Projeto Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Jacy Orminda Buttignon de Noce
Entrevistada por Gustavo Sanches e Paola Ramires
São Paulo, 17/10/2009
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PCMA_HV_191
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Heci Regina Candiani/Viviane Aguiar
Publicado em 16/12/2009
P1 – Para começar, eu vou pedir para a senhora dizer o seu nome completo, a sua data de nascimento e o local?
R – Meu nome é Jacy Orminda Buttignon de Noce, eu nasci em São Paulo, na capital, no dia 14 de outubro de 1943, numa quarta-feira, às 15 e 20 da tarde, segundo me foi contado, né?
P1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Francisco Buttignon, e minha mãe Geni Azevedo Buttignon.
P1 – Você foi criada com seus avós também?
R – A minha mãe morava com os meus avós maternos e as minhas tias solteiras, então, eu fui uma menina muito mimada, até dez anos de idade, eu era a única neta de ambas as partes. Os meus avós paternos eram o nonno e a nonna, porque eles mantiveram a tradição italiana. O nonno e a nonna moravam perto de casa, e eu também, da parte deles, era a única. Agora, a minha avó materna era italiana, mas o meu avô era caiçara, do litoral norte, de São Sebastião. Então, a minha avó foi se adaptando aos costumes mais brasileiros. Na casa do nonno e da nonna era uma história e onde eu morava, era outra. Mas eu fui muito paparicada, eu fui muito mimada, eu tive uma infância muito feliz. E eu sempre cobrava da minha mãe e do meu pai que queria um irmãozinho ou uma irmãzinha, porque todas as minhas amigas tinham. E eu era frustrada porque não tinha. Aí, sem querer, minha mãe, com 40 e poucos anos, engravidou, e a minha irmã, quando nasceu, eu já tinha quase 11 anos. Foi uma alegria muito grande, mas depois foi um tormento, porque eu era tão mimada e de repente eu fiquei de lado. A minha mãe não me deixava ir à casa de nenhuma amiguinha, ela podia vir dormir na minha casa, eu tinha uma amiguinha que, com oito anos, fazia xixi na cama, e a minha mãe aceitava e ajeitava tudo bonitinho, mas eu não podia ir à casa de ninguém e nem ficar no portão. A minha irmã nasceu, eu podia dormir na casa das amigas, eu podia ficar no portão, até atravessar a rua eu podia. Para mim, foi ótimo, mas depois eu comecei a pensar e falei: “Eu estou é de lado.” Todo mundo chegava e falava: “Cadê a Leila?” E a Jacy foi ficando. Então, isso fez parte de uma época que hoje não acontece mais, as pessoas são mais esclarecidas, mas eu fiquei muito enciumada, eu fiz coisas terríveis com a minha irmã pequenininha, eu beliscava, a mamadeira eu tomava ou jogava na pia. Eu fui muito má para ela, e as pessoas chegavam para visitar com presente para ela, e eu só olhando. Aí uma amiga chamada Júlia, filha de uma tia já falecida, chamada Clara, veio visitar a minha mãe e trouxe um pacote de bombom para mim. Até hoje eu lembro e tenho o sabor desse bombom na minha boca. Depois de adulta, toda vez que eu vou ver um bebê que nasceu e tem outra criança, eu levo um agrado para a outra criança, porque marcou muito a minha vida. Só depois de adulta que eu consegui superar, mas mesmo assim fiz muita cobrança para minha mãe depois disso. Então, a minha infância até 11 anos foi essa. Depois, adolescente, eu não gostava muito de estudar, a minha mãe falou: “Então, não vai estudar mais.” Eu saí da primeira série do antigo ginásio, e ela falou: “Você fica em casa, você me ajuda.” Minha mãe era uma mulher que trabalhava muito. E eu não sabia da história dela, eu só fui saber depois, quando eu tinha 15 anos. Quando eu fiz 15 anos, um fato marcou muito a minha vida: meu pai dançou a valsa dos 15 anos comigo e, no dia seguinte, ele sentou a gente em volta da mesa do almoço do domingo para comunicar que ele ia embora. Ele contou quem ele era. Meu pai, para mim sempre foi um ídolo, eu sempre gostei mais do meu pai do que da minha mãe, porque meu pai fazia tudo para mim e minha mãe brecava. Naquele tempo, as coisas eram muito diferentes, né? Hoje, a gente compra maçã de dúzia e naquele tempo era uma embrulhada num papel de seda azul, vinha da Argentina, só quando estava doente. Aí eu falava: “Mãe, compra uma maçã?” “Não tenho dinheiro.” Meu pai chegava do serviço, eu falava: “Pai, compra uma maçã?” Ele comprava duas. E assim foi com tudo, com chocolate, com roupa, com tudo. E a minha mãe sempre negando tudo. Quando passou a minha festa dos 15 anos, meu pai, na hora do almoço, falou: “Eu vou embora, você já tem 15 anos.” A minha irmã tinha cinco, e ele falou o seguinte: “Sua mãe é uma heroína, eu não presto, eu gastei todo o meu dinheiro a vida inteira com cavalo e com mulheres.” Ele falava. A minha mãe tinha uma profissão, ela cerzia a meia de náilon. Hoje, a meia de náilon rasga, a gente joga fora. Naquele tempo, cerzia, ficava invisível. E a minha mãe fazia isso, fazia bolos, salgados para fora e tudo. E meu pai falou: “Não vinham umas pessoas que queriam aprender a cerzir meia, a sua mãe levava no quarto e mandava você ficar quieta cuidando da sua irmã? Não era nada disso, eram minhas namoradas que descobriam que eu era casado e vinham tirar satisfação. Então, eu fui uma pessoa muito errada e nunca dei um tostão para sua mãe, ela sempre sustentou a casa com o trabalho dela. Agora eu vou embora, não vou mais ficar, acabou o casamento.” E eu nunca vi meus pais discutirem uma única vez na vida, nunca vi um alterar a voz para o outro. Quer dizer, a minha mãe aceitou tudo, né? E depois disso a vida ficou um pouquinho complicada. Daí, então, a minha irmã, que era uma menina alegre e extrovertida, ficou fechada, retraída, porque foi um trauma muito grande. Mas a minha mãe sempre continuou. Nunca ela falou mal do meu pai e continuou a receber meu pai, ele vinha para ver a gente e tudo. A minha irmã sumia, mas a minha mãe sempre aceitou meu pai direitinho. E quando eu tinha 17 anos, eu conheci o meu primeiro namorado. Ele era quase dez anos mais velho do que eu, então, ficou muito estranho para ele o fato de a minha mãe não me deixar sair, não deixar namorar no portão. Ele já estava com a vida razoavelmente encaminhada, já era contador e tudo. Um dia, depois de um ano de conhecimento, eu já estava em lua de mel com ele, porque ele não aguentou a pressão, foi muita, e ele falou: “Então, vamos casar.” Eu casei com 18 anos e logo em seguida, com 19, eu já tive a minha primeira filha. E foi um casamento que durou 20 anos. Momentos felizes, outros nem tanto, mas sempre equilibrado e com muita fé em Deus. Eu tinha a minha filha com uns 12 anos e o meu filho, na ocasião, com uns oito, por aí, e nós fomos participar de um movimento da Igreja Católica chamado Encontro de Casais com Cristo. Ali, realmente a vida da gente mudou completamente, de ambas as partes, ele passou a ser mais compreensivo, mais calmo, eu passei a ser uma mulher mais madura. E os meus filhos se encaminharam para o encontro de jovens. Foi uma coisa muito bonita. Foram, eu acho, que uns dez anos da minha vida que nós vivemos dentro da igreja e lá a gente fez muitos amigos e as crianças também. Então, cresceram juntos, toda aquela turminha, temos vários amigos até hoje, e vinte anos eu fiquei casada e numa noite... Porque nós nos reuníamos uma vez por mês, uma turminha de amigos lá da igreja, a gente se reunia na casa de um, na casa de outro e a reunião era o seguinte: abria-se um trecho da Bíblia e fazia um comentário. Cada um levava um pratinho e virava uma festinha. Numa dessas reuniões, abriu-se um trecho da Bíblia onde falava que um rico não entra no reino do céu, que é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha. Então, o tema pra discutir era esse, só que nessa noite o meu marido saiu do assunto, quando chegou a vez de ele falar, ele começou a falar sobre a nossa vida, que ele era uma pessoa que não devia nada para ninguém, ele tinha a consciência tranquila, ele era uma pessoa honesta, que ele podia morrer tranquilo, que ele botava a cabeça no travesseiro e dormia, ele me amava demais e que tinha um orgulho muito grande porque nunca tinha me traído. Aí eu falei assim: “Espera aí, Paulão, a gente está falando de outro assunto.” Uma das amigas falou: “Deixa que é pra falar o que quiser, deixa ele.” E terminou aquela alegria toda. Aí viemos pra casa, 24 de janeiro de 1983, fomos deitar, ainda conversamos um pouco e, quando eu apaguei a luz do abajur, ele tossiu, ele não tinha tosse, eu falei: “O que foi?” Ele não respondeu, eu acendi a luz do abajur, e meu marido estava morto. Eu não sabia que estava morto, ele estava roxo, olhando para mim, sorrindo. Eu falei: “Olha, Paulão, eu vou chamar a Maristela.” Minha filha tinha terminado o curso de Técnica de Enfermagem. Em vez de fazer o colegial comum, ela fez o Técnico de Enfermagem e ela tinha entrado na faculdade. Uns dois ou três dias antes veio a notícia que ela entrou na faculdade de Enfermagem. Então, eu fui acordá-la e falei: “Filha, o papai deve estar brincando, mas você vai ver o que está acontecendo, porque ele não me responde, ele tossiu.” Aí minha filha veio, e é uma cena que jamais eu vou esquecer: ela subiu em cima dele, fez aquela aspiração de nariz e massagem, o que ela sabia. Ela olhou pra mim e falou: “Mãe, vamos nos apegar a todos os santos, em tudo aquilo que você tem fé, que a gente aprendeu na igreja até hoje, porque meu pai morreu.” Eu falei: “Eu não acredito, você fez um cursinho de nada e vem dizer que teu pai morreu? Ele teve alguma coisa, eu estou vendo, mas ele não morreu.” Ela falou: “Mãe, põe os pés no chão, grita, chora, esperneia, meu pai está morto.” Eu falei: “Eu não acredito.” Eu lembro como se fosse agora, eu olhei para a Nossa Senhora Aparecida que ele tinha, da qual ele era muito devoto, eu falei: “Minha Nossa Senhora, meu marido morreu, acolhe ele com teu manto sagrado, dá uma luz muito grande pra ele e força pra nós.” Eu falei tão alto que a minha vizinha, que era minha amiga de infância, a Julinha, ela tinha a chave da minha casa, porque, como a gente saía muito, ela vinha dar comida ao cachorro. Ela estava igual um fantasma branco, parado na porta do quarto, porque ela ouviu... Era parede com parede, e ela já estava lá, eu falei: “Meu Deus do céu, nós não vamos entrar em desespero.” Eu peguei, acordei meu filho, ele não acordou com todo esse movimento, eu falei: “Filho, se troca e vai chamar o tio Antônio.” Ele morava na mesma rua que nós: “Fala pra ele vir aqui com a Kombi que nós precisamos levar o papai para o hospital, que ele está