Catadores de Materiais Recicláveis
Depoimento de Joselita Cardoso
Entrevistada por Karen Worcman e Bárbara Tavernard
São Paulo, 18/12/2004
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCMR_HV005
Transcrito por _________________
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Então, conta pra gente seu nome completo, local e a data de nascimento.
R - Eu sou Joselita Cardoso. Eu nasci em Salvador, Bahia. Nasci no dia oito de agosto de 1960.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - O nome do meu pai era… Chamava-se José Cardoso da Silva e minha mãe, Raimunda dos Santos Silva.
P/1 - Você sabe como foi que eles se conheceram, onde eles nasceram?
R - Meu pai nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, e a minha mãe era baiana. O meu pai sempre, sei lá, devido às dificuldades no sertão, lá em Pernambuco, [estava] sempre nas caminhadas, vindo em busca de trabalho pro sul. Acho que parou em Salvador, lá na Bahia, e aí conheceu a minha mãe.
P/1 - Você sabe o que ele fazia em Pernambuco, com que idade ele foi vindo pra São Paulo?
R - Ele conta [que] veio bem jovem. Lá em Pernambuco, quando ele resolveu sair de lá, ele trabalhava em cana de açúcar, em roça, cortando cana. Mas desde aquela época mexia com negócio de automóvel, tipo mecânico. Era um curioso. Sabia dirigir, trabalhava com máquinas agrícolas, trator, essas coisas. Ele desceu pra Bahia em busca de… Acho que melhor situação de vida.
P/1 - E aí na Bahia...?
R - Ele conheceu a minha mãe, aí formaram a família.
P/1 - Quantos anos mais ou menos sua mãe tinha quando se casou com ele?
R - Ela era bem jovem também. Acho que… Não me lembro disso, mas acho que devia ter seus dezoito, vinte anos, por aí.
P/1 - E a sua mãe, nasceu em Salvador?
R - Em Salvador.
P/1 - Você sabe o que que fazia o seu avô?
R - Que eu me lembre, a minha mãe falava [que] a minha avó era baiana de acarajé. Ela vendia… Como é que o povo chama? Quitute, bolinho de...
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Depoimento de Joselita Cardoso
Entrevistada por Karen Worcman e Bárbara Tavernard
São Paulo, 18/12/2004
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCMR_HV005
Transcrito por _________________
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Então, conta pra gente seu nome completo, local e a data de nascimento.
R - Eu sou Joselita Cardoso. Eu nasci em Salvador, Bahia. Nasci no dia oito de agosto de 1960.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - O nome do meu pai era… Chamava-se José Cardoso da Silva e minha mãe, Raimunda dos Santos Silva.
P/1 - Você sabe como foi que eles se conheceram, onde eles nasceram?
R - Meu pai nasceu em Vitória de Santo Antão, Pernambuco, e a minha mãe era baiana. O meu pai sempre, sei lá, devido às dificuldades no sertão, lá em Pernambuco, [estava] sempre nas caminhadas, vindo em busca de trabalho pro sul. Acho que parou em Salvador, lá na Bahia, e aí conheceu a minha mãe.
P/1 - Você sabe o que ele fazia em Pernambuco, com que idade ele foi vindo pra São Paulo?
R - Ele conta [que] veio bem jovem. Lá em Pernambuco, quando ele resolveu sair de lá, ele trabalhava em cana de açúcar, em roça, cortando cana. Mas desde aquela época mexia com negócio de automóvel, tipo mecânico. Era um curioso. Sabia dirigir, trabalhava com máquinas agrícolas, trator, essas coisas. Ele desceu pra Bahia em busca de… Acho que melhor situação de vida.
P/1 - E aí na Bahia...?
R - Ele conheceu a minha mãe, aí formaram a família.
P/1 - Quantos anos mais ou menos sua mãe tinha quando se casou com ele?
R - Ela era bem jovem também. Acho que… Não me lembro disso, mas acho que devia ter seus dezoito, vinte anos, por aí.
P/1 - E a sua mãe, nasceu em Salvador?
R - Em Salvador.
P/1 - Você sabe o que que fazia o seu avô?
R - Que eu me lembre, a minha mãe falava [que] a minha avó era baiana de acarajé. Ela vendia… Como é que o povo chama? Quitute, bolinho de estudante, vendia acarajé.
