P/1 - Então já que você é espiritualista, queria pedir para você, se pudesse, fechar os olhinhos, um segundo, conectar com aquilo que você acredita que te protege, o nome que você dá, conectar com essa energia do invisível. E aí a gente vai entrar agora na parte da sua história e eu queria que você buscasse dentro desse escuro, qual é a primeira lembrança que você tem dessa vida, a primeira memória.
R - Nossa, a primeira lembrança, difícil essa. Eu tenho fleches de lembrança da infância, mas a primeira… Eu tenho uma lembrança olfativa, pode ser?
P/1 - Pode ser olfativa.
R - Eu lembro do cheiro da minha mãe, eu tenho uma lembrança… A mais remota que eu achei foi do cheiro da minha mãe.
P/1 - Então já que você começou pela sua mãe, queria que você contasse um pouquinho da história dela.
R - Da minha mãe?
P/1 - É.
R - Ok. Minha mãe foi criada pelos avós, porque a mãe dela foi uma mulher muito à frente da época, que aos dezenove anos, na década de quarenta, separou do marido, então… Naquela época isso não existia, uma mulher não largava o marido. Minha mãe tinha dois anos de idade mais ou menos. Era uma mulher muito diferente da época dela, depois ela trabalhava, fumava. Depois ela foi trabalhar, né? Porque quando ela estava com o marido, ele não deixava ela fazer nada, e ela deu um grito de liberdade, mas naquela época, por conta da mentalidade da época, o juiz não deixou ficar com a minha avó, então ela foi criada pelos avós paternos, ela teve essa criação pelos avós, então foi uma criação bem diferente, porque você ser criado pelos avós é muito diferente, né? Então ela não teve tanto contato com a mãe - que veio depois - e ela casou aos dezoito anos, teve o meu irmão aos dezenove e eu aos 25, e ela trabalhou em casa, meu pai italianão, bem machista também, na época ela também não trabalhou, mas ela dava aula, dava aula em casa, e foi uma pessoa que foi sempre um exemplo de ser humano pra mim, sempre foi uma referência, uma pessoa maravilhosa, uma pessoa de bem, que eu nunca vi falar mal de ninguém, sempre me deu… Apesar dela trabalhar em casa, era uma pessoa que sempre falou assim: “Seja independente. Você vê essa realidade aqui…”, porque ela não tinha essa independência, “... Estude, trabalhe para nunca ser dependente de ninguém e fazer as suas escolhas com autonomia”. Então foi essa a minha primeira semente de… Minha avó era uma mulher diferente, minha mãe apesar de não ser tão diferente, ela plantou a semente.
P/1 - E ela fazia o quê? A sua mãe.
R - A minha mãe trabalha em casa e dá aula particular.
P/1 - De quê?
R - De todas as matérias. Ela dava aula para Primário, Ginásio, até Colegial. Ela dava aula de Português, Matemática, História, porque ela tinha a necessidade de trabalhar, porque ela é uma mulher muito inteligente, mas o meu pai… A época, né?
P/1 - Teu pai era o quê?
R - Ele trabalhava na Codesp, no Porto, meu avô trabalhava no Porto, meu pai trabalhou no Porto, minha família toda trabalhou no Porto. Então "italianão", "machistão", tal, ela não trabalhou fora, mas ela tinha essa necessidade, então ela dava aula.
P/1 - E as pessoas iam até a sua casa?
R - Iam até a minha casa.
P/1 - Você lembra de ter algum contato com esses estudantes?
R - Tinha, várias até eram amigas minhas da escola, iam ter aula com a minha mãe, aí eu ficava junto, era divertido, eu até, às vezes, participava.
P/1 - O que você lembra de você com a sua mãe? Além do cheiro.
R - Ah, tudo. Todas as minhas referências são da minha mãe, claro, de outras pessoas, mas principalmente da mãe, porque a gente convivia muito, até uma coisa… Eu tenho três filhas, uma coisa que eu tenho um pouco de dó porque elas não têm a convivência, eu não posso oferecer pra elas o que eu tinha em casa, porque a minha mãe estava a disposição ali o dia inteiro, então a gente teve uma convivência muito grande, era muito próxima, ela era a minha melhor amiga, a gente fazia tudo junto, a gente fazia compras juntas, tudo a gente fazia junto, eu contava tudo pra ela, todas as minhas experiências, tudo era com a minha mãe, então a gente tem uma proximidade muito grande, é a minha melhor amiga.
P/1 - E ia te perguntar, do que você brincava quando você era criança?
R - (Risos) eu brincava de muitas coisas, eu era meio maria-moleque, brincava como todas as meninas com boneca, mas também gostava de brincar com os carrinhos do meu irmão, porque a gente não podia brincar com o carrinho, porque mulher não dirige também, né? Achava que não tinha porquê os carrinhos serem só dos meninos. Subir em árvore, meu tio tinha um sítio que a gente ia direto, então eu brincava muito ao ar livre, nadava, subia em árvores, andava de bicicleta, e tinha as brincadeiras… Mas não tinha essa coisa de brincadeira de menina e menino não, eu gostava das brincadeiras de menina e menino.
P/1 - Você sabe porque escolheram o seu nome?
R - Não.
P/1 - Nunca perguntou?
R - Ah meu nome… Desculpa, eu entendi que… Meu nome pra isso hoje aqui.
P/1 - Não, o seu nome.
R - Ah, meu nome, Luciana? Quem escolheu?
P/1 - É.
R - Sei, sei a história. Foi meu irmão. Meu irmão tem seis anos de diferença, ele é mais velho e ele chegou pra minha mãe falou assim: “Eu gostaria de ter uma irmã”, ela falou: “Mas a gente não pode escolher se é filho ou filha, né? É o que papai do céu mandar”, ele falou: “Não, eu sei que vai ser uma menina e o nome dela é Luciana”, ela falou: “Não, mas não é assim”, ele falou: “É mãe, pode acreditar em mim, a Luciana vem”, e ele que falava, me chamava de Luciana, então quando a minha mãe engravidou, ela falou: “Vou tentar”, minha mãe engravidou, veio a Luciana. Ele falou: “Eu não falei?” É como se ele já soubesse. Ele sempre me chamou, porque foi ele que escolheu, foi o meu irmão.
P/1 - E como era a sua conexão com o seu irmão?
R - Ela é maravilhosa, sempre foi. Irmãos que não brigam já é uma coisa atípica, né? Eu acho que eu tive uma discussão com o meu irmão na vida, nós somos muito, muito, muito, muito amigos, é uma pessoa muito especial. Sabe aquelas pessoas que você não encontra, que parece um anjo na terra? Uma pessoa boa, esse é o meu irmão, ele é um doce de pessoa, então a gente é muito próximo. A gente é muito família, a minha família é família de italiano, o pessoal é muito grudado, o pessoal é muito…
P/1 - A sua descendência por ambos os lados é italiana?
R - Italiano. Um lado só italiano, o outro italiano e espanhol.
P/1 - Aham. E ele é o seu único irmão?
R - É meu único irmão.
P/1 - E você tem alguma história de infância com ele, algum episódio?
R - Episódio com o meu irmão…
P/1 - Ó, não precisa ser com o irmão, um episódio da infância que você lembra e fala: “Nossa, aquilo ali aconteceu…”
R - Episódio da infância… Mas em que aspecto, qualquer um?
P/1 - Qualquer um. Eu vou perguntar coisas específicas, mas agora uma história que você contaria pro seu neto.
R - Da minha infância? Olha, o que a minha mãe fala muito da minha infância é que eu era, por exemplo, meu irmão [é] seis anos mais velho, ela conta sempre uma história de que eu, uma vez, estava pendurada, tinha cinco anos, estava pendurada na porta, tentando abrir a porta e subindo acho que num banquinho pra tentar abrir a porta, porque tinha um menino de quinze anos que tinha batido no meu irmão e ele estava chorando em casa e eu não parava quieta, estava no banquinho. E minha mãe falava: “Mas o que… Luciana para quieta, não sei o que” e tentando acolher o meu irmão, e ela sempre fala que eu era assim, eu tava tentando… Ela falou: “Mas o que você vai fazer?”, “eu vou bater no moleque que bateu no meu irmão”, eu tinha esse ímpeto de… Não tinha muita noção do meu tamanho, dessas coisas assim, mas a gente era muito ligado, a gente era muito… Não tem muita noção do que você não pode fazer, acho que quando a gente não tem noção do que a gente pode fazer, a gente vai lá e acaba fazendo as coisas, né? Acho que na minha vida toda foi meio assim, a gente: “ah, acho que dá pra fazer”, e a gente faz. Mas eu não saí pra bater no moleque (risos). Minha mãe fala que isso era uma característica minha, que eu era meio de querer defender as pessoas.
P/1 - Ah, você queria defender as pessoas?
R - É.
P/1 - E na sua escola? O que você lembra da sua escola?
R - Então, eu estudei numa escola de freiras, só tinham meninas, então a minha vida inteira eu estudei nessa escola. Como eu comentei, a primeira vez que eu estudei com homem na vida, com menino, com rapaz, foi na faculdade, eu tinha dezesseis anos, dezesseis para dezessete anos, aí entrei na Faculdade de Direito e foi a primeira vez que eu me deparei, falei: “Puxa vida…”, é até esquisito, eu estava tão acostumada a só… Eram quarenta mulheres na classe. É bom que você faz muitas amizades, não tem aquela coisa da paquera, que tem depois uma época na escola, então você fica focada, mas você faz amizades… Eu tenho grandes amizades dessa escola. São minhas amigas, são madrinhas de casamento, sou madrinha de casamento delas, então são conexões que ficaram para sempre, vão ficar para sempre, com certeza.
P/1 - Nossa! E tem alguma história que formou alguma conexão ou que surgiu a partir de uma conexão com alguma amiga sua?
R - Coisas que nós fizemos juntas lá?
P/1 - É.
R - Puxa, uma vez nós invadimos um dormitório das freiras (risos), foi uma curiosidade, porque tinha uma aura assim, era tudo muito, tinha uma aura muito obscura, assim: “O que tem naquele dormitório? O que faz?”, tentava imaginar. Aí um dia eu e uma turma de amigas a gente falou: “Não, mas não é possível, a gente precisa saber o que acontece lá, como é...”, ficava muito no âmbito da imaginação. Aí nós fomos escondidas e demos uma invadida no dormitório, mas nós fomos pegas. Aí foi um problema sério, porque lá era muito rígido. Na época que eu estudei era uma escola muito rígida, a gente... Por exemplo, se você espirrasse sem colocar a mão na boca, você saia da classe, se você falasse alguma coisa errada, por exemplo… Eu lembro exatamente de uma colega falar assim: “Eu posso ir no banheiro?”, aí a professora falava: “Não”, aí ela falou: “Mas eu estou apertada”, “não, mas não pode”, aí o pessoal: É ao”, “ah, posso ir ao banheiro?”, “pode”. Era assim, era nesse nível. Então quando entrava o professor todo mundo levantava, quando entrava o diretor todo mundo levantava, era: “Mestre, mestre”. A gente cantava o hino, a gente entrava, fazia formação. A minha formação foi muito certinha, mas a gente tem aquele espírito transgressor, pelo menos… Aí nós fomos lá… E a curiosidade, né? Então nós fomos nesse grupo de amigas, eram sempre as amigas que eram… A gente questionava as coisas. Eu lembro que eu tinha alguma aula com freiras, aula de religião, então coisas que eu lembro assim, acho que a minha natureza sempre foi muito questionadora, então eu tive uma formação católica, estudei em escola católica a minha vida inteira, eu fiz faculdade católica, mas eu questionava, então nas aulas de religião eu tinha um problema com as freiras mesmo, porque as freiras vinham e contavam as coisas e eu falava: “Mas por que? Por que isso?”, aí você questiona dogmas da igreja, “Por que isso? Por que eu vou ter que acreditar nisso? Tem que ter um… Qual a explicação?”, “não, é um dogma”, “o que é um dogma?”, “ah, você tem que acreditar porque é, é porque é, porque é definido pela igreja”, mas eu não aceitava. Então eu tinha alguns problemas com as freiras por conta dessa natureza questionadora, então eu tive alguns atritos durante a minha permanência na escola de freiras. Mas isso foi bom também, porque essa natureza questionadora, depois, define quem você é. Até quando você vai escolher uma profissão, quando você vai escolher alguma coisa para fazer, você tem que seguir a sua natureza, então mais ou menos isso.