passando mal.” “Mãe, o que foi?” Eu falei: “Vai logo.” Eu sei que ele foi, eu sentei na sala, peguei o telefone e liguei para o padre, que era nosso amigo, eu falei: “Padre Primo, vai para o hospital do convento”, que hoje nem existe mais, “vai para lá que nós estamos levando o Paulão para lá, ele morreu”. E desliguei porque eu não queria ouvir a resposta. Peguei o telefone de novo e liguei para um grande amigo nosso, que já faleceu também, o Bruno, eu falei: “Bruno, vai para lá, para a Rua dos Campineiros, lá no Pio XII, que o Paulão morreu.” E desliguei. E foram esses dois telefonemas que eu fiz. Liguei para o meu sogro, que era vivo, e falei: “O senhor vai para lá, que o seu filho não está bem.” E desliguei. Aí já chegou meu tio com a Kombi, os vizinhos todos. Meu filho passou na porta do quarto e viu, meu marido teve um infarto. Aí eu liguei para o Pereira, que era um médico amigo nosso, que era da comunidade também, eu falei: “Pereira, estou precisando de você, vai para lá.” Aí o meu filho viu, ele estava todo roxo, ele sentou na sala onde eu estava e pegou na minha mão com tanta força que aqui sangrou, a palma da minha mão. Ele falou: “Mãe, tudo que a gente viveu até hoje dentro da igreja, ‘seja feita a vossa vontade’, como fala o Pai Nosso, é o que vai acontecer, não vai haver desespero.” E realmente não teve desespero, foi triste, foi doído, foi uma coisa que chocou porque meu marido não bebia um golinho de cerveja, ele fumava, era o único vício dele, ele não tinha doença nenhuma e teve um infarto do miocárdio fulminante. E o Pereira me chamou e falou: “Olha, Jacy, agradeça a Deus que ele morreu, porque, se ele tivesse se salvado, ele ia ficar uma pessoa em cima de uma cama, sem enxergar, sem falar e sem ouvir. Ia ser um morto-vivo, foi melhor que ele morreu, porque nada, nem que tivesse uma ambulância do Einstein na porta, salvaria o seu marido.” Então, aquilo deu um certo conforto e durante toda aquela confusão, chegou todo mundo, todo mundo ajudando, fazendo as coisas tudo que tinha que ser feito. Uma hora eu achei que... Eu nunca desmaiei na vida, mas eu senti uma coisa esquisita, eu achei que ia desmaiar. Aí, a minha filha falou assim para mim... Ela não percebeu o que eu estava sentindo, ela falou: “Mãe.” Desculpa, um pouco antes disso, a minha filha falou: “Mãe, se a gente chamar o banco de olhos vai dar tempo de doar as córneas do papai, você assina?” Eu falei: “Claro que eu assino.” Aí vieram, ela foi assistir tudo e eu fiquei. Nessa hora que eu estava me sentindo mal, o rapaz que fez a retirada das córneas falou para mim: “Dona Jacy, amanhã cedo, duas pessoas, uma de 20 anos e outra de 40, cada uma vai receber uma córnea, porque a gente não dá as duas para a mesma pessoa. Então, conforme a lista, um rapaz de 40 e uma moça, eles vão enxergar a luz do mundo pela primeira vez, graças à sua doação. Porque as córneas do seu marido estão intactas, perfeitíssimas.” Aquela sensação que eu tive, que eu ia desmaiar naquele momento, me trouxe uma paz, mas uma paz muito grande. Então, ali eu vi que Deus estava presente e eu sei que ele está sempre presente, mas que naquele momento ele se manifestou e também quando o meu marido faleceu. Não teve desespero, teve aquela coisa que não dá para explicar, aquela sensação de choque e tudo, mas teve paz. Foi tudo feito de acordo com o que deveria ser, foi feito o velório, missa de corpo presente, três padres, o bispo de São Paulo, que, na ocasião, Dom Luciano, que já faleceu, presente na missa. Eu fiz leitura na missa de corpo presente, eu não sei onde que Deus deu tanta força pra gente. Depois disso, durante uma semana, parecia uma festa, porque todo mundo da comunidade, as tias, todo mundo vinha em casa e todo mundo querendo ajudar, uma palavra de conforto e tudo. Depois as coisas vão se acalmando, né? Aí eu fiquei muito indecisa porque, infelizmente, ele recebia pelo “caixa dois”, então, eu sabia que a minha aposentadoria ia ficar de um salário mínimo. Eu falei: “O que eu vou fazer agora?” Não tinha mais pai, não tenho um irmão, ele era filho único, não tinha ninguém para sentar e falar: “Vamos ver.” Então, eu tive que me virar sozinha mesmo, eu vendi muitas joias, eu vendi carro, eu dispensei a empregada, eu pensei: “Eu preciso fazer alguma coisa.” Agora, como que uma mulher de 38 anos, que não teve um estudo, nunca teve uma carteira profissional, pode fazer alguma coisa na vida? Eu sempre fui de fazer muito bolo, muito bombom, muito chocolate. Então, as amigas chegavam e falavam: “Está aqui o material, faz para o aniversário de fulano.” E eu sempre fiz para a família toda. Eu falei: “Quer saber o que mais, eu vou fazer isso e vou cobrar.” Aí comecei, botei anúncio no jornal, fiz uns panfletos e deixei na farmácia, na padaria, na loja, e começou a chegar encomenda. As encomendas vinham e vinham. O bolo menor que eu fazia era de três quilos. Aí eu tive que me organizar para poder saber o lucro, o custo/benefício, o gás, tudo. E o maior que eu fiz foi para uma festa, inclusive da igreja, foi de 50 quilos. Nunca na minha vida eu pensei que eu fosse fazer um bolo de 50 quilos. Eu precisei fazer um tabuleiro de dois andares, enorme, mas eu fiz e deu tudo certo. E com esse dinheiro, e fazendo bombom, ovo de Páscoa, e todo mundo colaborando da comunidade, porque todo mundo comprava, e mais uns anúncios que eu fui colocando, eu fui ganhando um dinheiro que foi ajudando a manter as coisas da casa. Aí eu vi no jornal que o Açúcar União ia montar, na Praça da República, uma tal Praça Doce, para pessoas com mais de 60 anos, para dar um incentivo aos aposentados. Eu li aquilo e veio uma ideia. Eu falei: “Eu não posso.” Mas eu tinha o tio, esse que eu chamei quando meu marido morreu, que hoje também já faleceu, muito querido. Eu falei: “Tio Antônio, eu vou lá na União.” Você tinha que levar um pouco de cada coisa do que você fazia para aprovar. Eu falei: “Eu vou lá, tio, com a sua carteira, o seu RG, e vou dizer que é o senhor que faz, mas eu sou sua secretária, eu compro, eu falo, eu administro, e o senhor só faz.” Ele falou: “Tá bom, filha, faça.” Eu fui, levei, expliquei: “Olha, meu tio tem bronquite, e realmente ele tinha, ele não participa de nada.” Ela falou: “Tá bom, então deixa aqui para ser aprovado.” E graças a Deus foi aprovado, era um mês cada aposentado na praça, eram várias barracas para dar oportunidade para todo mundo. Então, ele ia comigo no sábado, ficava sentadinho lá e eu comandava tudo. Tinham uns corações que eu mesma fiz de papel laminado com o nome dele, o meu e o telefone para encomenda. E as encomendas não paravam de chegar, e quando passou um mês, que a gente tinha que entregar, a coordenadora, coincidentemente minha xará, a Dona Jacy, chegou e falou: “O seu tio é definitivo na Praça Doce, porque é uma barraca de muito sucesso.” Eu enfeitava a barraca, tinha um primo que era casado com a minha prima, o Edelson e a Elizete, eles me ajudavam. Minhas amigas faziam móbiles de borboletas e abelha, então, era a barraca mais bonita que tinha. Eu fiquei lá com meu tio e, no fim, ele já nem ia, eu falava: “Meu tio está com bronquite, ele não pode vir.” Então, eu fiquei lá quase um ano, ganhei bastante dinheiro, pude manter a minha casa, a minha filha fez a faculdade, era uma faculdade a pagamento, e, graças a Deus, o meu sogro era vivo na época. A minha irmã, que é uma pessoa muito boa também, eles dois pagavam a faculdade, e eu mantinha a casa. E o meu filho, que na ocasião que o pai faleceu tinha 14 anos, mais ou menos, um pouco antes de acontecer tudo isso, ele falou pra mim: “Mãe, eu vou passar a estudar à noite e vou trabalhar.” Eu falei: “Filho, você é muito novo.” Ele falou: “Não, eu vou trabalhar.” Eu falei: “Então, deixa eu falar com alguns amigos nossos da comunidade que alguém te arruma.” Ele falou: “Não, eu vou arrumar sozinho.” Ele se vestiu bonitinho e saiu de manhã, voltou à tarde e falou: “Mãe, office boy do Banco Bamerindus, na Rua da Mooca.” E essa minha amiga, a Julinha que eu falei que, no dia da morte do meu marido, ela apareceu lá sem eu chamar, ela é a segunda mãe do meu filho, ela tem paixão por ele. Então, ele começou a estudar à noite e trabalhar de dia. Ele saía com a mochilinha com todas as coisas pra aula e a marmita. Eu chorava, porque eu nunca tinha feito uma marmita na vida, e ele falava: “Mãe, não é marmita, é estojo alimentar.” Ele ia, e eu e a Julinha ficávamos na porta, porque ele pegava o ônibus na esquina, e o ônibus passava, e ele fazia tchau, e as duas bobas entravam chorando. “Meu filho, ainda menino, com 14 anos.” A minha filha não, porque, para mim, ela já era uma adulta, mulher é mais madura. Mas também foi essa parte do meu filho e tudo que foi incentivando. E eu tenho uma amiga até hoje, a Marinalva, ela trabalha com pesquisa de mercado, e eu, como conhecia muita gente da comunidade, eu arrumava as pessoas. Então, ela falava: “Olha, Jacy, eu preciso de pessoas que usem Margarina Delícia, cigarro não sei das quantas, de 20 a 30 anos de classe A, B ou C.” E eu ajudava. Quando eu fiquei viúva nessa situação toda, ela falou: “Jacy, você continua me ajudando e eu te pago.” Ela nunca me pagou porque não precisava, eu falei: “Tá bom, eu vou aceitar.” Aí eu arrumava as pessoas, e ela me pagava e um dia ela falou: “Olha, lá na Marplan, instituto de pesquisa, estão precisando de alguém para entrar para trabalhar direto, vou levar você lá, eu já falei de você, ele está te esperando.” Aí eu fui, conversei com ele, ele falou: “Já te conheço de nome, eu sei que você ajuda a Marinalva, continua ajudando ela, mas você vai fazer pesquisa de mercado na rua. Você topa bater nas portas?” Eu falei: “Claro.” Aí fiz minha inscrição de autônomo e batia na porta: “Olha, tem pessoa de tanto a tantos anos? Você usa isso? Não? Obrigada, até logo.” E o fato de eu já ser uma mulher, eu tinha 40 e poucos anos, era nova ainda, mas o fato de ser uma mulher madura, eu era muito bem atendida, porque quem faz pesquisa é só jovem, e a maioria deles, na época era cabeludo, de chinelão, ninguém atendia muito bem. Eu era super bem-atendida, eu fiz um trabalho de pesquisa na favela de Vila Prudente, que ninguém queria fazer, eu falei: “Eu faço.” Eu fiz e, olha, eu entrava nas casas, numa eu tomava café na canequinha de massa de tomate, quentinho, gostoso, na outra era frio, uma casinha era limpinha, a outra era suja. Mas eu me adaptei, eu trabalhei um mês e meio lá, eu ganhei um dinheirão, porque ninguém quis fazer. Isso