Mestres do Brasil – Suas memórias, saberes e histórias
Depoimento de Rita de Cássia Machado de Avellar
Entrevistada por Morgana ______ e Julia Basso
Rio de Janeiro, 23/09/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista n° OFMB_HV017
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Paola F. Alves e Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Rita, eu queria começar pedindo pra você dizer pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Rita de Cássia Machado de Avellar. Eu nasci em Vassouras, em oito de outubro de 1965.
P/1 – Rita, diz pra mim o nome dos seus pais.
R – O meu pai se chama Romero Jesus Lopes de Avellar e minha mãe, Josele Machado de Avellar.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Minha mãe era professora, hoje aposentada e o meu pai era pecuarista e comerciante.
P/1 – Pecuarista. Então vocês tinham uma fazenda em Vassouras?
R – Tínhamos e ainda temos a fazenda.
P/1 – Uma fazenda de quê?
R – Voltada pra criação de gado de corte.
P/1 – Conte um pouco pra gente a história da sua família, a origem. Seus pais são de lá mesmo?
R – O meu pai nasceu num distrito de Valença, Barão de Juparanã, e a minha mãe nasceu em Miracema, norte do estado do Rio. A minha mãe veio pra Vassouras com oito meses de idade; meu avô era… Trabalhava na coletoria naquela época - hoje é fiscal de renda - e veio trabalhar em Vassouras.
A minha mãe ela é miracemense, mas ela se considera vassourense de coração. E conheceu o meu pai, que também veio morar em Vassouras porque os meus avós também vieram morar em Vassouras. Saíram de Juparanã e vieram pra Vassouras e se casaram em 1965.
P/1 – Rita, você tem irmãos?
R – Tenho. Somos eu, a mais velha e depois de mim quatro irmãos. Sou eu, o Ovídio, o Romerinho, o Avelino e o Jorge.
P/1 – E como era a infância de vocês lá, na fazenda?
R – Na realidade, nós não morávamos na fazenda, nós sempre moramos na cidade - apesar...
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Depoimento de Rita de Cássia Machado de Avellar
Entrevistada por Morgana ______ e Julia Basso
Rio de Janeiro, 23/09/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista n° OFMB_HV017
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Paola F. Alves e Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 – Rita, eu queria começar pedindo pra você dizer pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Rita de Cássia Machado de Avellar. Eu nasci em Vassouras, em oito de outubro de 1965.
P/1 – Rita, diz pra mim o nome dos seus pais.
R – O meu pai se chama Romero Jesus Lopes de Avellar e minha mãe, Josele Machado de Avellar.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Minha mãe era professora, hoje aposentada e o meu pai era pecuarista e comerciante.
P/1 – Pecuarista. Então vocês tinham uma fazenda em Vassouras?
R – Tínhamos e ainda temos a fazenda.
P/1 – Uma fazenda de quê?
R – Voltada pra criação de gado de corte.
P/1 – Conte um pouco pra gente a história da sua família, a origem. Seus pais são de lá mesmo?
R – O meu pai nasceu num distrito de Valença, Barão de Juparanã, e a minha mãe nasceu em Miracema, norte do estado do Rio. A minha mãe veio pra Vassouras com oito meses de idade; meu avô era… Trabalhava na coletoria naquela época - hoje é fiscal de renda - e veio trabalhar em Vassouras.
A minha mãe ela é miracemense, mas ela se considera vassourense de coração. E conheceu o meu pai, que também veio morar em Vassouras porque os meus avós também vieram morar em Vassouras. Saíram de Juparanã e vieram pra Vassouras e se casaram em 1965.
P/1 – Rita, você tem irmãos?
R – Tenho. Somos eu, a mais velha e depois de mim quatro irmãos. Sou eu, o Ovídio, o Romerinho, o Avelino e o Jorge.
P/1 – E como era a infância de vocês lá, na fazenda?
R – Na realidade, nós não morávamos na fazenda, nós sempre moramos na cidade - apesar da fazenda ficar perto da cidade, a cerca de vinte minutos de carro de casa até a fazenda. Nós convivíamos muito na fazenda a trabalho, os meninos trabalhavam com o meu pai lá. Eu realmente só ia passear, andar a cavalo, que era o que eu gostava. Às vezes, [no] domingo, quando a gente ia passar o dia inteiro na fazenda, a gente improvisava uma churrasqueira, uma forja, e ali a gente fazia uma carninha e ficava ali o dia inteiro andando a cavalo pra lá, pra cá, brincando. Mas os meus irmãos não, os meus irmãos eles iam pra fazenda pra trabalhar com o meu pai. Lá eles juntavam gado, apartavam gado, tudo voltado pra pecuária. O meu pai até plantava, às vezes, separava algum terreno. Já plantou abóbora, já plantou feijão, mas não era... O nosso trabalho não era voltado pra agricultura, era voltado pra pecuária. Depois, quando começamos já a entrar na fase de adolescência, ele começou a criar cavalo, manga-larga machador, aí começamos a ver um outro lado do que era uma fazenda. Aí nós começamos a frequentar as exposições. Tivemos muitos animais nossos que foram premiados e a gente vivia aquilo. E acompanhar um concurso de marcha, que pra quem não entende não vê graça nenhuma em ficar sentado, vendo o cavalinho rodar pra um lado e rodar pro outro, né? Mas a gente aprendeu conhecer aquilo e tudo isso [foi] passado pelo meu pai.
P/1 – Rita, e como que era essa fazenda? Tinha uma casona?
R – Não. A fazenda, o meu pai dizia que o nosso pedaço de terra não era fazenda, era “fazendo”, porque ele vivia “fazendo” alguma coisa, principalmente a casa. Tudo que ele começava, na intenção de fazer a casa dali, ela se transformava num rancho ou num outro curral, entendeu? Ou num outro puxadinho. E até hoje, nós temos a fazenda com toda uma infraestrutura, mas casa na fazenda nós não temos.
No ano retrasado, nós fizemos um aniversário do meu irmão caçula lá, e foram vários colegas porque não tem casa, mas tem um quartinho com banheiro porque a gente fica lá o dia inteiro, né? E tem uma cozinha, então nós fomos pra fazer a festa; fomos cerca de 35 pessoas e dormimos no rancho.
Eu lembro que acordei [às] oito horas da manhã. Quando olhei, eu enxerguei um curral coberto de neblina. Foi a única vez na minha vida que eu dormi na fazenda.
P/1 – E na sua infância, tinha algum lugarzinho que você gostava lá? Onde você ficava mais na fazenda?
R – Não, eu ia à fazenda aos domingos, porque fora isso a gente estava estudando. Eu ia só aos domingos, pra andar a cavalo. Eu acompanhava o meu pai, ele gostava de sair correndo nos pastos, me mostrando tudo: “Aquilo ali, aquela cerca lá é nossa. Aquele curral lá é não sei o que.” Então ele sempre passava informação.
Algum lugar especial pra mim... Eu perdi meu pai faz cinco anos, mas hoje, [quando] eu chego lá, eu o enxergo em cada pedacinho. Em cada cocheira que eu vejo sair um animal, cada pedacinho daquele curral, tudo aquilo ali foi trabalho dele e a gente acompanhava, eu acompanhava em casa.
A minha família, o meu pai, minha mãe, eles são muito tradicionalistas, então fui criada num regime meio antigo. Eu não saía, eu não ia a baile sozinha. Eu não podia sair sozinha com namorado, sempre tinha que ir um irmão acompanhar. Às vezes, eu contando isso nos dias de hoje, as pessoas ainda ficam assim horrorizadas: “Nossa!” Mas é, eu fui criada assim: enquanto os meus irmãos trabalhavam na fazenda, eu tinha que ter as minhas obrigações em casa, entendeu? Então, o que eu tinha que aprender? Eu tinha que aprender a limpar, a lavar, a passar roupa, eu tinha que aprender a cozinhar, né? Eu fui criada assim, eu tinha as minhas obrigações dentro de casa. O meu pai fazia questão disso e a minha mãe também.
P/1 – E quem lhe ensinava os afazeres?
R – Minha mãe. Mas era gostoso quando eu fazia faxina na casa e meu pai chegava de noite e falava assim... (suspiro) Sentia o cheirinho: “Ah, quem fez faxina na casa hoje foi a Rita.” E eu aprendi a gostar disso. De cozinha não, de cozinha eu tenho horror. Eu faço, mas eu tenho horror. Agora, se me der uma casa pra faxinar, iiih... Eu boto música, eu fico feliz da vida! (risos)
P/1 – Rita, e essa casa na cidade então, como era?
R – Essa casa… Quando meu pai e minha mãe se casaram eles alugaram essa casinha. Era uma casinha de dois quartos, sala, cozinha e banheiro e tinha muito terreno pra trás. Depois de uns anos, meu pai começou, comprou a casa pela Caixa, aquele plano que pagava em vinte anos.
Quando éramos pequenos a nossa vida era muito difícil. Meu pai trabalhava muito, mas nunca nos deixou faltar nada, nunca tive... Vida de rico, entendeu? Lá em casa, a gente... E ele criava a gente nessa realidade. Eu me lembro [que] quando fiz oito anos era um quarto só pra mim, pro Ovídio e pro Romerinho. O Avelino e o Jorge, que eram os menorzinhos, dormiam no quarto do meu pai. Era um quarto do lado do outro e o meu pai abriu uma porta pra comunicar, porque eles tinham que ver as crianças todas. Éramos cinco e a diferença nossa é de um ano, um ano e pouquinho de um pro outro. Quando eu fiz oito anos o meu pai fez a primeira reforma na casa, então tivemos que sair da nossa casa, alugar uma outra casa e esperar. A nossa casa ficou quase um ano fazendo reforma. Quando voltamos ela era uma casa totalmente diferente: ela tinha três quartos, tinha dois banheiros, um banheiro dentro de casa e um banheiro na varanda. Nós tiramos o barranco que tinha nos fundos da casa, era um galinheiro e tinha algumas árvores: goiaba, ameixa, limão. E nós tivemos que tirar tudo isso, né?
E um detalhe: atrás da minha casa passava a linha do trem. Quando eu era criança aquilo pra mim era traumático, quando apitava eu sentia que ela estava passando por dentro da minha casa, então eu corria o mais pra frente da casa possível, porque o trem estava passando lá nos fundos. Mas quando nós fizemos a reforma, a linha do trem já tinha sido extinta em Vassouras. Foi extinta em 1970, a nossa casa foi reformada em 73. E aí nós moramos nessa casa como ela foi reconstruída, com três quartos.
Nessa época eu já tinha o meu quarto sozinha e os meninos tinham um quarto que era pra eles, onde ficavam três: o Ovídio, o Romerinho e o Avelino. O Jorge era ainda muito bebê, ficava no quarto com a minha mãe e com o meu pai. Mais tarde era um quarto só pros quatro. Aí você imagina: só cabia a cama, o guarda-roupa tinha que ficar em outro lugar. Mas eu não, eu tinha o meu quarto, né? O meu pai fazia, achava que eu era a única mulher, então eu tinha que ter, ser diferente. Não fui mimada ao extremo, mas as pequenas delicadezas que ele achava que tinha que ter comigo, ele tinha.