P/1 - Deixa eu te perguntar um negócio… Você falou que o seu avô trabalhava no Porto de Santos, né?
R - Meu avô trabalhou… Meu bisavô, meu avô e meu pai.
P/1 - Nossa! E você lembra o que… O seu bisavô você chegou a conhecer?
R - Não.
P/1 - E o seu avô?
R - Meu avô pouco também.
P/1 - Você não lembra de algo que ele falava a respeito do Porto?
R - Eu não tive esse contato, né? Não tive esse contato. A minha mãe não foi criada muito com… Foi mais criada pelo avô dela, nem teve tanto esse contato com o pai. Na verdade, até ela teve, mas depois eu não tive, por conta da mentalidade da época, você imagina, como o meu avô foi largado, naquela época era uma vergonha muito grande um homem ser largado, quando a minha mãe falava, depois cresceu e falava com a mãe dela, ele falou: “Se você falar com a sua mãe, você não pode mais falar comigo”, e ela falou: “Eu não posso fazer essa escolha na minha vida”, e ele parou de falar com ela porque ela falava com a minha avó, que era a mãe dela. Então as coisas da época eram bem impactantes na vida das pessoas, então eu não tive muito contato com o meu avô. Quando eu cresci, tinha uns 23 anos, eu fui atrás dela para questionar as escolhas dele, eu falei: “Eu preciso”, ela falou: “Não, não vai”, eu falei: “Não, eu vou, eu quero ouvir da boca dele porque ele fez essas escolhas na vida dele, porque ele se afastou da família…” E aí…
P/1 - Conta como foi esse encontro?
R - Foi difícil esse encontro, porque ele tinha outra família, e a outra família meio que não incentivava esse encontro, gostava de manter distância, mas eu peguei de surpresa, eu pedi pra descer, falei com o porteiro um outro assunto, uma história qualquer que eu não lembro, aí ele desceu, eu falei: “Oi, eu sou sua neta, tal”. Ele tomou um susto danado (risos), porque a última vez que ele tinha me visto eu era um bebê praticamente. E aí ele me chamou, me acolheu, conversou, eu subi, me apresentou para todo mundo, mas ele ficou feliz, chamou várias pessoas, mas depois, no dia seguinte uma outra pessoa da família dele me ligou e falou: “Ah melhor... Ele ficou muito emocionado, tem problema no coração, melhor você não procurar mais”, e eu não procurei mais. Mas então foi um… Respeitei a família, mas fui lá ouvir da boca dele.
P/1 - Mas o que ele falou das escolhas?
R - Ele falou que a época... Ele era muito jovem, as coisas aconteceram, depois ele formou a família, mas… Acho que foi um trauma muito grande né? Imagina na década de quarenta, uma mulher sair de casa, largar o marido assim, acontecer uma coisa assim. Tiraram todos os documentos dela, ela foi embora, foi para São Paulo sem documento, sem nada. Com dezenove anos.
P/1 - Você sabe porque ela largou ele?
R - Ah minha avó tinha um espírito muito de liberdade, ela morava com a sogra, que foi depois quem criou a minha mãe, e ela não conseguia levar aquela vida, aquela vida que todo mundo mandava nela, não podia fazer nada, aquela vida imposta por aquela idade, ela não aguentava, ela falava assim: “Eu não conseguia, eu não conseguia ser feliz daquele jeito. Esposa… Eu tinha dezenove anos, mas eu precisava viver a vida”. Minha avó viveu a vida, foi uma mulher… Trabalhou, depois ela foi fisioterapeuta de problemas neurológicos, naquela época… A vida dela foi indo, foi indo e ela foi sendo sempre pioneira. Imagina uma mulher naquela época, dirigia, fumava, começou a trabalhar, ela era diferente, então ela não conseguia se encaixar naquele modelo, então ela foi embora, não aguentou. E isso foi um escândalo na época, porque nessa época ninguém fazia isso. Então eu tive um modelo de vó meio… Né? (risos). Diferente. Ela sempre falava: “Você tem que seguir o que você acredita”, ela se arrependeu de muitas coisas depois, por conta do reflexo que isso teve judicialmente, que ela não pode ficar com a minha mãe, mas você consegue um encontro com talvez a sua natureza, ela tinha essa natureza liberta.
P/1 - E ele era o que no Porto de Santos? Você sabe?
R - Quem?
P/1 - O seu bisavô.
R - Meu bisavô… Aí, eu não sei qual era a função do meu bisavô.
P/1 - E o seu avô?
R - Meu bisavô acho que era conferente. Meu avô acho que trabalhava numa parte administrativa.
P/1 - E o seu pai?
R - Meu pai também, trabalhava numa parte administrativa.
P/1 - E o que seu pai falava do Porto?
R - Ah, meu pai contava todas as histórias, porque ele trabalhou a vida inteira.
P/1 - Todas as histórias?!
R - Não, as histórias… Mas eram umas histórias mais restritas no âmbito…
P/1 - Você lembra de uminha assim, só para dar uma açucarada.
R - Histórias do Porto… É que ele contava histórias do ambiente dele ali, do escritório, porque o meu pai era uma pessoa muito sarrista, então ele vivia aprontando com todo mundo. Todas as histórias que eu lembro do meu pai contando eram histórias que ele aprontava com os outros (risos), as brincadeiras que ele fazia. Então você me pergunta assim, tudo que vem na cabeça é dele contando as histórias que ele sacaneava os outros e brincava. Eu herdei um pouco essa natureza dele também, então as coisas que eu consigo lembrar não são bem relacionadas a área portuária, são relacionadas ao ambiente que ele vivia.
P/1 - Mas pode ser uma do ambiente…
R - Do ambiente (risos). Ah, ele tinha uma… Ele ligava para as pessoas numa… Eram várias mesas assim… Porque hoje eu trabalho no prédio onde o meu pai trabalhava, porque hoje a Polícia Federal é no prédio onde era a Codesp, então eu trabalho no mesmo lugar que o meu pai, mesmo não sendo a mesma instituição, e ele tinha essa natureza, ele ligava… Ele punha tinta de carimbo na parte que vai o ouvido no telefone e ficava ligando para as pessoas, e era praticamente tudo homem, e no final do dia estava todo mundo com aquela roda na orelha de carimbo, ele punha cola embaixo, ele aprontava todo tipo de coisa com as pessoas, ligava, mandava… _____ ele estava do lado. Ele era muito brincalhão, mas também era uma pessoa… Tem esse lado brincalhão, mas tinha o lado muito correto assim, não aceitava as coisas erradas, era meio subordinado, era um pouco rebelde. Ele sempre diz… Ele é advogado, o meu pai, e ele sempre diz que nunca subiu mais na carreira por conta da boca dura dele, era uma pessoa um pouco sem filtro. Ele achava que estava errado, falava para o chefe, falava, e ele diz que sofreu um pouco com essa natureza dela. Eu tenho uma natureza um pouquinho parecida com a do meu pai, às vezes eu sou um pouco sem filtro, mas… (Risos).
P/1 - Você tem alguma lembrança de como essa natureza sem filtro se expressou na sua vida?
R - Eu tive alguns problemas com alguns chefes, às vezes, por ser muito verdadeira nas coisas que eu falo, eu acho que eu já tive esses problemas, de muitas pessoas falarem: “Ah, tudo bem”, eu falar: “Não, acho que está tudo errado, não aceito”. Sempre fui muito espontânea com as coisas, em tudo na minha profissão, sempre fui muito espontânea, até nos interrogatórios eu sou extremamente espontânea, acho que até estabelece uma conexão com a pessoa que está sendo interrogada, porque acho que a pessoa sente a sua espontaneidade, é uma coisa que você tem que estabelecer o contato com a pessoa. Então eu tive alguns problemas assim com alguns chefes, mas tudo no fim foi resolvido.
P/1 - Mas você tem algum que queira compartilhar?
R - Eu acho que não dá, né?
P/1 - Não dá. Tranquilo.
R - Eu vou expor outra pessoa, né?
P/1 - Você cresceu aonde? Qual foi o lugar que você cresceu?
R - Eu cresci em Santos.
P/1 - Mas em qual lugar?
R - No Gonzaga.
P/1 - Como era o Gonzaga? E a sua relação com o lugar.
R - Ah, foi a vida inteira, eu cresci ali, eu sempre adorei, o Gonzaga sempre foi o coração de Santos ali, onde tudo acontecia, cinema, shopping, sempre gostei muito dali. Tinha as figuras folclóricas da minha época, que todo mundo que está mais ou menos na minha faixa etária, próxima, todo mundo vai lembrar que tinha figuras folclóricas na cidade. Tinha o chamado… Se você procurar no Google você vai achar: Dudu Gonzaga, que era um homem que se vestia de mulher e andava com um shortinho, um saltão e um cabelão, e andava assim pela… Morava ali na minha rua. Tinha um louco que era famoso, era o Pode Não, que ele andava pelas ruas abanando assim e falava: “Pode não, pode não”, aí as crianças falavam: “Pode sim” e ele saia correndo para bater nas crianças e todo mundo provoca o coitado do Pode Não, quer dizer, a gente não sabe o nome dele, que a gente chamava de Pode Não, mas as crianças todas da minha idade, na cidade de Santos, conhece o Pode Não, porque ele era meio o Homem do Saco ali na… Porque a gente falava: “Meu Deus, está chegando”, e ele era agressivo. Mas ele era agressivo, hoje eu sei que ele era agressivo porque a gente gritava “pode sim”, e ele tinha algum trauma, coitado, ficava gritando “pode não” e aí as crianças gritavam “pode sim” e ele saia correndo para bater, e ele já bateu em algumas, quando ele pegava ele batia, mas era uma figura folclórica da cidade.
P/1 - Você já gritou “pode sim” pra ele?
