Com comércio eu já mexi. Com seringae garimpo também. Eu trabalhei desde pequeno.A coisa de que mais gosto na minha vida é trabalhar.Sabe por quê? Porque eu amo o trabalho, aquiloé gratifi cante. O estudo é lógico que é bom. Eu tenhoduas fi lhas formadas, uma em Contabilidade e a outraem Ma...Continuar leitura
resumo
Neste depoimento, Jaime nos conta a sua história nos seringais de Rondônia e dos garimpos de cassiterita e ouro que participou durante décadas. Neste ambiente, viveu na pele grande perigo e presenciou diversas mortes movidas pela ganância e pela presença das temidas onças do mato. Ouvimos sobre sua família, a morte de alguns de seus filhos, sua vocação para a música e o conforto buscado nas páginas da Bíblia. Por fim, nos conta a história de sua vida em Porto Velho, envolto de causos passados no Mercado Central, lugar onde vive do comércio a quase 40 anos.
história
Vendedor de laranjas
Homem de boné em pé segurando um saco de laranjas. Está em um mercado.
No mercado vendendo laranjas
Homem de boné em pé segurando um saco de laranjas. Está em um mercado.
história na íntegra
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- Ficha técnica
Depoimento de Jaime Ramos Marinho
Entrevistado por Gustavo Ribeiro Sanches
Porto Velho 22/06/2010
HV124_Jaime Ramos Marinho
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Seu Jaime, então a gente vai começar agora, eu vou pedir primeiro para o senhor falar de novo o seu nome completo, a sua data e o s...Continuar leitura
Depoimento de Jaime Ramos Marinho
Entrevistado por Gustavo Ribeiro Sanches
Porto Velho 22/06/2010
HV124_Jaime Ramos Marinho
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Seu Jaime, então a gente vai começar agora, eu vou pedir primeiro para o senhor falar de novo o seu nome completo, a sua data e o seu lugar de nascimento.
R – Pra eu falar?
P/1 – Pra você falar pra mim.
R – Agora?
P/1 – Isso. Vamos lá.
R – Meu nome é Jaime Ramos Marinho, nascido no dia primeiro de abril de 1937.
P/1 – E o senhor nasceu onde?
R – No estado do Pará, em Capanema.
P/1 – Tá certo. E lá em Capanema você vivia com quem?
R – Em Capanema eu era menino, vivia com o meu pai. Em Capanema. Quando foi em 1940, nós saímos de Capanema pra vir pra Porto Velho, mas nós desviamos em viagem, fomos pra Roraima. Quando nós chegamos a Roraima, papai arranjou um emprego numa olaria de um cidadão por nome Onero Cruz. E lá a minha mãe adoeceu e faleceu. Depois adoeceu uma irmã minha e faleceu. Aí o papai ficou com seis filhos pequenos, aí nós viemos de lá pra Manaus. Quando chegamos a Manaus, nós viemos pra cá, pegamos o trem, fomos pra colônia do Iata. Mas o papai sozinho lutando com um bocado de filho. Aí ele resolveu ir pra Manaus de novo, aí nós chegamos a Manaus. Papai é evangélico de nascimento e eu também. Um dia nós na igreja à noite, na Assembleia de Deus, chega um pastor de Lábrea. Aí o pastor da Assembleia de Manaus apresentou o papai na igreja, o pastor lá de Lábrea foi, chamou o papai e disse: “Olha, irmão Lúcio, por que você não vai pra Lábrea? Lá tem uma senhora por nome Ceci, ela é crente, ela é viúva, quem sabe o senhor não casa com ela?”. Aí papai resolveu ir e coincidiu de ele casar com ela. É. Casou com ela. Depois que casou com ela, ainda teve dois filhos: Natanael e Natan. Aí ela morreu de parto de outro. O papai ficou viúvo. Tinha um pastor lá em Lábrea, o convidou pra ir pra um lugar que tinha no Purus por nome Cariuacanga. Cariuacanga é língua indígena, cariu é homem e canga é branco, por isso que diz Cariuacanga. Papai foi. Ele já mais ou menos com 50 anos, quando veio de lá, foi casado com uma menina de 17. Então quando chegou lá a Lábrea, essa menina ficou junto conosco brincando, parecia tudo irmão. Ela era novinha também e nós tudo novinho também, com 14 anos, 15, 16 anos, filho, né? E ele se deu muito bem com essa esposa dele, que ele faleceu com 90 anos na companhia dela. Papai formou um bocado de filho, inclusive tem duas netas dele na... Formou-se na Irlanda do Norte e foi pra... To esquecido do nome do lugar, é no estrangeiro.
P/1 – Ela foi pra fora.
R – BBC de Londres, pra Londres.
P/1 – Pra Londres.
R – Então elas são jornalistas em BBC de Londres. É. Essas duas sobrinhas minhas. São filhas de uma irmã minha. Então a minha madrasta, essa que ficou com o pai até ele morrer, ela vive em Londres tomando conta das meninas lá.
P/1 – Que fantástico!
R – Pois é.
P/1 – E, seu Jaime...
R – Aí...
P/1 – Pode contar.
R – Foi tempo que eu cresci, saí da cidade, aí fui para o seringal, para o Acre. Fui cortar seringa no Acre, no Rio Acre, com um patrão, chamava-se Sebastião Danta. O nome do lugar é Novo Andirá. Cortei uns três anos seringa. Depois saí de lá, fui pra Oco do Mundo cortar seringa com o Antônio Rosa Sobrinho, trabalhei uns seis, sete anos. Depois saí de lá, fui para o Aquiri cortar seringa com o Manoel Pereira Sobrinho, eu cortei talvez uns seis, sete anos lá. Depois saí de lá, vim pra cá para o Rio Machado, aí eu cortei seringa sete anos com o Joaquim Pereira da Rocha, que é dono até de um prédio que tem aqui por nome Café Santo, mas ele já faleceu, o velho. Tem os filhos aqui, o Roquilme, inclusive ele é até advogado aqui, tem a Rochinha, dentista, mora em Pernambuco, tem Aderbal também, mora em Pernambuco. Aí eu vim embora aqui pra Porto Velho. Depois que eu cheguei aqui a Porto Velho, eu fui para o garimpo, aí trabalhei uns 14 a 15 anos no garimpo de cassiterita, minério de estanho. Depois que eu vim de lá foi que eu fiquei aqui em Porto Velho, aí fui trabalhar no Mercado Central, que justamente na época não era Mercado Central, era Feira Modelo. Depois que reformaram, foi que botaram o nome de Mercado Central, que é aquele que eu trabalho hoje.
P/1 – Tá certo.
R – É.
P/1 – Seu Jaime, eu vou voltar um pouco, vou fazer umas perguntas para o senhor agora então. O senhor falou da sua infância lá no Pará assim, o que você se lembra da casa que você vivia?
R – Olha, é a coisa mais importante do mundo, são aquelas pessoas de antigamente, quando criança... Não são como esses de hoje, não. Com cinco, seis anos de idade, você pergunta depois de muitos anos, eles não lembram. Eu lembro detalhadamente de tudo, todos os nomes daquelas pessoas. Inclusive, eu tenho um amigo que quando eu tinha seis anos de idade, ele me carregava dentro de um caixote de mandioca, mandioca de cavalo, eu ia dentro de um caixote, minha irmã ia dentro de outro caixote pra casa de um avô meu lá numa colônia que tem. Então ele chega a minha casa e vai fazer pergunta de mim daquela época. Eu me lembro de tudo detalhadamente. Como a gente lembra, né? Nós morávamos na beira do rio por nome Caeté. Na beira do rio. Papai trabalhava de agricultura. A mamãe era dessas mulheres trabalhadoras, papai trabalhava com muito homem, quando era assim, dia de sexta-feira pra sábado, ou sábado pra domingo, ela pegava o cavalo e saía uma hora da manhã, andava no cavalo seis léguas pra Capanema, pra Capanema, porque nós morávamos na colônia de Capanema, pra ir comprar rancho, que é para os trabalhadores comerem na semana. Eu me lembro de tudo quando eu era menino. Tudo.
P/1 – O senhor falou da mandioca, o que mais você se lembra dessas brincadeiras, essas coisas de criança aqui?