Quando eu entrei pra quarta série primária… Eu aprendi a ler e a escrever em escola pública, era o Grupo Escolar Barão de Vassouras. A minha mãe era professora lá e todos nós estudávamos lá. Quando eu entrei pra quarta série primária meu pai achou que eu tinha que ter uma outra formação, então me tirou da escola pública. Ele me colocou no Colégio Regina Coeli e lá eu estudei da quarta série até o primeiro ano básico. Quando eu cheguei no primeiro ano básico eu fiz a opção por fazer o Curso Normal. Eu queria dar aulas, seguir os passos da minha mãe, aí fui para o Colégio Santos Anjos, onde eu cursei os dois anos de Normal.
P/1 – Agora, Rita, antes de você chegar a contar essas coisas da escola, como eram as brincadeiras que você tinha com os seus irmãos na sua infância?
R – Ah, olha só, a gente... Fartura de brinquedo a gente não tinha. Eu tinha muita boneca, sempre fui apaixonada por boneca e os meus irmãos adoravam aqueles bonequinhos de forte apache. Coisa bem antiga, tinha aqueles bonequinhos.
Eu tinha uma vizinha que é minha amiga, muito amiga até hoje. Ela era a única mulher com três irmãos e eu era a única mulher com quatro irmãos e nós morávamos assim, dividia um muro, né? Um lado do muro era a minha casa, o outro muro era a casa dela. Só que ela não tinha... Ela tinha mais um espírito de moleque, então eu tinha que negociar com ela pra ela brincar de boneca comigo, senão eu não conseguia brincar de boneca. Porque os meus irmãos não brincavam de boneca comigo, eles queriam soltar pipa, jogar bolinha de gude, jogar futebol. Eu fazia tudo isso com eles porque não tinha outra opção, mas eu gostava das minhas bonecas. Brinquei de boneca e tive as minhas bonecas até os meus dezessete anos.
P/1 – E eram bonecas do quê? Feita com o quê?
R – Bonecas comuns. Eu nunca tive boneca de pilha. Na época, boneca que falava “mamãe, papai”, abraçava ou cantava, não. As minhas bonecas eram bonecas comuns, essas que você tem que rodar a perna pra ela sentar, levantar o braço, piscava o olhinho quando você virava ela, mas eu tinha paixão e o meu pai gostava disso, ele volta e meia chegava com uma boneca.
Eu lembro que as duas últimas bonecas que ele me deu foram bonecas desse tamanho, simples. A única coisa que elas faziam era quando eu as virava de cabeça pra baixo: elas choravam, porque tinha aquele chorinho nas costas, não sei se vocês se lembram disso, e os olhinhos delas fechavam quando eu as virava.
À noite os filhos dos vizinhos iam lá pra casa. Meus pais não gostavam que a gente saísse pra casa dos outros, eles queriam que os nossos colegas fossem lá pra casa e não faziam questão de nada, então juntava aquela garotada lá em casa e a gente ia brincar de queimada, E não era bola, a gente... A bola vivia furada, então a gente pegava jornal, amassava, botava dentro de um saco plástico, dava nó, botava outro saco plástico, dava nó e fazia aquela bola. Ali a gente brincava. Ou então a gente brincava de polícia e ladrão, pulei muita janela na minha vida. Falam que faz mal; até hoje não me fez mal, mas pulei muita janela. E a gente brincava. Quando dava nove horas, mãe (bate palma, demonstrando o sinal da mãe): os vizinhos pra casa, as crianças pra dentro e aí a gente ia dormir.
P/1 – E tinha festas próximas a sua casa?
R – Não. As festas que eu me lembro, quando eu era criança e adolescente eram as festinhas de igreja, festa junina. Tinha muitas da escola, da igreja, né? No mês de junho, cada final de semana tinha festa num determinado local e a gente sempre ia, a mãe sempre levava a gente um bocadinho pra [se] divertir.
P/1 – E como era essa festa da igreja?
R – A festa da igreja é assim: barraquinha de comer e beber, a gente não era muito ligado não, mas a gente gostava de uma pescaria, o porquinho da índia. Eu era fissurada, queria gastar meu dinheiro todo jogando no porquinho da índia.
P/1 – O que é o porquinho da índia?
R – Sabe o que... O porquinho da índia era assim: eles faziam é... Eram dez casinhas, dez caixinhas com uma entrada. Cada caixinha daquela era numerada; em cima de cada caixinha tinha uma prenda diferente e eles colocavam um coelhinho no meio, rodava e soltava a caixinha. Quando você pagava escolhia um número: se o coelhinho entrasse no número que você escolheu, você ganhava a prenda; se ele entrasse na outra, sinto muito, você tinha perdido a rodada. Aquilo ali a gente gostava. Tinha parque, mas não eram os parques sofisticados que a gente tem hoje. Era bem...
Quando nós éramos crianças, na nossa vida não faltava nada, mas era com muita dificuldade. Meu pai era... O meu pai e a minha mãe trabalhavam muito; o meu pai, então, às vezes passava três, quatro dias sem eu vê-lo, porque [quando] ele saía eu estava dormindo, e quando ele chegava de noite eu estava dormindo também. Naquela época não se usava muito caminhão pra transportar o gado, o gado era tocado. então, às vezes, ele ficava dois, três dias na estrada, tocando gado de um lado pro outro. Eu lembro que uma vez ele trouxe um gado de Rio Preto e ele teve que atravessar um trecho do Rio Preto; a botina dele encharcou tanto e aquela cor entranhou no pé dele, ele ficou com aquele pé roxo, sabe? Era da tinta da botina. Ele trabalhava muito.
P/1 – E o que vocês comiam, Rita?
R – Arroz, feijão e muita carne. Muita carne, todo dia tinha carne pra gente.
P/1 – Como que era feita, preparada?
R – Bife, carne moída, carne assada, carne do jeito que fosse. Depois, quando a vida melhorou, quando os meus irmãos começaram a ter uma idade mais avançada, o meu pai achava que eles tinham que ter uma ocupação, então meu pai montou um açougue na cidade, o Açougue Central. O Açougue Central existiu por 32 anos, nós só desativamos ele depois que o meu pai faleceu, e todos os meus irmãos trabalhavam nele. A gente teve mais facilidade ainda de ter a carne, né, porque nós produzíamos o gado na fazenda. A gente criava o gado, a gente vendia pro matadouro e a gente colocava a carne. Na época, quando a gente era pequeno, existia um matadouro municipal em Vassouras, então a gente não precisava passar, não existia aquele controle de qualidade que hoje existe. A gente trazia o gado, matava no matadouro e já levava direto pro açougue.
Eu lembro muitas vezes de chegar, sentar pra tomar um café da manhã e ter um prato de bife. Os meus irmãos, eles tinham que se alimentar muito bem porque às vezes iam pra fazenda seis horas da manhã e só voltavam pra almoçar às cinco horas da tarde. Quando era época de ter que fazer plantio de braquiária, que era o capim que era... O meu pai viajava uma vez por ano pra Goiás, vinha com a caminhonete com semente de braquiária. Meus irmãos é que usavam o trator pra arar a terra e fazer o plantio dessa braquiária, então eles não tinham... Eles iam cedo e só voltavam cinco horas da tarde pra almoçar.
P/1 – A braquiária alimenta o gado?
R – É, como se fosse um capim. É uma espécie de capim.
P/1 – E nessa época você já gostava de cavalo?
R – Ah, eu gosto de cavalo desde que era criança. Eu comecei a andar a cavalo muito cedo, com três anos eu já andava. Nas nossas férias a gente não tinha pra onde ir; no final da rua lá de casa tinha uma chácara de um senhor muito amigo nosso, amigo do meu pai, e ele cedia um pastozinho, então o meu... Trazia dois cavalos da fazenda: a eguinha, que era a Bainha, mansinha, e o cavalinho, que era o Pelintra. Vinham os dois, eles ficavam naquele pastinho e a gente andava a cavalo na cidade o dia inteiro, os trinta dias de férias. De manhã o Ovídio ia lá, puxava, arreava e a gente cronometrava: era uma hora pra cada um pra dar a volta, e a gente andava de manhã. Na hora do almoço parava pro animalzinho descansar; às três horas a gente arreava de novo, andava até as cinco e meia, seis horas. Quando dava cinco e meia, seis horas, dávamos banho e íamos puxando-os até o pasto, soltávamos lá. E no dia seguinte a mesma coisa. Nossos trinta dias de férias eram andando a cavalo.
P/1 – Na cidade vocês andavam?
R – Na cidade. Naquela época, na cidade tinha muita charrete. O charreteiro passava na rua vendendo aipim, banana. Eu lembro até de um senhor, seu Benjamim, era velhinho lá em Vassouras, sabe? Todo mundo gostava da charrete do seu Benjamim. Eu ficava doida quando ele ia vender banana lá em casa, só porque eu subia na charrete e ia passeando com ele até o final da rua. No final da rua a gente descia e voltava a pé pra casa e ele ia embora, seguir o caminho dele. Faleceu já tem bem tempo, eu era bem criança e ele já era um senhorzinho.
P/1 – Rita, você me falou que você começou a ler e a escrever na escola.
R – Comecei a ler e a escrever na escola.
P/1 – E quando você foi pra escola?
R – Olha só, eu fui pra escola… Na realidade, eu fui pra escola mais cedo do que o normal, porque a minha mãe, como era professora, ela me levava. Tanto que eu me formei em professora com dezesseis pra dezessete anos. Eu fiz o meu terceiro ano Normal todinho com dezesseis anos, só fui fazer dezessete anos no final do ano. Nunca perdi nenhum ano, graças a Deus. Sempre fui aprovada. Terminei o Normal, tive que ficar um ano só fazendo faculdade. Eu terminei o Normal, fiz vestibular pra Biologia, passei e fiquei um ano só estudando porque eu não podia dar aula - eu não tinha a maioridade, não podia ter a carteira assinada. No final de 83 fiz dezoito anos, em março de 84 eu estava empregada. De março de 84 até hoje, não passou um ano que eu não estivesse dentro de uma sala de aula, todos os anos.
P/1 – Mas Rita, conte um pouco mais. Antes de você ir pra essa escola em que você estudou Normal, você estudou junto com os seus irmãos um pouco. Como era essa escola?
R – Ah, era Grupo Escolar. Era bem assim, época de escola do Estado. Eu lembro que uma coisa que me chamava a atenção: eu não sou comilona não, sabe, mas não era a merenda sortida que a gente tem hoje, era sopa. Todo dia era sopa, sabe? Um dia era sopa com osso, outro dia era sopa de aveia e o refeitório não era um refeitório fechado, era um pátio aberto, onde tinha as mesas compridas com aqueles bancos compridos. A gente chegava, ia lá, fazia a fila com pratinho de alumínio e sentava ali pra tomar aquela sopa. Era muito bom, mas...