R - Ah, claro! Todas as crianças da minha época (risos) gritaram “pode sim” para ele, todas. Quem conhecia gritava, era uma coisa que fazia parte da nossa infância. Hoje seria totalmente politicamente… Mas na minha época de infância as coisas eram mais leves, não tinha tanto essa coisa chata do politicamente correto… Politicamente correto é algo que assim, ele é necessário até certo ponto, depois ele de um certo ponto, passou, fica chato, fico insuportável, limita as pessoas, limita a espontaneidade das pessoas, acho que tudo que limita a espontaneidade das pessoas... Nós chegamos num grau na nossa vida que você tem que tomar cuidado com as palavras do seu vocabulário, que são palavras corriqueiras, e isso é muito… Eu acho isso muito irritante, esse policiamento o tempo todo, “ah, agora você não pode falar a palavra… O verbo ‘judiar’ porque vem do judeu e o judeu sofreu”, sim, mas justamente a origem, é essa essência, por isso que a palavra ‘judiar’ significa isso, porque veio dos judeus. “Ah, mas ‘denegrir’, porque negro, porque tem um sentido pejorativo”, mas gente… Eu entendo, por exemplo - já desviei do assunto, mas estou falando aqui - eu entendo que quando você fala “a lista negra”... Você tem aqui a luz e a escuridão, você não está querendo dizer que a coisa é ruim, é o que é, a luz é o bem, a escuridão é o mal, ninguém está falando da cor da pele de ninguém. Quando você faz essas referências você está falando da luz e da escuridão, dessa dualidade.
P/1 - E na sua infância, falando disso, você… O ambiente que você convivia eram pessoas brancas, eram pessoas brancas e negras, como que era?
R - Ah… Na maioria branca, porque na escola que eu estudei a maioria era branca, minha família também, mas eu tenho grandes amigos negros, sempre convivi, sempre nós convivemos… Para mim não tem diferença, não tem diferença. Eu acho que a diferença está justamente quando você começa a limitar as pessoas e você cria essas diferenças, e não existem para você… Eu quando criança, por exemplo, se não começasse a falar o que é diferente pra mim, nunca teve diferença, mas você escuta tanto: “Não pode isso porque você vai…”, “mas por que?”, que aí a diferença acaba sendo imposta para você, coisa que na nossa pureza da infância você mesmo não tem isso, você acaba sendo bombardeado com essas coisas depois, então eu tento não fazer na minha casa essa coisa do excesso do politicamente correto.
P/1 - E você tem alguma memória da polícia na sua infância? Dos delegados e das delegadas assim? Tem alguma coisa que você via?
R - Memórias de infância de polícia não, mas eu sofri um sequestro aos dezoito anos que me fez decidir ser polícia. Então esse foi o momento que eu falei: “Não, acho que eu quero…”
P/1 - Nossa, conta essa história!
R - (Risos). Eu tinha dezoito anos, estava namorando há duas semanas e foi a primeira vez que meus pais me deixaram ficar sozinha, porque eles iam viajar e eu não quis viajar. Primeira vez que eu pude ficar sozinha em casa, aos dezoito anos, e eu fui sair… Mas eu tinha hora pra chegar em casa, meu pai era muito rígido, muito, muito, muito rígido, então eu tinha uma hora para chegar em casa, que era meia-noite. E ele falou assim: “Ó, nós não vamos estar em casa, mas você tem que chegar exatamente a meia-noite”, eu falei: “Tranquilo”. Então assim… É isso que eu falo que é ruim você ter rotina, hoje em tento não ter absolutamente rotina, vou te falar porque. E tinha um louco maníaco que já estava me monitorando - e eu não sabia - já há um tempo, e ele conhecia os meus horários, então quando o meu namorado foi me deixar na porta de casa a meia-noite em ponto, ele chegou e rendeu a gente no carro com uma arma e entrou no carro e levou. Levou… Eu estava com uma máscara no rosto, ficou ameaçando. Levou a gente pro Porto (risos), levou lá para a Rua [Doutor] Manoel Tourinho, era uma casa abandonada, nos fundos de uma casa abandonada. Eu lembro que estava uma noite bonita, uma lua enorme, lua cheia, então você conseguia enxergar bem. Levou a gente para um matagal no fundo dessa casa abandonada e ele era um maníaco estuprador e ele queria… Eu sei, porque depois eu soube de tudo, ele era sádico e ele queria estuprar, me estuprar na frente do meu namorado, um cara muito louco. E aí eu fui tentando conversar com ele ao longo do caminho, parou a polícia do lado, aí ele ameaçou, falou: “Eu vou matar se você olhar para o lado”, a gente não podia olhar para o lado, enfim, fomos indo e até então eu não sabia qual era a intenção dele, eu falei: “Vai roubar. É um assalta”, mas não era. Aí ele levou a gente para o fundo dessa casa e ele pediu para eu amarrar o meu namorado, aí eu amarrei, falei: “Ó…”, na minha cabeça eu pensei: “Se a gente ficar amarrado aqui e não conseguir sair…”, porque era um lugar muito ermo, muito. Aí eu falei: “Olha, vamos fazer o seguinte, para você não achar que eu não amarrei direito, me diz como você quer que eu amarre”, eu abaixei e fiquei, porque eu pensei: “De repente ele olhando aqui, me orientando, ele não vai verificar”, e eu dei um nó falso por baixo e segurei e puxei, falei: “Está bom assim?”, ele falou: “Tá bom”, então o meu namorado ficou solto. Aí eu falei: “Vai me amarrar também?”, aí ele falou: “Não, não vou amarrar. Agora um pouquinho de prazer” (risos), aí que eu percebi que o cara era um maníaco louco. E aí ele apontou a arma, falou: “Tira a roupa”, eu falei: “Não vou tirar”, aí ele falou: “Se não vai por bem, vai por mal”, eu falei: “Vai por mal”. Aí ele me arrancou… Me puxou aqui e me arrancou um pedaço. Aí enfim, ele foi colocar o negócio na minha boca e eu joguei longe no matagal, então eu fiquei sem aquele negócio da boca. Aí ele tinha umas cordas de nylon, ele me jogou no chão e aí eu virei para ele ficar de costas para o meu namorado, mas ele percebeu e me pôs de frente, aí ele foi me amarrar de frente para ele. Ele estava assim amarrado e eu estava aqui deitada e ele estava me amarrando, aí eu fazia contato visual assim, aí eu comecei a falar com ele, falar, falar, falar, para ver se ele se distraia, eu falava: “Não, não amarra assim, está machucando”. Aí eu tentei negociar com ele, não deu certo. E aí eu percebi que ele era sádico, então naquele momento eu tentei ficar calma e conversar com ele calmamente para ver se ele perdia a excitação, porque um sádico… E falava: “Fica calmo, está tudo bem, eu estou calma, tá tudo bem, vai ficar tudo bem”, e ele: “Cala boca, cala boca”, aí ele começou a ficar desestruturado, e aí quanto mais eu falava pra ele ficar calmo, mais ele ficava pior, e aí ele ficou com muita raiva e ele jogou a arma no chão e foi dar um nó bem forte com as duas mãos, no que ele jogou, no que ele fez isso ele largou a arma e o meu namorado se jogou em cima dele e catou a arma e ele saiu correndo e a gente foi, tal, enfim. Aí fomos para delegacia, então essa experiência… Depois, quando prenderam, porque a gente levou a arma, ficou com a arma dele, levou, tudo. A gente viu que tinha muitas outras vítimas, eu fui na audiência, que tinham todas as vítimas, a última que não tinha sido vítima, na verdade, fui eu. E ele negou… Ele confessou todos os casos, menos o meu, justamente pela maluquice dele, aquela coisa do não dar certo envergonhava ele, o fato dele ter sido… É uma coisa muito doida da cabeça das pessoas, né? Pessoa que tem problema.
P/1 - Nossa, mas me fala um pouco a cena, você deixou ele… Como o seu namorado conseguiu tomar o controle da situação?
R - Porque eu estava deitada aqui e ele estava sentado no chão ali, só que ele estava solto, porque eu tinha deixado ele solto, então quando ele jogou a arma no chão eu olhei para ele e ele entendeu, né? A gente… Ele pegou e se jogou em cima dele, porque ele estava solto, na verdade ele ficou solto, ele se jogou em cima dele, e aí ele caiu para trás e arma foi para o lado, aí ele conseguiu pegar a arma e o cara…
P/1 - Mas porque ele jogou a arma no chão mesmo?
R - Porque ele ficou tão irritado comigo - mulher quando quer irritar um homem é fácil, a gente consegue - ele ficou tão irritado que ele pegou a arma, ele foi me amarra com bastante força com as duas mãos, porque eu falava: “Não amarra assim, está me machucando” e não parava de falar, falar, falar, falar, e ele ficou com raiva e falou: “Aé?”, e ele foi amarrar com as duas mãos, porque era uma corda de nylon, tanto é que eu fiquei toda cortada, aí ele foi amarrar com as duas mãos e largou a arma para poder amarrar com as duas mãos, e foi nesse momento que ele pegou. Eu achei… A gente não sabe como a gente vai reagir diante de coisas muito… A gente nunca sabe como vai reagir. Para mim parecia um filme, eu pensei assim: “Puxa vida…” Eu tinha dezoito anos, eu falei assim: “Eu agi com firmeza, calculei, percebi que era um cara sádico, que talvez se eu desestruturasse ele… Consegui, falei: “Pô, eu acho que eu gosto disso”. Lógico, gosto não disso, eu acho que eu gosto dessa coisa de… Do psicológico, porque na polícia você mexe muito, você tem que entender muito de Psicologia para lidar com as coisas, principalmente interrogatório, investigação, quando você vai… Ali eu percebi que eu tinha alguma coisa que mexia comigo… Claro, eu fiquei super mal, traumatizada, aquela coisa, mas eu falei: “Puxa, acho que eu quero ser polícia”, foi um click que deu depois disso. Em algum momento aquilo acendeu alguma luz em mim e eu quis ser política depois dessa experiência. Depois a polícia prendeu…
P/1 - E você chegou a conversar com as outras vítimas?
R - Conversei, conversei...
P/1 - E como foi conversar?
R - Ah, foi terrível. Assim, ele sempre pegava as vítimas, duas pessoas, ele sempre estuprava uma e queria que a outra ficasse observando, a maluquice da cabeça dele era essa, queria sempre plateia, então era sempre a cada duas pessoas, e o nosso foi o único que não deu certo.
P/1 - E você teve a sensação de que você interrompeu ele? Depois de você não tiveram outras, né?
R - Não, ele foi preso. Ele não tinha sido preso, demorou um tempo né? Nesse interregno assim… Para sair de casa, eu falei: “Bom, ela sabe onde eu moro”, ele conhecia toda a minha rotina. Então eu sempre digo o seguinte, eu nunca faço todo o dia o mesmo caminho para trabalhar, eu nunca volto pelo mesmo caminho, cada dia eu faço um caminho diferente. Desde esse dia eu estabeleci, eu não tenho mais uma rotina definida, porque foi a rotina que fez com que aquela pessoa pudesse me pegar, porque ele me observava já há um tempo, daí ele sabia que eu tinha aquele horário para chegar em casa, então a rotina… Eu sempre falo para todos os meus conhecidos: “Tem coisas que você tem que fazer, uma delas é… Até para você criar sinapses novas no seu cérebro, não faça as coisas do mesmo jeito sempre, faça as coisas de uma maneira diferente, que você cria essas sinapses novas e ainda evita de ser sequestrada por alguém maluco”.
P/1 - E o julgamento foi como?