foi no ano de 83, o ano que meu marido faleceu, tudo isso foi em 83, em agosto, e ele faleceu em janeiro. Em agosto de 83, ele me chamou, lá na Marplan, e falou: “Olha, eu tenho um serviço que você vai dar conta, é um serviço não de porta, é de reunir as pessoas. Então, eu te convido, você está dentro daquilo que eu perguntei. Você vai tal dia, tal hora participar de uma pesquisa em grupo lá dentro da empresa. Pra isso você vai participar de um coquetel, vai ganhar presente e vai ganhar o dinheiro do táxi.” Então, as pessoas iam, eu já ajudava a Marinalva fazendo isso, ele falou: “Eu preciso que você vá a Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Salvador, fazer esse tipo de trabalho, você fica um mês fora e vai realizar tudo isso. Você monta no dia da pesquisa, vai a taquígrafa, vai o coordenador da pesquisa e tudo, você fica em hotel, vai ter alimentação.” Eu falei: “Ah, eu não vou, imagina, meu marido morreu outro dia, eu vou largar meus filhos?” Ele falou: “Eu vou te dar três dias para você ir para casa e pensar.” Aí eu fui pra casa e o que eu fiz? Eu fui falar com o Padre Primo, eu falei: “Padre Primo, meus filhos só vão chegar tarde da faculdade e olha o convite que eu recebi, eu não tenho coragem. Eu vim aqui só para chorar, desabafar.” Ele falou: “Não tem coragem? Você vai, teus filhos são grandes e, além do dinheiro que você vai ganhar, você vai ganhar muito mais porque eu vou colocar você dentro de convento e casa de padre e de freira, você não vai pagar hotel nem alimentação, a Marplan vai pagar para você isso a mais, porque você não vai dar essa despesa para eles, e os padres e as freiras vão te ajudar. Eu conheço em todos os lugares que você vai.” Aí eu já me animei, né? Eu falei: “Bom, pelo menos eu não vou num lugar estranho, onde eu nunca fui.” Aí, quando foi à noite, eu conversei com meus filhos, eles falaram: “Não, mãe, vai sim, a gente se vira.” Aí eu fui, voltei lá e falei: “Tudo bem, só que eu não vou ficar um mês inteiro direto, eu vou e volto, eu faço num Estado e volto. Em dois dias, eu vejo meus filhos.” Ele falou: “Tudo bem.” Eu falei: “Você coloca o valor que ia gastar em hotel e em alimentação tudo no meu pagamento.” Olha, eu consegui ajeitar minha vida. Não tinha dívida, mas ter uma folga um pouquinho maior pra comprar as coisas, pra manter o carro, eu tinha dois, fiquei com um Fusquinha. Estava dando tudo certinho, mas ainda não era isso que eu queria, eu pagava meu INSS [Instituto Nacional do Seguro Social], eu queria um emprego que me desse estabilidade, porque às vezes eu trabalhava feito uma louca fazendo pesquisa, varava a madrugada fazendo bolo e depois eu ficava uma semana que não tinha nem bolo e nem pesquisa e eu não ganhava. Aí eu falei: “O que eu vou fazer?” Eu queria um emprego, mas infelizmente aqui no Brasil... Aí, alguém lá da comunidade, o Waldemar Tralli, ele falou: “A Sears é uma firma que não olha a idade, vai lá e faz um teste.” Ele trabalhava lá, ele falou: “Eu não posso te ajudar, mas eu posso te indicar.” Eu fui e nem teste fiz, só preenchi uma ficha, e depois de um mês e pouco me chamaram, a encarregada lá do RH, a Dona Terezinha, conversou comigo e ficou sabendo da minha história e ela falou: “Olha, eu só tenho uma vaga para te oferecer, serviço de reclamações, você vai trabalhar das 13 horas às 22 horas na Sears da Água Branca, inclusive no sábado. Vai ter uma folga durante a semana, e eu não sei se você vai querer porque é atender reclamação e o horário.” Eu falei: “Para mim, esse horário foi Deus que mandou”, porque os meus filhos já estavam estudando à noite e só vinham para casa à meia-noite, eu ficava sozinha. Então, eu ia ter de manhã para cuidar das coisas e à noite eu ia chegar praticamente junto com eles. Fui tirar a carteira profissional, que eu não tinha, e comecei a trabalhar como auxiliar de departamento de reclamações e, graças a Deus, eu me saí muito bem. O chefe, o Marcos, era um moço jovem, então, quando vinha cliente muito bravo... Porque a Sears tinha um slogan “satisfação garantida ou o seu dinheiro de volta”, e, claro, a firma não queria devolver, mas o cliente queria. Então, a gente tinha que fazer o possível para não ter que devolver, em último caso devolvia. Então, vinha lá com a roupa desbotada, com o sapato arrebentado, vinha com todo tipo de reclamação, o carpete que embolou e uns já vinham nervosinhos. Aí o Marcos falava: “Vai lá você, porque você tem mais presença, você é mais velha, ele pensa que você é a chefe.” Eu ia e pegava aquele caso do começo ao fim e eu resolvia. Aí o que aconteceu? A Sears abriu uma filial no Center Norte, no shopping, e meu gerente falou: “Escuta, vai para lá, porque lá é pequeno, está começando agora, você vai ter mais chance.” Mas eu fui com o mesmo cargo, só que, como a loja era menor, o que acontecia? O gerente de lá, o Ernesto, grande amigo meu, ele falava assim: “Fulana vai sair de férias, ela é encarregada da moda masculina, você vai ficar lá uma semana antes de ela sair de férias para você aprender o serviço e vai ficar no lugar dela.” Aí eu ia, aprendia o serviço e ficava. Ela voltava das férias, voltava para o meu lugar. Saía outro do eletrodoméstico, ia eu aprender e saía. E, com isso, durante um ano, eu rodei a loja inteira. A encarregada da moda feminina teve um bebê, acertou as contas e foi embora. Como a Sears nunca pegou ninguém para cargo de chefia, tudo era promoção, o que eles fizeram? Eles promoveram a gerente da moda masculina para feminina, porque a feminina era bem maior e vendia mais, e me deram a moda masculina como gerente. Nossa! Foi uma vitória, uma vitória enorme, e, logo em seguida, ela também saiu, aí me deram a moda feminina que abrangia tudo, eletroeletrônico, bijuterias, calçado. Então, era um monumento, né? Foi a melhor fase da minha vida para trabalhar, eu era gerente da moda feminina, eu tinha que me arrumar, eu tinha que estar maquiada, e os vendedores vinham lá conversar comigo a respeito da maquiagem, a respeito da roupa, e vinha o comprador... Nossa! Foi uma fase de ouro na minha vida, eu me realizei profissionalmente como nunca sonhei na minha vida. E enquanto isso está acontecendo, os meus filhos trabalhando, estudando, a minha filha fazendo a faculdade. No ano de 86, eu conheci um viúvo. O Adauto. Nós temos uma união estável de 23 anos até hoje, graças a Deus, é uma pessoa muito boa, me deu apoio, continuei trabalhando. Não fui logo de início morar com ele. Primeiro, começamos a sair, a namorar à moda antiga. Porque eu era uma pessoa boba, eu fui uma dona de casa, eu via cada coisa lá dentro da Sears que me deixava de cabelo branco, porque eu não fui acostumada com isso, mas é o mundo, né? Então, eu conheci outro mundo, vi chefe namorar moça solteira e aquela coisa toda. Que eu não sabia, só via em filme e em novela. Então, tudo para mim era novidade. Aí a minha filha, logo que eu comecei a namorar o Adauto, ela foi conhecê-lo, porque ela falou: “Mãe, você é boba, vamos ver quem é essa pessoa.” E realmente é uma pessoa séria, responsável, com três filhos fazendo faculdade, e eu com meus dois. Então, depois de um ano que eu saía com ele, é que eu fui contar para o meu filho. Foi meio difícil, não foi fácil, mas hoje o melhor amigo do meu filho é o Adauto, e o Adauto tem um carinho muito grande por ele também. E também só me levou na casa dele para conhecer os filhos dele depois de dois anos. Ele também estava viúvo recente. Então, eu falei: “Vamos deixar as coisas... Vamos deixar as coisas assim, eu fico na minha casa e você fica na sua”, aquela amizade colorida com responsabilidade. Eu falei: “Vamos deixar teus filhos e os meus casarem, se formarem e depois a gente junta as escovas de dente.” E assim nós fizemos, ainda depois que os dele casaram, os meus também, a minha mãe ficou doente. A minha mãe morava com a minha irmã. Hoje, a minha irmã mora em Florianópolis, na época morava em Porto Alegre, aí minha mãe não andava mais e veio morar comigo, estava numa casa de repouso. Então, eu trouxe a minha mãe. Só depois que a minha mãe faleceu é que, vamos dizer, uns 15 anos, 16, que realmente a gente resolveu morar junto. E, graças a Deus, os meus enteados, os meus filhos, são tudo uma família só, os meus netos. É uma coisa... A gente sente, eu sinto a presença de Deus na minha vida, então, eu acho que a minha vida é tão bonita que eu falei: “Ah, eu vou lá ao Museu contar.” É tanta coisa que aconteceu. A primeira mulher que eu acompanhei a gravidez foi a minha enteada mais nova, que casou primeiro, eu ia com ela fazer a ultrassom, tudo para mim era uma experiência. A filha dela, a Rafaela, eu acho que tem 19 anos e é a paixão da minha vida, porque foi o primeiro bebê que eu acompanhei. E, com todos eles, eu estive na maternidade, estive presente e hoje, você vê, ela com 19. A mais nova do meu filho tem sete anos. Eu falei: “Eu tenho uma vida linda.” Eu acho que a minha vida é linda. E eu vivo muito bem, olho o meu marido, há um ano e meio, mais ou menos, ele fez uma cirurgia, tirou um câncer do intestino e está numa recuperação maravilhosa, não tem metástase. Eu falei: “Tudo que eu tenho na minha vida...” Eu só não tenho dinheiro sobrando, mas isso ninguém tem, né? Também não faz falta, mas eu acho que é uma coisa tão bonita que eu sinto a presença de Deus e eu sempre falo que as pessoas que não acreditam em Deus e ouviram... Porque no tempo que a gente participava de encontro de casais, eu tinha uma palestra com meu marido que nós dávamos, “Nossa Senhora na Vida em Família”, porque ele era muito devoto de Nossa Senhora, ele era congregado mariano. Então, eu passei a ter uma fé maior depois que eu casei com ele, e a gente tinha essa palestra. Depois que ele faleceu, eu reformulei a palestra e eu dava. Claro, o padre aprovou, e eu dava essa palestra sozinha e eu sempre falava assim: “Se alguém não acreditar na presença de Deus, o meu testemunho dizendo que Deus me preparou para aceitar a morte do meu marido, quando, naquela reunião de círculos, que ele começou a falar tudo aquilo que não tinha nada a ver com o tema do Evangelho... Foi Deus me preparando para aceitar a morte dele. Então, Deus existe, é maravilhoso e está presente na vida de todo mundo.”
P1 – Eu quero voltar um pouquinho...
R – Vamos voltar, eu abri o coração e falei. Então, vamos voltar.
P1 – Eu não quis nem interromper, porque foi muito bonito mesmo, eu quero volta um pouco para sua infância. Você falou da sua relação com seus avós que eram avós diferentes?