Minha mãe era daquela região da Fazenda Garcia, região muito antiga. Hoje é um bairro. Ela nasceu e foi criada por ali, naquela região, Rio Vermelho. E a minha avó era de seita também, tinha cultos afro. Eu me lembro que quando chegava a época do mês de agosto, que foi o mês que eu nasci, ela sempre se lembrava que era o mês que a minha avó saía com o tabuleiro e com as pipocas de milho, pra distribuir. Aquilo era tipo uma promessa, acho, que pagavam. Hoje a gente vê, mas é mais difícil; anos atrás, a gente via muito as baianas todas de branco, com aqueles tabuleiros. A minha avó… Minha mãe foi criada assim, nesse ritmo.
P/1 - Ela foi criada dentro desses ritos?
R - Sim, foi.
P/1 - E você participou, você foi criada nisso também? Você lembra?
R - Não, não me lembro. Quando ela faleceu eu era jovem, mas nunca participei. Aprecio, já visitei, mas não sou muito chegada, não gosto.
P/1 - Sua mãe casou com o seu pai e tiveram quantos filhos?
R - Dois filhos.
P/1 - Você...
R - Eu e o Cardoso.
P/1 - E vocês moravam onde?
R - Nós fomos criados lá em Salvador, junto…
Minha mãe faleceu e meu pai continuou cuidando da gente. Ele tinha uma comadre da minha mãe, Dona Maria - ainda tem pouco tempo que ela faleceu. Quando meu pai viajava em busca de trabalho a gente ficava com ela. Tinha aquela relação mesmo, de vizinho, comadre, de [morar] ali na mesma rua. A gente dormia, tomava banho. Ficava na casa, morava com ela. E a gente terminou de se criar assim.
Depois, um ano, meu pai resolveu ir em Pernambuco. “Aqui na Bahia está ruim.” Com aquele espírito de andarilho, foram ele e meu irmão. Depois chegou uma época de dezembro - ou nem foi dezembro, férias -, aí eu fui. Só que eu passei uns dois ou três meses lá em Pernambuco e eu não gostei.
Essa história é meio curiosa. Meu pai morava com uma senhora e a gente se dava muito, se deu muito bem. Ela sabia que eu não gostava de Pernambuco. E eu sempre com aquele sonho: “Porque eu quero voltar, quero ir embora.” E ele: “Vai fazer lá o quê? Não tem ninguém lá. Vai fazer o que lá em Salvador, sozinha? Não vai não.”
Ela criava porco. Eu a ajudava, saía lá naqueles bairros lá em Pernambuco catando lavagem com aquelas latas. Um dia, o porco estava bem bonitinho, aí ela disse: “Olha, teu pai vai trabalhar mais teu irmão e a gente vai dar uma surpresa a ele.” Mas eu não imaginava o que era. Ela vendeu esse porquinho, foi comigo à rodoviária, comprou a minha passagem e me embarcou pra Salvador. “Você quer ir embora? O que você vai fazer?” Eu disse: “Eu vou trabalhar, vou terminar meus estudos.”
Nessa época, eu estava com dezessete anos. Ela fez tudo escondido e eu vim embora pra Bahia, Salvador. [Quando] cheguei, procurei… Vim direto pra Sete de Abril, onde Dona Maria... Ela: “Menina, você voltou, que bom.” Eu contei a ela, e aí ela: “Mas você é maluca.”
No passar dos dias, a gente [foi] fazendo carta; nessa época não tinha esse negócio de telefone ainda. Eu escrevi, ela me escreveu. Aí ela contou que quando meu pai chegou à noite ela botou a janta. Disse que ele - ele me chamava de Litinha: “Cadê Litinha?” Ela disse: “Ela está por aí.” Era uma casa grande que a gente morava lá no Recife, no bairro do Campo Grande. “Deve estar aí com as meninas.” Ele terminou de jantar e foi dormir. Quando foi de manhã, ele perguntou: “Cadê Litinha?” E meu irmão também: “Cadê Litinha? Eu não vi Litinha, foi pra onde?” Ela já era bem senhora, ela fumava um cachimbo; fumando aquele cachimbo ela disse: “Litinha, uma hora dessa, já está na Bahia.” Meu pai ficou possesso. Espraguejou, disse que ia descer e que ia me dar uma surra em Salvador. E de lá pra cá - eu [estava] com dezessete nessa época - eu só retornei a Pernambuco agora, uns dois anos atrás.