R - Ah, ele foi condenado. No meu ele não foi condenado… Na hora que ele estava me amarrando ele pegou o meu relógio e pôs no bolso, e quando ele fugiu ele levou, então ele foi condenado pelo roubo no meu, pelo roubo do relógio, mas o juiz não considerou a tentativa… Não sei como né? Porque se não foi uma tentativa… Mas enfim, das outras sim, ele foi condenado, ficou preso bastante tempo, porque foram várias vítimas.
P/1 - E aí você falou: “Ah, quero ser polícia”, e como você? O que você fez?
R - Não, aquilo ali lançou uma semente, aquilo lançou a primeira semente, eu falei: “Puxa...”, eu fui para polícia, fui para delegacia, a coisa da investigação, eu falei: “Eu acho que tem alguma coisa ali…” e foi uma semente só. E aí eu prestei concurso quando eu tinha… Logo depois que eu me formei, foi com 22 para 23, e eu prestei o concurso e eu passei com 23 anos.
P/1 - Você foi estudar o quê?
R - Direito.
P/1 - Por conta disso também, ou não?
R - O Direito assim, eu estava na dúvida entre Psicologia e Direito, e o meu pai, que sempre teve uma influência forte sobre mim, falava assim: “Não, faz Direito, faz Direito”, porque o meu pai tinha uma mentalidade que a gente tinha que… “Não, tem que prestar concurso, tem que prestar concurso”, enfim. E aí eu acabei fazendo Direito, mas eu tenho paixão por Psicologia, eu estudo paralelamente, eu leio sobre Psicologia, acho fascinante, mas eu fiz a Faculdade de Direito, depois eu fiz concurso e… Primeiro eu trabalhei como Oficial de Justiça das execuções criminais e da corregedoria dos presídios - sempre nessa área criminal a minha vida - tive escritório um tempo, de advocacia, com duas amigas da faculdade, que são as minhas grandes amigas até hoje, e foi isso. Aí eu prestei o concurso para Polícia Federal e estou até hoje. E só nesse momento que eu enveredei para essa área portuária.
P/1 - Não, mas vamos ficar lá.
R - (Risos). Tenho um…
P/1 - Você foi prestar o concurso e como foi essa “prestagem” de concurso?
R - É um concurso bem difícil, ele tem muitas fases, mas assim eu estava com tudo muito fresco (pausa). Estava tudo muito fresco ainda da faculdade, então foi mais tranquilo. Só que esse concurso foi anulado, depois teve outro concurso, a gente ficou aguardando, depois fizeram uma coisa muito maluca que anularam umas questões. Eu passei bem colocada, aí anularam umas questões por grau de dificuldade, isso não existe, isso não existe no Direito.
P/1 - Como assim anular uma questão…?
R - É, alegaram o grau de dificuldade, que era um grau de dificuldade muito grande e aí anularam aquela questão. Só que as pessoas que acertaram aquelas questões que tinham esse grau de dificuldade mais complexo estavam com a pontuação mais a frente, quando anularam justamente essas questões mais difíceis a minha pontuação foi para trás, e aí não estava entre os primeiros, aí eu achei melhor entrar na Justiça e esperar. E aí ficou anos isso. Eu falei: “Ah, vou esperar a primeira instância, a segunda instância, não vou entrar na dúvida, de repente…” Muita gente pegava liminar e acaba caindo, então assim, eu passei com 23 anos, mas eu fui assumir [quando] eu tinha quase trinta.
P/1 - Pelo processo?
R - Pelo processo. E aí eu fui chamada… Só que nessa época que eu fui chamada, quando eu prestei eu era recém-formada, solteira. Quando me chamaram eu estava com um bebê de dez meses, a minha primeira filha com dez meses me chamaram para a Academia de Polícia, no momento que eu estava totalmente despreparada para ir para uma Academia de Polícia, porque imagina, você com um bebê de dez meses, minha primeira filha, tinha acabado… (Risos).
P/2 - E eu queria voltar um pouquinho para saber da Luciana do lado esposa, materno… Você estudou em colégios de freiras, em que momento você começou a paquerar? Aquilo que você estava falando que no colégio de freiras…
R - É, lá não… Ah, a gente paquerava fora, fora da escola. Primeiro namorado assim, eu tinha uns quinze anos mais ou menos, foi um pouco antes de entrar na faculdade. É, eu tinha quinze anos, mas foi porque eu conheci que era vizinho, então foi fora. A gente fazia assim, no clube, vizinhança, amigos em comum. Foi assim.
P/2 - E você conheceu o seu marido onde?
R - Então, eu sou… Tem o primeiro, que é das minhas duas primeiras filhas e o meu segundo marido, [pai] da minha última filha, ele praticamente é pai das três. Esse primeiro relacionamento foi quando eu tive a minha primeira filha, ela estava com dez meses eu fui para Academia de Polícia e aí foi um tumulto também, porque era uma coisa que não se esperava, então eu tive que ficar internada lá três meses na época, então foi muito sofrimento, acho que foi uma das épocas… Acho que eu odeio Brasília, eu tenho uma coisa com Brasília que eu não gosto muito de lá, porque eu fiquei com essa experiência negativa de ter que ir para lá e largar a minha filha aqui. Quase eu não fui, foi por um triz, foi minha mãe que chegou para mim e falou: “Você vai”, eu falei: “Não vou”. A noite anterior a eu ir para Academia, para Brasília, eu passei a noite inteira debruçada chorando no berço da Mariana, eu chorei a noite inteira, eu falei: “Eu não vou, eu não vou, eu não vou”, aí a minha mãe foi lá e falou: “Você vai, porque você está pensando isso agora, mas um dia quando a sua filha te pedir as coisas ou que você quiser proporcionar outras coisas para ela e você não puder porque você abriu mão disso… Um dia ela vai falar: ‘Mas porque você não foi, mãe?’”. Ela falou: “Vai, vai porque você vai poder dar uma vida melhor para sua filha”. Com essas palavras eu fui.
P/2 - Sua mãe ficou com ela?
R - Ficou. Ficou com ela e na época o meu marido, o primeiro, mas ele ficou muito desestruturado também, nessa época que eu fui, então ele ficava mais lá em Brasília comigo para acompanhar do que ficava em Santos. Então foi uma fase muito… E isso criou um vínculo também muito grande da minha filha com a minha mãe. Quando ela fez um ano de idade eu estava em Brasília, minha primeira filha, o primeiro ano da sua primeira filha. Aí eles levaram ela para lá e fizeram uma surpresa. Mas você ficava na Academia de manhã até de noite, então eu lembro que eu fui jantar com ela, que era bebê, a gente cantou parabéns (risos) assim num restaurantezinho no meio da semana lá em Brasília e foi isso. Fiz uma festa quando eu voltei, falei: “Não, vai ter a festa de um ano”, mas o primeiro ano dela foi assim, foi lá, só choradeira. Na Academia de Polícia o pessoal lembrava e falava assim: “Ó lá, a Luciana que chora”. Às vezes eu estava assistindo aula e as lágrimas ficavam correndo, correndo, correndo, porque é muito duro você ficar… Imagina, você se separa do bebê? Foi muito difícil, muito, foi uma escolha muito difícil. Mas não me arrependo hoje.
P/1 - Como foi essa entrada na Academia? O primeiro dia, o primeiro mês, o primeiro ano.
R - Foi difícil, porque assim, eu entrei numa época… Na Delegacia de Santos não tinha nenhuma mulher, não tinha nenhuma delegada, até era um pessoal muito da antiga, sabe? Uma fase antiga, pessoal com outra mentalidade E eu entrei, a única mulher. Aí assim, eu sofri algumas resistências, eu percebia.
P/1 - Quais eram essas resistências?
R - Por exemplo, tem uma história - eu posso falar porque essas pessoas já não estão vivas, nenhuma das pessoas da história, então sem citar nomes - mas por exemplo, eu cheguei, eu tinha uma referência de uma pessoa… Porque eu era de Santos, eu tive a sorte de ter uma pontuação que eu vim direto para Santos, porque normalmente você vai para fronteira, tal. E ah, tinha um detalhe, que eu falei assim: “Eu só vou… Eu tenho que dar um jeito lá de ter uma pontuação tal que eu consiga ficar em Santos”, só tinham três vagas para Santos. Eu falei: “Eu vou ter que ficar em Santos”. Mas assim, ainda tinha essa carga emocional de que eu… Eu tive que largar o meu emprego - porque eu tinha outro emprego, porque eu era Oficial, tal - e eu larguei tudo e falei: “Mas eu só vou se for para Santos, porque eu não vou para uma fronteira com um bebê de dez meses e o marido”, não dava, então a pressão foi muito grande, essa época da Academia foi muito complicada para mim. Então foi um período difícil, bem difícil, mas deu tudo certo no final, eu consegui vir para Santos.
P/1 - E quais foram os pontos marcantes dentro da sua trajetória como Delegada?
R - Ah, eu estava contando a história né? Acabei não contando a história do… Que eu cheguei… Você falou: “Quais foram os desafios quando eu cheguei, né?”, agora voltando aqui. Os desafios… Eu cheguei com uma referência de uma pessoa que eu não gostaria de trabalhar, porque eu tinha uma referência muito negativa, que era de uma pessoa meio torta, falou: “Ó, cuidado…”, Fulano X. Aí eu fui falar com o chefe - que seria o meu chefe na época - eu falei: “Ó, será que você pode… Eu estou chegando, nova, não conheço ninguém, na polícia e tal, será que eu podia não trabalhar com ‘X’?”, “não, tudo bem”. No dia seguinte apareceu o Fulano falando assim: “Oi, tudo bem? Eu vim trabalhar com você, eu só queria saber porque você foi pedir para não trabalhar comigo?” (risos). Então foi assim o meu primeiro dia na Polícia, já foi assim, com esse desafio, mas a gente vai…
P/1 - E o que você falou para a pessoa na hora?
R - Eu falei que eu tinha um marido muito ciumento e que ele tinha uma fama muito assim, de paquerador e eu achei melhor não, e ele acreditou (risos) e pronto, ficou tudo certo. Não falei o real motivo, porque senão, enfim. Aí a gente mexe com o ego e pronto, foi a primeira coisa que veio à cabeça para a pessoa não ficar ofendida. Ainda ficou com o ego cheio, pronto, acabou, ficou tudo certo.
P/2 - E como você conciliava o seu trabalho com a família?
R - É difícil, é difícil, mas eu tenho os meus pais aqui, né? Eu sou da cidade, então fica um pouco mais fácil. Quando você tem família, fica mais fácil. Minha filha tinha babá, então eu conseguia. Minha mãe ficava com a minha filha, tinha a moça que trabalhava lá, então dava para conciliar, mas é bem complicado, porque tem plantão, tem missão, você vai… É difícil, não é fácil conciliar. E hoje você imagina que eu tenho três, três filhas, um marido, trabalho diversificado, Delegacia, na Cesportos, é sempre um desafio, mas dá, a gente conseguia, está todo mundo aí bem-criado, está tudo certo. Mas não é fácil não.
P/1 - Qual a idade das filhas?
R - Dezenove, dezesseis e onze.
P/1 - Deixa eu te perguntar… Como eles te trataram, você sendo mulher? Você falou que foi a primeira delegada de Santos.
