NARRADORA (00:00:00 – 00:00:18)
Olá, aqui é a Janaina Sant´Ana, realizadora do podcast Radiola da Memória, que está reestreando. E essas edições só foram possíveis com o apoio da Fundação Bunge e do Museu da Pessoa. Esperamos que vocês se divirtam.
MÚSICA MODERN ATTEMPT + NARRAÇÃO (00:00: 18 – 00:01:25)
NARRADORA
Radiola da Memória é um podcast que leva você a fazer uma viagem por aqueles sons que temos gravados na memória: O ranger da porta da sala de casa, que nos lembra a chegada do pai de mais um dia de trabalho; O dedilhado de uma música espanhola no violão, que nos leva ao estúdio do avô, com suas paredes grafitadas e cheias de aparelhagens sonoras; O som dos passos seguros da mãe vindo nos tirar da cama pela manhã; E aquele do apito que anunciava a chegada da paçoca quente e cheirosa na porta da casa da avó, numa rua de Santos. Sonoridades as mais diversas que nos trazem de volta sensações, desejos, amores, afetos, os mais íntimos e delicados. E é por isso que queremos saber: O que toca na radiola da sua memória?
MÚSICA + NARRAÇÃO (00: 01:26 – 00:01: 37)
Radiola da memória. Episódio 2: A serenata
RUÍDOS VOZES, PRATOS E COPOS BATENDO + NARRAÇÃO (00: 01:38 – 00:02:07)
NARRADORA
Encontrei a Rosa em um lugar não tão boêmio quanto o da sua história. Mas, nos dias atuais, é certamente, um ponto de encontro para os amantes da cultura, do bom teatro e da boa música – o café do saguão do teatro do Sesc Vila Mariana. Que me perdoem os puristas de sons límpidos, mas nessa história, o que não faltam são os ruídos.
MISTURA DE SONS, APITO DO AMOLADOR, LATAS BATENDO, BUZINA DO VENDEDOR DE MIÚDOS (00:02:08 - 00:02:56)
NARRADORA
Meados dos anos 40 numa vila Madalena que, à época, segundo a Rosa, já tinha vocação para a boemia. Era nesse bairro onde habitavam portugueses, uma grande comunidade negra e italianos, ali na rua Luís Murat, que ela vivia com seus pais e irmãos, na casa da bisavó. Com um...
Continuar leitura
NARRADORA (00:00:00 – 00:00:18)
Olá, aqui é a Janaina Sant´Ana, realizadora do podcast Radiola da Memória, que está reestreando. E essas edições só foram possíveis com o apoio da Fundação Bunge e do Museu da Pessoa. Esperamos que vocês se divirtam.
MÚSICA MODERN ATTEMPT + NARRAÇÃO (00:00: 18 – 00:01:25)
NARRADORA
Radiola da Memória é um podcast que leva você a fazer uma viagem por aqueles sons que temos gravados na memória: O ranger da porta da sala de casa, que nos lembra a chegada do pai de mais um dia de trabalho; O dedilhado de uma música espanhola no violão, que nos leva ao estúdio do avô, com suas paredes grafitadas e cheias de aparelhagens sonoras; O som dos passos seguros da mãe vindo nos tirar da cama pela manhã; E aquele do apito que anunciava a chegada da paçoca quente e cheirosa na porta da casa da avó, numa rua de Santos. Sonoridades as mais diversas que nos trazem de volta sensações, desejos, amores, afetos, os mais íntimos e delicados. E é por isso que queremos saber: O que toca na radiola da sua memória?
MÚSICA + NARRAÇÃO (00: 01:26 – 00:01: 37)
Radiola da memória. Episódio 2: A serenata
RUÍDOS VOZES, PRATOS E COPOS BATENDO + NARRAÇÃO (00: 01:38 – 00:02:07)
NARRADORA
Encontrei a Rosa em um lugar não tão boêmio quanto o da sua história. Mas, nos dias atuais, é certamente, um ponto de encontro para os amantes da cultura, do bom teatro e da boa música – o café do saguão do teatro do Sesc Vila Mariana. Que me perdoem os puristas de sons límpidos, mas nessa história, o que não faltam são os ruídos.
MISTURA DE SONS, APITO DO AMOLADOR, LATAS BATENDO, BUZINA DO VENDEDOR DE MIÚDOS (00:02:08 - 00:02:56)
NARRADORA
Meados dos anos 40 numa vila Madalena que, à época, segundo a Rosa, já tinha vocação para a boemia. Era nesse bairro onde habitavam portugueses, uma grande comunidade negra e italianos, ali na rua Luís Murat, que ela vivia com seus pais e irmãos, na casa da bisavó. Com um olhar arguto para o mundo e ouvidos atentos para os sons diversos da rua, a Rosa menina ficava horas sentada em cima do registro d´água, um de seus “postos de observação” do bairro, admirando os acontecimentos da rua. Que, segundo ela, eram um desfile!