R – Olha, é o seguinte, por incrível que pareça, papai nunca deu chance pra nós brincarmos. Não. De jeito nenhum. Nós fomos trabalhando. Eu admiro hoje, eu admiro hoje mãe... Pai até que não, mas mãe dizer: “Não, meu filho tem 16 anos, ele não pode trabalhar, não, ele é menor”. Eu comecei a trabalhar com seis, sete anos de idade. Eu ia pra roça com o meu pai arrancar mandioca, limpar mandioca a terra, botar dentro caçuá pra papai botar no cavalo. Desde meninozinho que eu trabalho. É. Esse negócio de trabalhar, é proibido trabalhar assim, menor é com carteira assinada, eu concordo, mas trabalhar autônomo, de maneira nenhuma. Outra também, a lei de hoje, pra você ver como é a lei de hoje, não é tanto como o povo fala, não. “Ah, porque não pode bater.” Pode. Pode corrigir o filho. Não pode bater pra deixar hematoma, aí tá certo, aí vai pra cadeia mesmo.
P/1 – (risos).
R – Mas dar uma tapinha, dar um puxãozinho de orelha, um cascudinho assim, pode. Porque se você criar um filho desde pequenininho e não corrigi-lo, ele vai dar muito trabalho mais tarde, muito trabalho.
P/1 – E com seis anos o senhor trabalhava na roça?
R – Já. Agora, agora vamos chegar eu quando me formei. Eu me formei, arranjei uma mulher. Eu não casei, eu não sou casado, nunca me casei, não. Arranjei uma mulher, comecei a criar filhos. Eu tive com a minha mulher 16 filhos. Comecei a criar filhos, os filhos começaram a crescer, eu queria levá-los no regulamento que eu fui criado, mas você sabe, a mãe se metia no meio, apoiando o filho. Eu digo: “Não, mas não pode apoiar o filho. De jeito nenhum. Você tem que apoiar é a mim, porque eu não quero nada de mal para o meu filho, quero só que é de bom pra ele”. Às vezes ele queria sair de noite pra rua, eu dizia: “Não. Não vai, não”. Ela dizia: “Por que você não deixou seu filho ir pra rua? Com 17 anos?”. Eu dizia pra ela: “Um dia eu vinha da igreja, passei na praça mais meu pai, eu vi uma namoradinha lá, eu disse: ‘O que eu faço pra conversar com a Mariazinha?’”. O nome dela era Mariazinha. Eu digo: “Eu vou deixar o papai dormir, aí eu vou fugir”. Eu deixei o papai se acomodar lá e eu fugi, fui bater na praça, conversar com Mariazinha, mas eu com medo de o velho acordar e fechar a porta. Eu passei lá mais ou menos uns 20 minutos, quando eu cheguei, que empurrei a porta, fechada a porta. Eu digo: “E agora?”. Empurrei de novo, o velho abriu a porta, acendeu a luz, já tava com a corda na mão: “Ajoelhe-se aí”. Aí peia. Eu com 18 anos. Eu falava pra ela, ela dizia assim pra mim: “Ah, mas isso era no tempo do atraso”. Quer dizer, apoiava os filhos e me desapoiava. Aí os filhos foram criando, quando foi um dia, mataram um, mataram um filho meu. Pegamos, o enterramos, era aquele chororô dela, eu digo: “Você que foi a culpada de ter matado o nosso filho”. Quando foi um dia, eu cheguei do mercado, eu tinha um menino que eu o criei, eu nunca bati nele, porque ele era um menino muito obediente, não sabe? Nunca precisou de eu bater nele. Quando eram quatro horas da manhã, que eu me levantava, ele já tinha ido para o mercado, ele dizia cá quando chegava, chegava lá, ele chegava com o carro cheinho de laranja, que eu toda vida eu vendi só laranja, aí ajeitava lá tudo, quando era meio-dia me mandava ir embora pra casa, ele tomava conta. Só que o camarada tem um filho, ele o cria, em casa ele sabe quem é ele, mas na rua ninguém sabe, não. A gente não sabe o que ele apronta na rua. Quando foi um dia, eu cheguei a casa, ele tava com febre. Eu fui à taberna, comprei uma pílula pra ele, cheguei com a pílula na mão, e chegou um colega dele. Aí foi, disse: “Cadê Jaiminho?”. O nome dele era Jaime, o meu nome, eu o chamo de Jaiminho. Eu digo: “Ele tá doente. Ele tá deitado” “Chame-o aqui pra mim”. Eu chamei. Ele falou lá não sei o quê pra ele, ele tava só de bermuda. Aí ele disse: “Papai, eu vou lá à casa do Rosico”. Ele falou que ia a casa desse cara. Eu digo: “Não, meu filho, não vá, não, deixe pra ir amanhã, você tá doente. Vai tomar pílula, vai se deitar, amanhã você vai”. A mãe disse: “Por que você não deixa o menino ir? Por que você tem que mandar na vida do menino? Ele tem 17 anos”. O que eu vou fazer? Aí ele saiu. Na hora que ele saiu, rapaz, eu senti dentro do meu coração que iam matá-lo. Eu fui, a chamei, falei: “Vem cá”. Tinha um pé de jambo desse daqui, tinha um banco debaixo assim, eu digo: “Venha cá, sente aqui”. Ela foi e sentou. Eu digo: “Eu te chamei pra sentar pra escutar o tiro que vão dar no nosso filho”. Ela disse: “Tu tá doido”. Quando foi o tiro, pá, eu digo: “Eu não falei?”. Em pouco chego um cabra correndo: “Mataram o Jaiminho ali”. Eu fui lá, ele tava morto debaixo de um pé de jambo. O cara veio buscar meu filho em casa pra matar. Agora, tem muita gente que diz assim: “Tinha que acontecer negativo”. Não tinha que acontecer. Aconteceu porque o cara foi. Não é verdade? Às vezes o camarada tem um filho: “Papai, eu vou pra rua, vou pra festa” “Meu filho, não vá, não, meu filho, fique em casa” “Não, eu vou, papai, e tal”. Até que foge, vão lá e o matam. Tinha que acontecer? Não. Ele morreu pela desobediência dele. A Bíblia sagrada é um livro claro que fala muita coisa bonita, fala sobre família, mulher. Tem uma parte que diz assim: “A mulher sábia edifica a sua casa, mas a mulher tola derriba com as suas próprias mãos”. Tem outra parte que diz para o filho: “Honra teu pai e tua mãe para que eu te prolongue os dias na terra”. Eu dizia para as minhas irmãs: “Olha, eu vou morrer velhinho em cima de uma cama”. Elas: “Quem te disse?”. Eu digo: “Deus. Pela palavra dele”. Foi a coisa que mais eu honrei na minha vida, foi meu pai, material e espiritual. Porque se tu honrar teu pai material, tu tá honrando o material, se tu honrar o material, tu tá honrando teu pai espiritual, que é Deus. É. Tu tá fazendo a vontade dele, não é verdade?
P/1 – Com certeza.
R – Pois é, rapaz, eu gosto muito de ler a Bíblia. Eu sou evangélico, eu gosto muito de ler a Bíblia, aquelas passagens lindas. Tem umas passagens na Bíblia muito importante. Você lê a Bíblia?
P/1 – Sim. Sim.
R – Lê? Lê? Você conhece aquela passagem de Saulo de Tarso?
P/1 – Eu conheço mais o Salmos do que o...