R - Foi.
P/1 - E como os homens te tratavam?
R - Com um certo receio assim, meio que observando. Não facilitaram muito a minha vida, não facilitaram, acho até que dificultaram um pouco, mas tudo muito de forma subliminar, nada muito ostensivo, mas a gente percebe nas entrelinhas que talvez você cause um desconforto no início, porque tudo que é novo… Talvez nem fosse de propósito, sabe? “Ah, porque é mulher…”, não sei. Talvez porque é um elemento novo, porque é algo diferente para eles, estavam acostumados com alguma coisa né, você causa um desconforto quando você entra num ambiente novo, era diferente pra eles; era diferente para mim, era diferente para eles, mas hoje a gente convive... Claro, não são mais as mesmas pessoas, mudou tudo, entrou uma leva nova, são pessoas com outra mentalidade, é uma outra polícia que tem hoje, já modificou tudo. Hoje tem uma mentalidade bem diferente. Claro que ainda você pode perceber uma coisa ou outra, mas é outra mentalidade, o pessoal já está muito mais avançado, isso já está meio caminho superado. Talvez você tenha que ter algumas posturas um pouco mais duras às vezes, mas aos poucos você vai conquistando o seu espaço. Mas talvez seja um pouco mais difícil do que um colega que tenha a mesma coisa, mesma… Só que seja homem. Algumas profissões, que por serem eminentemente masculinas - talvez na inconsciência das pessoas, não sei o que é, mas por tradicionalmente serem assim - acho que causa assim um desconforto, que depois se supera, quando te conhece bem e as coisas fluem, mas tem aquele primeiro…
P/1 - O que você fazia no cotidiano?
R - No começo é investigação… Eu lembro que eu tinha… Quando eu comecei eram quase quinhentos inquéritos policiais que me deram assim: “Toma que é seu”, de cara, quase quinhentos, quatrocentos e… Quase quinhentos inquéritos policiais, eram investigações variadas de todos os tipos. Hoje, por exemplo, a gente tem… São especializadas, setorizados, um trabalha com lavagem de dinheiro, o outro trabalha com outro crime, alguns crimes que você se especializa. Nessa época era clínica geral, então você tinha todos os crimes de todos… Então você tinha que entender de tudo. Trabalhei muitos anos assim, tinha uma carga gigantesca, volumosa de trabalho. Aí você tem os sobreavisos, fora isso, que você trabalha todo dia e tem essas investigações, esses inquéritos, você tem os sobreavisos, que você fica a disposição, fica lá, mas no dia seguinte você tem que trabalhar também, porque você tem o seu expediente, os interrogatórios, você tem marcado a sua pauta, e tem as missões, que vocês veem essas operações que tem na televisão, que a gente vai praticamente toda semana.
P/1 - E você fazia essas missões?
R - Sempre.
P/1 - Você poderia compartilhar uma que foi...?
R - Nossa, tem muitas (risos), quase dezoito anos de operações, fazendo operações, Lava Jato…
P/1 - Lava Jato?
R - É, toda semana tinha alguma coisa, algum desdobramento da Lava Jato, na época que estava mais bombando a Lava Jato, desdobramento... Eu acho que a gente já participou, por exemplo, a Delegacia de Santos, que é uma Delegacia muito requisitada para as operações, eu acho que a gente já foi em todas as operações, dessas que tem várias etapas, a gente já participou de tudo.
P/1 - Da Lava Jato, que você falou, você participou de alguma? Qual você participou?
R - Várias, várias. Vários desdobramentos, porque ela teve muitas fases, então cumprimento de mandado de busca, inúmeras, inúmeros, normalmente é na cidade de São Paulo, alguns inquéritos, assim, a gente acaba ouvindo pessoas muito conhecidas, políticos, enfim… Tem um caso - eu até contei numa entrevista aqui - que é… Foi um caso, para mim, muito emblemático, porque eu estava com mandado e a gente sabia que tinha um pessoal da máfia - uma máfia, não vou ficar citando - que a gente tinha que achar, sabia que tinha um escritório daquela pessoa e você tinha que achar uma determinada maleta que tinha toda a contabilidade, que ia solucionar toda a investigação. E aí o que aconteceu? A gente tinha o mandado para o apartamento da pessoa e a gente tinha na escuta… A gente sabia que tinha uma maleta, no escritório dessa pessoa, mas a gente não tinha o endereço, aí você tinha que ir na casa da pessoa, fazer a busca, conseguir interrogar, pegar o endereço do escritório e conseguir uma autorização para fazer a busca no… Era algo que você tem que mexer com a Psicologia também, você tem que dar um jeito de convencer a pessoa, e tudo sempre dentro da maior lisura, na Polícia Federal é realmente como vocês veem na televisão, é exatamente. Tudo que você faz, você pega duas testemunhas de fora, todos os mandados são acompanhados com testemunha de fora, que você pega da rua, do prédio, vizinho, o tempo todo acompanhando, não tem nada que você faça sem monitoramento de duas pessoas de fora que possam servir como testemunha. Então aí a gente foi no apartamento, conversei, consegui pegar… Achei um cartão da pessoa, falei: “Ó, você autoriza?”, ele falou: “Não, não tem problema, você não vai achar nada, não tem nada”. E ele foi muito convincente, falei: “Puxa vida…”. E ele deu a autorização, você fica mais preocupada porque não é um mandado, é uma autorização, mas a lei permite que você entre com a autorização da pessoa. Só que aí eu tinha recebido briefing que ali tinha alguma coisa, que eles costumavam esconder coisas dentro da parede, no teto, no piso, eu falei: “Pô, mas para isso eu vou precisar destruir”, e eu estava muito preocupada. Mas eles me garantiram, quem era o Delegado da Operação garantiu no briefing que estava lá, falou: “Está lá”. Aí eu falei: “Beleza”, mas… Só que aconteceu o seguinte, você… Eu comecei a bater com as coisas e eu não achava, eram cinco salas, era uma sala comercial com cinco salas, e aí eu falei: “Não gente, a gente vai ter que achar, porque esse é o cerne da investigação”, aí eu comecei a cutucar e a gente começou a quebrar, a gente quebrou parede, a gente começou arrancando (risos) as tomadas… Eu falava: “Eu vou perder o meu emprego”. Cada vez que eu arrancava: “Eu vou perder o meu emprego, eu vou ter que pagar tudo isso”, aí a gente começou a arrancar as luminárias - eu tenho essas fotos - chegou uma hora que o síndico entrou, só tinha poeira no ar, não se via nada, só tinha poeira, porque era um monte de coisa de gesso, a gente arrancou gesso, aí o vaso sanitário eu puxei, aí eu comecei a ver no chão, eu falava: “Não é possível”. Chegou no final das cinco salas assim, eu já tinha visto tudo, eu sentei no chão - eu nunca vou esquecer dessa cena - eu sentei no chão assim, eu falei: “Eu vou perder meu emprego” (risos). Eu não achei. Eu falei: “Não é possível”. Eu falei: Pô, eu entrei nisso aqui, eu destruí, vou ter que pagar tudo”, eu não achei. Porque quando você acha, tudo bem, mas se você não achar… “Ah, acabou aqui a minha carreira, né?”. Enfim, aí quando eu sentei no chão, eu olhava assim, era um negócio super luxuoso, eram cinco salas, aí eu olhei numa mesa, que era chumbada no chão, uma mesa de reunião, na sala de reunião. Aí eu virei pro colega, o agente, e falei: “Olha, uma feridinha a mais para quem já está lazarento… Já que a coisa foi, só falta essa mesa, porque o resto já foi”, ele falou: “Mas a mesa é chumbada no chão”, eu falei: “Então… Agora é o que falta. Vamos lá”. Aí eu tava tão desolada, tão desolada, aí a gente começou a destruir a mesa, e quando a gente chegou na parte da base da mesa, que era uma base gigante, tinha um mecanismo controlado a distância por controle remoto, que era todo chumbado, mas a gente conseguiu arrancar a tampa, e ali dentro estava a maleta (risos). Aí eu: “Ahhh” (risos), foi uma… Eu lembro, eu acho que foi o momento mais feliz da minha carreira, quando eu achei alguma coisa, porque a gente sempre acha as coisas, mas aquele dia, eu falei assim: “Meu Deus do céu…”, foi um desespero. Na hora que eu achei, eu puxei aquela maleta, eu até chorei de emoção, eu falei: “Nossa, eu não acredito”. Falei: “O meu emprego pelo menos está garantido” (risos), e realmente estava tudo lá, a documentação, tudo. Então a gente confia muito na investigação dos colegas, porque ele falou: “É certo que está lá”, mas eu já tinha arrebentado tudo. Então você não faz isso numa busca comum, você não quebra as paredes, você não faz nada disso, você abra as coisas, mas naquela especificamente isso foi muito… Falou assim: “Está lá”, e eles tinham alguma coisa assim de… “Esse pessoal esconde dentro de parede e tal”. Então foi meio… Olha, foi um dia que começou às cinco e meia da manhã e terminou às sete da noite, oito da noite, sei lá, foi bem… Essa é uma das histórias que eu lembro com bastante emoção (risos).
P/1 - Essa chegou a ser noticiada em jornal, essas coisas?
R - Saiu no Fantástico até, porque eu tenho essa filmagem da gente tirando a maleta, eu filmei com o celular a gente tirando a maleta dessa base que tinha esse mecanismo, era uma coisa muito sofisticada, então assim, pra gente correr atrás, hoje… Porque o crime organizado está muito organizado e eles tem muito recurso, então assim, não é mais como era antigamente. Não sei se vocês viram no filme da Polícia Federal, o filme da Lava Jato, ele é tudo fato real né? Em Brasília eles quebram uma parede que o dinheiro está todo emparedado, então às vezes é muito complicado. Se você não tem a informação, não tem algum indício, você não vai quebrar a parede da casa da pessoa, então é difícil.
P/1 - E você teve alguma outra operação emblemática para você, desse nível?
R - (Risos). Ah, por exemplo, no Porto você... É engraçado porque acaba ficando comum, eu digo assim: “A gente não pode achar que isso é comum”, mas na verdade a gente pega mais ou menos meia tonelada de cocaína por semana no Porto.
P/2 - É isso que eu queria saber, como é o trabalho no Porto, você tem que verificar os contêineres? Como funciona?
R - O trabalho da Polícia Federal como um todo é de investigação e os inquéritos, e aí você investiga a partir de alguma informação e aí você chega a um determinado contêiner, em determinada investigação, ou você chega através da Receita Federal, por causa dos contêineres que são escaneados. Eles agora… Todos os contêineres com destino a Europa, África, estão sendo escaneados, o destino de exportação, porque a cocaína sai daqui, ele vem por terra, pelos países da América do Sul e ela vai para os outros países, principalmente Europa, vai via Porto de Santos, por outros Portos, mas principalmente pelo Porto de Santos. Com a intensificação da legislação e a gente ficando em cima, investigação, eles perderam muito dinheiro, então eles começaram a migrar para outros Portos, mas mesmo assim aqui ainda é bem forte o tráfico, no Porto de Santos.
P/1 - Deixa eu te perguntar… E como foi que você foi trabalhar no Porto de Santos?