Eu nunca cheguei a estudar na mesma sala que os meus irmãos, porque eles eram mais novos do que eu. A minha mãe deu aula pros quatro, só pra mim que ela não deu aula. Ela achava que não ia dar certo. Quando chegou a vez dela pegar a turma que seria do Ovídio ela não queria, mas não teve jeito dela escapar e ela gostou da experiência, aí ela acabou dando aula pra todos. Era engraçado, as crianças chamavam ela de tia, ele chamava de mãe. Aí, às vezes, o outro chamava: “Mãe! Não, é tia!” Fazia uma bagunça.
Eu gostava de... Quando eu estudava de manhã, ela dava aula à tarde. Eu gostava de acompanhá-la, porque quando ela ficava doente eu a substituía; ela me dava o plano de aula, às vezes. Eu tinha treze, quatorze anos; eu entrava na sala de aula e dava conta do recado, eles me respeitavam. Na hora do recreio eu descia e brincava com eles, quando batia o sino eu voltava e era professora de novo, ia pro quadro pra passar a atividade. Era uma escola bem simplesinha, bem simples mesmo.
P/1 – Ela era perto da sua casa? Como você ia pra...
R – É, era perto da... É no centro. A minha casa ficava no centro, da minha casa na escola era no máximo dez, quinze minutos a pé.
P/1 – E como era esse caminho?
R – A gente passava pelo centro da cidade, atravessava. A minha casa num ponto e a escola no outro, então eu tinha que atravessar o centro da cidade todinho. Mas a gente sempre ia com a minha mãe porque ela ia dar aula, então ela ia com aquelas bolsas pesadas cheia de caderno - ela levava muito caderno para corrigir em casa -, e os cinco atrás, enfileirados. Na volta a gente gostava de vir pelo outro caminho, só pra passar pela casa do meu avô, que era o pai dela. Ele morava perto da igreja. Quando ela queria brigar com a gente e castigar, ela ia pela rua de baixo, só pra gente não passar na casa do vovô quando ela estava brigada com a gente. Fora isso, a gente passava, entrava na casa do vovô, tomava café com pão, com biscoito, e depois a gente ia embora pra casa.
P/1 – Você lembra de alguma aula nessa época que lhe marcou?
R – Alguma aula?
P/1 – Ou alguma situação da escola que lhe chamou a atenção?
R – A minha professora. A minha primeira professora foi dona Maria Lucia Ramos. Ela está em Vassouras até hoje. Ela ainda era solteira na época.
Aprendi muita coisa com ela. Ela era uma pessoa calma, enquanto eu sou meio agitada. Às vezes, eu fico gesticulando, falo; ela era calma, falava baixinho. Foi uma pessoa que me marcou muito.
P/1 – E como eram as disciplinas? Eram como hoje?
R – Não, não. Na época que eu estudei eu tinha Português, Matemática, Estudos Sociais e Ciências. Eram quatro matérias básicas, até a quarta série: primeira, segunda e terceira. Não, na primeira e segunda série era uma professora só: foi a minha professora Maria Lucia Ramos, ela me deu aula na primeira e na segunda. Na terceira série já eram três professoras: uma de Português, uma de Matemática, uma de Estudos Sociais e Ciências. E na quarta série eles já começavam a fazer a divisão de História e Geografia, pra que quando a gente entrasse na quinta já tivesse um professor pra cada disciplina.
Eu me lembro que a minha professora de Português, na terceira série, se chamava Sandra Virgínia. Ela foi uma grande amiga minha como colega de trabalho, quer dizer, quando eu me formei e comecei a trabalhar ela era minha colega de trabalho. Trabalhei com ela por muitos anos. Ela hoje já está aposentada, continua em Vassouras também. Mas era engraçado o meu relacionamento com ela, enquanto professora e aluna. Ela me cobrava. E depois, como colegas de trabalho, a gente confidenciava, um relacionamento totalmente diferente.
P/1 – Depois da quinta série é que você mudou de escola?
R – Não, na quarta série.
P/1 – Na quarta série você mudou.
R – Na quarta série eu já mudei pra escola de freira, que a gente falava na época. O Regina Coeli, ele era organizado pelas freiras e lá eu estudei da quarta série até o final do primeiro básico.
P/1 – E era muito diferente essa escola da outra?
R – Era, era. Porque nessa escola, na época, estudavam as meninas que tinham uma ascendência maior, as famílias tinham uma ascendência maior na cidade. A minha família nunca foi de pessoas ilustres - pelo contrário, a gente era bem simples. Eu sentia assim muita diferença porque o estilo de vida delas era totalmente diferente do meu, e eu tinha... Como é que eu vou dizer? Não era preconceito da minha cor, eles debochavam que eu era muito branca, enquanto todo mundo era moreno. Eu era muito branca, então eu não queria botar um short pra fazer educação física. Eu não ia botar a minha perna branca pro lado de fora porque eles iam debochar e debochavam muito. Acho que eles percebiam que aquilo me afetava, então eles debochavam muito.
E eu tinha dois colegas que hoje são grandes amigos, mas que na época eram meus piores inimigos porque me chamavam de Rita Cabrita. [Quando] eu chegava na sala estava escrito “Rita Cabrita” no quadro. Aquilo pra mim era a morte. Mas graças a Deus, eu fiz boas amizades e consegui concluir a minha passagem por esse colégio.
P/1 – Desde o outro colégio já eram meninos e meninas juntos?
R – Já eram meninos e meninas. Quando eu desci pro Santos Anjos, não. No [Colégio dos] Santos Anjos, quando eu fiz o Normal, era uma escola feminina. Estava entrando a turma mista, já estava chegando na quarta série, mas da quinta série até o terceiro ano Normal eram só meninas.
P/1 – No colégio de freiras você já estava começando a ficar jovem, adolescentizinha.
R – Já, já era. Eu desci pro Santos Anjos com quinze anos, fiz o segundo ano com quinze e o terceiro ano com dezesseis.
Era uma juventude totalmente diferente do que é hoje. Como eu estou falando, eu não saía. O primeiro baile que eu fui na minha vida [foi quando] eu já estava fazendo a faculdade de Biologia; assim mesmo, foi um mês pedindo pelo amor de Deus ao meu pai pra eu ir. Ele falou que eu só ia se o Ovídio fosse comigo, então eu fiquei mais catequizando o Ovídio, pedindo pelo amor de Deus. Quando o Ovídio concordou, ele falou também que nós dois sozinhos não podíamos ir, que a tia Dulce e a tio Luciano tinham que ir juntos. Era a minha tia mais velha e o meu tio mais idoso. Aquela cena nunca saiu da minha cabeça: o tio Luciano e a tia Dulce sentados numa arquibancada. Era baile de faculdade e eu e o Ovídio lá embaixo, com hora marcada. “O baile começa às onze? Uma hora vocês tem que estar dentro de casa!” “Mas a gente vai com a tia Dulce e o tio Luciano!” “Não interessa!”
Assim era o baile de carnaval também: “O baile de carnaval começa as 11? Tá, como é carnaval [a] uma e meia vocês tem que estar dentro de casa” “Mas vamos com a tia Dulce e o Luciano!” “Não interessa!”
Eu lembro que uma vez nós saímos do baile de carnaval, era sempre a tia Dulce e o tio Luciano que levavam a gente. Não tinha um táxi a uma e meia da manhã e fomos nós a pé. Aí passou a joaninha - na época a gente chamava de “joaninha da polícia”, aquele Fusquinha: “Seu Luciano, aonde o senhor vai a essa hora?” “Vou levar as crianças do Romero.” “Ah, então entra aí.” Nós fomos de “joaninha de polícia” pra casa, mas chegamos no horário.
P/1 – E esses bailes de carnaval na cidade, eram onde?
R – Era... Bom, tinham dois clubes: A Recreio e o Fluminense. Nós éramos sócios do Fluminense, então era assim: o Fluminense era o clube melhor, a Recreio era o clube mais caidinho. A gente pulava carnaval no Fluminense, as quatro noites. Era assim: dez dias antes ir lá comprar convite, buscar convite quem era sócio. O baile de carnaval tocava aquelas marchinhas, a gente rodava em volta do salão, o tempo todo rodando, rodando. Muito bom!
P/1 – E como era? Já tinha umas paqueras, uns namoros? Fugindo do olho do tio Luciano? (risos)
R – Não, o tio Luciano e a tia Dulce não ofereciam perigo. Os meus irmãos ofereciam porque o meu pai mandava eles tomarem conta. Mas nessa época é o que eu estava falando: brinquei de boneca até os dezessete anos, então eu ainda era muito criança. Só fui acordar pra namorico depois dos dezessete anos, quando eu entrei pra faculdade.
P/1 – Mas como era? Tinha uma banda?
R – Tinha um banda, Banda Mirage. Um dos componentes é o responsável pelo PIM, eu não sei se vocês já ouviram falar. Vassouras tem um projeto PIM - Projeto Integração pela Música. Ele hoje já é como uma escola de música e atende muitas crianças. Agora já têm até uma orquestra e essa orquestra cobra pra tocar em eventos, casamentos, festas. Um projeto muito bacana e tem uma grande expansão dentro da cidade. Sábado de manhã você vê as crianças vestidinhas de blusinha azul, com bonequinho na frente e um instrumento na mão; estão indo pro PIM.
P/1 – Eles tocavam na rua também?
R – Não, fazem apresentações. Por exemplo, no Festival do Vale do Café eles sempre se apresentam. Mas na rua não, é escola mesmo, é fechado.
P/1 – E você, nessa época tinha alguma coisa que acontecia na rua, na cidade, fora a quermesse da igreja?
R – Não. No sete de setembro as escolas todas desfilavam, éramos obrigados a desfilar. Era o Regime Militar, né? Então a gente tinha por obrigação. Mas era legal, eu gostava e os meus amigos também. Era aquela festa, arrumar uniforme, engomar saia. A saia do Regina Coeli era uma saia xadrez, toda plissada, então tinha que alinhavar prega por prega, engomar aquilo pra ela estar impecável no dia sete de setembro. 29 de setembro é aniversário da cidade, também a gente sempre foi obrigado a desfilar, então [no] mês de setembro eram duas datas assim. Fora isso, tinha as festinhas, festa de Santa Rita, em maio. Tem uma capelinha num bairro de Vassouras, Madruga, que a padroeira é Santa Rita de Cássia, então a festa de Santa Rita de Cássia era muito tradicional na cidade, lotava. E o pai levava a gente, marcava a hora pra gente estar no ponto que ele voltava pra buscar. Nessa época, começaram a surgir as paqueras, sabe? Quando a gente começou a frequentar, porque aí tinha aqueles correiozinhos do amor. Tinha muitos estudantes na cidade, então foi quando começou a aflorar essa parte da sexualidade.
P/1 – E você se lembra de alguma situação que viveu nessa época?
R – Ah, eu sempre fui de me apaixonar muito. Nossa, eu me apaixonava loucamente, mas eles não sabiam, entendeu? Eles nunca sabiam. Eu me apaixonava muito. Eu me lembro de duas paixões assim, que eu ficava doente, mas eles não sabiam. (risos) Só eu e minhas amigas.