R – Ah, tá. Saulo de Tarso era um homem que vivia pra perseguir o povo de Deus. E um dia ele ia pra Damasco fazer essa missão, quando surgiu um grande clarão e ele caiu do cavalo no chão, cego, e uma voz falou: “Saulo, Saulo, por que persegues?”. E ele disse: “Que és tu?”. A voz disse: “Eu sou Jesus Nazareno a quem tu persegues, dura para te recalcitrar com teus aguilhões”. Ele disse: “O que eu devo fazer?”. E a voz foi e falou o que ele deveria fazer. Então em cima disso eu tirei uma música muito linda. A letra da música é a coisa mais importante. Ela diz assim, a letra da minha música: “Eu andava num mundo perdido e sem paz, minha alma sem ter direção. De Deus, eu vivia esquecido e incapaz de lá receber salvação. Foi Jesus o meu guia leal, que morrendo na cruz me comprou. Eu andava no mundo a vagar, perseguindo a igreja do senhor. Eu andava sem misericórdia e sem luz, zombava do povo de Deus, sem pensar que aquele que morreu na cruz velava pelo povo seu. Em Jesus encontrei salvação, sua graça pousou sobre mim, consertou o meu vil coração e me salvou pelo seu amor sem fim. Um dia uma coisa me aconteceu, um grande clarão me cercou no caminho de Damasco, com amigos meus também vi a luz do senhor. Eu tremendo caí sobre o chão, uma voz lá do céu me falou, conheci que o meu coração pela graça de Deus se transformou. Esta voz gloriosa que eu vi me exortou, por meu tão cruel coração, meus olhos também no momento cegou, olhei, não vi mais o clarão. E guiado a Damasco cheguei, lá fiquei sem comer e sem beber. E orando à noite então vi um crente em Jesus me aparecer. Depois de três dias, o jovem chegou, o senhor ordenou-lhe assim, pediu para entrar e comigo falou, pondo as mãos sobre mim. E orando por mim, oh, Jesus, o espírito de Deus me selou, a minha alma recebeu uma luz, no momento meus olhos clareou. Dou glória a Deus porque já recebi a água da fonte do bem, alegre porque meu Jesus conheci, espero que breve ele vem. Oh, que gozo, que paz divinal, que mudança, que transformação, Jesus Cristo me quis revelar, ninguém tira esta paz do meu coração”. É a letra de uma música minha. Tem outra parte linda na Bíblia, que o pecado tava tão medonho que tinha chegado ao trono da glória. E Deus mandou um anjo avisar a Ló que se retirasse da cidade, que ele ia baixar fogo sobre a cidade. Mas quando ele fosse saindo, não olhasse pra trás. E a mulher dele olhou pra trás e ficou virada numa estátua de sal. Eu tenho uma linda música ali também. Eu tenho uma música também quando Jesus chegou a Genesaré, que encontrou Pedro, Tiago e André pescando, ele falou: “Senhor, passamos a noite todinha pescando, não pegamos nenhum peixe”. Ele disse: “Lança a rede no mar”. Eles lançaram a rede no mar, a Bíblia fala que pegou tanto peixe que só faltou se romper a rede. A Bíblia diz que pegou 173 grandes peixes. Eu tenho música ali também. Eu sou compositor evangélico. É. Agora, eu sou desses compositores que eu pego, leio, copio, copio, estudo e coloco a música. Eu não sou repentista, tá entendendo?
P/1 – Entendi.
R – Cada pessoa assim tem um dom.
P/1 – Seu Jaime, você tinha me contado... Quando você começou a... Você sempre foi músico? Como começou isso com a música?
R – Não. Isso aqui, isso aqui foi o seguinte, foi depois que eu ganhei esse violão da minha filha, que quando o espírito santo de Deus falou dentro de mim pra pegar o violão e cantar pra ele, que eu peguei o violão, botei debaixo do braço, quando eu fui entrando dentro de casa, falei pra ele: “Olha, tu me mandaste pegar o violão pra cantar pra ti, então tu vai me ensinar”. Olha, é muito importante. Eu posso cantar uma música pra você?
P/1 – Pode. Pode.
R – Pode? Posso cantar uma música? Eu vou cantar uma música... Eu vou cantar uma música jajá dali daquele negócio do ovo. Preste bem atenção. Eu criava muita galinha no quintal, aí levava muito milho pra galinha comer. E a galinha era presa assim, então ela comia o capim tudinho, não ficava nada no chão, só ficava o chão mesmo. Quando é um dia eu cheguei a casa, tomei banho, almocei, peguei meu violão, fui para o fundo do quintal. Quando eu cheguei ao fundo do quintal, eu olhei, tinha uma pedrona grande, e eu olhei, tinha um pé de mato desse tamanho. Eu fui lá, conheci, tirei um verso que diz: “Era um ovinho doirado, que um dia foi enterrado. Na terra ele inchou, em dez dias rebentou. Não pense que ele morreu, sua casquinha rompeu. Mas em vez de um pintinho, surgiu um broto verdinho. O broto tanto espichou, que em planta se transformou, com folha muita alongada, cortante como espada. E tinha pra se aguentar, raiz no chão e no ar. Depois que a chuva caiu, um pendão de flor abriu. E um pouquinho mais embaixo, uma boneca de cacho. Uma boneca engraçada, cabeludinha e barbada. Depois que ela cresceu, chegou alguém e colheu, despiu toda a pobrezinha, ralou-a na cozinha, e o sangue doirado dela, pôs com água na panela, mexeu com colher de pau e transformou-se em mingau, pôs açúcar, temperou e no fogo cozinhou. E por fim deu-lhe mortalha no vestidinho de palha. A boneca transformou-se no mais delicioso doce, mas agora tem vergonha de ser chamado de pamonha. (cantando) Era um ovinho doirado, que um dia foi enterrado. Na terra ele inchou e em dez dias arrebentou. Não pense que ele morreu, sua casquinha rompeu, mas em vez de um pintinho, surgiu um broto verdinho. O broto tanto espichou, que em planta se transformou, com folha muita alongada, cortante como espada. E tinha pra se aguentar, raiz no chão e no ar. Depois que a chuva caiu, um pendão de flor abriu. E um pouquinho mais embaixo, uma boneca de cacho. Uma boneca engraçada, cabeludinha e barbada. Depois que ela cresceu, chegou alguém e colheu, despiu toda a pobrezinha e ralou-a na cozinha, e o sangue doirado dela, pôs com água na panela, mexeu com colher de pau e transformou-se em mingau, pôs açúcar, temperou e no fogo cozinhou. E por fim deu-lhe mortalha no vestidinho de palha. A boneca transformou-se no mais delicioso doce, mas agora tem vergonha de ser chamado de pamonha. A boneca transformou-se no mais delicioso doce, mas agora tem vergonha de ser chamado pamonha”.
P/1 – (risos) Muito bom.
R – Pois é, rapaz. É assim.
P/1 – Seu Jaime, conta... Queria que você contasse, então você ganhou o violão e você aceitou o violão de primeira?
R – Não. Eu não aceitei o violão. Ela chegou, largou do namorado, chegou e deu o violão pra mim: “Pai, trouxe para o senhor esse violão”. Eu disse pra ela: “Eu não quero, não. Não quero violão, não, que na minha família não tem ninguém que saiba tocar”. Aí ela disse: “Então eu vou dar pra primeira pessoa que eu topar na rua”. Eu cá comigo disse: “Não pode, não, o violão é seu”. Quando ela chegou ao portão, o espírito santo de Deus tocou dentro de mim e falou: “Pega o violão e canta pra mim”. Foi quando eu corri ao portão e peguei o violão. Quando eu vou entrando dentro de casa, que eu botei o violão debaixo do braço, eu falei com ele e disse assim: “Tu me mandaste pegar o violão e cantar pra ti, então tu vais me ensinar”. Então tudo que eu sei no violão, cantar minhas músicas, tudo, foi Deus que me ensinou. Eu nunca fui à escola de música. Eu nunca sentei num banco de escola. Olha, tem muita gente sabida nesse mundo, não tem? Muita. Mas é prioridade, deveria ter uma pessoa que fizesse um livro, um livro pra conscientizar o povo do trânsito. Porque uma das coisas que mais mata no mundo é o trânsito, não tem outra coisa. Não tem doença pra matar do que o trânsito. O trânsito mata a toda hora, todo instante, todo segundo. E nunca apareceu uma pessoa. E se por acaso aparecer uma pessoa que tire uma poesia do trânsito, esse “sabidão” chama a gente de otário, de besta. Tá entendendo? Mas sabe por quê? Porque ele não tem capacidade. É. Ele não tem capacidade de tirar um verso lindo que nem esse aqui: “Aquele sinal no trânsito é pra atenção e defesa, que fica ali permanente mostrando a luz acesa. Mas depois do acidente, não se sabe quem mente, nem quem diz a certeza. Quando o sinal vermelho aparece, está mostrando perigo. Quem a ele desobedece, merece grande castigo, está sujeito a sofrer, se machucar e morrer, e baixar ao negro jazigo. O sinal verde é passagem livre, poderás passar tranquilo. Mas surgindo o amarelo, tem que obedecer ao estilo. O vermelho é vice-versa, se penetrar dá processo, porém não tem empecilho”. Não é lindo? Não é perfeito o verso?
P/1 – (risos) Muito bom.
R – Isso é Deus que ensina, não sou eu que sei, não. Eu não sei de nada. Eu sou analfabeto, praticamente, que eu nunca estudei.
P/1 – E você falou agora que nunca estudou e falou que também era difícil brincar. Então o senhor em pequeno trabalhava na roça...