R - Então, eu trabalho na Polícia Federal, existe uma coisa que chama… Essa comissão que eu coordeno, é o Órgão colegiado, que é coordenado pela Polícia Federal, então é uma Comissão de Segurança Pública nos Portos, Terminais e Vias Navegáveis, então o que é? Como se fosse o Secretário de Segurança Pública, só que dos Portos, só que é um Órgão colegiado, então a gente cuida da segurança dos Portos, segurança pública. Isso é uma coisa que é feita a mais e a parte da minha profissão, então o que eu faço hoje? Tenho alguns inquéritos e sou Chefe do Núcleo de Imigração e Passaporte, na Delegacia de Santos, e, além disso, eu sou a coordenadora da Cesportos, que cuida da Segurança Pública dos Portos, que me absorve… Que é algo feito em paralelo, sem remuneração, é de atividade pública, mas me toma quase o mesmo tempo dá… Então assim, é quase uma jornada dupla, porque a gente cuida da segurança de todos os Terminais, a certificação ISPS-CODE, que é o Código de Certificação Internacional de Segurança dos Portos, depois de onze de setembro foi exigido, nos Estados Unidos, tal, tem uma história toda, enfim. Mas a gente fiscaliza, analisa todos os estudos de avaliações de risco e segurança de cada terminal, são 55 Terminais, então assim, é um trabalho insano, as reuniões… É tudo junto. Por isso que eu falo, a jornada é dupla, tripla, filhos, marido, Cesportos, delegacia, é uma toada forte. Mas então, a gente cuida da segurança pública dos portos, então você está sempre envolvida com essa área do tráfico, né? Porque uma das funções da Cesportos é justamente coibir, prevenir os tráficos de drogas dos Portos, então a gente trabalha nisso. Mas nós temos um núcleo de inteligência na Delegacia, que cuida quase que 90% dos casos de tráficos, que é vocacionado pro tráfico, pro combate ao tráfico.
P/1 - Me conta um pouco melhor, como você identifica… Através de um caso em específico… Me conta um caso para eu entender como você, por exemplo, identifica que um navio tem cocaína.
R - Você quer que eu conte os nossos métodos de investigação? (risos) Jura mesmo?
P/1 - Não, conta um caso, só para a gente...
R - Por exemplo você, através de um álbum, passou um contêiner no escâner que não era objeto de investigação, passou no escâner, foi identificado que estava com cocaína, e a partir daquele contêiner, dos dados daquele contêiner, quem importou, quem mexeu, qual foi o caminhoneiro que levou, a partir da investigação você vai chegando a uma coisa maior. Então a partir de um detalhe, a partir de um lacre, a investigação pode começar a partir de muitas coisas, você está investigando alguém, alguém que trabalha naquele terminal, ou algum caminhoneiro, tem “N” métodos, a partir de várias coisas você pode chegar. Nós temos muitas investigações nesse sentido, fora isso a gente também tem convênios INTERPOL, EUROPOL, _______, então a gente troca muitas informações com outros órgãos, então tem essa troca. Às vezes já aconteceu... Tem coisas que chama ação controlada, você identifica uma investigação, não pega aqui a droga, mas com autorização judicial, e avisa lá a origem, para que? Para você conseguir rastrear quem é o comprador, para onde estava indo aquela droga, porque quando eu pego a droga aqui, que está indo para lá, tudo bem, eu peguei a droga, mas para eu descobrir quem era o final, pra quem era, para o destinatário final, as vezes é melhor você fazer uma ação controlada, deixar passar e lá você rastreia, segue e vê para onde aquilo vai parar, quem vai tirar. Então tem várias… Muita coisa que não caiu, poderia ter caído, mas não caiu, mas está sendo investigado.
P/1 - E é só de droga que você trabalha com essa busca e apreensão, lá no Porto?
R - Não… Não é que eu trabalhe com busca e apreensão de drogas no Porto, assim, a gente cuida da segurança pública portuária, em termos de Cesportos, a minha área de atuação dentro da Delegacia é outra, que é com estrangeiros, com imigração, mas a gente cuida como um todo, mas nós temos um setor específico, que é o nosso Grupo de Inteligência Policial que trabalha especificamente com essas investigações de tráfico. Então eu não trabalho diretamente com a investigação, eu posso até ajudar, coordenar alguma coisa dentro do Porto, mas especificamente não sou eu que cuido dessas investigações, eu cuido justamente do contrário, para evitar que as coisas aconteçam. A gente aumenta a segurança… Por exemplo, quem pode elevar o nível de segurança no Porto? É só o coordenador do Cesportos, então no caso sou eu que elevo o nível de segurança do Porto, se acontece qualquer problema… “Ah, tem uma greve de estivadores que invadiram o Terminal”; “Tem uma carga perigosa…”, eu elevo o nível de segurança do Porto.
P/1 - E interrogatório? Você falou que trabalha com operações… Teve algum interrogatório que te marcou como pessoa, como Luciana?
R - Ah, muitos, muitos (pausa). O fato de ser mulher, na polícia, ajuda para muitas coisas, muitas coisas, então por exemplo, busca, busca e apreensão… Então você imagina o que é você chegar com um bando de pessoas vestidas de preto, com um fuzil na mão, entrando na casa da pessoa às seis horas da manhã. Então assim, tudo que você tem que lidar, com a família, com crianças, com gente de idade, com tudo que está em torno, com os perigos que estão, mas que você não está vendo ali, então assim, é um momento de muita tensão quando você vai cumprir um mandado de busca ou apreensão na casa de alguém, e a gente faz praticamente toda semana, então tem que ter um planejamento, tem que ter uma preparação psicológica, muitas vezes no calor da situação ali… Então o que eu acho positivo, por exemplo, da mulher na polícia, eu acho que a gente tem esse grau de sensibilidade para poder lidar com essa situação do psicológico da família, do que você vai fazer. Uma vez - essa história eu contei até outro dia - eu subi um morro no Rio de Janeiro para prender um policial militar que estava envolvido com tráfico, que era a última casa do morro, um lugar super perigoso no Rio de Janeiro, era eu e mais três da equipe, só. Aí a gente chegou e era um policial, né? Um policial militar, então assim, mais complicado ainda porque você sabe que ele tem arma, não sabe como vai reagir, então para você subir no morro já é um problema, eu tive que tirar a viatura ostensiva, pegar uma viatura descaracterizada, a gente tirou o colete, botou aqui do lado no carro, fingiu que era usuário (risos), você tem que entrar com a janela aberta, não deu pra entrar como polícia, entrou… E aí quando você sobe, aquela tensão, que você está no alto do morro do Rio de Janeiro, não é algo assim, simples. E aí a gente entrou e tinha uma criança, devia ter uns dez anos, aí eu ainda falei pro colega: “Poxa, como a gente… Esse menino pensa que o pai é policia, tem o pai como herói, como a gente… O que a gente faz que a gente pega o cara, põe uma algema, leva o cara preso assim na frente do filho?”, eu acho que os filhos não têm que pagar pelos erros dos pais, então assim… Aí eu cheguei, chamei a criança, chamei a mãe, falei: “Olha só, seu pai vai ajudar… Aqui é a Polícia Federal, você está vendo, né? A Polícia Federal. A gente vai levar seu pai numa missão muito importante e ele vai ajudar a Polícia Federal, ele vai ficar um tempo fora com a gente viajando, então ele vai sair daqui com a gente”, cheguei pra ele e falei assim: “Você vai sair numa boa? Porque o seu filho…”, ele falou: “Fica sossegada”, e aí negociei com ele ali e o filho achando que o pai estava saindo como herói para ajudar a Polícia Federal e que ia ficar um tempo fora e a mãe agradeceu e todo mundo ali, e o cara tornou tudo mais muito tranquilo, a busca, tudo que aconteceu, por conta da sensibilidade que a gente teve com o filho e de não expor pro próprio filho aquilo… Porque quando você chega… Então assim, talvez esse nosso lado feminino, essa sensibilidade de lidar com esse tipo de situação, com todas as casas que a gente vai e que vê esse tipo de situação e a gente consegue contornar. Muitas, muitas e muitas vezes você tem que lidar com isso, com os filhos, porque as crianças começam a chorar, mesmo que você entre com toda delicadeza, educação, mas as crianças se assustam, é gente de idade, tem gente que passa mal, então você tem que saber lidar o psicológico da coisa, como você vai lidar com isso. E o fato das mulheres na polícia dão aquele toque que falta nesse sentido. Normalmente o homem é mais “toscão” nesse sentido, e a gente tem essa coisa da maternidade, de saber lidar, pega a criança, senta, conversa, então em muitos casos para mim foram muito marcantes nesse sentido.
P/1 - Não queria abusar não, mas queria te pedir só mais um caso e aí a gente encaminha.
R - Não, tudo bem. Você quer de caso com criança, com…
P/1 - Não, caso que te marcou.
R - Ah, caso que me marcou.
P/1 - O que importa é você, não a polícia, é você.
R - Ah, em muitos interrogatórios, por exemplo, eu… Ó, teve um interrogatório, por exemplo, que eram dois irmãos idosos já, que não se falavam há vinte anos, era um negócio do INSS que alguém tinha ficada com um a mais, um a menos, alguma coisa que tinham pago errado, enfim, e eu lembro que quando cada um começou a contar a história pra mim, eu cismei que eu ia unir aqueles dois irmãos de novo (risos), falei assim: “Eu vou usar a minha profissão e usar de Psicologia” e eu lembro que naquele dia… Conversei duas horas com um, depois duas horas com o outro, eles estavam separados e aí eu fiz aqueles dois irmãos, depois de vinte anos, fazerem as pazes, se abraçarem, começaram a chorar na minha sala, eu comecei a chorar (risos), foi um dos momentos assim… Aconteceu isso muitos vezes, aproximação de pai com filho, que você usa aquilo ali como meio e você acaba interferindo na vida das pessoas, de propósito, né? Porque você vê que são coisas que você pode resolver ali, e as pessoas estão ali e você acaba promovendo usando só psicologia. Então esse caso dos dois irmãos que não se falavam a vinte anos, do pai também que estava longe da filha pequena, já estava há quase um ano sem ver a filha, eu falei: “Você vai ter que vir aqui com a sua filha para eu ver”, expliquei, expliquei da minha vida, o que aconteceu, contei um caso pra ele pessoal, tal, o cara se compadeceu, era um caminhoneiro, começou a chorar, ele falou assim: “Eu vou voltar aqui e vou trazer a minha filha para senhora ver”, eu falei: “Eu vou esperar”, e ele levou, ele se reconciliou com a filha, com toda a família, por causa do inquérito.
P/1 - Mas o inquérito tinha a ver com isso, ou não?
R - Não tinha nada, não tinha nada a ver com isso, era de uma coisa totalmente diferente, ele era testemunha (risos), mas aí ele contou e aquilo foi… Você vai se envolvendo. Eu acho que esse é um lado da mulher que é interessante, na polícia, porque você acaba se envolvendo de uma maneira… Então eu acho que histórias que me impactaram foram essas histórias que de alguma maneira eu afetei positivamente a vida das pessoas, porque você pensa em polícia, você só pensa: “Aí, só desgraça, prender”, mas você consegue… Acho que em qualquer posição que você tenha na sua vida, você consegue fazer a diferença.
P/1 - Teve algum outro que você sentiu que você fez a diferença positivamente?