P/1 – E você quer contar pra gente um pouquinho?
R – É, todos os dois fizeram faculdade em Vassouras. Os dois se tornaram grandes amigos, não só meus como da minha família também. Um mora em Marília - morava em Marília, São Paulo. E o outro morava em Lagoa Dourada, Minas. Foram pessoas que passaram pela minha vida e que deixaram o seu recado e um cantinho no meu coração, eu nunca vou esquecer.
P/1 – Que bacana! (pausa) Falando dos moradores, dos estudantes.
R – Na época que a faculdade foi pra Vassouras, eu ainda era muito criança, mas quando eu fui atingir a fase de adolescente que eu comecei a conviver mais com alguns estudantes. Eles eram mal vistos pelas famílias, né? O pai de família, ele não queria ver a filha dele conversando com estudante de jeito nenhum, porque achava que o estudante ia pra lá, ia tirar proveito e aí virava as costas e ia embora. E os rapazes da cidade também adotavam essa concepção, então era assim, houve muitos bailes que terminaram com brigas horrorosas entre os moradores, os rapazes da cidade e os estudantes. E as moças que namoravam algum rapaz da faculdade, os rapazes da cidade ficavam incomodadíssimos com aquilo. Eles achavam, eles encaravam os estudantes como forasteiros, eram forasteiros na cidade. Hoje em dia, não. Hoje em dia já ficou bem mais versátil, o relacionamento é bom.
O meu pai, apesar de ser rígido… Meus irmãos, principalmente o Ovídio, fazia muita amizade com estudante. Ele sempre gostou muito de música sertaneja; nessa época, os estudantes que iam pra lá eram do interior, então eles levavam essas músicas pra lá e nós fizemos amizade com muitos. Eles frequentavam a nossa casa por intermédio dos meus irmãos. Nesse ponto, se eram os meus irmãos que apresentavam, o meu pai aceitava e acatava. Eles eram amigos.
P/1 – E aí vocês faziam festas na sua casa? Roda de viola?
R – Não. Na minha casa nunca. Meu pai não admitia bebida nem cigarro lá em casa. [Quando havia] aniversário lá em casa a gente reunia todo mundo, mas não tinha música, não tinha cantoria; meu pai era muito reservado nesse ponto. Nem por isso a gente deixava de se divertir, porque aí a gente ia… Já éramos adolescentes, a gente já podia sair de casa e ir na casa do vizinho escutar uma música, né?
P/1 – Tinha seresta?
R – Não, lá na minha cidade não.
P/1 – E que música você gostava de ouvir quando era jovenzinha?
R – Ah, eu adorava uma discoteca, detestava MPB. Aquelas músicas falando de muito sentimento, não. Eu gostava de coisa agitada. Quanto mais agitada, mais eu gostava. Gostava de uma musiquinha sertaneja porque o pai ensinou isso pra gente. E quando a gente andava de carro com ele a gente só escutava Pedro Bento, Zé da Estrada, Teixeirinha. Era o que a gente ouvia quando passeava de carro. Fora isso, não, meu pai tinha horror de música alta. Eu aproveitava quando ele não estava em casa e ligava a vitrola no maior volume; quando eu escutava o barulho da caminhonete chegando eu corria lá, desligava.
Sempre fomos assim, tivemos regras. Hoje em dia agradeço até essas regras, porque me ensinaram a ter um controle em muitas coisas na minha vida.
P/1 – Seu pai era religioso?
R – Meu pai era, mas era a minha mãe aquela religiosa de não perder missa um domingo. O meu pai, não. Ele tinha fé, acreditava em Deus, tinha uma fé enorme em Nossa Senhora Aparecida e São Jorge, mas não era de estar na igreja todo dia. Ele ia se era uma missa em intenção de alguma coisa. Todo ano ele assistia a duas, três missas na Aparecida do Norte, mas dizer que ele vivia na igreja, não.
Eu puxei a ele. Acredito, tenho muita fé, Coração de Jesus pra mim é o que eu peço, ele me atende, mas eu não sou de ficar enfiada na igreja. Minha mãe se ressente disso porque ela, se pudesse, morava dentro da igreja. Tudo que tem na igreja pra fazer ela pega, ela faz e eu me mantenho afastada, não gosto. Acho que tenho outras formas de participar da comunidade que não seja por intermédio da igreja.
P/1 – Mas quando era criança você a acompanhava?
R – Acompanhava, aí a gente era obrigada a ir, né? Tinha catecismo todo domingo. A gente já acordava cedo de segunda a sábado; domingo tinha que acordar cedo também porque tinha catecismo.
P/1 – E como era pra vocês?
R – Enquanto era criança a gente ia porque tinha um monte de criança. Depois que vai ficando adolescente… Eu só consegui ser crismada com quinze anos. Fiz primeira comunhão com sete, dos sete aos quinze só fiz catecismo de crisma e nunca conseguia ser crismada.
P/1 – Por quê?
R – Porque é... Não tinha idade. Na época, a idade pra ser crismado era com quatorze anos e eu não tinha idade, mas a minha mãe queria que eu fizesse o catecismo, então entrava ano, saía ano, todo mundo crismava e eu continuava fazendo catecismo. Até que um dia eu virei pra ela e falei: “Chega! Eu não aguento mais. Ou eu vou fazer a crisma ou eu vou desistir disso de vez!” Tanto que crismamos eu e o meu irmão Ovídio juntos, eu com quinze e ele com quatorze.
P/1 – Agora, Rita, como foi que você... Você disse que queria ser professora porque seguia os passos da sua mãe, mas por que você escolheu a Biologia?
R – Porque eu não tive opção. Eu queria fazer Oceanografia, mas a minha mãe e o meu pai achavam que... Não, a minha mãe achava que eu queria fazer Oceanografia porque sempre gostei muito de ler um romance, adoro! Até hoje eu leio muito. Eu tinha lido um livro onde a heroína era oceanógrafa e a minha mãe achava que aquilo tinha me influenciado. Não, não era aquilo que tinha me influenciado, eu sempre fui louca por praia. Cabo Frio pra mim é o meu paraíso, não existe lugar mais lindo pra mim onde eu queira estar em qualquer momento de folga. Mesmo não tendo oportunidade, mas...
Na época só tinha faculdade de oceanografia no Rio. Meu pai jamais me deixaria vir pro Rio de Janeiro pra fazer faculdade de Oceanografia ou qualquer outra. Em Vassouras já tinha Biologia, então... E ele queria que eu fizesse Medicina. Eu falei que pra médica eu não servia. É... Eu sinto até que [quando] ele foi embora me deixou com aquela coisa na cabeça, que ele queria que eu fosse médica. Seria a realização pessoal dele eu ser médica, mas não consegui realizar esse sonho dele porque ser médica não fazia parte de mim. Eu não consigo. Se eu vir uma criança com dedo machucado eu já peço alguém pra vir socorrer, porque eu não sirvo.
Então eu fui e fiz o vestibular. Coloquei a primeira opção: Biologia, segunda opção: Medicina. Quando veio o resultado, eu passei. Dos 150, eu passei em 18° lugar. A minha pontuação era mais alta do que o último classificado da Medicina, mas eu não quis fazer Medicina, aí eu fiz Biologia.
Foram quatro anos. Quando eu terminei Biologia eu já estava com 21 anos, logo depois, eu comecei a namorar sério. Porque aí já não era mais namorico. Eu namorei dois anos e meio, me casei, fiquei um ano casada, me separei, voltei pra casa dos meus pais. Enquanto isso, os meus irmãos foram fazendo faculdade de Direito. Começou pelo Romerinho, que era o do meio, depois o Ovídio e o Avelino.
Quando retornei pra casa… A minha ligação com o caçula é muito grande, a minha diferença de idade pra ele são sete anos. Eu cuidava dele quando ele era bebê e tenho uma identidade muito grande com ele. Tenho uma liberdade com ele que eu não tenho com os outros. Ele sabe tudo da minha vida e eu sei tudo da vida dele. Quando eu voltei pra casa era com ele que saía, porque os outros já estavam namorando e eu não fazia parte. Era um grupinho de dois, não cabia o terceiro.
Quando chegou à época do Jorge fazer faculdade, ele falou assim: “Ah, Rita, vamos fazer vestibular comigo.” Eu falei: “Você tá maluco, vou não. Já tem sete anos que eu tô formada em Biologia e só dou aula.” Eu me formei em 87; isso já era [em] 94, final de 93. Ele falou: “Não.” Eu falei assim: “Jorge, eu tô por fora de vestibular.” Ele falou: “Não, Rita, eu tô saindo agora, a gente vai fazer vestibular em Valença e lá, se você faz a inscrição junto, você faz prova na mesma sala. Eu passo cola pra você!” Aí eu falei assim, pensei cá comigo: “Gente, coitado. Ele tá precisando de um incentivo, né?” “Então tá, Jorge, vamos fazer o vestibular.” E aí fomos.
Ficamos realmente na mesma sala: eu, ele e mais quatro colegas. Gente, foi uma colação aquele vestibular! Foi uma coisa de louco, sabe? Nós sentamos assim, dividimos as matérias, cada um ficava responsável por uma matéria. E a professora, o fiscal, sentou na mesa lá na frente e, olha, foi uma colação! Nós fizemos a prova em grupo. Quando chegou na hora da... Aconteceu um fato engraçado: a pessoa - tinha uma pessoa sentada atrás de mim - viu que a gente estava na colação danada e viu a hora que a colega passou pra mim o gabarito de Inglês. Ela me cutucou e ela viu o Jorge me pedindo o gabarito de Biologia e de Química, porque aí eu já era professora de biologia e química. Eu passei o gabarito pro Jorge. Aí a pessoa me cutucou e falou assim: “O gabarito de Inglês que te passaram tá errado. Se você passar pra mim o gabarito de Biologia e Química eu te passo o gabarito de Inglês.” Aí, eu parei, pensei. Falei assim: “Gente! Isso é vestibular, vai que ela tá disputando a mesma vaga que eu, E se ela viu que o gabarito que foi passado pra mim tá certo e ela tá jogando um caô pra ela ganhar o meu gabarito?” Aí eu pensei, pensei e falei assim: “Eu vou seguir meu instinto.” Virei pra ela e falei assim: “Manda o gabarito!” Ela mandou, eu “pápápápá”. Gabaritei, passei o gabarito pra minha prova, passei o gabarito pra ela. “Jorge, esse gabarito de Inglês tá errado, copia esse.” Passei o gabarito de Inglês. Gente, quando eu fui conferir eu só errei uma questão de Inglês! Quer dizer, ela viu realmente e eu fiquei tranquila porque passei o meu gabarito pra ela.