ROSA/ENTREVISTADA (00:02:57 – 00:05:03)
Tudo o que eu adorava, né. Tudo o que eu adorava! O bucheiro, que era o homem que vendia miúdos do boi, né. Tocava lá a buzina, e que gato e cachorro já conheciam aquela buzina e saíam, talvez pelo cheiro também, né, muito forte. E acompanhava aquele bucheiro rua acima, rua abaixo. Tinha os mascates, que vendiam roupas, cobertores. Vendiam de tudo na rua. Tinha o saqueiro, que eu lembro até hoje saqueiro, saqueiro. Ele vendia saco alvejado para fazer pano de prato para uso doméstico. E tinha o que era a minha predileção, o carro do lixo, que era puxado uma carroça, puxada por uma parelha de cavalos e eu adorava. Ah, eu não perdia. Para mim era um espetáculo. Então eu ficava lá, conhecia os nomes dos cavalos, né. Isso eu não me lembro deles. Mas o som está todo na minha memória né, do ranger daquela carroça pesada de lixo, do movimento do cocheiro, que tinha um chicote longo, os cavalos eram obrigados a subir, porque a rua Luís Anhaia é uma rampa e com a carroça cheia, eles tinham dificuldades. Então eles davam um incentivo no lombo dos animais, né. Pro meu pesar. E o barulho do ajudante dele que batia as latas de lixo ali na borda da carroceria pra... E isso aí para mim era um espetáculo. Mas um dia fiquei muito triste, porque um dos cavalos não aguentou a subida e deve ter ou cansaço ou velhice, e morreu no meio do caminho, então para mim, acabou esse espetáculo. Nunca mais eu quis assistir. Encerrou essa minha (risos), esse meu espetáculo.
SOM DE REALEJO + NARRAÇÃO (00:05:03 - 00:05:35)
NARRADORA
Apesar de traumática, a morte do cavalo não tirou de Rosa sua capacidade de olhar para as delicadezas da vida e sempre que tinha um trocadinho na mão, corria atrás do homem do realejo para ver o que a sorte lhe reservava no bico do periquito.
SOM REALEJO + ENTREVISTADA+ NARRAÇÃO (00:05:35 – 00:06:00)
ROSA/ENTREVISTADA
Embora eu não soubesse ler, mas eu ia lá mostrar para a minha mãe e ela lia para mim o que o periquito me reservava para o futuro (risos). Eu não entendia nada (risos). Eu gostava era da música do realejo e da bicada do periquito no bilhetinho, né.
NARRADOR 2 (00:06:01 – 00:06:24)
Se a fortuna não te tem sido favorável, não desanime, as coisas entram continuamente no abismo para ti, mas em breve receberás notícias que muito te surpreenderão e te causarão muita alegria. Uma só pessoa te trará a felicidade, e será aquela que você menos esperar.
MÚSICA + NARRAÇÃO (00:06:25 – 00:07:27)
NARRADORA
A mãe de Rosa não sabia se o periquito tinha lido a sorte de sua filha, ou a sua própria. A guerra, que acontecia do outro lado do Oceano Atlântico, reverberava por aqui. Os altos e baixos financeiros a exasperavam. O marido, encanador profissional, ficava muitas vezes sem trabalho e ela sonhava com uma outra vida. Aquela das fotonovelas do Jornal das Moças. Belas jovens parecidas com Rita Hayworth ou Ingrid Bergman, que certamente se perfumavam com as notas de Channel no 5 ou Miss Dior e cuja única preocupação era se o comprimento da saia, do chão até o joelho, alcançava os 40 cm propostos pelo jovem costureiro, Christian Dior, que despontava à época. Era uma vida de sonho, à qual Ana, a mãe de Rosa, não tinha acesso.
ROSA/ENTREVISTADA (00:07:28 – 00:07:56)
Não era um mar de rosas. Eles viviam assim... A minha mãe sempre insatisfeita. A minha mãe fazia esse papel da insatisfeita. (risos) O meu pai se desdobrava, era um batalhador mesmo, né. Mas sempre era pouco e dava o dinheiro na mão dela, aquilo sumia, desaparecia. Então eles brigavam por isso. Porque ela sempre tinha necessidades que não eram atendidas, né.
MÚSICA DE CIRCO + NARRAÇÃO (00:07:57 – 00:08:48)
NARRADORA
O Pascoal, pai da Rosa e marido da bordadeira mais falante da Vila Madalena, bem que queria dar um jab nessa eterna falta de dinheiro. Mas El Toro, como era conhecido nos ringues dos circos da cidade de São Paulo antes de se casar, nunca conseguia se esquivar das dificuldades financeiras. E apesar de ser um homem muito forte e protetor, lá no fundo, tinha um certo receio de que uma hora fosse acabar na porta do Bofetada, o bar da esquina da Wizard com a Fradique Coutinho que ele frequentava com os amigos, totalmente ébrio e acompanhando a voz de Orlando Silva.
MÚSICA (00:08:48 – 00:11:43)
NARRADORA (00:11:43 – 00:12:05)
Não, querido ouvinte, querida ouvinte. Essas eram somente alucinações que passavam pela cabeça do Pascoal. O nosso boxeador era um homem muito querido e amado, lá do jeito que a Ana sabia amar, e nunca precisou receber a mulher de volta, porque, na verdade, ela nunca partiu!
