que era para ele, porque eu vim com situação pior.
P/3 - A Secretaria de Educação que encaminhou para essa escola?
R - Encaminhou. Abriu um processo, entendeu? Você tem que abrir e aí você fala a escola que você quer, você vai conhecer a escola e tudo. Porque você conhece seu filho. Por exemplo, a Paulicéia. A Paulicéia é uma escola boa. Para o meu filho não é, porque ele é convulsivo e lá tem coisas perigosas; se ele convulsionar, pode bater a cabeça...
P/3 - Você foi aprendendo isso...
R - Com o tempo e com lidar com as ONGs que eu frequentava, minha curiosidade.
P/3 - E você conseguia avaliar uma escola.
R - Porque eu queria meu filho melhor, eu não queria meu filho como as outras crianças, entendeu?
P/3 - Como assim?
R - Por exemplo, o Rafael, ele babou, eu consegui cortar a baba dele. Tem criança que não consegue, a mãe não luta. E eu falo: “A mãe é você” - eu sou direta. “É sua a culpa disso, não é dele; por isso, você tem que ajudar a ele”.
P/3 - Como faz isso? Como você conseguiu?
R - Eu consegui com a fono, fazendo os exercícios em casa. Por exemplo, se o Rafael estava babando. “Rafa...”. Então isso não é uma vez só. Isso, você vai fazendo de casa umas vinte vezes. Porque se você falar: “Rafael, engole a baba, por favor”. Ele vai, como se diz, constranger-se e não vai conseguir. Então, o trabalho sensorial com gelo. É uma vida. Você tem que dar uma vida para lutar com aquilo.
P/3 - E você aprendeu isso, assim, com quem?
R - Com a fono. Com a Luciana e outras fonos da AACD, fono da Clínicas, doutora Cristina. Hoje ela deve estar com seus setenta anos, ela me ajudou muito na parte de autismo, entendeu? Só que até aí não tinha diagnóstico que o Rafael era autista, mas ela me ensinava, porque eu já cheguei a ter atrito dentro de ônibus por ele babar na pessoa sem eu perceber, eu pedir desculpa e a pessoa: “Ah, você tem seu filho babão que se cuide”. “Se cuide não, eu estou cuidando, já lhe pedi desculpas. Agora, você achou ruim, eu não sei se no dia de amanhã você pode babar igual a ele, ou pior do que ele”. Eu, mãe, eu sou assim, não adianta. Às vezes, a pessoa fala assim: “Corrige, mede as palavras”. Eu falo: “Ah, minha filha, depois que já saiu não tem como medir não”.
P/1 - Teve alguma escolha difícil que você teve que fazer, levando em consideração o Rafael? Qual foi a escolha mais difícil?
R - De não namorar. Porque eu achei um namorado, só que ele me fez escolher entre Rafael e ele. “Não, o Rafael é meu filho, você não é nada meu. Se eu separei do pai dele, você... Não, meu amigo, primeiro o meu filho”. Então, estou só até hoje, graças a Deus, tranquila. Divirto-me do meu jeito, tem festa junina no GAPS eu vou, danço com os meninos... Quem dançou com o Luiz Paulo fui eu, porque ele não quis dançar com ninguém, que é o filho da Maria Lúcia. Tem zumba no Parque do Povo eu vou, danço com todo mundo, com o Rafael junto. E qual a necessidade de eu estar a par de um homem e deixar meu filho?
P/1 - Mas ainda assim foi uma decisão difícil?
R - Não foi.
P/1 - Não foi?
R - Não foi.
P/3 - Você quer perguntar alguma coisa?
P/2 - Acho que não, agora não.
P/3 - Você falou: “Eu levei para a escola, no Ciranda”. Aí, o que você observou na escola que não fazia bem para ele?