R – A minha nonna e o nonno, que eram os paternos, a minha nonna era aquela senhora que usava aquele vestido preto comprido, de manga comprida, aquele birotão branco e falava muito mal o português. E o meu nonno não trabalhava, porque, quando eles vieram da Itália, eles foram mandados para uma fazenda de café em Santa Lúcia, um pouco para lá de Araraquara no interior de São Paulo. Inclusive, nas férias de infância, como eles tiveram os filhos lá, depois vieram para São Paulo, um deles ficou lá, era uma tia. Então, eu ia sempre para lá e conheci a fazenda onde eles moravam, e há uns anos eu fui ao Memorial do Imigrante, que tem no Brás, e entrei lá no site com o sobrenome Buttignon. E, para a minha surpresa, eu tenho guardado até hoje, um tipo de um diploma, um navio, no fundo, a data que o meu nonno, pequeno, chegou ao Porto de Santos com os pais dele. A minha nonna veio em outro navio, mas lá está o meu nonno, o nome dele, pequeno, o nome dos pais dele e todos os irmãos e a data que chegaram e para onde foram. Aí eu fiquei superemocionada, porque os irmãos do meu pai, todos eles, receberam os mesmos nomes dos irmãos do meu nonno, que veio menino e veio com aquele bando de irmãos, e, naquele bando de filhos que meu nonno teve, ele pôs o nome dos irmãos. Então, é muito lindo esse documento. Aí, quando ele veio pra São Paulo, não sei que ano foi, ele já não trabalhava mais, morava perto da minha casa. Então, todo dia eu ia, sozinha, eram duas quadras, a gente andava sozinha na rua com seis, sete anos, não tinha problema. Mas o meu nonno sempre de terno, gravata e chapéu, e a minha nonna com aqueles vestidos. E falavam pouco o português, mas era uma casa muito alegre, porque ela tinha muitos filhos e tudo. E tinha um costume, uma tradição. Toda quarta-feira à noite, não interessa, você não podia ter compromisso com ninguém, porque a nonna e o nonno queriam todos os filhos, os genros e os netos reunidos em volta da mesa. Era uma mesa enorme, não era cadeira, era banco em volta da mesa. A comida era sempre a mesma, o fogão... Eu não lembro se era a lenha ou se era a carvão o fogão. Uma polenta que ela fazia desse tamanho, ela virava aquela polenta numa tábua de madeira e cortava com barbante os pedaços. Cortava todos os pedaços e punha no prato de cada um e punha uma verdura, é almeirão, mas eu conheci como radicce, que é em italiano, que é aquele almeirão refogado amargo que a gente comia com a polenta. E tinha que comer tudo aquilo que ela punha no prato, e doce de abóbora. Então, a recordação da minha infância, na parte paterna, é aquela mesa enorme, meu nonno de terno e gravata, a minha nonna daquele jeito, e aquela mesa enorme, com todos os filhos, netos, tudo ali. Hoje eu só tenho um primo que é vivo ainda, a gente tem contato por telefone, se vê raramente, mas é o único que sobrou, não tem mais ninguém. E, da parte da minha mãe, que foi onde eu nasci, fui criada junto com a minha avó, com meu avô, nossa! A minha avó é minha adoração, porque a minha mãe falava “não”, e minha avó falava “sim”, e era a avó que eu sou hoje, né? Tudo que meus filhos, meus enteados, não deixam fazer, a avó deixa, a avó deixa fazer tudo, porque é a lembrança que eu tenho da minha avó. Então, ficou em mim, e é isso que eu faço para os meus netos. E a minha avó sempre falando português arrastado, o meu avô... Minhas tias todas solteiras, foram casando e tudo. E hoje, da parte da minha mãe, eu ainda tenho uma tia e um tio, a minha tia Maria e o meu tio Sol. A minha tia, irmã da minha mãe, vai fazer 80 anos dia 25 agora. Então, nós estamos preparando uma festa surpresa, eu falo sempre que ela e o meu tio ficaram sendo mola mestra para unir os primos, porque não tem mais ninguém. Então, eu sou a mais velha, não tem mais ninguém, os meus primos abaixo de mim, todos casados com filhos. A gente se reúne, a gente se encontra, a gente mantém tradição de Natal, de Páscoa, Dia das Mães, é sempre uma união na casa de um deles. Por quê? Porque tem a tia e o tio para segurar a gente. Que mais que você quer que eu te fale?
P1 – Você falou que andava sozinha para ir para casa. E como era essa cidade?
R – Eu nasci e fui criada na Mooca, eu só vim para o Alto do Ipiranga no meu segundo casamento. Então, a minha vida toda é na Mooca, as ruas não eram calçadas, a Rua Hipódromo, onde eu morava, era calçada, o meio da rua é que não era. Então, passava bonde na rua de trás, passava ônibus dos dois lados, não tinha a Radial Leste, que hoje é imensa, dá até medo de olhar. Eu atravessava duas ruazinhas e estava na Rua Inácio de Araújo, para ir na casa da minha nonna, hoje o metrô fechou, o metrô Bresser. Agora, se tiver que ir à Rua Inácio de Araújo tem que passar por dento do metrô para ir para o outro lado. Não tinha televisão. Televisão só tinha quando eu estava com 11 anos, mais ou menos. Então, a gente brincava na rua, à noite as donas de casa, toda a família, os adultos, punham as cadeiras na rua, e a meninada ficava brincando de roda, de estátua, de esconde-esconde, de amarelinha. Era uma vida assim... Não tinha brinquedo, a gente brincava de venda, pegava terra, plantinha para fazer umas coisas para vender, e São João era uma festa na rua, com fogueira e tudo, e hoje não existe mais.
P1 – Dona Jacy a gente estava falando da Mooca, e eu queria te perguntar agora dessa fase, antes de você conhecer o seu marido, depois que seu pai foi embora, você ficou um tempo na sua casa? Você saiu da escola e passou a ficar com sua mãe?
R – Mas, antes de meu pai ter ido embora, eu já tinha parado de estudar, eu repeti a primeira série e minha falou assim: “Ah, fica em casa, me ajuda e pronto.” Porque minha mãe trabalhava muito, como eu falei. Ela dava marmita, eu entregava as marmitas para ela, tinha uma senhora viúva que morava sozinha, eu levava marmita todo dia, eu ia entregar as coxinhas, as empadinhas que ela fazia no bar. Então, de tarde, eu ia recolher, e o que não vendeu, trazia de volta. Eu ajudava bastante ela. E foi pouco espaço que eu fiquei sozinha.
P1 – Sua mãe te ensinou a cozinhar?
R – Ah, minha mãe me ensinou. Esqueci de te falar. A Subprefeitura do Ipiranga já lançou dois livros de culinária Vovós do Ipiranga, só as vovós do Ipiranga podem participar. Então, na primeira edição do livro, eu tenho 13 receitas publicadas e ainda houve, na festa de lançamento do livro, um sorteio, eu ganhei um fogão maravilhoso no sorteio. E o segundo livro, eles só deram xerocado, porque não teve patrocínio, e mesmo assim eu tive umas cinco ou seis receitas publicadas, e agora, no final de outubro, vai ter o terceiro livro, está com patrocínio. Então, vai ter a festa de lançamento, e eu vou ter mais algumas receitas publicadas lá. Isso também é da gente. A minha mãe me ensinou, eu passei para minha filha e eu gosto até hoje: “Mãe, faz isso, faz aquilo amanhã.” Foi ontem o aniversário de um genro, marido da minha enteada, e amanhã vamos comemorar. Eu já fiz o bolo para ele, antes de sair, eu deixei tudo em andamento, porque eu gosto. Então, tudo aquilo que eu fazia antigamente é porque eu gostava e, depois, para ganhar dinheiro. Hoje eu não faço tanto porque também eu já estou cansada. Mas eu continuo fazendo. E, outra coisa, eu estou sempre pronta pra ajudar as pessoas. Eu adoro fazer uma gentileza, eu adoro que alguém me peça: “Você pode ir comigo ali? Você pode me emprestar uma bolsa?” Olha, eu tenho o maior prazer em fazer as coisas para ajudar alguém e também, de vez em quando, eu faço umas atrapalhadas, né? Quer que eu conte?
P1 – Pode contar.
R – Uma que me veio agora, são muitas, mas a que eu lembrei agora: a minha irmã comprou um sapato e a minha irmã nunca trocou nada do que ela não gosta, ela é uma pessoa mais reservada, hoje ela tem 55 anos, mas ela está muito bem na vida, ela se fez sozinha, a família dela. Ela mora em Florianópolis, ela não casou, não teve filhos, mas a família dela é a minha filha e os meus netos. Da minha filha, ela gosta de todo mundo, ela está sempre presente, mas, como ela tinha sete anos, fazia dois anos que meu pai tinha ido embora quando a minha filha nasceu, então, ela se apegou na minha filha e ela gostava muito também do meu falecido marido. Então, depois que ela começou a se estabilizar na vida e tudo, teve aquela fase “compra, compra, mas chega em casa não gosta e não vai tocar”. E ela dava pra mim. Aí eu ia, trocava pra mim a roupa, a bolsa, o que fosse. E teve um dia que ela falou: “Olha, eu comprei esse sapato e não quero, na primeira loja da Rua Direita.” Eu coloquei o sapato na caixa e pus numa sacola que não era da loja e falei pra minha filha – ela tinha 13 anos: “Venha ver como se aprende a fazer uma troca.” E lá fomos nós duas. Aí olhei tudo na vitrine que eu queria, olhei o sapato que ia devolver, o preço, tudo, falei para o moço da loja: “Eu quero aquele, aquele, e a minha filha quer esse.” Eu sabia que ia pagar uma diferença, mas falei: “Vamos ficar quietinhas.” Aí experimentamos, escolhemos, fiz o moço tirar um monte e tudo bem. Falei: “Agora vou te dar esse daqui em troca.” Aí o moço ficou até branco, me atendeu duas horas e ia trocar? Eu falei: “Vai ter uma diferença pequena, que eu já calculei os preços, mas eu vou te pagar.” Eu tirei o sapato da sacola e dei para ele. Ele falou: “Minha senhora, não é essa loja aqui, é a do vizinho.” Quando ele acabou de falar, minha filha já estava na rua. Que vergonha! Mas isso acontece frequentemente comigo, de eu fazer essas coisas. Aí eu falei: “Você me desculpa, eu vou voltar aqui depois e vou comprar um sapato.” Mas eu fiquei tão vermelha, mas tão vermelha, eu nem fui na outra loja. Eu falei para a minha filha: “Vamos embora pra casa, outro dia eu volto.” Ela falava: “Mãe, cuidado com o que você vai fazer, cuidado com o que você vai falar.” Teve um dia que o meu filho usou o carro da minha filha, que estava de plantão, já adultos. Aí ele não guardou o carro no estacionamento, a gente morava na Mooca, e não tinha garagem, tinha que guardar. Ele veio de madrugada e não guardou, e meu quarto era na frente. Eu escutei barulho, fui lá no fundo e falei: “Olha, filho eu estou escutando barulho, estão mexendo no carro.” Ele botou uma roupa, veio correndo. Ele é policial, ele estava armado. Aí ele saiu e falou: “Mãe, liga pra polícia e fala que estão tentando roubar o carro, que eu vou pegar o carro e vou dar uma volta para ver se encontro alguém.” Tinham quebrado o vidro e roubado o toca-fitas. Ele falou: “Eu vou dar uma volta no bairro para ver se encontro alguém com toca-fita, alguém suspeito, e você liga para a polícia e fala que estão roubando o carro.” Eu liguei para a polícia e pensei: se eu falar que estão roubando o carro, eles virão só amanhã, vou falar que roubaram, e falei que roubaram o carro e dei a chapa e tudo e continuei deitada, de madrugada. Daqui a pouco, me liga alguém: “Aqui é o policial tal.” Eu falei: “Agora, você está me ligando? Já roubaram o carro.” Ele falou: “Pois é, mas acontece que eu estou aqui com o ladrão, que disse que é seu filho e é policial, e ele está aqui com as mãos para cima.” Eu falei: “Ah, minha Nossa Senhora, é verdade, se eu falasse que estavam tentando roubar o carro, vocês não viriam.” Ele falou: “É seu filho mesmo?” Eu falei: “Lógico que é meu filho.” Aí o meu filho falou: “Mãe, eu só não vou te matar porque você é minha mãe.” Mas foi muito engraçado, porque, coitado do meu filho, que papelão, né? Ele falou: “Mãe, era para falar que queriam roubar.” Eu falei: “Ah, eles não viriam, né?” Assim tem muitas, agora eu não me lembro mais, mas tem muita coisa, muita coisa engraçada.