P/1 - Jura?
R - Ele veio, passou muitos anos… Ele veio pra aqui, pra Salvador, inclusive faleceu em Salvador. Meu irmão constituiu família em Recife, veio algumas vezes. Depois a gente se… O meu pai faleceu, a gente se perdeu no tempo. Ele não sabia que eu era viva, não sabia que ele era vivo. Mas esse é uma história curiosa, né?
Fui criada lá com Dona Maria e aí terminei meus estudos, comecei a trabalhar. Foi quando eu arranjei esses trabalhos, serviços gerais. Conheci o meu primeiro marido. Engravidei, tive Barbinha, estava trabalhando. De repente, ele faleceu.
P/1 - Ele faleceu de quê?
R - Foi acidente de carro, atropelado. Deu traumatismo craniano.
Fiquei eu, viúva e Bárbara com um ano, quase fazendo dois anos, morando na casa dele - da mãe dele; a gente não tinha casa, morava lá na casa da mãe dele. E aí começaram as peripécias. Sofrimento… Eu ia trabalhar, não tinha com quem deixar a Bárbara; comecei a perder dia de trabalho. Foi indo assim, perdi o meu trabalho. Mas como era perto do… Aí que vem a história do lixão. Eu comecei a ir pro lixão, desde essa época. E conheci alguns vizinhos lá, que já trabalhavam assiduamente lá. Às vezes me ajudavam, me davam as coisas também. Coisas que achavam no lixão. E aí eu fui vivendo, tocando minha vida dentro do lixão.
P/1 - Vamos voltar um pouquinho, Joselita, lá pra trás de novo.
R - Sim.
P/1 - Depois a gente volta pro lixão, mas só pra gente recuperar um pouquinho mais a sua história.
R - Certo.
P/1 - Quando seu pai casou com a sua mãe, vocês moravam lá em Salvador.
R - Em Salvador.
P/1 - Qual é a primeira lembrança da casa que você tinha, você lembra qual é a primeira lembrança que você tem da infância?
R - Ah, me lembro. Lá a gente tinha uma casa grande, era ampla. Eu me lembro que ainda era casa de taipa, aquelas feitas de vara e barro ainda. Tinha um quintal muito grande. E tinha pé de coco, tinha mangueira, era um pequeno sítio. A gente criava… A minha mãe gostava muito de bicho, criava cachorro, criava galinha; a gente tinha muitas plantas também, ela gostava muito de planta.
Fomos pra esse bairro, no princípio de Sete de Abril, Jardim Esperança. Quase todas as casas eram assim. Eram aquelas… Terreno amplo, tipo um sitiozinho pequeno. A gente plantava muita coisa também.
P/1 - Vocês plantavam?
R - Plantava no fundo do quintal mesmo. A gente tinha uma horta, plantava hortelã, plantava coentro. [Em] época assim, perto de São João, a minha mãe gostava de plantar milho. [Quando] chegava São João, não colhia muito, mas a gente ficava alegre: “Já está dando aquela espiga.” E ficava todo dia olhando, porque está crescendo ali aquele pé de milho.
Era aquele terreno grande. A gente tinha o costume de varrer de manhã por causa das folhas, tinha que varrer de tarde, jogava água por causa da poeira. Eu fui criada assim.
P/1 - Nessa época, o seu pai trabalhava lá? Ele morava com vocês?
R - É, morava com a gente.
P/1 - Ele trabalhava em quê?
R - Nessa época ele já trabalhava em negócio de caminhão, trabalhava de trator. Às vezes ele viajava. Trabalhava em oficina. Nessa época, ele fazia esses biscates.
P/1 - Eles eram bravos? Como era a sua educação? Era muito rígida?
R - A minha mãe era rígida, o meu pai não, meu pai era mais aberto. Meu pai bebia também, mas a bebida dele não chegava a ser um transtorno. A gente… Eu gostava quando ele bebia porque ele ficava bastante alegre, aí trazia bastante queimada, dava dinheiro. Nossa, dava dinheiro a todo mundo. Tinha até… Tinha um bocado de colega lá da rua, vizinho meu de menina. Quando ele estava bebendo, a gente ia pra perto dele. Lá tinha uma venda, uma mercearia; ele dava dinheiro a todo mundo, moedas - naquela época era o cruzeiro, parece. Aí não cuidava.