R – Ah, mas eu trabalhei desde pequeno, direto. Olha, é a coisa mais que eu gosto na minha vida é de trabalhar. Sabe por quê? Eu sou aposentado, o que eu ganho dá muito bem de viver. A minha mulher é aposentada, ganha mais ou menos. E pra quê eu vou trabalhar? O povo diz: “Rapaz, eu não vinha trabalhar”. Sempre eu digo lá: “É o seguinte, eu vou trabalhar, só vou deixar de trabalhar quando eu morrer”. É porque eu amo o trabalho. É gratificante o cara trabalhar. Às vezes eu admiro assim, rapaz, tanto rapaz novo vagabundando na rua, mexendo com droga, pintando e bordando, indo preso, sai, apanha da polícia, e não trabalha, não quer trabalho, não quer fazer coisa nenhuma. Que coisa triste, né? A gente tem que... Sabe de uma coisa? O estudo é lógico que é bom. Eu tenho duas filhas formadas, uma em Contabilidade e a outra em magistério. Ajudei a formar, tudo bem, mas eu não me arrependi um nada, nada, nada de não ter aprendido a ler. Não. Quer dizer, ter ido à escola, porque eu sei ler. Eu aprendi praticando no comércio. Eu sei contar, eu sei ler, sei as quatro operações de conta, tudo eu sei, mas no comércio, eu praticando, eu aprendi. Agora, trabalhar eu gosto demais. Desde menino que eu trabalho. Todo dia. É domingo, é feriado, é dia santo, eu não tenho negócio de guardar dia, não. Eu, até doente eu vou trabalhar. Ah, mas eu gosto de trabalhar.
P/1 – E o senhor falou que depois que o senhor casou, que você veio pra Porto Velho daí, pra tentar... Não, pra trabalhar na seringa, não pra Porto Velho.
R – Não, depois que eu arranjei mulher, eu vim pra Porto Velho, morar aqui em Porto Velho. Aí eu fui para o garimpo, trabalho no garimpo. Agora, depois que eu vim do garimpo foi que eu fui trabalhar aqui no comércio. É. Que eu fui trabalhar no comércio.
P/1 – Antes de falar do garimpo e do comércio, eu queria que você falasse um pouco da experiência da seringa. Como começou isso?
R – Ah, sim, a seringa. A seringa é o seguinte, em 1940, até 45, tinha uma imigração vinda do nordeste pra cá para o seringal, pra cortar seringa, no tempo da guerra, pra fazer borracha, pra ir pra lá para os Estados Unidos. Aquilo ia pra pneu de avião, de carro. Então todas aquelas pessoas que vieram naquele tempo, soldado da borracha, vieram trabalhar, mas eles tinham assim, tipo um salário. Mas só que depois que começou a trabalhar, começou a pegar a borracha e vender para os patrões, e esse negócio desse salário ficou ali. Agora, depois uns anos pra cá, não sei que ano foi, começaram a mexer com esse negócio do soldado da borracha. Você já ouviu falar, não já?
P/1 – Já. Já.
R – Soldado da borracha. Então começaram a mexer e hoje tem muito soldado da borracha. Tem muito soldado da borracha. Eu não peguei soldado da borracha, porque na época de eu me aposentar, faltava um ano ainda, e eu trabalhava com carteira assinada e tal. Que eu trabalhei no Sesp, antigamente era Sesp, depois passou à Sucam, hoje é a Funasa, eu trabalhei federando, federando. Depois eu saí e fui trabalhar em navios, viajando, na vida Sinape [SNAPP]. Trabalhei em muitos navios. Eu, por sinal, sei até de cor um bocado. Eu trabalhei a bordo da ______00:29:46_______, Sorocaba, Diamantina, Aracaju, Campina, Uruguaiana, Sapucaia, Trombeta, tudo foi navio que eu trabalhei, esse navio da Sinape [SNAPP]. Depois eu saí e fui pra seringa, mas eu fiquei pagando como autônomo. Quando chegou o tempo, eu me aposentei. Quer dizer que eu ganho mais que o soldado da borracha. Quer dizer que nós só temos direito a uma aposentadoria mesmo, né? Pois é. Aí eu não peguei do soldado da borracha.
P/1 – Esses trabalhos nos navios, você fazia o que no navio?
R – Ali no navio é o seguinte, tem o mestre do navio... Primeiro tem o comandante, o que comanda, depois tem o comandante, tem o prático, tem o moço de convés, tem o marinheiro, tem o linha de fora. O linha de fora é quem trabalha carregando carga, embarcando, desembarcando. O marinho, o marinho só dá plantão dentro do navio. Eu trabalhava de taifeiro. O taifeiro, o serviço do taifeiro é pegar os pratos, botar na mesa para os oficiais, tirar da mesa e botar lá pra lavar, lá na copa. E tem o copeiro, que é só de mexer com lavagem. Pois é.
P/1 – E aí você começou a trabalhar como taifeiro e viajou em vários navios?
R – Ah, viajei em muitos navios da Sinape [SNAPP].
P/1 – E como eram as viagens de navio? Tem alguma história engraçada, alguma história que você lembre?
R – Hoje acabaram, acabaram com os navios. Ali você começava trabalhando no navio, o navio vinha cheio de boi. Tinha “chiqueirão” de boi só pra matar dentro do navio, só para os passageiros comerem, para os empregados comerem. Os bois vinham vivos dentro do navio. O navio vinha cheinho de mercadoria para aqueles seringalistas do Acre. Cheio de mercadoria, todo tipo de mercadoria: leite, farinha, tudo, tudo. O navio vinha cheio, carregado mesmo, muito peso, muita carga dentro do navio. Quando chegava aos portos, descarregava tudinho. Aí pegava borracha e castanha. De lá jogava dentro do navio, carregava o navio e vinha embora pra Belém do Pará. Umas ficavam em Belém, outras iam para os Estados Unidos, castanha. É. Era assim.
P/1 – E você lembra alguma história engraçada, algum causo de navio, alguma coisa que aconteceu? De você passar mal no navio?
R – Não. Não. Não. É o seguinte, eu vou contar uma história minha, uma história minha. Eu trabalhei no seringal, o seringal é onde tem muita onça. A onça come gente. Eu fui trabalhar numa colocação, ela dava oito horas longe de gente, lá tinha muita onça. Hoje eu não faço mais isso, não, mas antigamente eu fazia, pra mim aquilo era banal. Às vezes eu tava em casa, só tinha uma coisa, que eu fazia um sótão na casa, eu não dormia assim embaixo, não, dormia lá em cima trepado, com medo da onça, que muitas vezes ela entrava e pegava o cara. Aí eu ia cortar seringa, pegava uma peixeira, botava na cintura, uma faca de cortar seringa e a espingarda. Chegava à boca da estrada, eu deixava a espingarda, aí subia na serra cortando seringa. Rapaz, eu escutava a onça esturrar em cima da serra, chega estremecia o chão. E eu não tinha nem medo, não. Uma paronga na cabeça, a luz acesa aqui, uma paronga pra clarear, e eu indo embora. Quando foi um dia, eu tinha cortado rodo da estrada, tinha deixado a espingarda assim na boca da estrada, aí cortei um rodo, um rodo assim. O rodo é assim, vim, vim, vim, eu entrei aqui, vim, vim, aí vai passando bem aqui de novo, aí volta pra cá. Eu tinha cortado aquele rodo bem aqui, tinha uma madeira, uma seringueirona grossa, em cima de um “lajeiral” de pedra, não tinha mato de jeito nenhum. Eu tava ali cortando, eu escutei estralar assim atrás de mim, treco, treco. Eu pensei assim, rapaz, isso é onça estralando da orelha. Que onça estrala a orelha. Que olhei, tinha uma de cócoras no “meinho” assim já pra pular em cima de mim. Eu me levantei, rodeei pra subir na seringueira, mas ela era muito grossa, não dava de abarcar. Aí eu corri pra boca da estrada, cheguei assim na boca da estrada, peguei a espingarda e voltei, ela tava no mesmo canto. Quando ela me viu, ela correu, pulou em cima de uma pedra, eu atirei nela, ela caiu lá do outro lado da pedra morrendo. Matei. Outra vez, eu trabalhava numa colocação, e lá perto de mim, com uma meia hora de viagem, tinha um português e um cearense da Meruoca. Cearense naquela época era brabo, valente. Aí ele veio trabalhar, ele trabalha com esse português na colocação. E o assoalho da casa de seringueira é de pano de paxiúba, ela não é pregada, só é colocada assim. Um dia eles estavam comendo, negócio de umas sete horas da noite, aí, rapaz, a onça foi passando debaixo do assoalho, aí o meruocano pegou um espadim que ele tinha desse tamanho pra furar a onça, ela saiu. Aí ele foi e disse: “Se passar de novo aqui, eu vou te varar”. Quando foi um dia, ele tava jantando de noite, a onça foi passando, ele meteu o espadim no meio das costas da onça, enfiou até onde não pôde. Ela meteu dos pés, arrancou o pano de paxiúba, caiu dentro de casa, voou em cima dele, ele pegou nos dois braços da onça, pegou o segurou, o bicho era fortão. E a onça só rasgando-o com os pés e as tripas descendo. E o português, se é de matar a onça com a espingarda dentro de casa, correu, trepou na linha da casa. Aí, rapaz, quando as tripas do homem tava tudo no chão, a onça caiu embaixo, ele ficou lá, o português desceu, catou a rede, o botou dentro da rede e foi me chamar, que eu morava assim, uns 15 ou 20 minutos. O português se perdeu na mata. Quando chegou lá, me contou a história. Eu peguei uma espingarda que eu tinha, com uma bala, “chumbão” que a gente faz desse tamanho, bota dentro do cartucho. Aí eu vim. Quando nós chegamos assim, o português foi e disse: “Rapaz, o homem tá melhor, que a rede tá balançando”. Que ele tinha botado-o dentro da rede. Mas não, a onça tinha voltado, tinha acabado de matá-lo, já tinha comido a cara dele, já tinha comido o estômago dele. Quando nós encostamos na escada, a onça voou em cima de nós, eu meti-lhe fogo, matei. Foi a onça maior que eu já matei na minha vida. Eu tirei o coro dela, botava assim na linha da casa, encostava o rabo no chão, onça que era medonha.