R - Acho que vários eu promovi essa união das pessoas, foram alguns casos ao longo do tempo. O que mais? Deixa eu pensar. Aconteceram casos engraçados, dentro da desgraça às vezes acontece humor. Teve um caso de um apartamento que a gente entrou em São Paulo, um apartamento luxuoso, e a gente estava fazendo a busca e a gente abriu o cofre, estávamos pegando todo o dinheiro, contando, cheio de testemunha, enfim, estava a família toda do cara, ele estava com mandado de prisão também, e na hora que eu estava contando o dinheiro ali, na frente de todo mundo, aí ele me fez um pedido especial, ele falou assim: “Doutora, eu posso pedir uma coisa?”, eu falei… Tinha não sei quantos mil dólares lá, ele falou: “A senhora pode não aprender essa nota de um dólar, porque é a minha nota… Essa nota não tem nada a ver com esse contrato, não tem nada, essa nota de um dólar é a minha nota da sorte, eu sempre mantenho ela aqui, a senhora pode não apreender?” Os meus colegas já me conhecem, sabe que eu… Eu falei: “Não”. Aí eu vi que os meus colegas me olharam, falaram assim: “Pô, mas essa não é a Luciana” (risos). Aí ele: “Mas por que não?”, aí eu falei: “Vamos raciocinar comigo”. Eu falei: “Olha só, são seis horas da manhã, Polícia Federal está na sua casa, está levando todo o dinheiro que está aqui, todas as provas, não sei o que, você está indo preso, você acha que essa nota de um dólar te dá sorte? Deixa eu levar essa nota, pelo amor de Deus, você tem essa noção?” (Risos). Ele: “Pelo amor de Deus, leva essa nota, aprende essa nota, leva ela embora” (risos). E ele mesmo começou a rir, mesmo naquele momento de tensão, ele realmente caiu em si, ele falou: “Realmente, olha a minha situação aqui e eu estou querendo guardar essa nota achando que vai me dar sorte”, eu falei: “Cara, olha a sua situação, vê se você acha que essa nota te dá sorte?”, ele: “Não, não, aprende junto”, então assim, é engraçado que as reações das pessoas em momentos de tensão, então você vê o ser humano, a vida como ela é, eu acho que… A minha profissão me impacta muito como ser humano no sentido de você pegar as pessoas nos extremos. Você pega sempre numa situação extrema, porque você entrar na casa de alguém inesperadamente, às seis horas da manhã ou para aprender ou para fazer uma busca… A busca é uma coisa muito invasiva, né? Você vai olhar tudo que tem na casa da pessoa, você vai entrar na intimidade da pessoa de uma maneira, e a gente acha coisas inusitadas, e você tem que fazer cara de paisagem (risos), e as pessoas ficam… E aí você percebe o constrangimento das pessoas, porque elas sabem às vezes não é, elas ficam menos constrangidas com objeto do crime, que você acha, às vezes um contrato, dinheiro, seja lá o que for, do que assim, achar um vibrador, que as pessoas ficam naquele grau de constrangimento, e isso é uma coisa corriqueira de você achar nas buscas nas casas das pessoas, e coisas piores assim, então o grau de constrangimento das pessoas… Então você entra muito na intimidade do outro, então se você não tiver sensibilidade, se você não tiver psicologia para lidar com isso, ou lidar com grau de estresse muito elevado, porque já teve caso que a pessoa se jogou - não comigo, graças a Deus, nunca passei por isso - mas tem casos que a gente sabe, mais de um até, que a pessoa se jogou, se jogou do décimo andar, porque não aguentou a vergonha, sei lá, não quis ser presa, não sei. Mas a pessoa está num grau de estresse… Eu até falo que essa coisa de você, __________ não é para você algemar, eu sou absolutamente contra, eu acho que não tem nada a ver… Quando você algema alguém, você está no meio de uma busca, você tá prendendo a pessoa, ela tem que ficar algemada, pra ela defender essa pessoa dela mesma, contra ela, porque muitas pessoas tentaram se matar, e para proteger dos outros, porque a pessoa pode ter uma reação inesperada contra você, eu não sei o que tem na casa das pessoas, o cara sabe onde tem uma faca, onde tem uma arma, você não pode cuidar de tudo, o tempo todo, ao mesmo tempo, então é muito complicado você lidar com isso, então é importante que a pessoa esteja ali para a proteção dela, para a proteção da equipe, para a proteção dos outros, para proteção de todo mundo… Quando você tiver andando na rua, a pessoa de repente… Então essa coisa que hoje colocam: “Ai, para constranger…”, não, é segurança. Segurança em primeiro lugar, não tem essa de constrangimento, é segurança, porque depois que morre alguém não tem… Você vai falar o quê? Você já viu em tribunal, que aconteceu com uma juíza também, “ah, tira a algema”, aí o cara atacou a juíza, quase matou a juíza, então assim, tem essas questões também. Eu já desviei aqui do assunto principal, mas só fiz uma observação (risos).
P/1 - E teve algum que você achou que estava fazendo… Que você estava cumprindo alguma ordem, mas você não concordava com o que estava sendo feito, que você sentiu que estava fazendo a coisa errada?
R - Deixa eu pensar. Não, não, não aconteceu. Teve uma vez que eu achei que aquela pessoa estava falando a verdade e depois verificou-se que estava mesmo, mas foi uma questão de você captar as coisas. Eu acho que assim não. As coisas são feitas de forma muito criteriosa lá, então é difícil ter alguma coisa nesse nível. E também, se você achar que alguma coisa manifestamente legal, você não é obrigada a cumprir, então tem isso também.
P/1 - E você já passou por alguma situação de perigo?
R - Essa, por exemplo, subindo o morro. Eu acho que toda vez que você vai cumprir o mandado, você não sabe o que espera ou quem está esperando ou o que a pessoa vai fazer, ou vai estar com uma arma na mão quando você abrir a porta, então todas essas vezes você passa por uma situação de perigo. O ser humano, quando você leva ele ao extremo do estresse, você não sabe qual é a reação dele… Você não sabe nem qual é a sua própria reação numa situação de estresse. Quando eu contei a história do sequestro, se alguém me falasse que eu ia ter uma reação fria, que eu sou uma pessoa tão passional, eu ia falar: “Não, imagina. Eu não reagiria assim”, e no momento eu reagi daquela maneira, então assim, a gente nem sabe quem a gente é numa situação de estresse extremo, você pode se surpreender com a sua própria reação. Então se eu não posso dizer a minha, quanto mais a do outro, né? Eu não tenho um laudo psicológico da pessoa, por isso eu sempre falo pro juiz… Eu sempre uso algemas, por exemplo, eu falei assim… Porque você tem que justificar. Eu justifico, eu falo assim: “Eu não tenho laudo psicológico das pessoas, eu não posso garantir que aquela pessoa não vá ter um surto, não vai me atacar, não vai atacar alguém, o meu colega, não vai matar um colega”, eu não sei. Então essa coisa do… O ser humano é uma coisa maravilhosa, cada um é um universo, a gente não tem como saber, a gente não… O autoconhecimento já é difícil, então… Mas na minha profissão você lida com muito… Meio a vida como ela é, você vê as pessoas em situações muito extremas, então você começa a conhecer o outro lado do ser humano, bom, ruim, mas você conhece o ser humano no extremo.
P/1 - Eu ia te perguntar desse extremo… Qual foi o lado mais pobre do ser humano que você já viu?
R - Nas investigações de pedofilia, são essas investigações. Eu não vi, eu não estava presente… Eu já fui em muitos mandados, você vai em casa de pedófilo, é uma coisa bem… É muito difícil, é muito difícil. E assim, você ter contato com esse tipo de coisa, esse lado obscuro do ser humano. Por exemplo, tem uma… A gente tomou conhecimento de uma rede - vou te falar o extremo do ser humano - uma rede - fora do país, não é aqui - de pedófilos que faziam uma troca de filhos, assim, eu dou o meu filho para você abusar e você dá o seu para mim e eles faziam esse consórcio, essa troca, esse swing de filhos. O que isso não é senão o extremo podre do ser humano? Isso pra mim é o ápice da degradação do ser humano, eu até arrepio quando falo disso. Não é uma coisa que enoja, você fala: “Existe gente que faz isso?”, “existe”. Não é uma pessoa, existe uma rede.
P/1 - Como, por exemplo, nesses casos, como você faz para chegar em casa depois, falar com a sua filha sobre um assunto da escola?
R - Então, o que você pode fazer para minimizar esses impactos que você tem, por exemplo, eu já dei palestra na escola para orientar as crianças, para orientar os pais das crianças o que fazer, computador, como você pode monitorar, orientar, é o que você pode fazer, investigar… Não era a minha investigação, eu não era dessa área, mas você está em contato, são os seus colegas ali do seu lado, então você tem conhecimento. Fui em várias buscas que tinham… O mandado era para pedófilo. Então assim, é um mundo muito cão, você lida com um lado totalmente obscuro do ser humano que… Aí é muito ruim. Aí você volta para casa para você conseguir manter a sua sanidade, realmente, voltar para casa, reencontrar a sua família, ver seus filhos, e aquela cena na sua cabeça, aquelas coisas na sua cabeça, tem que ter um…
P/1 - Teve alguma vez dessas cenas impactantes que você viu, e se você chegou a pensar em desistir?
R - Não. Não, justamente quando você trabalha, que você vê que o fruto do seu trabalho está dando certo, aí é justamente quando você não pensa em desistir, porque está dando certo. Toda vez que você tira uma pessoa dessa da rua, que você põe uma pessoa dessa na cadeia, o colega seu coloca uma pessoa dessa na cadeia, você fala assim: “Vale a pena”, alguém tem que fazer esse serviço, alguém tem que tirar esse pessoal da rua. Cada criança que você salva. Teve um caso… Eu não posso citar nada assim, mas teve um caso que salvaram a criança, no áudio… Estava sendo investigado e tava no áudio que a pessoa… Ia ser naquela noite ou no dia seguinte que ia pegar uma criança de dois anos, e aí colega correu com o juiz no final de semana, bate na porta do Ministério Público para sair o mandado a tempo para fazer tudo, justamente porque estava na iminência de acontecer, e conseguiram evitar. Então nessas horas você fala assim: “Ufa. Que bom!”. Não desisti. Mas realmente quando… É um exercício você chegar em casa e deixar tudo do lado de fora, quando você tem contato com esse lado tão ruim, e como se nada fosse com a sua família, difícil.
P/2 - E as suas filhas te perguntam sobre a sua rotina de trabalho? Vocês conversam?