R - Porque Rafael tem rinite. E ele espirra muito. Só que quando ele espirra, ele fica incomodado porque fica no nariz, então ele procura papel para limpar. E a cozinheira falou para mim que a assistente de sala falou com ele: “Limpa você, porque eu não vou encostar a minha mão aí”. Eu marquei uma reunião, falei com a diretora, que era a Iara, falei: “Eu estou tirando o Rafael, porque ele está aqui para aprender, socializar e não para a pessoa o ficar constrangendo. Ninguém é obrigado a limpar o nariz dele, mas tem modos de ensinar: ‘Rafa, pega o papel, vamos ali, olha no espelho para você ver, vamos limpar isso aqui’. Não é nesse estilo”. “Ai, Celma, a gente vai corrigir isso”. Eu falei: “Não precisa corrigir mais, porque meu filho não vai mais frequentar aqui”. Eu podendo ou não podendo, eu sempre pus Rafael em primeiro lugar e primeira opção. Eu nunca pensei: “Se financeiramente eu não puder?”. Eu não posso, eu não tenho dinheiro, eu sou uma pessoa humilde, mas primeiro ele. Se eu tiver cinquenta reais e falar assim: “Rafael quer isso?”, é isso. Eu não vou pensar que a luz ou a água está sem pagar, eu vou fazer isso. Porque o amanhã dele eu não sei como vai ser.
P/2 - E como foi a relação do restante da sua família, suas irmãs, com você e com o Rafael nesse período?
R - Bom, eles falam que amam, mas do jeito deles. Só que eu nunca deixei Rafael com ninguém, para falar: “Vai ficar na...”. Só tem uma irmã que o Rafael ficou com ela quinze dias porque eu fiz a cirurgia de vesícula e o Emerson falou: “Mãe, não vou ficar aqui com ele. Eu vou deixar na casa da tia Siena, é férias, faz de conta que ele está de férias lá”. Mas as outras, assim: “Oi, Rafa, tudo bem? Como é que está?” A relação de como se você fosse na minha casa: “Oi, Rafa, você está bem? Tudo bem? Um abraço”. Pronto. Você vai para a sua casa e acabou-se. Porque eu me individualizei. Eu Rafael, Emerson e Lorraine.
P/3 - Que é a sua neta. Eu vou lhe perguntar isso, você responde se você quiser. Você disse: “Primeiro é o Rafael, se eu tenho cinquenta reais...”. Na relação da sua neta, do Emerson, como que funciona isso para eles? Manifestaram alguma coisa sobre isso?
R - Não. Não. Porque eles são todos assim, todos aprenderam a lidar assim. Primeiro o tio Rafa.
P/3 - E eles entendem que tem que ser assim? Eles falam por que tem que ser assim? Eu queria entender como eles sentem.
R - Eles sentem bem, porque eles fazem e sente bem, porque o Rafael retribui com carinho, entendeu? Então, eles não veem que está individualizado assim, “ah, porque Rafael é melhor”, eles não veem esse lado. Entendeu? Eles veem que está fazendo bem, que Rafael aceita bem e que fazendo bem ao Rafael está todo mundo bem.
P/3 - Você quer perguntar? É só que ele foi para a Essência e você começou a pensar: “Opa, eu quero fazer alguma coisa diferente”?
R - Quando o Rafael foi para o Essência, que eu quis fazer uma coisa diferente, eu quis cuidar de mim. Aí eu quis rejuvenescer, entendeu? Porque aí todo mundo fala assim: “Nossa, você não cortou o cabelo mais, você não pintou o cabelo, o cabelo está branco. Nossa, você está gorda”. Aí eu olhei para o espelho, falei: “Agora o Rafael fica o dia todo na Essência, eu posso fazer alguma coisa”. Aí foi onde eu passei a cuidar de mim. Às vezes até no GAPS, ir sozinha, às vezes eu ia lá sozinha, assim, para ver as outras crianças, ter meu momento de ficar lá. Ter o momento de eu deitar na minha cama, pegar um celular, olhar. Ligar a televisão. Essas coisas. Foi um momento bom para mim esse, aí foi que eu senti... Porque eu olho fotos minhas, de antes, e olho agora, eu sento que rejuvenesci por prestar atenção assim... Por exemplo, eu estou indo na rua, eu posso prestar atenção na vitrine. Antes eu passava rápido, porque Rafael está em casa, porque pode acontecer alguma coisa com Rafael. Sempre o sentimento de culpa. Hoje não, hoje eu me sinto tranquila. Também muitos anos, sessenta e dois anos. Agora ele está com quantos anos de Essência? Acho que está onze anos de Essência, dez anos de Essência, coisa assim.