P/1 – Que loucura.
R – (risos).
P/1 – (risos) E no garimpo? Como era no garimpo?
R – Rapaz, o garimpo é o seguinte, o garimpo é um lugar de aventura. O garimpo de pedra preta, de cassiterita, até que a gente faz. Agora, o garimpo de ouro é mais difícil. Mas muitas vezes você baixa cata, cata é um buracão que você faz de oito metros de fundura, dez por dez. Aí chega lá embaixo e não dá não dá nada, chama-se queima, queima a cata, não dá nada. Quer dizer que o camarada perdeu o tempo dele todinho com gente trabalhando, com comida, tal. Agora, tem vez que você bamburra, bamburra é quando acerta em cima do metal. Pra ir trabalhar em metal precisa ter experiência também. A gente tem que baixar uma cata onde a água jogou, faz o jogo da água, aquela ressaca assim, que o minério concentra todinho assim. Aonde a água vai pra ali, que faz aquela ressaca aqui, e o nego tirar daquele lado ali, não tem nada, não. Eu bamburrei muitas vezes dentro de garimpo, tirar cata de mil quilos, dois mil quilos, mil e 500 quilos de cassiterita. É bom trabalhar em garimpo. Garimpo assim, rapaz, quando é de noite, tem aquelas corruptelas, rapaz, o povo dos garimpos vem tudinho para as corruptelas beber, jogar, ir para os puteiros. Tem puteiro, mulher, tem tanto da bagulhada, rapaz, em garimpo. Matam gente que é uma coisa medonha. Lá tem cemitério dentro do garimpo só de gente que mata lá dentro do garimpo. O pessoal mata por causa de pedaço de terra.
P/1 – E quando tinha garimpo era muita gente?
R – Muita gente. Garimpo tem 20 mil pessoas. Cada garimpo, 20 mil, 30 mil, dez mil pessoas. Porque aqui dentro de Rondônia tiveram muitos garimpos. Eu trabalhei, olha, eu trabalhei no Oriente, no Igarapé Preto, trabalhei no Madeirinho, trabalhei em São Lourenço, trabalhei na Masisa, na Masisa. Trabalhei em cinco setores de garimpo aqui dentro de Rondônia. Aqui foi um lugar rico, muito rico de cassiterita. Depois o outro aqui no Madeira. Deu muito ouro, mas nunca trabalhei com ouro, não. Mas aqui nesse Madeira deu muito ouro também.
P/1 – Seu Jaime, então o senhor tava falando dos garimpos os quais você trabalhou aqui em Rondônia. Você tava contando. Continue contando pra mim desses garimpos.
R – Negócio dos garimpos, né?
P/1 – Você trabalhou em muitos. E tem algum que você lembra mais, falou assim: “Olha, esse foi difícil”? Ou aconteceu alguma coisa difí...
R – Não, os garimpos são o seguinte, os garimpos eram difíceis. Logo quando iniciava era difícil. Olha, eu pelo menos, eu pelo menos sofri muito em garimpo, pra trabalhar em garimpo. Às vezes eu andava três, quatro dias na mata pra abrir campo de pouso de avião. Nós íamos de 20, 30 homens. Aí nós chegávamos ao setor dos garimpos, que os garimpos eram explorados por nós mesmos. Nós ficávamos na mata a vida toda explorando, procurando. Quando nós achávamos, aí a gente juntava 20, 30 homens, ia fazer campo de avião, pra pousar avião pra levar mercadoria, pra poder... Ia muita gente pra trabalhar nos garimpos. Burro, nós pegávamos os burros, amarrávamos, derrubávamos no aeroporto o burro, amarrava, botava dentro do avião, peado. Eu cansei de ir muitas vezes levando burro peado, eu sentado em cima da cabeça do burro, segurando ali e o avião ssss. Quando nós chegávamos lá, que o avião pousava, nós pegávamos o burro, botávamos pra fora, desamarrava, ele ficava deitado, não queria nem se levantar mais. A gente levava de avião os burros, vivos.
P/1 – E vocês iam explorar por conta os garimpos, vocês não trabalhavam pra ninguém.
R – É. Não. Era, nós íamos trabalhar por conta, sim, mas só que quando a gente começava a trabalhar, aí os patrões começavam a chegar. Os patrões começavam a chegar pra comprar cassiterita. Porque tinham os compradores da cassiterita. Aí começavam a chegar empresa que vinha que de São Paulo, todo canto. Que nem, eu trabalhei numa empresa por nome de Minério de Rondônia, trabalhei numa por nome Macisa também, tudo empresa rica. Nós trabalhávamos e vendíamos cassiterita pra ela. Depois de muito tempo, ela foi monopolizada, os garimpos. Os garimpos foram vendidos todinhos para as empresas. Então as pessoas que queriam trabalhar, tinham que trabalhar de empregado para as empresas. Eles botaram frente mecanizada pra trabalhar, draga, eles faziam o tapão grande, botavam cada monstra draga, tipo navio, pra tirar minério. Quando foi em 72, mais ou menos, aí fecharam os garimpos. Fecharam os garimpos. Mais ou menos em 72 os garimpos fecharam, de cassiterita. Ainda tem gente trabalhando, faiscando. Faiscando é aproveitando aquele lugarzinho que ficou. Ainda tem gente trabalhando e vendendo a cassiterita.
P/1 – Seu Jaime, agora eu queria falar um pouco do mercado. O senhor trabalha no Mercado Municipal aqui de Rondônia há 40 anos?
R – É.
P/1 – E como o senhor começou a trabalhar no mercado? O seu comprou a banquinha lá?