P1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, você falou um pouco do seu marido, e eu fiquei curioso. Como a senhora o conheceu? O primeiro marido.
R – Eu tinha 17 anos. Num sábado à tarde, eu estava na porta, no portão, olhando a rua, apareceu uma amiga, é minha amiga até hoje, a Claudete, eu estive com ela nessa semana. A Claudete já era casada, um pouquinho mais velha que eu e já era casada. Aí ela falou: “Jacy, hoje eu vou com o Juracy” – o marido dela, já falecido – “nós vamos num baile no Santa Helena.” Santa Helena era um clube fechado que tinha na Praça Clóvis Beviláqua, hoje é Praça da Sé. Era em cima do cinema que tinha, chamado Santa Helena, e era um clube particular, ela falou: “Quer ir?” Eu falei: “Se minha mãe deixar” – minha mãe não me deixava fazer nada – “eu vou”. Aí eu entrei e perguntei pra minha mãe, ela falou: “Ah, com a Claudete pode, porque ela vai com o marido dela, eu deixo você ir.” Aí eu me arrumei toda bonitinha para ir para o baile e fui com eles. Cheguei lá, fiquei com eles numa mesa. Numa mesa tinha um rapaz, que seria o meu marido no futuro. Mas ele estava com sete, conta de mentiroso, ele estava com sete moças, uma delas era a noiva dele, de aliança. Ele veio cumprimentar a Claudete e o Juracy, porque eram conhecidos do clube. E eles me apresentaram e ele, com a noiva, me olhava. Eu falei: “Claudete, mas ele está me olhando, ele está com a noiva.” Ela falou: “Vai ver que eles brigaram.” Eu falei: “Mas estão os dois de aliança.” Aí passou um pouco, ele veio me tirar para dançar, e eu vi que ele estava sem aliança. Ele falou: “Dança comigo?” Eu falei: “Mas escuta.” Ele falou: “Não fala nada, vamos dançar, não pergunta nada.” Dancei com ele, ele voltou lá para a mesa e depois ele veio na nossa mesa outra vez e ele falou: “Amanhã vou te telefonar, você encontra comigo?” Eu falei: “Minha mãe não deixa, meu pai foi embora recentemente.” Eu já fui falando. Ele falou: “Vou lá e falo com a sua mãe.” Eu falei: “Não, me telefona.” Aí eu dei o telefone para ele, ele me ligou e falou: “Naquela noite de ontem, eu estava desmanchando o noivado, isso já vinha protelando há muito tempo, já está encerrado, encontra comigo, vamos ao cinema.” Eu falei: “Olha, eu vou falar com a minha mãe.” Mas eu não falei que ele era noivo. A minha mãe falou: “Bom, se é lá do clube, o Juracy e a Claudete que te apresentaram, você saia às sete horas e às nove horas de volta.” Aí eu falei: “Olha, sete horas, mas você não vem aqui na minha porta, não, você me encontra na esquina da Rua Ipanema com a Rua Hipódromo.” Eu morava uma quadra antes. Aí ele veio no carro, eu falei: “Eu não posso entrar no teu carro, minha mãe não deixa.” Eu não entrei no carro. Eu falei: “Vamos ficar conversando, eu não posso entrar, minha mãe não deixa e, outra coisa, nove horas eu tenho que ir embora, eu não posso.” Aí nós ficamos conversando, e ele falou: “O que a sua mãe é? Uma bruxa?” Eu falei: “Não, a minha mãe é uma mulher sofrida.” Aí fui contando. Ele falou: “Eu dou valor para sua mãe, porque os meus pais, você veja...” Quantos anos ele teria hoje, eu já perdi até a conta, eu tenho 66, ele devia, 77 ele iria fazer, ele falou: “Quando eu era pequeno, tinha menos de um ano, meus pais se separaram.” Você veja, há 77 anos. Ele falou: “Eu fui criado pela minha avó materna, então, eu sei como é que é. Minha mãe vinha me ver de vez em quando e, quando eu tinha oito para nove anos, por aí, ela morreu atropelada. Então, a sua mãe tem razão.” Aí eu fiquei com aquilo na cabeça, eu pensei: “Puxa vida, ele também sofreu. Eu fico reclamando que meu pai foi embora e tudo.” Aí eu sei que eu falei: “Agora eu vou embora, porque, se não, minha mãe vai ficar brava.” Ele falou: “Quando eu posso te ver?” Eu falei: “Não sei, eu vou te telefonar.” Ele me deu o telefone, mas ele falou: “Eu ligo pra você.” E na segunda-feira já ligou. Eu falei: “Mas eu não posso, a minha mãe não deixa eu sair de novo.” Ele falou: “Nem conversar no portão?” Aí lá vou eu: “Mãe, pode conversar no portão?” “Pode”, ela falou, “dez minutos”. Aí ele veio na terça-feira, dez minutos, e a minha mãe lá de dentro gritou: “Pronto, já passaram dez minutos, manda ele embora.” Aí a minha mãe falou: “Você sabe o nome dele?” Eu falei: “Eu sei, é Paulo de Noce Neto.” Ela falou: “Eu conheço alguém da família de Noce, vou investigar. Enquanto eu não investigar, você não manda mais ele vir no portão.” Aí uma tia minha, que já faleceu, tinha uma amiga que era prima do pai dele, então, a minha mãe foi lá na casa dela tirar informação dele. Falaram: “Ah, é um rapaz que trabalha, é contador, mora com a avó.” Ela falou: “Então, está bom, eu vou deixar namorar no portão dez minutos.” Na mesma semana, ele veio no sábado e falou: “Olha, eu vou entrar e vou falar com a sua mãe, não vou querer ficar dez minutos no portão, eu venho lá da Rua Piratininga, não pode entrar no carro? Eu vou entrar e vou falar.” Entrou e falou com a minha mãe e conquistou a minha mãe, a minha irmã, que era carente... A minha irmã tinha um colar de barbante nojento, com sete chupetas, não saía dela. Ele é que, com jeitinho, a fez abandonar as sete chupetas. E depois, um dia, depois de um ano, eu o conheci no dia 5 de maio de 61, e no dia 3 de maio de 62, eu já estava casada, porque ele falou: “Não dá, não tem como.” Nós ficamos morando um pouquinho com a minha mãe, porque eram a minha mãe e a minha irmã, nessa casa na Rua Hipódromo, e logo fomos procurar uma coisa para morar. E coincidentemente foi a casa que eu encontrei com ele. Foi a casa que desocupou, onde eu fui encontrar com ele na Rua Ipanema, esquina com a Rua Hipódromo. Então, naquela casa já morava a vizinha, a minha amiga, a Julinha, que era minha amiga de infância, é amiga até hoje. Então, naquela casa foi que eu criei os meus filhos e que eu vivi 20 anos com ele, e mais uns cinco ali até arrumar a vida de novo e mudar de casa. E foi assim, ele se encantou comigo, e eu, boba, nunca tinha namorado. Achei aquilo um conto de fadas, só que o casamento não é um conto de fadas. Foram muitos altos e baixos, mas a gente foi aparando as arestas e dando sentido à vida.
P1 – Você comentou do baile. Como era um baile naquela época, o que é o baile?
R – Ah, eu só conhecia baile que a gente fazia nas casas, era radiovitrola. Juntava as amiguinhas da rua, tudo ali do pedaço: “Ah, sábado vamos reunir na casa...” Inclusive na minha. “Vamos reunir na tua casa?” “Vamos.” E afastava todos os móveis da sala, o sofá, a mesa encostava tudo e cada um levava um pratinho. Tocavam lá os discos, e a gente dançava, mas não era rosto colado, não era nada, dançava à moda antiga. Eu ainda consegui, eu acho que em uns três ou quatro bailes de formatura eu fui, porque tinha uma amiga também de infância, já falecida, que a mãe dela levava. Então, a minha mãe deixou eu ir junto acho que umas três vezes, fez até um vestido longo todo bordado e tudo. A minha mãe fez para mim e eu fui, no salão do aeroporto, eu acho que nem tem mais salão de baile lá no Aeroporto de Congonhas. Era baile de formatura. Dançava-se também, todas as moças de vestido comprido, com todo respeito, e foi só isso, a minha juventude. A minha infância foi legal, agora a juventude... Não que não fosse legal a juventude, mas foi curta, porque até 15 anos eu era uma menina, com 17 eu já estava namorando, com 18 eu já estava casada. Então foi curta. Mas foi isso a minha juventude.
P1 – E a experiência de ter sido mãe, como foi?
R – A melhor coisa do mundo, né? A melhor coisa do mundo hoje é ser avó, mas ser mãe, nossa! Foi uma coisa maravilhosa, porque eu não sabia nada, eu não sabia nem como ia nascer a criança, eu não sabia, eu não conversava com a mãe nada e não tinha essa abertura de hoje, de televisão, de revista. Eu não sabia nada de nada. Meu marido que foi me ensinando, foi me explicando tudo, e também o acompanhamento médico era precaríssimo, para a época de hoje. O médico escutava o bebê, o coraçãozinho do bebê, não tinha ultrassom, não tinha nada. Então, eu fui me preparando, na minha cabeça: “Se fosse uma coisa de outro mundo ter um filho, quem tinha um não tinha o segundo. Também doce de coco não há de ser, mas vamos ver.” E realmente me portei bem. Eu tive uma menina saudável, grande, maravilhosa, orgulho da minha vida, meus dois filhos só me deram alegrias, nossa! Muitas, mas muitas alegrias. Minha filha se estabeleceu, tem três crianças maravilhosas, meu filho tem duas meninas que são... Nossa! Apaixonada, apaixonada, a menina de sete anos é terrível, ela tem uma língua, ela fala umas coisas. Ela falou para mim outro dia: “Vó, eu te amo muito, e você é linda, mas você precisa...” Eu estava sem óculos: “Você precisa fazer uma plástica para você ficar assim esticada, você precisa fazer uma redução de papo e você precisa fazer uma plástica na barriga, você está muito gorda, 40 quilos você precisa emagrecer.” Eu falei: “O que mais, Lea?” “Olha, vó, também uma lente de contato azul ia ficar bom.” Eu falei: “Tudo isso?” Ela falou: “Agora, se você não quiser emagrecer, tudo bem, você fala que está grávida para o resto da vida.” Eu falei: “Eu te amo, te amo de paixão.” Eu falo: “A avó dá a vida para todos os netos, mas para você eu dou a minha vida inteirinha.” Sabe o que ela me respondeu? “Eu não queria a tua vida, vó.” Porque eu tenho gastrite e de vez em quando eu tenho umas crises de arroto, ela falou: “Eu não queria tua vida porque você arrota.” Eu falo: “Hoje meus filhos são os amores da minha vida, mas os meus netos, eu sou apaixonada por todos eles.” E os que não são meus, os dos meus enteados, eles são meus também, eu sou apaixonada por todos eles. A Rafaela, que é da minha enteada mais nova, eu não consigo ver uma diferença no amor grande que eu tenho por ela com os meus netos, porque ela foi a primeira grávida. As outras eu fui acompanhando, mas ela foi a primeira, então, é uma coisa assim... É uma experiência na vida da gente. E todos eles, nossa! É “vó” daqui, “vó” de lá, e levo para tudo quanto é canto. Quarta-feira agora eu vou fazer uma arte com a minha neta, da minha filha, ela tem dez anos, ela quer ir ao cinema com duas amiguinhas, querem sair da escola, almoçar no shopping. É da Escola Madre Cabrini para o Shopping Santa Cruz, tudo bem, mas lá no shopping, almoçar e ir ao cinema. Sozinha, a minha filha não deixou, as mães das outras duas deixaram. Eu falei: “Ela vai, a avó vai de espiã, você não me conhece, não me apresenta para as suas amigas, vocês vão comer, eu sento na outra mesa, e como também. Vocês vão sentar na fila do cinema, eu sento atrás, eu acompanho você até de volta.” Então, para elas é uma aventura, e para mim é um prazer. Vou adorar fazer isso e muita arte eu fiz com eles, uma da minha enteada... Fazia, né? Porque agora já são grandes, comem tudo que punha no prato, e o menino não queria, o Gustavo não queria comer, eu falava assim: “Tem que comer.” Aí ela virava as costas, eu tirava o frango, tirava o bife do prato, embrulhava no guardanapo, dava um jeito. Quando ela voltava, perguntava: “Você comeu?” Ele balançava a cabeça. Então, eu acho que avó é isso, avó é para essas coisas. Eu falo: uma avó que cria tem que ter uns limites. Mas avó que só agrada...