Minha mãe que ficava zangada porque sempre chegava alguém e ele pagava bebida pra todo mundo. Ela achava que aquilo era um desperdício. E dizia que a gente estava colaborando com ele, que a gente era a favor de meu pai, não era a favor dela. Sempre tinha esse problema.
Em questão de criação, era rígido, porque ela sempre ensinou a gente o que era certo. [Quando] a gente fazia alguma coisa errada apanhava mesmo, ela pegava o cinto, batia. E às vezes eu, os meninos, a gente…
Até hoje ainda tem esse rio; hoje não presta mais pra tomar banho, mas antigamente era limpo. A gente fugia pro rio e era perigoso, era fundo. Ela ficava preocupada, porque a gente não avisava. Aquelas traquinagens de criança mesmo. E ela sempre ensinou a gente que tinha que andar no caminho certo, não mentir. Ela sempre dizia: “Olhe, quem mente rouba.” Ela tinha sempre esse ditado e a gente foi criada nesse ritmo.
P/1 - Você foi pra escola com que idade?
R - Não, eu fui pra escola pequena mesmo. Porque lá no [bairro de] Pau da Lima tinha um grupo escolar. Hoje em dia é uma escola, até de nome. Mas em Pau da Lima, eu pequena, tanto eu… A gente ia. Eu fiz a primeira série, a segunda... Naquele tempo, acho que era primeira, segunda, terceira série. Fiz até a quarta série.
Da quarta foi que eu passei a estudar no centro da cidade. Tinha que pegar ônibus, foi quando eu fui pro ICEIA [Instituto Central de Educação Isaías Alves Barbalho], o Getúlio Vargas, que era um complexo escolar.
Eu não tinha tempo mais pra nada. Tinha que acordar cedo, porque as linhas de ônibus eram poucas. Eu acordava mais ou menos [às] cinco e meia, seis horas da manhã pra pegar o ônibus, pra mais ou menos quinze pras sete já estar lá no… Hoje é a Aquidaban, antigamente era o Senac, pra subir a ladeira pra ir pro [bairro do] Barbalho. Na volta, como não tinha linha de ônibus direto, eu descia pelo Taboão, pegava a Baixa do Sapateiro pra vir pro [bairro do] Comércio pegar o Nova Brasília de doze e meia, quinze pra uma. Se eu perdesse esse ônibus, só ia chegar em casa… Só ia aparecer outro lá pra duas, três horas. Eu saía do colégio [às] quinze pras doze, doze horas, correndo mesmo, pra pegar esse ônibus pra chegar em casa uma e meia, vinte pras duas.
Chegava já cansada, aí o que fazia? Às vezes ia dormir, às vezes ia estudar. Ajudava, a gente foi criado também... Ela sempre foi uma pessoa assim, ela tinha... Acho que foi por isso que ela faleceu tão rápido. Ela tinha problema no coração, sentia falta de ar, então a gente tinha o maior cuidado. A gente foi crescendo e entendia pra ela não… Não podia passar raiva, não podia ficar nervosa. Até o meu pai mesmo procurava minimizar os mínimos problemas pra ela não se enraivar.
Cada um ajudava a fazer uma coisa, a gente foi criado assim. A gente botava a mesa, almoçava, um lavava os pratos, outro já enxugava. Um varria, outro já pegava o lixo. Fomos criados nesse ritmo. A tarefa do meu irmão era sempre jogar o lixo fora, de manhã cedo comprar o pão. Sempre teve aquela rotina. Cada um com sua tarefa.
P/1 - Quantos anos você tinha quando ela faleceu?
R - Quando ela faleceu, acho que eu estava… Eu estava adolescente, com uns treze pra quatorze anos, por aí.
P/1 - E o que aconteceu, o que mudou nesse cotidiano?
R - Ah, mudou tudo.
P/1 - Você lembra do dia? Como foi?