Essa prova era feita em duas etapas, dois dias. Quando foi o dia seguinte voltamos, era a prova de redação. Eu adoro escrever porque eu leio muito, então tenho facilidade de escrever, tenho facilidade de pontuar, de usar o português. Mas eu tenho horror de política, tenho horror! Coisa que eu não discuto é religião, política e futebol. E o tema da nossa redação foi um tema relativo à política. O Jorge, o meu irmão, é uma pessoa muito crítica, um cara muito inteligente e ele saca política de longe. Eu olhava pro lado, ele estava escrevendo, o tempo passando e eu não tinha feito uma linha. Eu olhava pro lado, estava ele escrevendo. Falei: “Gente, não é possível! Eu não vou conseguir!” No final, faltando cinco minutos pro término dos 45 do segundo tempo, eu escrevi o que veio na cabeça. Fui escrevendo.
Dali a três dias saiu o resultado do vestibular. Eram 150 vagas, eu passei em 51° lugar, ele passou em 151°; ele foi o primeiro da reclassificação. Eu ainda passei melhor do que ele. Quando fui olhar eu falei: “Gente, não é possível.” Fui olhar a nota da redação, a minha nota da redação tinha sido muito superior que a dele. E eu preocupada. Mas por quê? Na redação não pegaram o meu conhecimento de política, eles pegaram a minha escrita, né?
Eu fiquei na turma A, ele ficou na turma B. Aquilo já não me agradou porque na época ele trabalhava muito e eu queria que ele ficasse na mesma turma que eu, pra eu colocá-lo nos meus grupos de trabalho, pra eu poder ajudá-lo da mesma forma que os outros. Eles fizeram Direito porque meu pai falou que eles tinham que ter um diploma, mas não que eles quisessem seguir a carreira, não. A faculdade de Direito era à noite e do lado tinha o Bar da Galinha, que era o point de encontro, então caiu o conjunto. O Jorge cursou comigo o primeiro e o segundo período; quando passamos pro terceiro período ele trancou a matrícula. Mas eu já estava apaixonada pelo Direito, então eu segui.
Depois que eu me formei em 99, levei dois anos pra fazer a prova da Ordem [dos Advogados do Brasil]. Eu achava que não era capaz, achava que não ia conseguir passar naquela prova porque eu via os meus colegas fazendo e tendo que fazer de novo. Eu não queria passar por aquilo, não queria ser reprovada na prova. Aí começou a surgir trabalho pra mim. As pessoas sabiam que eu tinha me formado em Direito, me procuravam e eu tinha sempre que procurar uma colega pra assinar a petição. Um dia meu pai virou pra mim e falou assim: “Parou! Você vai se inscrever pra essa prova porque você não pagou faculdade pra ter que pedir pros outros trabalharem pra você!” Aí eu fui, fiz a prova. Passei, graças a Deus!
Em 2001 tirei a minha carteira e até hoje faço alguma coisa. Depois que eu peguei a direção da escola, no ano passado, tive que largar muita coisa porque a direção me consome. É o dia inteiro, então às vezes não dá pra conciliar. Às vezes, o cliente tem uma situação muito difícil, você tem que fazer a opção. Hoje em dia, eu quase não estou mexendo com mais nada do Direito. E o Jorge, meu irmão, não fez faculdade até hoje.
P/1 – Rita, me fala uma coisa. E a faculdade de Biologia, como foi que você entrou? Como era essa vida de universitária, na primeira vida de universitária?
R – Na verdade, a diferença que eu senti nas duas faculdades que eu fiz: a Biologia eu fiz porque eu não queria ficar trancada dentro de casa. Eu tinha 18 anos, eu queria era sair, queria paquerar, queria ver os estudantes entrando e saindo pra sala. Olha, [na faculdade de] Biologia eu carreguei dependência de Química quatro períodos. Eu não queria estudar, eu queria era sair de casa, então eu tenho consciência que a minha faculdade de Biologia foi feita meio pra lá e pra cá. Se eu fui boa professora de Biologia depois é porque eu corri atrás pra me realizar como profissional nessa área, mas não que eu tivesse aquela consciência.
Quando fiz a faculdade de Direito foi opção. Eu queria aquilo, então virava noite estudando. Eu pesquisava, fazia todos os trabalhos. Foram duas realidades totalmente diferentes. A minha faculdade de Biologia foi bagunça, eu queria as festas, tudo era desculpa: “Ah, a faculdade, né?” E eu fazia faculdade à tarde, o número de alunos reduziu tanto que eles tiveram que colocar uma turma só à noite. Gente, foi a glória sair de casa pra estudar à noite! Nunca, nunca o meu pai ia permitir. Eu ia, quando terminava a aula eu ligava pra casa. Ele ia de carro, me buscava na porta da faculdade, sendo que da porta da faculdade na minha casa era cinco minutos a pé, mas era um trecho muito escuro, muito perigoso. Então ele preferia sair de carro, ele ia e me buscava. Mas tudo era motivo: “Vai ter festa da turma da faculdade.” “Então você hoje pode ficar na rua até as onze.”
Conforme o tempo foi passando, que eu fiz amizade com outras meninas... Inclusive tenho uma grande amiga em Barra do Piraí chama Edivânia, ela é muito amiga minha até hoje. Ela fez parte de muitos finais de semana daquela minha fase de vida. Sexta-feira, [quando] acabava a aula, a gente ia lá pra casa, tomava banho, se arrumava e voltava pro baile. Sempre tinha um dos meninos acompanhando a gente pra voltar, né? E assim foi até a gente se formar. Hoje em dia ela está casada, tem uma menininha, Manuele, com um aninho e pouco. Mas foi assim, a faculdade de Biologia, minha... Meu período da faculdade de Biologia foi esse, eu queria era curtir a vida.
P/1 – Esse baile era na faculdade?
R – Não. Eram bailes da faculdade de Medicina, sempre era a Medicina que promovia. Na época, só tinha Medicina. Era o auge da cidade. E eram promovidos no Clube, no Fluminense, ou às vezes no Sombrão, que é o estádio coberto da faculdade. Alguns foram no Sombrão.
P/1 – Que época era isso, Rita?
R – De 83 a 87. Eu entrei na faculdade de Biologia em 83. Era pra ter saído no final de 86, mas eu perdi um período por conta dessas...
P/1 – Pendências?
R – De pendências, é. Por conta dessas pendências eu perdi um período, então eu me formei na turma de agosto de 87.
P/1 – E qual foi seu primeiro trabalho? Você já trabalhava na faculdade?
R – Não, não. Nessa época, eu dava aula. Como eu falei, comecei a trabalhar em 84. Eu dava aula no Regina Coeli, que foi a minha escola. Fui contratada pra trabalhar lá, dei aula lá de 84 a 87. Quando saí da faculdade de Biologia, em 87, fui contratada pelo Colégio de Aplicação da Faculdade. Saí do Regina Coeli e comecei a trabalhar na Escola Particular, de quinta a oitava [séries] dando aula de Biologia. Na grade [de] Ciências.
P/1 – Você lembra desse comecinho, de chegar na sala de aula?
R – Lembro. Não foi muito difícil porque eu já tinha uma amiga, a Carla, que era professora de História no Colégio de Aplicação e eu acompanhava muito ela. Como nós éramos muito novinhas, a diferença de idade nossa pros alunos era pouca. Muitos daqueles alunos eram nossos colegas de final de semana na rua, então eu já tinha contato com todos eles.
Eu lembro que, na época, o meu pai tinha me dado um Fusquinha amarelo. Na hora do recreio, eu ficava sempre na sala dos professores e os alunos falavam assim: “Poxa, Rita, a gente fica lá embaixo escutando música!” Eu falei: “Ah, vocês ficam escutando música?” “É, desce na hora do recreio pra lá, escutar música com a gente!” Tá bem. Um belo dia resolvi descer. Quando eu desci, o Fusquinha estava com as duas portas arreganhadas, o meu toca-fita tocando a toda, porque eles conseguiram achar uma chave que abria o meu Fusquinha. Na hora do recreio ligavam o meu som, arreganhavam a porta do Fusquinha e ficavam meia hora escutando música e eu não sabia disso. No final das contas, eles resolveram me contar da melhor forma possível: me convidaram pra ouvir música com eles. Aí ficou, eu não tinha mais… Eles já estavam acostumados. Eu ia, trancava o carro, eles abriam. Ia fazer o que?
P/1 – E como você elaborava as suas aulas nesse comecinho? Era como agora?
R – Eu nunca fui muito de sentar em casa e preparar aula, sabe? Eu sempre chegava, jogava o tópico e dali ia fluindo. Nunca fui. Se eu falar pra você que era aquela professora que chegava em casa e ficava a tarde inteira preparando plano... Plano de aula, então… Gente, eu tenho horror, sabe? Eu sou mais de pegar e as dúvidas que surgiam que eu não conseguia, que não estavam dentro do meu conhecimento daquele conteúdo, eu jogava limpo com as crianças: “Isso aí eu não estou dominando, mas amanhã eu trago a resposta.” Aí sim, eu ia pesquisar alguma coisa em casa porque eu tinha que dar a resposta pras crianças no dia seguinte. Graças a Deus, nunca tive problema. As minhas aulas sempre fluíram normalmente.
P/1 – E tinha aula fora da sala de aula? Você costumava?
R – Ah tinha, gente! Na sexta série eu tinha que usar o laboratório que eles tinham. Era a parte de corpo humano e eu tinha que dissecar um sapo, mas eu não botava a mão no sapo, de jeito nenhum. Eu solicitava um colega meu, que era professor de Biologia do primeiro ao terceiro ano e ele me acompanhava. Ele fazia a cirurgia e eu só ia explicando pras crianças. Fora isso, eu me lembro de uma vez [que] o Butantã levou umas cobras pra fazer exibição pras crianças. Gente, eu nunca vi tanta cobra solta! E o cara mexia ali legal. Fora isso, aula fora, não. Eles tinham o laboratório na própria escola.
P/1 – Eu ia perguntar quando você entrou pra rede municipal de ensino.
R – Fiquei dando aula no Aplicação de 87 a 90. Em 89 me casei e fui morar em Barra do Piraí. No ano seguinte, eu não consegui mais conciliar horário, porque tive proposta de emprego no Santos Anjos e no Regina Coeli também, e pra mim valia mais a pena. Então eu optei: fiz o acordo, saí do Aplicação, voltei a dar aula de primeira a quarta série e fiz o concurso pra prefeitura de Vassouras em 90. Em 1990 eu fiz o concurso pra dar aula de Biologia de quinta a oitava série e passei em quarto lugar, só que eu levei de 90… Eu fiz a prova no começo de 90, só fui chamada no final de 91, por quê? A prefeitura de Vassouras não tinha muitas escolas de quinta à oitava, aos poucos é que foi passando do estado para o município, então levou esse tempo todo pra abrir uma escola com de quinta a oitava, que pudesse me encaixar, apesar de eu ter passado em quarto lugar.
Desde 92 faço parte da rede municipal de Vassouras. Mesmo fazendo parte da rede, quando fui chamada eu abdiquei do Regina Coeli. Eu dava aula de manhã em Ferreiros, que é uma outra localidade de Vassouras, pela prefeitura, chegava, almoçava e pegava o Santos Anjos à tarde. Primeiro uma turma de quarta série, eram três turmas de quarta série, onde eu dava aula só de Matemática. E no Santos Anjos eu fiquei uns cinco anos, dando aula só de Matemática pra quarta série.