R - Muito, sobre tudo. Acho que tudo na vida é você orientar, a gente não pode botar os filhos numa redoma, não dá, a gente tem que criar os filhos para vida, você não vai estar a vida inteira ali para proteger, então é orientar: “Ó, isso existe, o mal existe, ele acontece, ele é assim, tem muitas formas” e explicar: “Tem o bem, tem o mal”, não é tudo só mal, senão a pessoa vai ficar neurótica, mas eu digo que a nossa visão é diferente. Quando você vai levar um filho assim… Eu já vi investigação, era a vó a abusadora da neta, então você pensa assim: “Quem que vai prever?”, é imprevisível na cabeça da gente, então a gente fala assim: “Como assim? Uma vó?”, é inconcebível na nossa cabeça, até no nosso inconsciente, você fala: “Não, isso não”, é difícil até para você aceitar. Então o que isso impacta na nossa vida? Talvez você fique um pouco mais neurótico com as coisas porque você sabe que o mal existe mais do que as pessoas que não trabalham com isso sabem, porque você… Existe muito, muito, mais do que a gente pensa, em muitos lugares, então eu sei que, por exemplo, o pedófilo procura só profissões que ele tenha que lidar com crianças, então eles trabalham na escolinha dando aula pra criança, no catecismo, que a gente prendeu um que dava aula de catecismo para as crianças, então quando eu vejo… Não é que eu tenha… Mas o meu olhar não adianta, vai passar pelo filtro, não vai ser como o olhar de qualquer outra pessoa. Quando eu olho uma pessoa numa… Eu observo, eu fico prestando atenção. Quando eu vou levar a minha filha pra escola, a pequena, quando elas eram pequenas, é óbvio que eu observava, eu ficava observando comportamento, porque eu sei que o mal existe e ele tá ali onde a gente menos espera e nas pessoas que você menos espera, então assim… Eu falo isso para minhas filhas, não para elas ficarem pensando que o ser humano… Mas eu falo assim: “Presta atenção, porque se a pessoa fizer isso, se ela fizer, tiver tal atitude”, elas têm que estar cientes, então acho que é assim que eu trabalho com as minhas filhas, dentro da minha casa, é orientando, é dessa maneira que você pode contribuir. Eu lembro numa escola - até causou impacto - a questão da privacidade, que eu sou muito sincera, como uma boa sagitariana, muito sem filtro, mas gente… “Aí, porque a privacidade - aquela coisa do politicamente correto - ah, privacidade…”, que privacidade? Criança não tem que ter privacidade, não. Os pais têm que ter acesso, tem que ter acesso ao computador, tem que ter acesso. Você tem que ter acesso, você que vai cuidar, você que tem que monitorar o seu… É criança. Você não sabe se tem um adulto lá hackeado fingindo que é uma criança, como eles sempre fazem, ali com o seu filho. “Aí, mas é minha privacidade…”, que privacidade? Privacidade, quem tem é adulto. Criança você tem que monitorar, é a sua obrigação monitorar. Tem que ter… “Ah, não tenho a senha da minha filha”, eu tenho a senha de tudo, tenho. Quando eram crianças, quando eram adolescentes. Não, porque se eu quiser ver, monitorar, eu vou olhar, porque é nossa obrigação. Por isso que eles conseguem hoje, porque essa história hoje: “Aí não pode, não pode”, ah, não pode? E quem está ganhando a luta são eles porque… Os pais: “Não, não pode isso, não pode aquilo”, hoje em dia. É complicado. É meio polêmico isso (risos).
P/1 - Luciana, para a gente já ir fechando… Qual foi o caso que mais te modificou como ser humano? Teve algum que te mudou como pessoa?
R - Uma vez, recentemente, numa ocorrência… Não foi o caso que mais me modificou, todos te modificam de uma certa maneira, você é impactado sempre de alguma maneira, sempre tem uma transformação, cada história de vida que você encontra, e eu sempre tento conhecer um pouco da história da pessoa, não é um número, é um ser humano, então você tem que conhecer, tem que olhar através, né? E tinha um rapaz - faz pouco tempo - que tinha pulado um porto lá, parece que estava com crack, mas entrou numa área da união, enfim, levaram para lá. Era domingo, uma chuva. E era um pessoal “crackeiro”, e ele estava lá e me levaram - eu era a delegada de plantão - aí eu fui lá, levei na minha sala. Eu olhava aquele cara assim, e eu comecei a perguntar da vida dele, e ele nem olhava, ele olhava para o chão. Sabe quando a pessoa já está tão “coisificada”, ela não se enxerga mais como ser humano, ela já está tão degradada ali que a pessoa nem te olha, e eu fui conversando com ele e tal e falei assim: “Qual sua história de vida? Por que você está aqui hoje?” Eu não perguntei o que ele levou, eu comecei perguntando o inverso: “Por que você está nessa situação? O que aconteceu na sua vida?” Aí pela primeira vez ele olhou para mim, achou estranho. Aí eu falei: “Você quer que eu te faça um café?” Aí eu fiz um café, dei para ele um café, e ele… Você percebe o impacto da pessoa, porque ela não está mais acostumada a ser tratada como um ser humano, não está, é tanto tempo na rua sendo tratado daquela maneira que ela mesma perde a condição dela de ser humano, é uma coisa assim, é incrível. E eu fui vendo aquela pessoa se transformar ali na minha frente à medida que eu perguntava. E no fim nem era, não tinham pego ele com nada, ele até falou: “Ah, eu fumei, mas já fumei”, não tinha nada, não tinha materialidade, não tinha nada. Eu falei: “Você não tem ninguém?”, ele falou: “Não, eu tenho um filho, mas eu não tenho coragem de voltar pra casa, não sei o quê”. Aí eu falei: “Mas e a sua mãe? Porque mãe, né?”, “não, porque a minha mãe… Então eu saí pra comprar cigarro - parece clichê - mas eu fui me drogar, eu tentei parar várias vezes e eu não voltei mais para casa. Eu ficava na rua depois, um tempo, minha mãe levava comida, mas eu sumi porque eu tenho vergonha”, aí eu falei: “Você lembra…”, mas a cabeça já estava danificada. Eu falei: “Você lembra do telefone da sua mãe?”, ele falou: “Lembro”, falei: “Então me fala”. Aí eu liguei para a mãe, a mãe começou a chorar, eu fiquei tão emocionada, ela falou: “Mas meu filho…”. Bom, eu só sei que ela morava no morro, eu lembro que era uma chuva, num domingo. Aí eu pedi para o rapaz que trabalha comigo, falei assim: “Liga para um táxi, manda para esse endereço e manda cobrar aqui”. Aí pagamos o táxi para ela lá, buscar o filho, aí eles fizeram aquela… Eu falei assim: “Você está nervoso que eu chamei a sua mãe?”, ele falou: “Sabe quanto tempo faz que eu não vejo a minha mãe? Eu não queria que ela me visse”, eu falei: “Mas mãe, é mãe. A sua mãe vai te dar uma bronca, mas ela vai te abraçar, porque ela vai ficar feliz de saber que você está bem”. Aí a mãe dele foi… A cena, a cena dos dois, do olhar, aí ela falou assim: “Por que você…?” Ela primeiro deu uma bronca nele e ele ficou que nem uma criança - ele devia ter uns quarenta e poucos anos - ficou que nem uma criança, daqui a pouco ela foi lá e deu um abraço nele. Todo mundo começou a chorar (risos), todo mundo ficou emocionado que estava ali na ocorrência, os dois assim, de ver a mãe, e ela brigando com ele, brigando: “Por que você fez isso?” E abraçando e brigando. Aí eu falei assim: “Você tem que me prometer que você vai tentar resgatar os seus filhos, tal” e aí eu procurei uma clínica, passei para mãe dele. Eu não sei como eles estão hoje, eu tenho até curiosidade, eu tenho o telefone dela, mas ele foi com a promessa. Ela levou ele pra casa, ele saiu da rua aquele dia, ao invés de ir pra cadeia ele foi para a casa da mãe, uma clínica. Então assim, quando você olha a pessoa como um ser humano, muitas coisas se transformam, e eu acho que mais do que transformar, transforma a gente, porque aquilo lá eu cheguei em casa tão emocionada com aquilo, cheguei e dei um abraço nas minhas filhas até. Então tem um… O tempo todo tem coisas que impactam você. Foi o que eu falei, na minha profissão você lida muito com o extremo do ser humano, então se você estiver aberta para aprender alguma coisa ou se você quiser fazer alguma coisa diferente, você tem espaço ali, é só querer.
P/1 - E na área portuária de Santos, teve alguma contribuição que você sente que você prestou?
R - Ah, a gente tenta prestar contribuição dentro da sua atribuição. Assim, contribuição pro Porto ou para o ser humano, você está falando do que exatamente? Assim, contribuição pro Porto a gente tenta no sentido de tentar melhorar a legislação, todas as coisas que a gente faz dentro da área né? Dentro da sua…
P/1 - Não, digo, algum caso que você fez no Porto.
R - É porque o que eu faço no Porto, na coordenação, é uma coisa mais de legislação, nesse aspecto você tenta mudar, melhorar a segurança das coisas, tenta dar liberdade para as pessoas também terem acesso a você, falarem com você a hora que quiserem, tirar dúvidas.
P/1 - Como você sente a diferença do Porto quando você chegou e ele hoje?
R - Quando eu cheguei…?
P/1 - Quando você chegou e começou a trabalhar.
R - É que eu trabalho nessa área há dois anos.
P/1 - Ah tá, dois anos.
R - Então… Agora, de quando eu era pequena (risos), é outro né?
P/1 - Você quer fazer uma última?
P/2 - Eu queria fazer mais várias, né?
R - (Risos).
P/1 - Eu também, eu queria ficar mais umas vinte horas.
P/2 - Mas não dá.
P/1 - Então… Primeiro a gente pergunta se tem mais alguma coisa que você queira deixar registrado na sua história de vida, alguma coisa, algum episódio que você ache importante para sua história e [queira] deixar registrado…
R - Eu acho que… Acho que registrado é agradecimento, principalmente pela minha família, mãe, pai, irmão, o meu marido e para as minhas filhas, porque não é fácil. Eu digo assim, não é fácil ser marido de polícia (risos), tem que ter muita resiliência, tem que ter muita… Quantas vezes foi ele que ficou com as crianças e cuidou das coisas e teve aquela… Quantas vezes eu saio no meio da madrugada, vou para outro lugar, você entra no avião e não sabe pra onde vai fazer uma operação, então assim, a pessoa precisa ter muita… Tem que ter um espírito especial ali para lidar com isso. Então é essencial para a vida da gente… Se hoje eu consigo fazer as coisas que eu faço é porque eu tenho essa gama de anjos envolta de mim, família, amigos, que me dão esse suporte, porque sem isso, com certeza, eu não conseguiria de jeito nenhum sozinha.
P/1 - E aí da mesma maneira como a gente começou com olhos fechados, queria pedir para você fechar os olhos e queria te perguntar… É um exercício que eu tirei de um filme japonês, que é assim: dentro desse filme, quando você morre, ao invés de ir para um lugar, você só pode levar uma memória para toda a eternidade, e eu queria te perguntar, se você só pudesse levar uma memória, de tudo que você viveu, de tudo que você contou para gente, tudo que você não contou, o que você levaria?
R - O nascimento das minhas três filhas.
P/1 - Como foi contar a história aqui para a gente?
R - Aí, foi ótimo, foi uma tarde maravilhosa. Porque você sabe que a gente nunca para de falar dessas coisas… Vocês fazem perguntas que você tem que parar e falar assim: “Nossa, eu nunca pensei nisso, né?”, a minha primeira lembrança, memória, é quase uma terapia isso aqui. Muito, muito legal. Eu queria agradecer você por essa oportunidade, para mim foi sensacional.
P/1 - Nossa, para a gente também. Gratidão.
P/2 - Muito obrigada!
R - Obrigada vocês.
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