R - Do dia, me lembro que ela… Eu me lembro que eu já estava cochilando pra dormir. A gente não tinha televisão, a gente tinha um rádio. Ela gostava de futebol, sempre torcia pelo Esporte Clube Bahia. Já meu pai torcia pelo Vitória, nessa época já tinha a sede do Vitória lá. Aí ela disse: “Eu vou… Não vou dormir agora não, que eu vou assistir o seu Vitória perder.” Nesse intermédio, acho que estavam acompanhando um jogo do Bahia também, pelo rádio. Era o jogo do Vitória, mas tinha aqueles intervalos - acho que até hoje tem, é que eu não acompanho futebol hoje em dia.
A gente já estava naquele cochilo quando a ouvi dizer: “Ai, meu Deus, ai, minha Nossa Senhora” - ela também era muito devota. A gente assistia a missa, cumpria os rituais da Igreja Católica. Ela sempre… Todo domingo a gente - às vezes não todo domingo, mas sempre estava participando das missas. Nas épocas religiosas, agora Natal, a gente arrumava todo mundo bonitinho pra assistir a Missa do Galo.
Quando disse: “Ai meu Deus, ai minha Nossa Senhora”, é que meu pai acordou. “O que que você tem?” Ela já estava… Aí que eu pulei da cama; tinha outro quarto. Meu irmão estava na rua. Eu, sem entender muito… Ela já estava parada. Meu pai disse: “Vai chamar teu irmão, vai chamar Dona Maria!” - tudo era com essa Dona Maria.
Eu saí: “Dona Maria, cadê Nino?” A gente o chama de Nino. Ele estava mais à frente com os colegas: “O que foi?” Eu disse: “Não, mãe está passando mal.” Dona Maria correu; tinha um senhor que tinha um carro, naquela época era carro de praça. Meu pai chamou ligeiro, mandou o meu irmão chamar, ele veio com o carro, aí a gente a botou no carro. Eu não fui, fiquei em casa com Dona Maria. Foi meu irmão e meu pai, mas naquela época não tinha a tecnologia que tem hoje a ciência e era longe o pronto-socorro. Era SAMDU [Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência], um negócio lá, tipo uma emergência. Quando chegou lá, ela chegou parada, disseram que não tinha mais jeito.
Foi aquele corre-corre, aquele chororô. Não me lembro muito bem, não sei contar porque eu fiquei mais com Dona Maria. Eu estava na média de doze pra treze anos, fiquei sem entender o que aconteceu.
P/1 - Ninguém falou pra você que ela tinha morrido?
R - Não. Sempre dizendo que ela estava no hospital. Teve o enterro, eu não fui. Depois meu pai sentou comigo e conversou comigo, que agora as coisas iam ser diferentes, porque ela não ia estar mais com a gente. Foi quando veio cair a ficha que ela tinha falecido.
Aquilo mudou totalmente pra mim, mesmo, eu ficava muito triste. Inclusive nesse ano... Eu não me lembro se foi a sexta série, eu sei que perdi o ano. Eu não conseguia mais ir pra escola. Quando ia, eu não assistia às aulas, sempre com vontade de vir pra casa. Depois fui me recuperando aos poucos.
P/1 - O seu irmão ficou assim, abalado, também?
R - Não, ele continuou a vida normal. Ele estudava, ia jogar bola. Trabalhava também, fazia bico.
No lugar que a gente morava, no Jardim, nessa época não tinha água encanada, só até uma parte. Lá em casa tinha. E tinha um rio. [Com a] água do rio o pessoal fazia carreeiro; tinha um animal, aí botava aquelas coisas. E tinha um senhor muito amigo da gente que tinha vários animais, aí botava os rapazes pra botar água de ganho.
Ele continuou a vida dele nesse ritmo. Passou-se mais ou menos um ano, dois anos. Foi no final de ano que… Meu pai começou a beber mais e mais, não ligava muito pras coisas. E eu ficava mais com essa Dona Maria, que eu acho que foi a minha segunda mãe.
P/1 - Você passou a ficar na casa dela?
R - É, eu ficava mais na casa. Eu vinha em casa, tomava um banho, lavava uma roupa, uma coisa pra eles. Mas o restante do dia eu ficava lá com ela.
A filha dela, a Silvanira, é mais velha do que eu. Até hoje nós somos… Nós somos comadres, ela é madrinha duas vezes dos meus filhos. Só que agora eu moro numa rua [e] ela se mudou, mora em outra. Mas a gente é como se fosse… É o parente que eu tenho. Os meus filhos vão pra casa dela, os dela dormem lá em casa. É aquela mesma relação que a minha mãe, meu pai tinham com a mãe dela, hoje nós somos a mesma coisa. É como se fosse parente.