P1 – Teve muita diferença do seu filho para sua filha?
R – Quatro anos de diferença.
P1 – Mas e a experiência de criar um menino e criar uma menina é muito diferente?
R – Olha, foi muito bom, porque naquela época eu era nova, eu não trabalhava, eu não tinha problema com dinheiro, era o marido que se virava com tudo. Então, eu curti muito meus filhos. A minha filha fazia batizado de boneca, porque eu também fui criada assim, minha mãe também fazia pra mim. Então, fazia lá uns docinhos, umas coisinhas, e chamava as amiguinhas, um amiguinho era o padre e batizava a boneca, fazia aquela festa toda. E o meu filho, eu brincava com ele de empinar pipa, jogar bola. Meu filho queria um cachorrinho, eu já... A minha filha, quando ela nasceu, já tínhamos um cachorrinho em casa, depois ele morreu. Eu falei: “Não quero outro.” Mas o meu filho, na faixa de nove, dez anos: “Ah, porque eu quero, eu vou ficar um adolescente frustrado porque você não me deixou ter um cachorro.” Eu falei: “Tá bom, então, vamos arrumar.” Ele já tinha arrumado, ele saiu e foi buscar. Aí veio um toquinho, porque, no bolso da japona, é jaqueta hoje. Outro dia eu me esqueci e falei para minha neta: “Pega a japona, porque vai fazer frio.” “Que é isso, vó?” Aí, ele veio com o cachorrinho no bolso da jaqueta, era uma gracinha e ficamos apaixonados. Quando o cachorrinho fez um ano: “Vamos fazer uma festa para o cachorro.” Tem até fotografia do cachorro, ele tirou a foto do cachorro, mandou revelar umas seis ou sete, pegou um carimbo, uma almofada de carimbo, e botou a pata do cachorro e escreveu atrás da foto: “Estou te convidando para o meu primeiro aniversário, tal hora, tal dia, na rua tal, número tal.” E botou a pata do Toquinho e mandou para os amigos dele. A mãe fez a festa, né? O bolo era de carne moída, com a velinha. Eu curti muito, eu levava eles para passear, fazer trabalho de escola. Acho que participei, acho não, eu participei bastante da vida deles e procurei ser uma mãe legal. Hoje eu tenho muito o carinho deles, eu falo: “Eu não tenho o que reclamar dos meus filhos, da minha nora.” A minha nora é a mesma coisa que minha filha. Eu vejo umas amigas minhas falarem “porque a nora, porque a sogra”, principalmente quando a gente vai fazer a unha, é um tal de falar mal de sogra e nora. Eu fico de boca fechada, só agradecendo a Deus, porque eu não tenho nada para falar, é tudo muito bom, graças a Deus.
P1 – Depois que você cuidou da infância deles e seu marido veio a falecer, como é que foi ir para a cidade? Porque você muda totalmente, porque você tinha uma vida na comunidade, né?
R – É.
P1 – Primeiro, eu queria saber como era a vida nessa comunidade? Se vocês eram muito próximos?
R – A gente era um bando lá nas comunidades, todos casais, tinha casais de várias faixas de idade, inclusive esses meus tios, que ela vai fazer 80 anos domingo, também eram da comunidade. Então, cada grupo automaticamente se juntava pela faixa de idade, pela faixa de idade dos filhos, e tinha sempre, uma vez em cada mês, tinha um novo encontro para outras pessoas participarem. Então, a gente trabalhava na cozinha, no banheiro, na visitação, olhava os filhos de quem queria fazer o encontro e não tinha com quem deixar as crianças. A minha vida, durante os dez anos, era participar da comunidade e os meus filhos da comunidade de adolescentes. Depois, de jovens. E nisso tudo foi aquela grande amizade que ficou. A gente, toda quarta-feira, tinha reunião, todo mundo ia para a reunião com o padre lá no salão da igreja e uma vez por mês a gente tinha reunião do círculo, que era aquele grupinho nosso. E dificilmente um fim de semana a gente não tinha alguma coisa para fazer com eles. Juntavam dois ou três casais, pegavam os filhos, e falavam: “Vamos fazer um piquenique lá no zoológico?” “Vamos não sei onde?” Outro tinha uma casa na praia: “Vamos lá fazer um churrasquinho." A gente estava sempre junto, ficava no domingo jogando baralho, os filhos iam para a matinê, um ia levar, depois outro ia buscar, e de noite acabava tudo em pizza. E assim foi durante uns dez anos. Agora, depois que eu comecei a trabalhar na Sears, não com pesquisa, pesquisa eu achei que foi tudo normal. Depois que eu trabalhei na Sears é que a minha cabeça abriu para o mundo de hoje, porque eu era ali toda bonitinha, tudo certinho. Aí que eu comecei a ver que a vida não era o que eu estava pensando, não. Mas os meus padrões, aquilo que eu ensinei para os meus filhos, eu preservo, mas já aceito as coisas diferentes com normalidade.
P1 – E quais eram essas mudanças?
R – Ah, eu não aceitava uma menina que trabalhava comigo sair com o chefe da outra divisão na hora do almoço e ir para motel. E ainda voltava com chocolatinho, distribuindo. Aí, no sábado, a esposa dele vinha lá com a criança, tudo bonitinho. Ah, aquilo pra mim era o fim do mundo. Só que depois você começa a ver que não é bem assim, que isso existe, está cheio. Tinha um rapaz que trabalhava comigo que era gay, eu achava estranho, não é preconceito, eu achava estranho o chefe da divisão sair com vendedora de outra... Eu achava isso o fim do mundo, o rapaz ser gay, eu não tinha preconceito, mas eu tinha receio de me aproximar. E depois você vai convivendo, você vai vendo. Olha, é muito melhor você ter um amigo gay do que uma amiga falsa, é muito melhor. Aí conheci lésbica também, que trabalhava lá, eu falava: “Meu Deus, nem vou me aproximar.” Depois eu via: “O que é isso? Cada um faz do seu corpo, da sua vida o que quer.” Não está prejudicando ninguém, não está matando, não está roubando, preconceito eu nunca tive e nunca tive. Voltando atrás, a minha mãe, na ignorância dela e da minha avó, “preto não era gente”, não chegava perto, então, o preconceito ficou. Quando eu fui para o terceiro ano do grupo, a minha professora era uma negra. Olha, eu me apaixonei perdidamente por ela e ela por mim. Eu só perdi o contato com ela há três anos, porque ela faleceu. Então eu falei: “Não, por quê? Negro é gente.” Agora isso há tantos anos e hoje ainda existe, né? A minha melhor amiga, nem de infância e nem de juventude, vamos dizer dos 30 aos 40 anos, de 30 a 50 anos, a minha melhor amiga foi uma negra, a Maria Mulata, já falecida. Eu sou madrinha do neto dela, do Daniel. A minha comadre, a Solange, uma família maravilhosa. E eu fui criada naquele: “Como? Negro?” São muito mais gente do que a gente, não tem isso. Aquela época era muito estranha. Quem usava sandália havaiana, nem existia Havaianas, era alpargatas, que hoje é chique, era pobre, quem usava uma camiseta escrita qualquer coisa, alpargatas, que dava muita camiseta, ela levava na escola pra dar pra crianças, que era da Caixa, crianças pobres, levava as camisetas, nossa! Era uma vergonha usar uma camiseta. Hoje é grife, né? Então as coisas mudam muito e a gente tem que acompanhar. Agora, a próxima etapa da minha vida, em breve, é entrar no computador, eu fui fazer um curso de computação, eu fiz e demorou para eu aprender, eu fiquei nervosa, eu falei: “Não vou conseguir.” Consegui o básico. Aí saí de lá com o diplominha e tudo. E perto de casa tem uma lan house, eu ia lá todo dia dar uma treinadinha. Aí, aconteceu do meu marido ficar doente e eu parei. Conclusão: eu esqueci tudo. Agora eu fui tentar fazer o curso de novo, e a própria pessoa falou pra mim: “Providencia primeiro um computador, porque aí você sai da aula e vai pra casa, porque, se não, você vai esquecer de novo.” Claro, a memória da gente já não é mais a mesma, tanto que eu fiz a oficina da memória, que foi uma coisa maravilhosa que aconteceu na minha vida também.
P1 – Deixa eu te perguntar, agora você falou sobre o seu marido, como você conheceu o seu segundo marido?