P/3 - E a escola teve influência para ele?
R - Tem influência. Como eu digo, o Rafael não quis aprender a ler. Ele mesmo fala: “Eu não quero aprender a ler, eu quero ser feliz”.
P/3 - Mas no geral, assim?
R - No geral teve. Socializou bem, aprendeu a conhecer cores bem. Porque já trouxe isso do GAPS também, já tinha uma socialização no GAPS, ele sai só, com a turma do GAPS, ele sai. Para o Cata-Vento mesmo, ele foi sozinho. Eles vão em todo lugar, é o único menino do GAPS que vai sozinho. Entendeu? Então, na Essência, também foi bom porque ele aprendeu... Conheceu as letras, aprendeu a se vestir também sozinho, aprendeu a ir ao banheiro sozinho, escovar dente. Foi tudo por quê? A Luciana, ela tem as meninas que são voluntárias, mas assim... Não têm a disponibilidade o dia todo - uma pode ficar quatro horas, outra pode ficar meio período, se revezam. E para nossos filhos isso não é bom, se revezar. Eles não aceitam muito. Se um professor vai sair no final do ano, você tem que começar a trabalhar três meses com eles. Então, para mim, foi maravilhoso. O ano passado a gente teve uma reunião na Secretaria da Educação... Porque hoje eu faço parte da Frente de Mães da Essência, porque dizem que eu converso demais. Sobre idade. Porque antes ficava na Essência, na escola em si, credenciada do governo, ficava até os trinta, agora não tem idade para terminar. Acabou. Já era um sofrimento para as mães: “Meu filho vai para onde? Vou ficar com ele dentro de casa?” Então agora não, agora pode ficar mais tempo. Para mim, foi uma maravilha.
P/3 - Não tem idade?
R - Mesmo que o Rafael hoje fique em casa só, ele atende o telefone. Se eu falar com ele: “Pode falar que eu saí”, ele fala. Mas tem mães que não têm esse privilégio.
P/3 - Pode ficar agora pelo tempo que quiser?
R - Tempo que quiser, tempo indeterminado. Até o governo resolver cortar isso.
P/1 - Qual é o seu maior medo?
R - Ir primeiro que o Rafael.
P/3 - E voltando, que está tudo acontecendo, tudo está acontecendo, você sabe por que o pai da Luciana organizou essa ONG? Ele contou para você alguma vez? Ele que montou a ONG?
R - Ele montou porque assim... Ele teve um amigo que tinha filho especial. E ele, vendo a necessidade desse amigo, viu que montando uma ONG iria ajudar muita gente que tinha a necessidade que o amigo tinha. É tanto que o filho dele é professor de música, o irmão da Luciana. A Luciana, como psicóloga, e a família toda ajuda na ONG, entendeu? Os netos dele foram crescendo e se envolvendo na ONG. Então a necessidade dele foi essa, de ajudar outras pessoas que tinham necessidade. Hoje tem muitas ONGs, mas antes eram muito poucas.
P/3 - Se você pudesse falar alguma coisa dessa ONG, que foi mais importante para você. É GAPS?
R - GAPS.
P/3 - O que é GAPS? Deixa, não precisa, isso é menos importante.