P/1 – De Matemática?
R – De Matemática porque era de primeira à quarta. De primeira a quarta eu dominava todas as matérias, e eu tinha paixão por dar aula de Matemática pra eles.
Gente, teve uma coisa engraçada. Quando eu fui contratada pelo Santos Anjos, uma das alunas da quarta série era filha de uma ex-professora minha da faculdade de Biologia. Retome o que eu falei: [na época da] minha faculdade de Biologia eu não queria nada com a hora do Brasil. E a Denise Calixto, que era a minha professora, ela dava aula de Psicologia. Então, imagina: se eu não queria nada com a hora do Brasil, imagina se eu ia querer saber o que Freud falava, né? De jeito nenhum. Tive sérios problemas com essa professora porque eu não queria aprender Psicologia. Aquilo não entrava na minha cabeça e só fui tirando nota vermelha com ela. Por final, ela queria me reprovar; eu fui chorar pra secretária, pedir pelo amor de Deus pra ela me dar outra prova. Eu ia perder o período se ficasse reprovada em Psicologia porque eu já estava carregando duas dependências, eu não podia carregar a terceira. A muito contra-gosto essa professora me deu outra prova, e me deu os quatro pontos que eu precisava exatos pra eu não ficar.
Gente, quando eu assumo aquela turma, quem é minha aluna? A filha dela. Ela entrou na sala da direção da escola, Santos Anjos: “Pelo amor de Deus, ela não! Qualquer outra, ela não!” E a freira, irmã Conceição, que era diretora da escola na época, bateu e assinou embaixo: “Não, é ela!” Depois de três meses ela entrou numa reunião de pais, virou pra mim e falou assim: “Eu tô dando a minha mão a palmatória. Eu não queria que a minha filha fosse sua aluna porque eu conheci você como minha aluna. Agora você como profissional, como professora, eu dou a minha mão a palmatória, não existe melhor. A minha filha lhe adora!” Hoje em dia somos grandes amigas. Engraçado que sempre que a gente se encontra ela fala isso: “Rita, eu não queria que a Monique estudasse com você de jeito nenhum. Eu só via aquela adolescente irresponsável na minha frente.” Mas eu me dedicava, eu me realizava. Acho que tudo que a gente faz se realizando a gente faz muito bem feito.
P/1 – Tem mais alguma história com aluno que você se lembre? Tanta coisa, né?
R – Nossa, gente, já passou tanta gente na minha mão. A minha diferença de idade pra eles era pouca, então, quando dava sexta-feira eles começavam a ligar lá pra casa: “Onde nós vamos hoje? Nós vamos pro porão? Nós vamos pro baile não sei aonde? Nós vamos sentar num barzinho?” E a minha mãe ficava desesperada: “Não é possível, você sai com os alunos na sexta-feira!”
Nessa época, eu dava aula também de educação artística pra duas turmas de primeiro ano básico. As irmãs precisavam de uma professora e me botaram ali pra tapar buraco. Essa aula era sábado de manhã e eu saía com eles na sexta-feira à noite, mas no sábado [às] oito horas tinha que estar todo mundo dentro da escola, então eu era... Foi uma fase muito boa.
P/1 – O que era o “porão”?
R – “Porão” era [uma] boate que tinha no centro da cidade.
P/1 – Era num porão?
R – Era um porão todo equipado, com pista de dança, tudo. Era um casarão velho que adaptaram pra ser uma boate. O Porão durou ali bem uns cinco, seis anos.
P/1 – O primeiro ano básico é hoje é o primeiro colegial?
R – Não, o primeiro ano básico é o primeiro ano do segundo grau.
P/1 – E Rita, como foi pra você essa mudança de professora pra diretora da escola que hoje você tem?
R – Foi bem difícil me adaptar na questão do tempo. Enquanto estava dando aula eu trabalhava só três manhãs, tinha todas as tardes e tinha dois dias praticamente livres. Quando eu assumi a direção da escola, não: eu trabalho de segunda à sexta, de sete da manhã às cinco da tarde direto. Por isso que eu falei que estava difícil de conciliar a minha carreira de advogada com a minha carreira da educação.
Eu só trabalhava três manhãs, então eu trabalhava no escritório. O escritório sempre foi na minha casa; eu trabalhava no escritório todas as tardes e tinha dois dias inteiros, que geralmente era quinta e sexta. Eu dava aula às segundas, terças e quartas; o resto [da semana], não.
P/1 – Mas a sua relação com a educação? O que significa a escola pra você como professora, como diretora?
R – É diferente. Como professora, você tem um comprometimento com a escola, mas não tão grande, no grau de responsabilidade [que você tem] quando está na direção da escola.
Por quê? Enquanto era professora, toda a dificuldade que eu tinha, eu ia em cima da minha diretora. Na direção, não. [Em] qualquer dificuldade, os professores vem a mim. E eles falam de uma forma como se você tivesse que se virar e resolver o problema.
Realmente, quando a gente encaixa a carapuça, a gente está realmente [assumindo]: “Eu tenho que me virar e resolver o problema.” E é bom, é gratificante quando você consegue resolver da forma que agrade a eles. Nem sempre.
P/1 – Quais os tipos de problemas que chegam pra você, que você tem que resolver, tem que lidar?
R – Lá na minha escola eu sinto que alguns professores não têm domínio de turma. É uma coisa que me desagrada, eu ter… Eles mandarem os alunos pra minha sala pra que eu chame a atenção de alguma coisa que eles fizeram dentro de sala de aula. Fora isso, o café, que a moça da cozinha às vezes não quer fazer. Ou não ficou bem feito, porque a carga dela… A escola são 600 crianças, você imagina: eu ter três cozinheiras pra cozinhar pra 600 crianças em cada turno. Então, muitas vezes não...
Transporte ou alguma coisa que elas queiram pra escola que a gente ainda não... Lá a gente não tem dinheiro assim, na mão, pra alguma coisa sobressalente; a gente tem as verbas que vêm, que a gente tem que gastar com coisas pra dentro da escola. Fora isso, só quando a gente faz algum evento. Por exemplo: na sexta-feira agora nós fizemos um bingo, arrecadamos um dinheiro pra poder fazer a festinha deles, do dia das crianças. Então, quando a gente faz um evento assim... Esse ano foi o único evento que nós fizemos pra angariar dinheiro porque a escola passou por uma reforma. Com a reforma, a gente não pôde nem fazer a festa junina, que angaria mais dinheiro do que só no bingo.
P/1 – E como é a escola? O prédio? O pátio?
R – A escola… Quando comecei a trabalhar lá, eu trabalhei lá em 89, como professora de Ciências, só tinha uma turma de quinta série, eram só duas salinhas. Depois, [quando] eu voltei, eles já tinham feito mais um refeitório e mais algumas salinhas. Agora, quando eu voltei como diretora, a escola é enorme. Ela tem treze salas de aula, a sala de informática, a biblioteca; tem a sala dos professores, secretaria, sala da direção, um refeitório grande, uma cozinha boa, onde as crianças merendam, banheiros exclusivos pros meninos, pras meninas, pros professores e pras professoras. É uma escola com toda uma infra-estrutura. É a maior escola da rede municipal de Vassouras.
P/1 – E atende ensino fundamental?
R – Desde os pequenininhos de quatro anos até o nono ano, que corresponderia à oitava série.
P/1 – E Rita, quando virou diretora você trabalhava nessa escola?
R – Não, eu trabalhava em outra escola de outro lugarejo, que é Barão de Vassouras. Eu sou lotada em Barão de Vassouras; estou cedida para a direção da escola Abel Machado, em Massambará. Se porventura ano que vem ou mês que vem a secretaria de Educação não me quiser mais na direção da escola, eu retorno pra minha turma de ciências na escola José Carlos Vaz de Miranda, em Barão de Vassouras.
P/1 – E como foi esse processo de você virar diretora?
R – Foi assim, caiu de pára-quedas: me ofereceram. A Secretária de Educação se formou comigo no Curso Normal, então a gente já se conhecia e eu aceitei o desafio. Foi difícil, porque eu já estava em Barão há doze anos, só trabalhando.
Às vezes eu dividia, em Barão não tinha turmas suficientes para que eu cobrisse toda a minha carga horária, então às vezes eu tinha que ficar Barão e Demétrio ou às vezes Barão e Massambará, mas eu nunca deixei Barão e tive que brigar muito pra manter a minha vaga, porque tinha muita gente de olho na minha vaga ali.
Barão é uma escola de quinta a oitava mais perto da cidade. De carro, da minha casa [até] lá não dava nem dez minutos, então fiquei lá [por] doze anos. Muitas crianças ali, a minha história toda foi ali, então pra mim foi difícil. As crianças até hoje encontram comigo, falam assim: “Rita, não gostei de quem foi pro seu lugar.” “Você volta?” Eu falo: “Um dia, quem sabe.”
P/1 – E nesses doze anos você ficou dando aula nessa mesma escola?
R – Nessa mesma escola.
P/1 – Tem alguma história bacana pra contar pra gente, alguma coisa que você se lembre que lhe marcou?
R – Nossa, a escola caiu. Passa um córrego do lado do pátio, a escola caiu. A prefeitura levou três anos pra retomar a escola e nós tivemos que ficar emprestados em uma outra escolinha que era desse tamanhozinho - nosso espaço era grande. Depois eles reformaram e eu voltei - nós voltamos pro nosso prédio de origem.
As crianças lá me respeitavam muito. Eu era como se… Entravam e saíam professores, mas Rita Avelar continuava - é assim que eles me conhecem, Rita Avelar. Podia trocar professor de Português, de Matemática, mas eu continuava, sempre como professora.
Também na direção, eu sempre fui muito rígida com os meus alunos. Acho que o respeito é bom, a gente gosta e ele cabe em qualquer lugar, então procuro passar isso pra eles. E eu acho também pelo meu tom de voz, né - eu falar alto, eu impor a eles, eu gostava muito de trabalhar lá como professora e se Deus quiser quando eu sair da direção eu volto pra lá. As minhas diretoras lá também são muito minhas amigas.
P/1 – Rita, eu ia perguntar: nessa visão dupla que você tem de professora e de diretora, o que você espera que a escola seja no futuro?
R – Eu espero que a escola seja realmente um instrumento de formação pros jovens. Se bem que - eu não sei se é só onde eu trabalho e se eu trabalho só com escola rural, eu não sei se isso está acontecendo também na escola particular no centro da cidade - eu não vejo muito nos meus alunos uma perspectiva de vida, eles sentirem que a escola vai acrescentar alguma coisa pro futuro deles. São poucos aqueles que você vê que estão indo realmente pra escola em busca daquilo e de uma posição no futuro.