R – Meu segundo marido? Até um tempo atrás eu tinha vergonha de contar, aí eu contava outra história, mas a história real é a seguinte: eu coloquei um anúncio no Primeira Mão. Eu trabalhava na Sears, eu aluguei uma caixa-postal no correio que tinha lá perto e coloquei um anúncio no Primeira Mão assim: “Viúva de boa aparência procura uma pessoa até 60 anos para início de uma amizade.” E coloquei. É claro que eu não coloquei Jacy, eu coloquei outro nome. Aí começaram a aparecer cartas e mais cartas, umas 80 cartas eu recebi, até de presidiário eu recebi. Eu fui selecionando, e o meu filho não sabia de nada, mas a minha filha participando comigo. Separa, separa, separa, e eu fiquei com cinco. Eu falei: “Essas cinco eu vou telefonar." Telefonei para um e falei: “Olha, eu recebi sua carta.” Ele falou: “Ah, vamos nos encontrar?” Eu falei: “Até vamos, mas eu já vou te falando, eu sou uma mulher séria, eu quero uma amizade de início, se você está pensando que nós vamos jantar e depois nós vamos terminar num motel, já encerramos a ligação agora.” Ele falou: “Passe muito bem”, e desligou o telefone. Aí eu falei: “Ah, eu não vou ligar para mais ninguém, porque vai ser tudo essa mesma conversa, eu não vou ligar para ninguém.” A minha filha falou: “Mãe, liga que você vai encontrar, você fala o que você sente, o que você está falando.” Aí liguei para o segundo. Saí com ele. Não, eu nem saí, pedi para me encontrar no shopping, na praça de alimentação, tomamos um chopinho e não era nada do que eu queria. Eu falei: “Olha, qualquer coisa, eu entro em contato.” Não me agradou a aparência, não me agradou, e ficou por isso mesmo. O terceiro eu gostei dele, gostei muito dele, mas, quando ele começou a me contar a vida dele, também lá na praça de alimentação, porque é um lugar público, eu falei: “Olha, eu simpatizei e tudo, a gente podia ser amigos, mas eu já tenho a minha vida bem sofrida, entre aspas, que eu não acho que é sofrida, mas bem complicada, cheia de compromissos.” Então, eu falei: “Eu não vou me envolver com você, não, procura alguém do seu jeito.” Porque ele era divorciado de uma, desquitado de outra, era separado de outra e tinha filho com cada uma delas, eu pensei: “O que eu vou querer com isso?” O quarto foi a mesma conversa, eu falei: “Olha, encontro na praça de alimentação, quando eu sair do trabalho. Se for para ir para motel, nem vá.” Ele falou: “A gente resolve na hora.” Eu falei: “Eu não tenho que resolver na hora, eu não vou. Nem vá.” Ele falou: “Eu vou, faço questão de te conhecer.” Nós fomos, e ele falou: “Eu queria mesmo era uma aventura.” Eu falei: “Comigo não tem aventura.” Eu falei para minha filha: “Acho que já chega, pega esse um que sobrou aí e bota fogo.” Ela falou: “Mãe, se não der certo, você vai pôr outro anúncio e vai começar tudo de novo.” Porque, antes de tomar essa atitude de colocar esse anúncio, eu comecei a sair com uma conhecida que era separada, outra que era solteirona, mas você ia nos barzinhos, os caras já chegavam e já vinham pegando na mão, dando beijo. Eu sou antiga, não funcionava comigo. Então foi aí que eu resolvi a opção do anúncio. Eu peguei e fui encontrar com o quinto, também lá na praça de alimentação, era o Adauto, muito sério, muito tímido, conversando pouquinho, baixinho. Ele me falou que era viúvo, igual ele colocou na carta, ele era viúvo apenas há seis meses e não estava procurando aventura e nem eu. Então eu falei o seguinte: “Vamos ser amigos? É o que eu quero, alguém para ir ao cinema, para trocar uma ideia, para tomar um sorvete e para conversar.” Nós fizemos amizade, que depois se transformou num namoro e num caso sério que já bateu 23 anos. Eu falei: “Olha, daqui a pouco, eu faço bodas de prata com você.” Com o meu marido, eu fiquei 20 anos. Então, foi assim. No começo eu não falava isso, eu tinha vergonha, eu falava: “Eu o conheci numa loja de calçado.” Sei lá, eu inventava lá uma historinha, mas depois eu falei: “Ah, não devo nada para ninguém, foi uma atitude minha, vou assumir a minha atitude.” As crianças adoram quando eu conto essas coisas: “Vó, conta, e aí que roupa você estava? Como é que foi?” Aconteceu, né? Tinha que ser, acho que Deus estava reservando uma pessoa boa, educada. Então a gente construiu. Uma das minhas netas sempre me pergunta: “Como foi amar o vô Paulo e amar o vô Adauto?” “Foi diferente, o vô Paulo foi aquele amor, aquela coisa que o coração bate, as pernas ficam moles, porque foi a primeira experiência, o primeiro namorado. Agora, o vô Adauto, a vó já tinha os filhos grandes, ele também já tinha, então, é um amor, é um companheirismo, é uma coisa diferente.” É uma coisa tranquila, não tem ciúmes e não tem mais nada para construir junto. Então, não tem isso: “Olha, eu penso assim, você pensa assado, eu quero criar meu filho desse jeito e você quer desse.” Não tem. Não tem por que discutir, está tudo muito bem.
P1 – E a fase da amizade, vocês saíam juntos?
R – A gente ia para o cinema, de vez em quando pegava na mão e dava beijinho, aí começa. Acho que ficamos uns seis meses saindo junto para depois falar: “Agora eu acho que chegou a hora, vamos ver no que vai dar, acho que vai dar certo.”
P1 – E como foi com os seus filhos? Cresceram e se formaram?
R – Formaram, a minha filha fez faculdade de Enfermagem, na realidade ela queria fazer Medicina, mas, depois, com a morte do pai ficou muito complicado. Então, fazendo a faculdade de Enfermagem, ela podia trabalhar uma parte, dois, três dias por semana, ela era técnica de enfermagem, ela dava plantão. Então foi mais fácil ela fazer a faculdade de Enfermagem. Meu filho foi se fazendo sozinho. A minha filha ainda teve ajuda para pagar a faculdade, como eu falei, do meu falecido sogro e da minha irmã, eles pagavam a faculdade para ela. O meu filho foi tudo sozinho, ele foi trabalhando, foi procurando uma coisa melhor e foi conseguindo organizar a vida dele, depois casou. Todos eles estão muito bem, todos estão bem casados, os filhos todos estudando.
P1 – Depois que eles se formaram e tiveram a vida feita você foi...
R – Porque morávamos eu, a minha filha e o meu filho. Aí aconteceu o seguinte: o meu falecido sogro, ele era casado, eu já contei, no início, que a minha sogra mesmo eu nem conhecia, ela morreu atropelada quando meu marido era pequeno. Meu sogro tinha uma segunda esposa, não teve filhos com ela. E, quando ela faleceu, eles moravam os dois sozinhos, era uma pessoa maravilhosa, a Jandira. Quando a Jandira faleceu, meu sogro ficou muito triste, muito aborrecido, então, o meu filho resolveu ir morar com ele. Já era adulto, já estava terminando a faculdade: “Você vai ficar muito triste?” Eu falei: “Não, a gente está sempre junto, se o vovô está precisando, então você vai.” Aí meu filho foi morar com meu sogro, fiquei eu e a minha filha. Aí a minha filha casou e a minha mãe, nessa fase, já estava morando em Porto Alegre com a minha irmã, já estava meio adoentada, ela não ficava sozinha. Eu tenho outra história da minha mãe para contar, muito linda. A minha mãe não ficava sozinha de jeito nenhum, porque ela viu um acidente, o carro capotou na ainda Conselheiro Justino, hoje é Radial Leste. Capotou, incendiou no portão da casa onde eu passei a minha infância, porque lá moravam a minha mãe e a minha irmã. Capotou, incendiou, explodiu, eu acho que morreram duas pessoas, uma mulher grávida, que a minha mãe, mesmo velha, já com bastante idade, nunca esquecia os gritos daquela mulher grávida, pedindo para salvar o filho. E, daquele dia em diante, a minha mãe não quis mais saber de ficar sozinha um minuto. Então, sempre tinha uma empregada. Se ela estivesse sem empregada no momento, minha mãe vinha pra minha casa, ficava comigo, dormia lá e tudo, com os filhos pequenos, e voltava. E assim foi durante muitos anos. Aí teve uma época que o meu marido falou: “Olha, é melhor que ela venha morar aqui com a sua irmã, porque ela não sai daqui.” Construiu mais um quarto, elas foram morar lá, mas não foi muito bom. Depois de um ano, minha irmã alugou aquela casa em frente à minha e foi morar lá com a minha mãe. Quer dizer, mesmo com empregada, a gente estava sempre em contato. E a minha mãe nunca mais quis ficar sozinha. Quando a minha irmã foi transferida pra Porto Alegre, a minha mãe ficou relutante. “Vou? Não vou?” Aí a minha irmã deu um tempinho pra ir pra Porto Alegre. A minha irmã já morava no Morumbi com a minha mãe e, numa dessas coisas de não ter empregada, a minha irmã me ligou. Eu já trabalhava na Sears, e falou: “Olha, eu vou deixar mamãe na casa de repouso que tem no caminho e de noite eu pego, porque a empregada não veio.” E assim foram várias vezes, e as empregadas não ficavam, porque a pessoa de idade tem manias. Eu estava ocupada em reunião, e minha mãe me ligava: “A empregada comeu toda a margarina, o que eu faço? Gastou todo sabão.” E as empregadas não ficavam. Aí a minha irmã deixou ela na casa de repouso, ela acabou dormindo lá algumas vezes, e a minha irmã foi viajar. Não foi definitivo, mas foi viajar para Porto Alegre, e eu fui lá num domingo visitar minha mãe e vejo a minha mãe conversando lá com um senhor e pensei: “Ave Maria! Minha mãe está namorando!” Aí a minha mãe me apresentou o Senhor Américo. Vim para casa, liguei para minha irmã em Porto Alegre e falei: “Olha, mamãe está de caso com um velho lá, o Senhor Américo.” “Ah você é louca, mamãe, quando era nova, que papai foi embora, nunca quis saber de ninguém, agora que ela tem quase 70 anos, você acha que ela vai querer alguém?” Eu posso estar enganada, eu falei: “Quando você for lá...” A minha irmã chegou de viagem e falou: “Vem, mãe.” Ela falou: “Ah, mas está sem empregada, eu vou ficar.” E estava lá junto com esse Senhor Américo. A minha irmã falou: “Mãe, mas...” “Não. Arruma empregada e depois eu vou.” A minha irmã arrumou empregada, minha mãe foi, e daqui a pouco a empregada vai embora, e volta a minha mãe, volta para lá. A minha mãe me liga um dia e fala assim: “Você pode vir aqui domingo no horário da visita, às duas horas, que eu quero falar com você e com a tua irmã? Ela passou aqui hoje e eu já falei pra ela vir domingo às duas horas.” Aí eu falei com a minha irmã: “Ela vai falar que está namorando o Senhor Américo”. Ela falou comigo: “Olha, você é louca.” Eu falei: “Tá bom.” Chegamos lá, tinha uma moça e um rapaz do lado do Senhor Américo, e nós duas. Ela falou: “Olha, os filhos do Senhor Américo, minhas filhas, ele falou que os filhos não mandam nele, mas vocês mandam em mim, mas se vocês deixarem, nós queremos casar.” Eu olhei para minha irmã, e ficamos as duas com cara de boba. Minha irmã falou: “Nossa!” Aí ela falou: “Não é porque eu sou uma velha sem vergonha, nós não vamos casar por causa só de sexo, é porque a gente é companhia um do outro, a gente se entende, a gente conversa, lê o jornal junto, assiste o filme na televisão, então, se vocês não se opuserem...” Minha irmã falou: “Tudo bem, está bom.” Foi o casamento mais lindo que eu já vi na minha vida. O meu filho levou a minha mãe para o altar. O padre, na hora que os pais abençoam os filhos, ele chamou os filhos para abençoarem os pais, e acabou o casamento com uma salva de palmas, uma festa no salão da igreja, foi maravilhoso. E a minha mãe com o Senhor Américo ficaram morando no apartamento com a minha irmã, no Morumbi, e, quando a minha irmã viajava, mesmo que a empregada furasse, os dois estavam juntos. Não tinha problema, né? Só que aí foi passando, eu acho que uns cinco anos que eles ficaram juntos, o Senhor Américo fumava um cigarro atrás do outro, e a minha mãe começou a ter problema respiratório, começou a ter problema de não poder mais andar. Ah, nesse espaço de tempo, nesses cinco anos que eles ficaram casados, depois de um tempo que estavam com a minha irmã, e essa história das empregadas, eles dois resolveram que queriam morar na casa de repouso, porque, na casa de repouso que eles moravam, que eles se conheceram, tinha uma edícula. Então, lá na edícula, foi feito para eles. Eles levaram a televisão, a geladeira, as coisas deles, moravam lá, eles não tinham preocupação com comida nem com roupa e nem com empregada. Então, lá eles passaram mais uns três anos, até minha mãe ficar bem doente e eu ter que tirar ela de lá para providenciar... Minha irmã a levou para Porto Alegre e tudo, e logo em seguida o Senhor Américo faleceu, e a minha mãe ficou morando com a minha irmã em Porto Alegre. Mas depois foi para a casa de repouso. Um dia eu fui lá visitar e falei: “Mãe, vem morar comigo, eu vou arrumar a casa.” Meus filhos ajeitaram a casa. Quando eu resolvi trazer a minha mãe de Porto Alegre, da casa de repouso para morar comigo em São Paulo, a casa onde eu morava, que eu criei meus filhos e tudo, era uma casa alugada, e o meu marido sempre achava que a gente ia conseguir comprar aquela casa, mas nunca conseguimos. Só que, a essas alturas, o meu filho praticamente formado, trabalhando, a minha filha formada e trabalhando, eles compraram uma casa para mim lá perto mesmo de onde eu morava, na Rua Hipódromo, e, junto com a minha irmã, eles reformaram a casa para adaptar para a minha mãe. Então, um quarto foi transformado numa suíte, foi feito um banco de azulejo para ela sentar e tomar banho, foi toda equipada para ela morar. Ela veio morar comigo, mas ela não gostou, porque ela falou que eu saía. E tinha a babá para ela. A babá Rosângela cuidava dela e, quando sobrava um tempinho, me ajudava, mas era à disposição dela, porque ela não estava mais andando, levava para passear na cadeira de rodas. E ela não gostou, porque ela falou que, lá onde ela morava, na casa de repouso, mesmo sem o marido, as pessoas eram todas da mesma idade, conversavam as mesmas coisas, contavam a mesma história 20 vezes. Eu entrava, saía, e ela só via a minha irmã quando vinha. E ela não estava muito contente. Eu falei: “Ah, mãe, vamos acostumar, vou ficar mais em casa, então.” Comecei a chamar as primas antigas dela, telefonava e falava: “Vem bater um papo com a minha mãe, tomar um café.” E assim foi indo, mas foi muito pouco tempo, a minha mãe ficou comigo seis meses, depois de uns cinco meses que ela estava comigo, já na cama, ela começou com muita dor e chamamos um médico. Internou, ficou 15 dias internada e ela faleceu. Mas eu ainda fiz a festa de 80 anos para ela nessa casa onde a gente estava morando e logo depois ela faleceu.