R – Não, é o seguinte, quando eu vim do garimpo, aí eu cheguei aqui a Porto Velho pra procurar um lugar pra eu trabalhar numa empresa de mineradora. Um dia eu andando no mercado, aí tinha uma banca deixada lá. Não, primeiramente eu falei com um cara por nome Arnon, ele até morreu. Eu digo: “Arnon, me diz uma coisa, a venda aqui é boa?”. Ele disse: “É. Olha aqui minha venda aqui”. Pegou um caderno, mostrou a segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo. Eu digo: “De fato é boa a venda”. Aí eu saí andando dentro do mercado, encontrei uma banquinha deixada lá no canto. Eu procurei: “De quem é aquela banca?” – pra ele. Ele disse: “Rapaz, é de um cara por nome Liloberto”. Eu digo: “E aquela banca, ele aluga?”. Ele disse: “Ele aluga, que ele tem duas bancas de vender porco aí. Ele a aluga”. Aí eu o procurei e encontrei com ele, aí aluguei a banca. Aluguei a banca dele. Fiquei trabalhando. O Liloberto era muito “enrolão”, porque um sujeito que mora numa cidade, que trabalha com a prefeitura, que não arca com seus compromissos, ele chegou a um ponto de não poder mais morar na cidade, porque ele não pode mais mexer com nada. Então ele chegou a esse ponto, o Liloberto, aí foi embora daqui para Humaitá. Ele disse: “Jaime, é o seguinte, eu vou morar em Humaitá, que eu não posso mais trabalhar aqui em Porto Velho. Você vai segurando o meu aluguel, de dois em dois meses, de três em três meses eu venho aqui com você pegar” “Tá”. Eu fiquei juntando. Quando ele chegava, pagava dois, três, quatro meses. Pedia um recibo dele, ele me dava um recibo. Quando foi com uns três anos, eu recebi uma intimação da prefeitura pra eu comparecer lá. Eu fui. Quando cheguei lá, o chefe falou: “O senhor trabalha nessa banca há três anos, né?”. Eu digo: “É” “Por que o senhor não tá pagando aluguel? Tá com três anos que o senhor não paga aluguel dessa banca”. Eu digo: “É o seguinte, essa banca não é minha. Essa banca é de Liloberto Xavier de Carvalho, e eu pago aluguel pra ele certinho. Não tem um mês que não pago”. Ele disse: “Você tem um recibo lá na sua casa?”. Eu digo: “Tenho, sim” “Traga aqui”. Peguei o recibo, levei. Cheguei lá, ele olhou, falou: “Você tá pagando. Onde tá o Liloberto?”. Eu digo: “Tá no Humaitá”. Ele disse: “Quando ele chegar aqui, você o pega pelo pé e o traga aqui” “Tá”. Quando ele chegou, eu contei a história pra ele: “Vamos lá. Vamos”. _______00:05:55______ o cara lá da prefeitura. Chegou lá, ele disse: “Diga-me uma coisa, tu alugou a banca para o Jaime, o Jaime paga todo mês, por que não vem pagar a prefeitura?” “Ah, porque não dá, não sei o quê, e tal. Eu estou numa dificuldade, e coisa”. Ele disse: “Olha, a partir de hoje eu vou passar essa banca para o nome do Jaime” – que era pra mim. Eu digo: “Não. Não quero, não. Não quero comigo. A banca é do rapaz” “Mas só que não é de ninguém, aquela banca é da prefeitura. Enquanto você arcar com seus compromissos é sua, mas o dia que você não arcar, eles tomam”. Eu digo: “Não. Não quero, não”. Ele foi e disse: “Não, Jaime, pode ficar com a banca. Pode ficar”. Eu digo: “Então passe para o meu nome”. Ele passou. Quando nós saíamos de lá, eu digo: “Vamos embora lá ao mercado”. Ele veio comigo. Quando chegou lá, eu peguei 500 contos, naquele tempo 500 contos eram muito dinheiro, dei pra ele. Ele: “Rapaz, tu é doido, rapaz, pra quê?”. Eu digo: “Não” “Não, mas...” “Não. Não. Isso aqui é uma gratificação que eu estou lhe dando”. Aí eu fiquei trabalhando lá na banca. Naquele tempo, a gente vendia muito. Vendia muito. Hoje não. Naquele dia não tinha nenhum supermercado aqui, hoje a cidade é cheia de supermercado.
P/1 – Conta um pouco pra gente de como era a cidade naquele tempo.
R – Depois eu vou chegar lá, como era.
P/1 – Tá bom.
R – Pois bem. Aí vendia muito. Aí eu comecei a trabalhar. Eu vendia na banca, eu tinha um bocado de filho, aí quando era quinta-feira, eu deixava os filhos, ia pra Manaus, trazia muita marretagem da zona franca, naquele tempo era bom de comprar. Quatrocentos relógios, 500 relógios, só relógios bons. Muita calça Lee, levava para o Ji-Paraná, vendia tudo, dava dinheiro. Com um ano e pouco eu tava bonitinho. Quando é um dia, chega um camarada de Ji-Paraná e disse... Ele chegou com uma carrada de jerimum e uma carrada de banana. Ele me ofereceu, eu digo: “Eu vou ficar com uma carrada de banana”. Eu não conhecia o cara. “Mas o jerimum, eu não quero, não.” Ele disse: “Rapaz, é o seguinte, eu trouxe esse jerimum para o Antônio Crente” – um cara que já até morreu – “mas ele não tá aí, tu não pode ficar com esse jerimum aqui? Se apareceu alguém pra vender, tu vende. Um, dois, três, vai vendendo” “Tá. Fico” “Daqui oito dia, eu venho de novo, eu vou trazer mais banana”. Eu digo: “Traga dois caminhões de banana pra mim, uma comprida e outra maça”. Aí eu fiquei lá. Rapaz, quando foi com uns quatro, cinco dias, não tinha nenhum jerimum, eu tinha vendido tudinho o jerimum dele. Minha banana também já tava acabando. Aí ele chegou, eu fiquei com os dois caminhões de banana. Quando foram oito dias, de oito dias ele vinha. Ele disse: “Jaime, tá faltando café em Ji-Paraná, não dá pra tu comprar...”. Tava iniciando, né? “Não dá pra tu comprar pra mim uns cem quilos de café pra eu levar, não, em pó?” Eu digo: “Dá”. Aí eu comprei. Ele: “E nós dividimos o lucro” “Tá”. Quando foi da outra vez, 200 quilos, e foi aumentando, aumentando, aumentando, até mil quilos de café. Ele vendia, chegava aqui, dividia o lucro.
P/1 – E você comprava aqui em Porto Velho e ele vendia em Ji-Paraná?
R – Em Ji-Paraná. Ele vendia pra lá.
P/1 – E você vendia aqui em Porto Velho as suas coisas sempre?
R – É. E eu na minha banca, trabalhando aqui. Quando foi um dia, ele disse: “Jaime, lá no Ji-Paraná tem um japonês que tá vendendo uma peladora de arroz, a melhor peladora que tem, ‘bora’ comprar?”. Primeiro ele tinha me mostrado um livro que ele já tinha sido bem de vida, e tal, e coisa. Eu vi e confiei nele, eu digo: “É, vai dar certo”. Eu digo: “Rapaz, pergunta lá quanto é a máquina”. Ele foi e perguntou. Eu tinha o dinheiro. Quando chegou, ele deu o preço da máquina, eu digo: “Olha, vê se dá pra ele fazer pra pagar em três vezes. Se der, pode fechar o negócio”. Quando ele chegou, deu. “Fechou o negócio?” “Fechei.” Peguei o dinheiro, mandei a parte. Aí nós começamos a pelar arroz. Trazia arroz pra cá, Rio Branco do Acre, Manaus, Roraima, arroz pelado, sem casca, pagando frete de carro. Pagando frete de picape pra puxar das linhas, cinco, seis, oito picapes. Um dia ele disse: “Rapaz, nós estamos com uma despesa medonha de puxar arroz das linhas. Não dá pra tu comprar umas duas picapes pra gente?”. Eu digo: “Dá”. Fui lá a um amigo meu, ainda ontem eu falei com ele lá mercado, Ismael Camurça, ele era representante, eu comprei quatro C14 dele. Naquele tempo era C14, tu chegou a ver, né? Tinha C14, C10. Depois compramos dois caminhões. Compramos dois caminhões. Aí o pau torou. Aí o movimento, rapaz, tava lá em cima. Eu peguei um caminhão de arroz, levei pra Manaus. Quando eu cheguei no meio da viagem, eu tombei o caminhão. A estrada de Manaus era muito estreitinha, passava só no sinal de luz. Eu não sei o que foi que eu fiz que eu tombei o caminhão. Acabei com o caminhão, perdi o caminhão, perdi a carga de arroz e praticamente perdi minha perna. Essa perna aqui arrancou todinha, essa minha perna. Lá eu fui para Belém, passei seis meses internado em Belém. Aí voltei pra cá pra Porto Velho, doente. Fui pra Manaus, passei sete meses em Manaus, na Beneficência Portuguesa. Melhorei e vim pra cá. Eu sou deficiente dessa perna. Quer ver? Tu bota a tua mão bem aqui.
P/1 – Nossa!
R – É. Desde esse tempo. Isso aqui, meu amigo, abriu tudo aqui, tá vendo?
P/1 – De machucar.
R – Cirurgia aqui, outra cirurgia aqui, outra cirurgia aqui.
P/1 – E seis meses em Belém?
R – Passei seis meses em Belém e sete meses em Manaus. E não fiquei diretamente bom, que a minha perna ficou deficiente. Mas à vista do que eu tava, eu to bom.