Foi quando ele… Passaram acho que dois anos, três anos, mais ou menos. Eu estava com dezesseis pra dezessete anos. Ele disse que ia embora pra Pernambuco.
P/1 - E ele estava bebendo muito?
R - Bebia muito. Ele morreu mais no sentido da cachaça, que o prejudicou muito. Ele morreu com problema de cirrose. Aí...
P/1 - Deixa só fazer uma pergunta. Nessa época a sua avó, mãe da sua mãe, estava viva?
R - Não. Já tinha falecido. Quando a minha avó faleceu, eu era pequena. Eu não conheci a minha avó, não tenho lembrança dela. Nem a minha avó materna e nem a... Como é? A mãe de minha mãe. A minha avó materna eu me lembro [que] morava no Rio de Janeiro. Teve uma época que meu pai disse que ela morava no Rio de Janeiro, mas quando eu nasci ela também já era falecida. E eu tenho duas tias que eu não conheço, que moram no Rio de Janeiro, no bairro de Realengo. [São] irmãs de minha mãe, mas eu nunca conheci.
P/1 - Irmã de quem?
R - Do meu pai. Mas eu nunca conheci.
P/1 - E o seu irmão?
R - Nessa época que a gente foi pra Recife, ele cismou que ia embora pra terra dele, que lá na Bahia não dava mais. A gente foi. Vendeu tudo e arribou pra lá. Deixou a casa pra Dona Maria vender e a gente foi.
Aí, sabe… Rapaz, namorador… Foi quando ele conheceu Itamara, a primeira esposa dele, construiu família. E eu, como eu contei, não me adaptei. Aí que veio essa história: eu sempre dizendo que queria vir embora, com saudade de Dona Maria, com saudade das meninas. Aconteceu de eu arrumar esse negócio de vender o porco pra vir embora pra Bahia. E aí...
P/1 - E aí você chegou na rodoviária, foi direto pra casa de Dona Maria?
R - Eu fui direto pra casa de Dona Maria.
P/1 - E aí, o que que aconteceu?
R - Foi a maior alegria. “Menina, você chegou, o que que aconteceu? Cadê o teu pai?” “Olhe, pai nem sabe que eu estou aqui.” “Mas você é maluca. Eu vou ter que escrever uma carta, porque você é menor e não pode, não pode ser assim. Não está certo isso.” Ela também era do tempo antigo. Mas aí não tinha mais jeito, eu já estava lá. Continuei o meu ritmo como era antes com ela, eu...
P/1 - O que que você fazia? Qual era o seu cotidiano?
R - Com ela também, ajudando nas tarefas da casa, lavando prato, ajudando-a a lavar roupa, indo pra escola e...
P/1 - Você voltou pra escola?
R - Voltei. Esse período que fiquei lá foi um período de férias, foi mais ou menos assim dezembro e janeiro, e foi época de carnaval. A minha agonia, mesmo, de vir pra Salvador não foi tanto pensando em mudar, é por que eu ia perder o carnaval. Assim que eu cheguei, Silvanira disse: “Opa, daqui a pouco a gente vai sair [para o] carnaval.” Aí eu digo: “Está bom.”
A gente fazia alguma coisa, às vezes a gente fazia crochê. Hoje eu não faço mais, porque a vista não dá, mas eu fazia crochê, a Silvanira também. Ela disse: “Eu tenho, já fiz umas coisas aqui de crochê, uns centros. A gente vai vender e é o dinheiro da gente ir brincar o carnaval.” E Dona Maria também, ela naquela época já era viúva, ela recebia uma pensão do falecido dela. Não tinha uma vida muito… Não era uma vida muito boa, mas também não era das piores. Nós tínhamos aquele dinheirinho certo todo mês e levávamos de ganho, então ela sempre tinha um trocadinho pra me dar. Tanto assim que eu continuei meus estudos, quem me dava o dinheiro do transporte era ela. Ela fazia tudo, tanto eu como Silvanira - a gente estudava no mesmo colégio, a passagem da gente ela dava. E a gente a tapeando, fazendo tudo direitinho, arrumando daqui, dacolá pra poder sair o carnaval.