Eu não tenho mais contato com escola particular. Na época que eu comecei a trabalhar, não tinha essa diferença - tanto a particular, quanto a escola pública, todos queriam alcançar alguma coisa além. Eu não sei se alguma situação tem que mudar no nosso governo. Sinceramente, ainda não consegui chegar a um ângulo. Eu gostaria que as minhas crianças, ao passarem pela escola - seja eu na direção ou eu como professora -, que eles procurassem captar o máximo de conhecimento que posso passar pra eles. [Conhecimento] que eu tenho condição de passar pra eles e que possam usar isso no futuro. Eu não quero que as crianças ao passar por mim como professora de Biologia decorem todos os protozoários, decorem quais são os reinos das plantas, não quero isso. Eu quero que eles saibam no que a ciência pode ajudar a vida deles no futuro.
Hoje em dia, a gente está em alta com a preservação do meio ambiente. Eu gostaria que eles utilizassem o meu conhecimento de ciências, aplicassem pra melhorar o futuro, o mundo futuro deles. Meus alunos que passam por mim com dez anos, a minha diferença pra eles são 33 anos. Daqui a 33 anos eu já vou ter setenta e tantos, se eu estiver viva até lá. Eu espero que o conhecimento que eu esteja passando pra eles agora, que eles possam utilizar dele mesmo quando eu não estiver mais aqui pra passar mais conhecimento pra eles, que eles usem tudo aquilo que eu pude passar.
P/1 – E Rita, você falou da preocupação com o meio ambiente. Você estava me contando ali fora dos projetos desenvolvidos na escola. Conte aqui um pouco pra gente.
R – A nossa escola, no ano passado ela fez parte de um projeto, Fire and Ice. Ele é um projeto de preservação ambiental e nós culminamos esse projeto com uma vídeoconferência que aconteceu em novembro do ano passado, foi muito bacana. Nós estávamos conectados com duas escolas da África, uma da Austrália, uma do Amazonas e uma do Canadá, trocando conhecimentos em matéria de preservação ambiental. Por conta da participação nesse trabalho nós fomos agraciados com uma sala multimídia completa.
Na nossa cidade, a única escola que tem um quadro interativo é a escola Bel Machado. Nenhuma escola particular tem o equipamento que a nossa escola tem pra passar conhecimento dos nossos alunos. E hoje, pelo... Um dos nossos projetos do [projeto] TôNoMundo é a horta orgânica, que as crianças fazem com a professora de ciências na escola, e ela já está sendo ampliada para outras escolas, para outras casas. Já tem sete famílias fazendo o projeto da horta em casa, pelo conhecimento que o filho pega na escola e leva pra casa.
P/1 – Que barato...
R – Sem contar também que esse nosso projeto da horta está sendo expandido para estas escolas no exterior que a gente tem contato.
P/1 – Você já falou um pouquinho do painel interativo, da sala multimídia. Que outros recursos de mídia tem nessa sala?
R – Dez computadores, todos ligados na internet 24 horas por dia.
P/1 – E como são usados esses computadores?
R – Nós temos a professora responsável pelo laboratório, que é a professora Cintia. É ela que comanda todos os projetos, ela é uma das formadoras do TôNoMundo. Eu posso passar pra vocês alguma coisa dos projetos no alto, ela é que vai dizer a vocês as minúcias dos projetos. Ela comanda esse laboratório de informática atendendo a comunidade, atendendo os alunos e atendendo para pesquisas, independente de serem aulas.
O laboratório funciona em determinado horário para a comunidade fazer pesquisa, funciona em determinados horários pra ela atender todas as turmas, funciona depois do horário da aula, num curso de informática para a comunidade. A aula termina às cinco horas, de cinco e meia às seis e meia. Ela está no laboratório dois dias na semana, se eu não me engano, atendendo a comunidade, numa aula de informática. O laboratório ele funciona tanto pra escola em si quanto pra toda a comunidade.
P/1 – E como chegou esse projeto na escola? Você já era diretora?
R – Não. Esse projeto chegou pela Telemar, que hoje é Oi, em 2000. Eu não era diretora lá, eu era professora, dava aula na escola. Lembro quando os computadores chegaram, mas eu não sei lhe dizer em minúcias porque eu não fazia parte da direção. Eu só sei que a partir do momento que o projeto chegou na escola, eu, enquanto professora, tinha determinados projetos a cumprir. A direção tinha que passar pra Telemar quais eram as atividades que a escola estava fazendo por conta do projeto.
P/2 – Enquanto professora, nessa época, o que mudou na sua dinâmica com essas novas tecnologias dentro da escola?
R – Ah, tudo! Tudo porque antes a gente só tinha o livro. Eu tinha, eu me baseava no meu conhecimento do livro e do que eu tinha em casa. A partir do momento que abriu a internet, a bagagem das crianças aumentou muito, e a minha também.
P/2 – E como eram os alunos? Como eles receberam os alunos? Você lembra de...
R – Não, não lembro. Eu sei que foi muita novidade pra eles. Mas na época eram poucos computadores e eu fazia a pesquisa e passava pra eles. Logo depois, eu saí de Massambará, em 2001. Fiquei só em Barão de Vassouras porque já dava pra cobrir o meu horário integral lá, então eu não acompanhei muito o crescimento desse projeto dentro da escola.
P/2 – Teve alguma formação pros professores por esse projeto?
R – Na época que eu estive lá, não.
P/2 – Os computadores chegaram?
R – É.
P/2 – E como você planejava a sua aula com esses novos meios, esses novos recursos?
R – Não. O período que eu fiquei lá eu usei pouco, porque eles chegaram no final do ano. Eu saí logo no começo do ano seguinte. Ainda era aquele período de transição e eu não consegui aproveitar. Eu às vezes ficava até depois do horário e fazia alguma pesquisa pra trazer pras crianças no dia seguinte, mas usar o laboratório com as crianças, não cheguei a usar. Na época que eu dava aula, não.
P/2 – E agora, como diretora, como você vê o uso desses aparelhos na escola? Conversando com os professores, tem algum professor que lhe deu alguma devolutiva sobre isso?
R – Não, em particular não. O que acontece? Na direção da escola são tantas situações que a gente tem que resolver que um detalhe desses acaba sendo minucioso e eles resolvem só na parte da informática. A não ser que exija alguma situação da direção pra se posicionar em alguma situação. Às vezes a coordenadora da informática não está na escola, mas eles precisam usar o painel interativo, aí eu tenho que solicitar um ajudante ou uma monitora - os alunos também são treinados pra serem monitores na sala de informática -, pra que eles ajudem, auxiliem aquela professora na aula dela.
P/2 – Você já começou a falar um pouquinho, falando que a sua escola é rural...
R – É. A minha escola é rural.
P/2 – E como são os seus alunos? De onde eles vêm?
R – Nossa, eles vêm de tudo quanto é parte. Até da cidade, tem alguns alunos que saem de Vassouras pra ir estudar em Massambará, tem a facilidade de ter o transporte escolar, mas o grosso mesmo são alunos de lugares assim, muito longe...
P/2 – Distantes.
R – Por exemplo, eu estava conversando com ela. Aliança é um lugarejo que não passa nem ônibus, a população de lá conta com o ônibus escolar pra vir pra cidade. Quer dizer, eles vêm até Massambará, de Massambará eles pegam o ônibus pra cidade. Ou seja, de sábado e domingo, se alguém precisa vir à cidade tem que vir a pé e é longe. É coisa de dez, quinze quilômetros a pé até chegar na beirada do asfalto em Massambará pra conseguir o ônibus pra vir pra cidade. Fora isso, não. É um lugar que não tem condução, não tem um posto de saúde, sabe? As pessoas, se ficam doentes lá, têm que pedir ajuda a um vizinho que tenha um carro pra poder trazer ao hospital.
P/2 – Então a escola tem um papel muito importante dentro da comunidade?
R – Dentro da comunidade, com certeza. Eu citei Aliança, mas existem outros lugarejos. Floresta é muito longe, Laje do Manejo é muito longe, não passa ônibus com frequência. Pirauí é muito longe, tudo é muito longe.
P/2 – Agora, Rita, tem alguma atividade desenvolvida especificamente porque a escola é em área rural? Alguma disciplina diferente, alguma prática?
R – Não, ainda não. Existe um projeto pra se criar uma escola técnico-agrícola num espaço em Massambará, mas ainda não. Esse projeto ainda está no papel, não foi concretizado, mas é uma expectativa.
P/2 – Dentro da própria escola?
R – Não, não seria dentro da própria escola. Seria num terreno acoplado ao da escola.
P/2 – Ah, mas uma parte...
R – O terreno é ao lado, visualizaram a área qual seria. Ele não seria da escola, mas teria contato direto com a escola. A intenção é que as crianças saiam do nono ano, quer dizer, a antiga oitava série, e já entrem no segundo grau nessa escola técnica. Seria uma escola de formação mesmo, nível técnico; ele sairia com segundo grau completo e um diploma de técnico na área agrícola.
P/2 – Eu queria um pouco voltar pra sua vida pessoal, não profissional. Saber hoje em dia como está a sua vida, onde você mora? Se está casada, se não está casada...
R – Eu me separei um ano depois que eu me casei, não deu certo. Fiz tentativas de retomar o meu casamento, também não deu certo. Depois disso, eu tive alguns relacionamentos, mas que não me fizeram ter confiança o suficiente pra morar com alguém. Moro com a minha mãe. Há cinco anos, perdi meu pai e com isso mais responsabilidade eu adquiri em relação a ela.
Hoje em dia, moramos nós duas, meus irmãos todos já são casados. Tenho oito sobrinhos que são a minha vida, todo mundo me cobra filho, mas eu não preciso, né? Eu já tenho oito sobrinhos, participei da criação de todos eles. Inclusive eu trouxe a foto do meu primeiro sobrinho. Ele não é o mais velho, porque os mais velhos foram de relacionamentos dos meus irmãos e eu não participei, então não me sentia tia. O meu primeiro sobrinho onde eu me senti “sou tia” foi quando o Ovidinho nasceu, em 99. Tenho paixão por todos eles.
Engraçado, a gente segue uma sequência. Eu sou a única mulher no meio de homens. A Mariana é a única sobrinha no meio de homens e os meninos têm pavor dela porque ela é da pá virada. Ela tem três anos, mas ela bota todos eles no bolso; se algum deles tretar, ela desce a mão e não quer saber. E o mais novo é o Pedro Henrique, que vai fazer um aninho em novembro.
Tem o Adriano que está com um ano e três meses, que é filho do Romerinho, meu irmão que eu perdi o ano passado. Eu o perdi com 38 anos num acidente de moto estúpido, mas Deus tem as suas... Seus caminhos, né? Aí ficou o Adriano, já está com um aninho e três meses.
As minhas cunhadas são minhas irmãs, conto com elas pra tudo e elas me ajudam em tudo. Nosso elo é bem forte, tanto que eu trouxe uma foto mostrando as mulheres da família. Houve tempo em que as mulheres na nossa mesa eram minoria, agora os meninos têm que calar a boca porque a mulherada está reinando lá em casa.