P2 – Eu quero saber como foi estar com Júlia, porque Júlia está presente em vários momentos importantes, né?
R – Sim, a Julinha é uma pessoa maravilhosa, ela é dez anos mais velha do que eu, ela foi minha amiga de infância, porque eu morava de um lado e ela morava do outro. Quer dizer, não foi bem minha amiga de infância, porque eu comecei a conversar com ela, eu tinha sete, oito anos, ela já era uma mocinha. Mas ficou. A mãe dela, o pai dela, muito queridos, já eram amigos dos meus pais, então a gente continuou esse crescimento junto. Logo que eu casei, eu fui morar, coincidentemente, do lado da casa dela, tão pegado que a gente era tão amiga que o meu falecido marido abriu uma janela no muro, porque a gente passava as coisas. “Ju, fiz um bolo, dá um pedaço para tua mãe.” Ela falava: “Jacy, eu coei um café, pega aqui uma xícara.” Então, assim foi a amizade, o meu filho, que é a paixão da vida dela, ela é a segunda mãe dele. Ele passava, eu não sei como chama hoje, naquela época era um cestinho que chamava moisés. A gente botava o bebê dentro e carregava assim pela alça. Eu passava o moisés pela janela do muro, para ela ficar com ele, para eu sair só com a menina, que era maior. Então, é uma amizade muito grande, e ela, quando eu tinha dez, doze anos, ela é professora de piano, ela me ensinou a tocar piano, só que eu não aprendi. Depois ela ensinou meus filhos também, nenhum se formou, mas eles tiveram aula de piano com ela. Ela está sempre presente na vida da gente, onde a gente vai. Meu filho, principalmente, onde vai chama a Julinha, quarta-feira, no meu aniversário, ela esteve em casa. Então, é uma amizade de uma vida. Do início de uma vida e vai até o fim da vida, né?
P2 – E tem alguma recordação da sua infância com Júlia?
R – Não, de infância não, porque eu comecei a conversar com a Julinha... Eu a conhecia porque eu morava de um lado e ela de outro, então, a gente se via toda hora, de noite as cadeiras na porta e tudo. Mas eu comecei a conversar com ela e ficar amiga quando eu tinha uns dez, 11 anos. Na época que minha mãe me soltou, porque eu podia atravessar a rua, eu ia conversar com ela, porque ela ficava sentada no portão da casa dela. Então, a gente começou a conversar, ela já era uma mocinha, porque dez anos dá uma diferença, né? E ela cuidou, ela foi uma pessoa abnegada, ela cuidou do pai e da mãe dela como ninguém cuidaria, hoje se colocaria numa casa de repouso. O trabalho que ela teve com o pai e com a mãe... Mas é uma pessoa muito querida, faz parte. Ela é da família da gente.
P2 – E como surgiu a ideia da janela?
R – Meu marido, porque eu subia... A mãe dela falava assim: “Jacy, fiz um cafezinho.” Ela sabia que eu gosto do café só quando faz na hora, se for da garrafa, não quero. “Acabei de coar um café, vem pegar.” Eu punha um banquinho e subia para pegar pelo muro. Aí eu falava: “Dona Nenê, eu fiz tal coisa.” Aí subia. E era assim. A minha filha principalmente falava para a Julinha: “Ju, eu quero cortar minha franjinha, mas eu quero agora, abre a porta que eu estou indo aí.” Ela cortava. Aí vai pôr a calça, ela tem uma porção, mas aquela que ela quer arrebentou o zíper: “Dona Nenê, põe para mim o zíper.” Na hora, tudo elas faziam na hora. E sempre subindo, tanto ela para mim, como eu para ela, a gente subia num banco. Um dia, meu marido falou: “Para com isso.” Pegou o martelo e quebrou tudo, depois chamou um pedreiro, tem até hoje, porque ela mora na mesma casa. E a pessoa que mora na casa onde eu morei não tem amizade com ela, porque a época hoje é outra. Mas o quadradinho do muro está lá, abertinho, para passar os pratinhos.
P1 – Eu queria agora... Tem duas perguntas antes de encerrar, primeiro a relação com a Rafaela, porque foi a primeira vez que você foi avó. Acho que é bem marcante, né?
R – A Rafaela é uma paixão da minha vida, hoje ela já está com 19 anos, está na faculdade, já namora, então, não tem mais aquele aconchego, mas a Rafaela dormia comigo, eu levava ela para tudo quanto é canto, na 25 de Março comprar aquelas tranqueiradas. Quando ela fez 15 anos, comprar as lembrancinhas, quando ela tinha baile. Porque é na faixa dos 15 anos que tem todos os bailes, as festas de 15 anos, né? Eu ia com ela em tudo quanto é loja procurar os vestidos para alugar, depois a mãe ia para acertar. Mas a mãe não tinha tempo, que é dentista, trabalha. Então, eu ia com ela para tudo quanto é canto e levava ela para todo lugar, para cinema, para teatrinho, onde eu ia a Rafaela ia comigo. Quando a minha filha casou, a família do meu marido atual, a irmã dele, que já é falecida, não se conformava. A Rafaela tinha, acho que uns três anos, não tinha mais do que isso, eu atendendo as pessoas lá no salãozinho, e ela grudada em mim. Ela sempre foi muito grudada comigo, e tudo ela contava para mim, tudo. As outras também, mas não foi tanto, a Rafaela foi a que marcou realmente a minha vida. Hoje está um pouquinho... Não conta mais tudo para a avó, já está com 19 anos, já não conta tudo, agora quem conta são as meninas da minha filha. A minha filha tem um menino de 16 e as meninas, uma vai fazer 14 e a outra vai fazer 11. Então é: “Vó, vem aqui, vó, faz isso.” A pequena, de 11, nossa! Ela puxou de mim, ela faz bolo. Ela queria aprender a fazer um bolo, eu ensinei um bem fácil. Aí ela já guardou a receita na cabeça e toda hora fazia, toda hora fazia. Eu peguei e fiz um caderno de receita para ela, tudo receitinha fácil. Pois, olha, ela faz, eles moram num prédio, ela fez uns papeizinhos no computador: “Encomende comigo seu bolo para o chá ou café." E botou tudo debaixo das portas. As pessoas ligam, ela faz os bolinhos, simples ainda. Mais para frente, eu vou ensinar coisas melhores, mas bolo para tomar café, sem recheio, sem cobertura, ela faz. Ela vende, o dinheiro é dela, eu falo: “Leila, você puxou da vó.” Ela fala: “Eu gosto.” Ela faz para a casa dela e faz também para vender, eu acho tão bonitinho. A outra do meio já não gosta muito, não.
P1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, você tem algum sonho hoje?
R – Ah, os meus sonhos são pequenos, são viver com saúde para curtir bem mais ainda os meus netos e umas viagens. Uma delas eu vou fazer no mês de dezembro, se Deus quiser, uma cidade do Rio chamada Conservatória. Dizem que é um encanto, as minhas amigas que foram dizem que é tudo antigo, você acorda com o despertar de passarinho, seresta ao entardecer, na rua que tem o Museu do Nelson Gonçalves, não sei mais de quem, que eu não lembro agora. Dizem que é uma caixinha de fósforo a cidade, dizem que é uma coisa muito bonita e dizem que o bom é você ir numa excursão com guia e tudo, e é difícil de ter. Agora eu encontrei uma que vai ser de 11 a 13 de dezembro, então, se Deus quiser, eu vou. E uma viagem de navio, pode ser curtinha, de três dias, só para eu ter o prazer de entrar num navio e ver como é. Dizem que é tudo tão bonito, né? A minha preferência seria com o Roberto Carlos, mas aí é muito dinheiro. Mas eu me contento com uma que, se Deus quiser, em breve, eu vou fazer. E não é sonho, mas, se eu tivesse dinheiro, eu iria conhecer a Itália, Portugal e Espanha, mas não é que isso seja uma coisa importante, isso é se... Agora eu quero o navio. Pouquinha coisa e saúde para curtir meus netos e meus filhos, só isso.
P1 – Eu queria te perguntar, para finalizar, como é que foi contar a sua história aqui para a gente?
R – Ah, foi gostoso, estou me sentindo tão leve, parece que eu tenho 20 anos, foi muito bom. Eu falei: “Ih, eu vou me embananar, vou me emocionar, não vou saber dar uma sequência.” Mas eu acho que consegui dar pelo menos uma metade de uma sequência, né? Estou muito contente, muito agradecida a vocês, o trabalho de vocês é lindo, é maravilhoso, só precisa ser mais divulgado. Com as pessoas que eu comentei, ninguém sabe, nunca nem ouviu falar. Mas a minha filha entrou na internet e falou: “Mãe, é uma coisa boa." Inclusive, ela disse que leu um depoimento, uma carta de uma filha que trouxe a carta para cá, que ela achou depois de dez anos que o pai faleceu, ela leu a carta na internet. Então foi isso, eu gostei demais.
P1 – A gente agradece.
R – Não sei se é isso que vocês estavam esperando?
P1 – É isso sim. Esta ótimo. Muito obrigado, Dona Jacy.
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