R - Ela não é tão importante para mim mais, como para tantas mães, como eu digo, que não têm lugar para deixar os filhos e os jovens. Lá assim... Tem os jovens. Então eles se socializam, a ONG os leva a um passeio, proporciona um passeio para eles, que os pais não podem. Então assim... A importância dessa ONG, na minha vida e na vida de todas as mães, é essa socialização. Como eu posso te explicar? O primeiro passo com a sociedade. Porque, às vezes, os pais não podem dar e ela dá. Para fazer essa inclusão entre as crianças e a sociedade.
P/3 - E você hoje é de um Conselho? Como é? Explica melhor como foi isso, como você foi se colocando nesse movimento todo?
R - Esse movimento... As mães... Elas têm vergonha de falar dos filhos. Eu acho que sim. Ou medo, não sei. E, na Essência, surgiu um grupo de mães. E eu comecei a falar. A mãe ficava lá no cantinho, eu falava: “Por que você não fala do seu filho? Porque você tem vergonha? Você tem que falar do seu filho, você fala sempre do que não tem problema, o outro você... Você tem que falar desse”. Foi isso. Aí as meninas falaram: “Celma, você tem que fazer parte, porque nós temos a Frente de Mães, que vai na Secretaria de Educação sempre, para falar”. Porque o governo, ele acha que um (PCAP) [02:03:10] de 1.250 reais dá para um aluno ficar o dia todo na escola, e não dá. Não dá para uniforme, não dá para material. Então, a gente vai questionar isso a cada seis meses. Passeio de final de ano. Então são vinte mães e eu fiz esse grupinho de mães, e a gente vai.
P/3 - É Prefeitura?
R - Não, é estadual.
P/3 - Teve alguma história nessa Frente aí que você quer contar para a gente?
R - Bom, a história foi assim: uma mãe estava com o filho sem a medicação e ela lá, a reunião, reclamando, falando com...
P/3 - Na Secretaria da Saúde?
R - Na Secretaria da Educação. Porque quando vai para a Secretaria da Educação, a Saúde está junto, eles estão lá sentados, todos ouvindo. Aí ela levantou e falou que ela não recebia a medicação, que o governo podia olhar isso, que ela não tinha condições, que a medicação custava setecentos reais e que ela estava sempre pedindo. Aí eu levantei e comecei a rir. Falei: “Mas se o governo não quer pagar escola, ele vai te dar a medicação, minha filha? O jeito mesmo é os que estão te ajudando continuar a ajudar, porque o governo está andando para nós”. Aí começou todo mundo a rir. Falou: “Por isso que todo mundo fala que a Celma fala demais. Aí... Ela abriu a boca”.
P/3 - Celma, você quer falar alguma coisa que a gente não lhe perguntou? Você queria contar, deixar registrado aqui na sua história?
R - Bom, na minha história vai ter um registro muito lindo, que você vai ter lá na foto, porque acho que vai dar para fazer o vídeo da minha viagem com o Rafael para Porto Seguro. Porque assim... A gente nunca tinha viajado para longe. Sempre aqui dentro de São Paulo, e de São Paulo. E ele falou, do nada: “Eu quero ir para Porto”. “Mas que Porto, Rafael?” “Porto Seguro”. Aí nós fomos. Quando levantou o vôo, para ele foi a coisa mais importante na vida. Começou a falar: “Nossa, mas eu quero ver lá embaixo”. Eu falei: “Rafael, lá embaixo não dá para ver nada, é tudo escuro”. Aí, quando desceu em Porto, ele de novo puxou a janelinha. Falei: “O que você vai olhar aí?” “Eu quero ver o mar”. Aí eu falei: “Já, já, a gente vai estar no mar”. Então isso, para mim, foi muito importante. Ele chegar lá e ir para a praia, assim, sem ninguém ter preconceito nenhum - ele entrava e saía de todos os lugares, ficava no mar sozinho, que a casa da minha mãe é bem perto da Coroa Vermelha. Então assim... De cara a gente... Ele ia, vinha, ficava ali, tinha o respeito com o mar, não ia para o fundo, ficava sempre brincando ali. Então assim... Para mim isso foi maravilhoso, muito importante. Mesmo ele nessa idade... Mas para mim é uma criança.