P/1 – E depois de Belém do Pará, aí você tinha o caminhão, tinha picape e tudo e...
R – Ah, rapaz, aí nós vendemos tudo. Eu vendi minha parte pra ele por 20 milhões. Que eu não terminei a história, né? Então, eu vendi minha parte pra ele por 20 milhões. Naquele tempo, 20 milhões era dinheiro. Eu passei dez anos doente, então dez anos sem dar um prego, doente, viajando, gastando com família, família grande. E eu já tinha a banquinha. Quando eu terminei, depois de dez anos, eu ainda tinha um restinho de dinheiro que deu pra tocar a banca ainda. Pois é.
P/1 – Seu Jaime, conta um pouco pra gente, o senhor começou a falar de Porto Velho daquela época, como era?
R – Eu cheguei aqui em 1900... Cheguei em 40 em Roraima, lá em Roraima passamos um ano. Viemos, chegamos aqui em 1942, aqui. Aqui em Porto Velho não tinha nada, não. Aqui não. Aqui não tinha uma bicicleta, não tinha uma moto, não tinha um carro. Só tinham umas caçambas velhas da estrada de ferro. Agora, a estrada de ferro já tinha, já tinham os trens. Aqui não tinha nada, não. Aqui era uma vila. Isso aqui não tinha nada. Aqui não tinha nada, não. Só era uma vilazinha ali na frente, por ali, não tinha um asfalto, não tinha nada. Não tinha ferroviária, não tinha nada ali, não. Não tinha nada, não, aqui em Porto Velho. Não tinha caminhão, não tinha carro, não tinha nada, não. Só uns comerciozinhos velhos, umas casinhas tudo de palha. É. E hoje a cidade tá tão grande, tá desorganizada Porto Velho, porque, olha, durante o tempo que eu moro aqui, só foi o prefeito que eu vi que tá trabalhando foi esse que tá agora aqui. Esse prefeito tá trabalhando muito, mas os outros não trabalhavam, não. Aqui tinha um que o povo o gabava, mas ele só mexia com praça. Eu até botei o apelido dele de Chico Praça. Ele até morreu. Era o Chiquilito. Ele foi Senador também.
P/1 – E aí você viu toda a mudança em Porto Velho? Viu as coisas começarem aqui?
R – Eu?
P/1 – É.
R – Rapaz, do começo ao fim eu conto a história de Porto Velho todinha. Eu não te contei que eu trabalhei na mata com Rondon?
P/1 – Não contou. Conta pra gente aí.
R – Ah, eu trabalhei. Eu trabalhei, olha, eu tirei aqui... Vocês já estiveram em Manaus?
P/1 – Não.
R – Se vocês estiverem em Manaus ou em Roraima, talvez vão, vocês conhecer a estrada. Aquela estrada foi eu que tirei o picadão de Manaus até Roraima, a estrada do Alalaú. Lá tinha índio, índio, índio, aquela estrada. Eu tirei outra estrada aqui de Lábrea, de Lábrea para Humaitá com ele. Eu demarquei o Purus quase todo, do seringal Silenço até onde nasce o Purus. Dentro de dois lagos dentro do Peru por nome Lauri Lauricocha. Eu demarquei o canteiro da boca às cabeceiras, o Rio Jamari. Por ali eu conheço tudo. O Rio Amazonas eu conheço todinho, porque eu andei embarcado. Eu conheço tudo.
P/1 – E aí vocês iam em grande grupo demarcar estrada? Como era?
R – É. Trabalhava muita gente. Muita gente. Era uma equipe de 50 homens, 60, cem, 80 homens. Era quem trabalhava nessas estradas. Não vinha pouquinha gente, não. Pra tirar o picadão da estrada. Tirava só o picadão, não fazia a estrada, não, ia tirando o picadão.
P/1 – E como é? Tirar o picadão é fazer o quê? Conta pra gente.
R – É o seguinte, tem um engenheiro, ele trabalha com uma bússola. Tem os caras que trabalham com a corrente, corrente e seta. Corrente é uma corda com duas setas, aí você sai aqui, enfia uma seta aqui, sai e leva a corrente pra lá, corrente de cem metros. Aqui o engenheiro... E tem o mateiro. Aqui o engenheiro fica aqui, ele tem uma buzina, uma buzinona feita de flange, a buzina. Daqui ele buzina lá para o mateiro. O mateiro tá lá com um quilômetro, aí o mateiro buzina lá. Na hora que o mateiro buzina, aí ele pega a bússola daqui, ele buzina de novo, aí ele tira, que é pra poder ir bem certinho o picadão. O picadão é um caminhozinho. É um caminho, sabe? Que a gente vai cortando o mato, fazendo aquele caminho. Aí vai embora.
P/1 – E aí vocês iam cortando as árvores?
R – É. Cortando. Fazendo o picadão. Até chegar a outro lugar, outra cidade. Aí você vai por picadão até ir embora. Que nem um caminho desses, uma estrada assim.
P/1 – E só trabalhava homem? Tinha criança?
R – Não. Não. Só é homem. Só é homem. E eu trabalhava com esse Benjamin Rondon e ele era índio. Porque o Marechal Rondon, ele era índio também. Então a alimentação era péssima. Tinha muita alimentação, mas comida de índio, né? Tu sabe o que a gente comia de manhã bem cedinho, por incrível que pareça? Eu comia porque era obrigado. Carne de macaco. Macaco. Sabe o que é macaco, aquele bicho do mato? Cozido junto com mingau de aveia. Pegava aveia, cozinhava o macaco dentro e comia. Mas, rapaz, aquilo lá é comida de gente? Aquilo é ruim demais, mas era obrigado a comer.
P/1 – E vocês encontraram índio enquanto vocês abriam o picadão?
R – Ah, muito índio. É o seguinte, ele era índio, quando a gente ia, que ele descobria que tinha índio, que ele sabia que tinha índio, ele nos mandava ficar, aí nós ficávamos, ele ia lá onde estavam os índios, dava a fala com os índios, aí voltava, aí nós seguíamos. Passávamos no meio dos índios, os índios não mexiam conosco, não. Viu como é? Porque ele era índio também, o Rondon, aí ele sabia falar a língua dos índios, tal. Eu aqui no Amazonas aprendi. Quer dizer, aprender a falar a língua dos índios não, muitas palavras. Palavras na língua tupi guarani. A gente mora aqui e eu trabalhei já com índio, que eu tinha uma irmã que era missionária, mexia com índio, e eu aprendi algumas palavras.
P/1 – E você sempre viajou pra vários lugares?
R – É. Viajei.
P/1 – E qual foi o lugar que ficou e que você gostou, seu Jaime, que você lembre?
R – Porto Velho.
P/1 – Porto Velho?
R – Porto Velho. Pra mim não tem outro lugar no Brasil melhor do que Porto Velho, por onde andei. Aqui é bom demais. Bom de ganhar dinheiro. Aqui é muito bom. È um lugar tranquilo. Olha aqui que lindeza aqui, um quintal desses, a gente aqui debaixo dos pés de plantas, né?
P/1 – (risos).
R – (risos) Aqui é bom, rapaz. Eu tenho uma redinha acolá, uma redinha dessas de coisa, que a gente... Aí eu boto aqui. De tarde aqui, eu passo a tarde todinha deitado aqui me balançando, até de manhã. Quando dão cinco horas, eu vou para o meu trabalho.
P/1 – (risos).
R – (risos) Tu sabe de uma coisa? É bom, porque a gente ganha um dinheirinho bom. Ali eu vendo bem.
P/1 – Lá no mercado?
R – É. Eu vendo bem. Eu tenho 40 anos que eu vendo só laranja, eu tenho uma freguesia fantástica. Eu vendo uma tonelada de laranja por semana, mil e 500 quilos de laranja.
P/1 – E vocês consegue laranja aonde pra vender lá?
R – Ah, eu tenho um cara que eu compro dele há 25 anos. Só compro dele. A laranja dele é selecionada, é escolhida. A minha laranja é toda selecionada, só bonita. Hoje ele levou laranja pra mim. Eu compro dele fiado há 25 anos. Fiado, tá? Eu peço tantos quilos de laranja. Vamos dizer, eu pedi hoje 500 quilos, aí ele levou. Eu vou vender amanhã, depois, depois, talvez três dias. Aí eu termino de vender os 500 quilos. Aí eu ligo, ele traz mais 500 ou mil que eu pedi, aí eu já pago aquelas, né? É assim que eu trabalho. Trabalho há 25 anos com esse cara.