ROSA/ENTREVISTADA: (00:12:06 – 00:12:14)
Eles eram bem assim, diferentes um do outro. Mas a gente percebia que existia muita afeição.
NARRADORA: (00:12:14 – 00:12:51)
Embora sentissem pelos pais, aqueles desentendimentos eram somente um pano de fundo, um ruído para Rosa e os irmãos, que tinham lá suas vidas para viver. Zelma, que era a mais velha, estava sempre estudando, enquanto Rosa e Irineu, o irmão parceiro de brincadeiras e folias, confidências e artes... bem, tinham muito o que fazer! Tinham a rua para brincar de roda, de passa anel, e até mesmo para dar espetáculos de teatro e balé nas calçadas imitando as cenas dos filmes vistos nas matinés de cinema.
MÚSICA QUE BAIXO – CACO VELHO + NARRAÇÃO (00:12:51 - 00:15:46)
NARRADORA
Mas lá na casa da Rua Luís Anhaia as coisas não estavam, digamos...um mar de rosas. Isso porque o dinheiro já andava curto, e a impulsiva Ana havia comprado mais um corte de tecido das estrelas de um certo mascate que havia batido na sua porta. O casal brigou. Ana embotou. Se recusava a falar com o marido. Dias se passaram e o silêncio da casa só era quebrado pelo som da agulha que furava o tecido que Ana bordava.
NARRADORA: (00:15:47 - 00:16:15)
Muito discreta, Ana jamais falaria qualquer coisa de Pascoal. Nem ele tinha desistido dela. Mas tinha lá os seus brios, ora essa! E lá no Bofetada, Pascoal conversava com os amigos. Já não sabia como fazer as pazes com a irredutível Ana. Até que um amigo deu uma ideia digna das histórias de amor que Ana lia nas fotonovelas.
MÚSICA CARINHOSO + NARRAÇÃO (00:16:15 - 00:19:05)
NARRADORA
Já passava das oito da noite. Ana bordava um enxoval de bebê. Rosa e os irmãos dormiam. Assim que começou a cantoria, a menina abriu os olhos. Seus barulhos eram diurnos e ela se surpreendeu com aquele vozerio que vinha da rua. Cutucou o irmão e os dois correram para o quarto da frente. E dali da janela os irmãos se surpreenderam quando viram o pai orquestrando seus amigos, músicos de violão em punho e cantores de gargantas afinadas, cantando Carinhoso para a mãe.
NARRADORA (00:19:06 – 00:19:43)
Foi irresistível! Se a vizinhança saiu à rua para ouvir a cantoria, ou ficou ouvindo às escondidas atrás de suas cortinas, a Rosa não sabe, porque sua mãe mandou as crianças voltarem logo para a cama. Mas durante semanas aquela serenata foi motivo para comentários apaixonados, e levemente invejosos, de vizinhas que gostariam de estar no lugar de Ana. “O Pascoal, sim, é que era um maridão”, pensavam consigo mesmas algumas daquelas mulheres.
ROSA/ENTREVISTADA (00:19:44 – 00:20:09)
E a minha mãe sempre naquela vergonha e orgulho, vergonha e orgulho. Vergonha de ter sido o alvo da serenata, que não se usava. Ninguém fazia aquilo, né (risos). Ninguém! Foi uma coisa assim, muito diferente. Ousadia do meu pai.
NARRADORA: (00:20:09 – 00:20:36)
A Ana pode não ter tido a vida de fotonovela que achava que merecia, mas certamente teve seu momento de Ingrid Bergman. E com um final muito melhor do que o de Casablanca! Afinal, nunca teve que deixar para trás seu amado Humphrey Bogart. O apaixonado Pascoal, seu querido El Toro, estava ali para ela. Sempre.
ROSA/ENTREVISTADA: (00:20:37 – 00:20:43)
E é por isso que até hoje, Carinhoso me provoca uma doce recordação.
MÚSICA - CARINHOSO (00:20:43 – 00:20:50)
NARRADORA: (00:20:50 – 00:21:00)
Essa é a história que até hoje toca na radiola da memória da Rosa. E o que toca na radiola da sua memória?
MÚSICA MODERN ATTEMPT + NARRAÇÃO (00:21:00 - 00:22:02)
NARRADORA
Radiola da Memória. Um programa produzido por Janaina Sant’Ana e Núcleo Café com Biscoitos. Edição de Sílvio Puertas. Esse episódio contou com a participação de Cesar Carvalho, como o locutor do bilhetinho do periquito. As músicas tocadas foram: Lady in the dark, de Kurt Weill, Ela Vai voltar e Carinhoso, na voz de Orlando Silva, Que baixo, com Caco Velho e El monstruo de dos corazones, de Carlos Sanchis. Também contamos com um trechinho da música Love Shak Samba, do músico Jeris.
Este episódio teve apoio do Museu da Pessoa e da Fundação Bunge
Recolher