P/3 - E ele, quando viu o mar?
R - Nossa, ele adorou. Estou te falando que ele foi... Para ele... Ele queria ver já do avião, abrir a janelinha para ver. Então chegou na casa da minha mãe, mal deixou as malas e já quis pôr a tanga e fomos para a praia, fomos para o mar. E era o dia todinho. Ele entrava oito horas da manhã, saía às seis horas, cinco horas, porque eu ficava chamando. “Vem, sai da água”. Isso os trinta dias. Ele chegou aqui só os dentes brancos. Sempre ele pergunta: “Quando a gente vai viajar de avião de novo? Quando?” Eu falo: “Calma, agora tem que dar um tempo, espera”.
P/1 - Tem alguma coisa que você quer fazer com ele, assim, que ele demonstra desejo? Ou que você mesma tem vontade de fazer com ele?
R - Eu tinha vontade de ir para a Disney com ele.
P/1 - Legal.
P/3 - É um sonho. E vai, não é?
R - Eu espero que vá um dia, se a velhice não...
P/3 - Celma, eu estava lembrando, quando você contou que falaram que ele ia vegetar, que ele não ia falar, não ia andar. Como você se sente? Se você conseguir expressar para a gente. Hoje ele vai para a praia.
R - Eu me sinto muito feliz. É muito, muito importante para mim.
P/3 - Você consegue descrever assim, resumir isso?
R - Eu acho assim, que foi tudo garra minha e dele. Ele, com a vontade de viver e eu, com a vontade de fazê-lo ser perfeito.
P/3 - E os irmãos, a prima...
R - Uma junção. Mas assim... Eu acho que a energia minha e dele é muito mais forte. Os outros, sim, mas a minha e a dele, assim... Uma energia muito forte dos dois. Que ele tinha muita vontade de viver, porque a situação do médico dizendo que ele ia vegetar e ele, aos poucos, foi se envolvendo... E eu, naquela vontade de não ter um filho especial, eu queria um filho normal... Porque eu dizia: “Meu Deus, eu não aceito meu filho assim. Os outros passeando e ele não? Como eu vou entrar no shopping com essa criança?” E, graças a Deus, hoje eu vou em qualquer lugar, eu tenho orgulho do meu filho.
P/3 - Muito bom. Querem falar?
P/2 - Eu acho que não.
P/3 - E como foi para você essa experiência de contar a sua história para a gente? O que você achou?
R - Bacana, eu acho que ainda ficou muita coisa que um dia não dá para contar.
P/1 - Muitos detalhes.
R - Muitos detalhes. Eu falei que ainda vou escrever um livro. Falei para a Luciana: “Ainda vou escrever um livro, vou começar de tudinho, tudinho, tudinho, deixar tudo isso, depois eu vou pegar um escritor e falar: 'Monta'“. O que é ser mãe de um filho especial, o que é ser separada quando se é mãe de um filho especial, tudo.
P/3 - Quer falar um pouco assim, de forma enxuta, assim? Agora? O que é ser mãe de um filho especial? O que é ser mulher separada, tendo um filho especial?
R - Acho que agora, no momento, não dá. Porque acho que você tem que escrever isso assim, porque para resumir agora... Ser mãe de um filho especial é ser guerreira. E ser separada também você tem que ter muita dignidade, muito respeito para você levar isso junto. Ser separada e ser mãe especial. Tem que ser só mesmo, só ser mãe do ser especial. Você não pode voltar, dizer assim: “Eu vou ser mulher separada, vou namorar”. Não. Ser separada tem que ser separada e ser mãe do filho especial é ser guerreira.
P/3 - Muito bom. Acho que a gente pode concluir então. Agradecer muito a sua disponibilidade.
R - Imagina, eu é que agradeço a vocês.
P/3 - A sua história, compartilhar com a gente. Parabéns.
P/1 - Parabéns mesmo.
P/2 - Parabéns, obrigada.
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