Ano passado, antes da morte do Romerinho, eu e a minha mãe saímos de casa. Ela foi morar com a minha tia e eu pra casa do Jorge, meu irmão. Nossa casa entrou em reforma, desde 83 que aquela casa… Quer dizer, desde a primeira grande reforma em 73, aquela reforma que eu falei. O telhado era de 73, o encanamento era de 73, a rede hidráulica era de 73. Tudo, com trinta anos, se desgastou, então precisamos sair de casa.
Reformamos a casa toda; em abril desse ano, nós retomamos pra lá. Fizemos um gramado pras crianças, adoro carregar minhas crianças lá pra casa. Meus sobrinhos têm dia, o final de semana que é das crianças é das crianças. Pode ter o que tiver que eu não abro mão. Gosto de dormir agarradinho com eles, o João Gabriel, que é o filho do Jorge, é meu afilhado. Meigo demais, ele é aquela criança que [quando] eu estou deitada na cama, ele chega e deita, rola em cima de mim igual a um rolo compressor. Ele rola, ele se chega, ele beija, ele abraça. O Ovidinho não, o Ovidinho é mais arisco, chega, é carinhoso: “Oi, tia Rita! Ah, tô com saudade!” Mas não é de ficar agarrando. A Mariana também não, a Mariana é muito da avó. A Mariana não é muito minha, não, tudo dela é a avó. “Você vai dormir comigo, Mariana?” “Vou dormir com a vovó.” “Poxa, e a titia? O Ovidinho dorme com a titia, entendeu?” Ela divide bem legal isso.
Eu tenho um apelido pra cada um, identifico cada um por um apelido. Onde o Adriano estiver, eu falo assim: “Cadê o meu periquitinho?” Ele já procura, né? E meu relacionamento com eles é muito bom, eu sou bem tiazona mesmo, sou assumida.
P/2 – Além de brincar com os seus sobrinhos nas suas horas vagas, o que você gosta de fazer?
R – Adoro um baile. Adoro sentar num barzinho e bater papo. Durmo cedo se eu estiver em casa, se eu estiver sentada num barzinho, cedo pra mim é seis horas da manhã. Eu gosto de falar, né? Já deu pra perceber. Se eu estou num ambiente legal, gosto.
Adoro a noite! É um dos problemas que eu tenho com a minha mãe. Ela acha que eu tenho que ter hora pra chegar em casa, eu já acho que eu tenho que ter hora pra sair, pra voltar, não. Sabe que eu estou na cidade, na minha cidade também não tem muita opção. Geralmente eu vou pra cidade vizinha, pra casa de alguma amiga, Barra do Piraí, aí já tem uma turma. A gente sai, senta na rua e fica tomando cerveja, batendo um papo e passa a noite, escuta uma música.
P/1 – Rita, a gente está chegando no final. Tem alguma coisa que eu não perguntei que você queria falar ainda?
R – Nossa, gente, eu acho que vocês perguntaram tudo. (risos)
P/2 – Deixa eu perguntar, como você casou? Como que você conheceu o seu ex-marido?
R – Ah, gente, foi tão engraçado. Eu o conheci, na realidade, quando eu tinha dezessete, dezoito anos, naquela fase que a gente começou a sair na rua.
Eu me lembro que parou um carro com dois rapazes dentro e o rapaz do carona eu conhecia, era amigo do Romerinho. Eu não gostava muito dele, não; [se] chamava João Carlos, eu o achava meio estranho. Aí, ele parou e me perguntou: “Rita, cadê o Romerinho?” “Ah, o Romerinho foi pra Juparanã.” Juparanã tem uma tradicional festa de São Jorge. Eu não podia ir, o pai não deixava, mas os meninos iam. Aí o cara que estava na direção virou e falou assim: “Chama ela pra ir com a gente.” Eu já olhei aquilo de cara feia. Aí, o rapaz virou e falou: “Ela é irmã do Romerinho.” “Ah tá, não sabia.” Foram embora.
No dia seguinte, eu virei pro Romerinho e falei assim: “Romerinho, quem é aquele palhaço que estava dirigindo aquele carro, que estava com o João Carlos?” “Ah, o meu amigo, Pepinho.” Eu falei: “Sujeito antipático.”
Passaram-se os anos e eu fiquei com aquilo na minha cabeça, que o Pepinho era insuportável. Quatro anos depois, eu já estava fazendo faculdade à noite. O Ovídio, que é o meu irmão abaixo de mim, já estava namorando a Luzia, que é a esposa dele hoje, é mãe da Mariana e do Ovidinho, e eu fiz amizade com a Luzia. A Luzia tinha uma outra amiga de Juparanã, se chamava Leci. Um dia reunimos as três e eu descobri que a Leci namorava o Pepinho. Virei pra Luzia e falei assim: “Nossa, que mau gosto essa menina namorar aquele rapaz. Horroroso, eu tive pavor dele.”
Quando foi um dia, nós descemos... Não, de vez em quando a gente estava sentado lá em cima na faculdade - a faculdade tem uma ladeirinha que dá pra rua e a gente fica sentada lá em cima, vendo o movimento passar. Eu o via sempre chegar de carro e ela: “O Pepinho chegou.” Descia, não via a cara dele. Quando foi um dia, eu desci; a Luzia não tinha ido à aula, o Ovídio estava me esperando. [Quando] eu cheguei tinha um sujeito gordinho, meio parrudinho, em pé do lado do Ovídio. De calça jeans, uma camisa, cabelo meio desgrenhado; quando eu olhei pro pé dele, ele estava de chinelo de dedo. Falei: “Senhor, o que que é isso? Jesus amado!” Virei pro Ovídio e falei assim: “Vamos embora!” Nem pra cara dele eu olhei e fomos embora.
Eu falei assim: “Ovídio, o que que é aquela figura pré-histórica que estava do seu lado?” “É o Pepinho!” Eu falei: “Nossa, que mau gosto que essa garota tem. Não é possível aquele chinelo de dedo, gente!” Eu não sou preconceituosa, não, mas ele me deu uma péssima impressão.
Passaram-se mais uns dias, eu desço pra encontrar o Ovídio e a gente tinha que esperar a Luzia, que estava fazendo prova. Quando eu chego no bar, com quem o Ovídio estava sentado? Como tal do Pepinho. “Senta aí!” “Não, quero não.” “Senta aí, Rita.” “Não, não quero não.” “Sente aí, Rita!” Eu falei: “Tá bem.” Sentei, mas sabe quando você tem uma má vontade com a pessoa? Eu tinha má vontade com ele e começou a conversar. E eu: “É, sim, não, quem sabe, talvez algum dia”, só com monossílabos. O Ovídio vai, a Luzia sai, ele vira pra mim e fala assim: “Me espera aqui com o Pepinho porque eu vou levar a Luzia na rodoviária.” Eu falei: “Você não vai fazer isso comigo, não! Espera aí!”
Me largaram sozinha com ele. Quando ficamos nós dois sozinhos tivemos que conversar. Comecei a conversar, aí já voltei pra casa com outra imagem: “Nossa, o rapaz até que é gente boa.” Conversamos aquele dia, passou. Quando chegava domingo, a gente saía pra ir à missa todo domingo, às sete horas da noite. Quando dá seis horas da tarde, ele chegava lá em casa e sentava na varanda. Eu passava e voltava, nem pra cara dele eu olhava e ele indo lá, todo domingo. E o Romerinho assim: “Eu não sei que graça que o Pepinho acha de vir aqui pra casa todo domingo agora.” Falei: “Esse é o mala de amigo que você arruma!” E eu nem aí, mas eu não estava interessada em nada e nem tinha cogitado de estar interessada em alguma coisa.
Depois desse dia que nós conversamos teve uma festa junina da escola, do Colégio de Aplicação onde eu trabalhava. Já no finalzinho da festa eu estava dançando forró, quadrilha ali com um colega e eu vi chegar, mas aí eu já falava com ele. Cheguei e falei assim: “Ué, Pepinho, o que que você está fazendo aqui? Cadê Leci?” “Não, briguei com ela.” Falei: “Ah, que brigou nada, daqui a pouco você volta.” “Não, vou voltar não, porque eu quero namorar você!” Falei: “Que é isso, menino, tá maluco? Que namorar!” “Não, é... Amanhã você me liga. Se você não me ligar eu venho na sua casa.” Isso era num sábado, ele estava prometendo isso pro domingo. Eu falei: “Não, não vou te ligar, nem você vai vir na minha casa.”
Quando foi de tarde, no domingo… Eu não liguei. Meu pai e minha mãe saíram pra visitar meus avós. Foi meu pai e minha mãe sair, bateram na porta lá de casa. Fui atender, era ele. Falei: “O que você está fazendo aqui?” “Já estive aqui, mas seu pai saiu pra Barra, eu esperei ele sair e voltei.” Aí não teve jeito. Aquela noite nós saímos pra uma festinha junina numa escola, foi num dia sete de junho que eu comecei a namorá-lo.
Nós namoramos [por] dois anos e... Dois anos e um mês depois, nós nos casamos, mas definitivamente pra ser casado a gente não dava certo, não dava certo mesmo. Até hoje ele é muito meu amigo, o que eu preciso ligo pra ele. Todo mundo o chama de Pepinho, mas o nome dele é José Ramon. O pai dele é espanhol mesmo, e na Espanha José é Pepe, ele, como é José, também ficou Pepinho. É muito meu amigo e a gente tem um ótimo relacionamento, quando dá pra gente se relacionar, sabe? De vez em quando ele arruma umas mulheres que resolvem ter ciúmes de mim. Quando elas começam a ligar pro meu telefone, eu já esculhambo ele. Falo assim: “Ó, dá um jeito, não quero essa mulherada ligando pra mim. Não tenho nada a ver com você, explica que nós somos amigos.” Eu procuro dar uma afastada.
Ele já teve vários relacionamentos, já morou com várias pessoas, mas casar, não casou com ninguém. Teve um filho, o menino é louco comigo e eu louca com ele, se chama Rafael, muito bonzinho.
É isso e a gente vai tocando. Ontem mesmo ele passou por mim, abanou a mão. [Quando] eu entro no MSN ele entra também, a gente conversa.
P/2 – É isso, Rita. Tem mais alguma coisa que, conversando, você lembrou que queria falar?
R – Não, gente. Acho que eu falei de tudo. Falei dos meus irmãos, falei dos meus sobrinhos, minha mãe.
P/1 – Rita, eu queria pedir pra você dizer o que você achou de ter participado da entrevista com a gente.
R – Foi assim uma experiência muito diferente pra mim. Eu nunca tinha participado de um evento desse, não tinha noção do que era um estúdio. O meu meio é totalmente diverso do meio de vocês, mas eu gostei. Apesar de eu estar meio nervosa no começo, depois eu acho que eu me soltei.
P/2 – É? Bacana. Obrigada.
P/1 – É, obrigada.
P/2 – Brigadão, Rita, por compartilhar com a gente uma parte da sua vida.
R – Eu espero que o meu trabalho venha enriquecer o trabalho de vocês.
P/2 – Brigadão. (risos)
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