P/1 – E você guarda as laranjas lá no mercado mesmo?
R – É. Fica lá mesmo. Fica lá mesmo em cima da banca. Ninguém rouba, não.
P/1 – E lá no mercado você tá há 40 anos. E já viu muita coisa acontecer lá?
R – Já. Alguma coisinha. Eu já vi lá dentro mesmo um cara matou um, atirou na testa de outro, baleou outro lá dentro mesmo. Gente que trabalha lá dentro mesmo.
P/1 – Por causa de briga?
R – É. Briga. Um dia lá no mercado tinha um açougueiro, um açougueiro por nome Germano, e ele tinha um cunhado dele chamado Zé Doido. E um dia eu entrei dentro do banheiro, aí Zé Doido tava atrás da porta com uma faca na mão, aí disse pra mim... Eu não sabia que ele tinha problema com o cunhado dele, não. Ele disse: “Olha, não diga para o Germano que eu to aqui, não”. Quando eu saí, fui lá, digo: “Germano, tu tem problema com o Zé Doido, com o teu cunhado?” “É, rapaz, um dia desses, ele queria me furar de faca, eu dei um tiro nele, e ele ia correndo, errei o tiro”. Eu digo: “Ele tá ali no banheiro com uma faca na mão. Ele disse pra eu não dizer pra ti, não. Cuidado!”. Rapaz, isso foi sábado. Quando foi domingo, eu fui comprar a carne lá no Germano, que eu to comprando lá no Germano, eu escutei foi aquela pancada, taaa, pra mim tinha sido uma tábua que tinha batido em cima da pedra, foi o Germano que atirou no centro da testa dele. Ele foi passando, o Germano tinha um revólver de matar boi, ele atirava só na testa do boi, era paaa, o boi... Aí ele atirou na testa dele, paaa, ele saiu correndo, aquilo lavando de sangue, ele chegou à porta do mercado, ficou com a mão assim, eu corri, peguei um táxi, o botei dentro, o levei para o pronto socorro, cheguei lá, o deixei, vim embora. Quando foi… o Zé Doido entrou no mercado com o remendo no meio da testa. Parece que a bala não entrou, bateu assim e subiu, eu acho. Mas teve muita sorte aquele cara.
P/1 – Não morreu?
R – Morreu nada (risos).
P/1 – (risos) E o que mais lá do mercado que você tem pra contar? Tem outras pessoas que...
R – Um dia um cara matou lá, um açougueiro matou um de faca lá também.
P/1 – E fora gente morrendo? (risos).
R – (risos) Hein?
P/1 – E fora gente morrendo, o que você lembra? Coisa boa, alguma história engraçada, algum cliente que compra laranja sempre.
R – Não, não, eu tenho uma clientela boa de vender, vender laranja. Eu vendo bem (risos).
P/1 – (risos) E de Porto Velho, o que mais você se lembra do resto da cidade? Que o senhor viu chegar, viu chegar indústria, viu chegar asfalto? O que mais te chamou atenção desse tempo todo aqui?
R – Rapaz, aqui em Porto Velho, Porto Velho futuramente... Agora eu não sei, não, mas futuramente vai ter muita indústria aqui mesmo. Então fazendo essa hidrelétrica, ouviu falar, né? Tu ainda não foi lá, não, né?
P/1 – Não.
R – É muito bonito lá, rapaz. Muito bonito. Vai por aqui direto. Tem um ônibus toda hora passando aqui, vai bater lá. Tem um “cemiterião” lá. Um dia desses, eu fui lá ao cemitério, eu mandei fazer um túmulo lá, mandei fazer lá quando foi um dia desses, eu falei: “Mulher, vamos lá ao cemitério olhar meu túmulo” (risos). Eu digo: “Olha, eu vou fazer cinco gavetas nesse túmulo, quem morrer primeiro...”. Já tá pra encher só de parente. Já morreu... Mataram dois filhos meus, morreu uma, nasceu morta, três, e minha sogra, quatro. Só tem duas, duas gavetas lá pra quem morrer primeiro. Se eu morrer primeiro...
P/1 – (risos).
R – Seu Jaime, deixe-me te perguntar uma coisa. O senhor trabalhou no Mercado Municipal quando ele ainda era no antigo mercado?
R – Não. Não.
P/1 – Ou não?
R – Não. Eu já trabalhei quando ele queimou. Logo que ele queimou, que fizeram, eu já vim trabalhar aí. Mas não trabalhei, não. Agora, tem gente lá no mercado que trabalhou.
P/1 – Que trabalhou no antigo mercado antes de queimar.
R – Porque o antigo mercado não era só ali o cultural, não. Não tem aquele edifício Rio Madeiro?
P/1 – Tem, sim.
R – Ele era tudinho ali, até o edifício Rio Madeiro. Que depois o Tourinho comprou aquilo ali, fez aquele edifício ali.
P/1 – Entendi. E hoje o senhor continua trabalhando. E o senhor tem um sonho, uma coisa pra realizar?
R – Não. Eu não tenho, não, porque... Tu sabe o que acontece? Eu já vivi a vida que Deus me deu. A gente quando tem um sonho a realizar é aquela pessoa que pensa em viver. Porque eu leio um livro, chama-se Bíblia Sagrada, que ela tem uma parte que diz assim: “A vida do homem e vice-versa é 70 anos, o que passa daí são enfado e canseira. Se tiver robustez, chegará até 80”. E é uma realidade. A coisa mais difícil mais difícil que tem no mundo é um homem passar de 80 anos, uma pessoa. Passa, mas é muito difícil, não é verdade? Então eu não tenho nenhum sonho a realizar, não. De jeito nenhum. To esperando qualquer hora e qualquer instante eu partir. É. Porque eu já vivi a vida.
P/1 – E tem algum arrependimento ou não?
R – Rapaz, olha, por incrível que pareça... Eu vejo a pessoa falar assim: “Poxa, eu fiz isso e me arrependi”. Eu não. Sabe por quê? Porque eu só faço uma coisa pensada. Tu acredita? Tu sabe o que dá arrependimento? É a pessoa fazer sem pensar. Depois de fazer, diz: “Ô, meu Deus, por que eu fiz isso?”. Mas eu, tudo que eu faço é pensado. Eu morei com a primeira família, eu morei 35 anos com a minha mulher, aí começou aquela “brigaiada” por causa de filho, tal. “Sabe de uma coisa, eu vou embora. Eu não vou aguentar morar no meio desse povo de jeito nenhum.” Aí eu pensava dali, pensava acolá, como eu devia fazer pra não me arrepender. Eu passei acho que mais ou menos uns dois ou três anos pensando. Quando eu larguei, não me arrependi nenhum instante, porque eu pensei antes. Agora, se você não pensar antes, fazer sem pensar, se arrepende. É que nem um nego matar um. Nego matar um. Matou-lhe de repente, depois vai morrer a chorar. Vai até chorar de arrependido. Mas se o camarada estiver pensando: “Eu vou fazer isso com aquele cara, eu vou bam bam bam”. Tal, pensando como vai fazer, até que mata e não se arrepende de jeito nenhum. É.
P/1 – Seu Jaime, como é poder contar sua própria história? Contar para as outras pessoas? Como é para o senhor poder dividir a sua história com alguém aqui? Que nós estamos gravando aqui a sua história, eu queria saber como você se sentiu, se foi bom, se foi legal.
R – Ah, a gravação?
P/1 – Isso.
R – Ah, foi ótima. Foi ótima, sabe por quê? Porque tanto vocês ficaram sabendo da minha vida, como mais alguém vai ficar sabendo também. Não é verdade? É. Porque é muito bom mesmo a gente saber da vida dos outros, não é só a gente ficar com a vida da gente, saber da vida da gente e ficar ali oprimido. Não, a gente tem que expor, tem que falar, tem que conversar.
P/1 – (risos) Tá certo. Então a gente encerra aqui. Seu Jaime, queria te agradecer, agradecer toda a sua atenção e a receptividade aqui na sua casa.
R – Tá. Obrigado.
P/1 – Tá bom?
R – Tá.
P/1 – Obrigado, seu Jaime.
R – Nada.
FINAL DA ENTREVISTARecolher
Título: A vida que Deus me deu
Data: 22/06/2010
Local de produção: Brasil / Rondônia / Porto Velho
Personagem: Jaime Ramos Marinho Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.
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