Saía aquela turma da mesma rua, do mesmo bairro. Todo mundo, antigamente, [usava] aquelas mortalhas, aquelas fantasias. Ela tinha máquina, ela até sentava na máquina, costurava de todo mundo, pra poder ficar...
O meu negócio de não ficar em Pernambuco [era] estava no sentido do carnaval. Desse o que desse, eu tinha que descer pra brincar o carnaval.
P/1 - E o que era muito legal no carnaval? Onde você brincava?
R - Brincava ali no Campo Grande, mesmo, [na] Avenida Sete [de Setembro]. Naquela época não tinha muita coisa na Ondina. O carnaval centralizava mesmo… Era Avenida Sete, Praça da Sé, [Largo do] Campo Grande. Era naquele trecho. De uns anos pra cá, porque cresceu muito, se dividiu entre Campo Grande e Ondina, mas sempre ali, no Campo Grande.
P/1 - E tinha os trios elétricos?
R - Já tinha os trio elétricos, tinha os bloco afro, já tinha os blocos do… Tinha Os Internacionais, tinha Os Corujas. Eu gostava de ir pra ver os desfiles dos blocos, pra passear, pra brincar mesmo, correr atrás do trio. O caso de me afastar de Recife foi isso, por causa do carnaval. E até hoje eu gosto do carnaval.
P/1 - Você vai sempre?
R - Eu vou pra trabalhar. Hoje, de uns anos pra cá, eu vou sempre trabalhar. Eu trabalho com coordenação de cordeiro.
P/1 - O que é isso?
R - É o pessoal que segura as cordas dos blocos pra os foliões... Tem o bloco alternativo, pras pessoas estranhas não entrarem dentro do bloco. Eles botam uma corda mesmo, aí fazem aquela fila, uma segurando a corda pra não deixar pessoas estranhas invadirem, pra não bagunçar dentro.
Eu comecei trabalhando como cordeira e hoje em dia eu trabalho com a coordenação. Trabalho com quinze a vinte pessoas. Vou sempre coordenando o pessoal, boto o pessoal direitinho, pego lanche, o vale-transporte; pego o dinheiro, o coordenador geral passa as diárias. Só que é muito pouco, as diárias ano passado estavam de quinze reais - esse ano não sei como é que está, vai começar agora em janeiro, as reuniões. Pagam tudo direitinho, quem trabalhou três dias, quem trabalhou sete dias.
Hoje, geralmente, eu trabalho no circuito Barra-Ondina, que é mais calmo e é mais perto também. Terminou o trabalho, corro pra casa, não tenho mais aquela coisa de estar pulando, correndo, não. Vou mais pra trabalhar.
P/1 - E seus filhos?
R - Não gostam.
P/1 - Vamos voltar naquela época que você estava. Você foi brincar o carnaval?
R - Fui brincar o carnaval e aí fiquei. Fui estudando, fiz alguns cursos. Naquela época, Dona Maria tinha muito gosto. Ela queria ver a Silvanira, a filha dela… Tinha mais dois filhos, mas como só tinha a Silvanira de mulher, tinha aquele sonho, [de] Silvanira ser enfermeira, aí ela pagava curso.
Naquela época não tinha negócio, era datilografia. Quem não tivesse um curso de datilografia... Eu fiz datilografia - ela pagou pra mim, pra Silvanira. Curso de bordado, curso de costura, tudo isso eu fiz, o curso de crochê. Ela botava a gente pra fazer isso.
P/1 - Você tinha na cabeça alguma coisa, o que você queria fazer?
R - Não, não tinha o que eu queria fazer. Eu...
P/1 - Ia fazendo.
R - Iam aparecendo as coisas, [eu] ia fazendo, né?
Mais ou menos com doze, dezenove anos, foi quando eu conheci o pai de Barbinha - conheci não, foi quando a gente começou a namorar, porque a gente foi criado tudo ali na mesma rua. Eu o conhecia desde pequeno.
A gente começou a namorar, depois eu engravidei de Bárbara. [Com] mais ou menos uns três, quatro meses de grávida, a Dona Maria [e] a mãe dele, a Dona Dedé, resolveram que a gente tinha que casar, que não era certo. Quando eu me casei, já estava com quatro meses de gravidez. Mas foi...
P/1 - Você gostava dele?
R - Gostava, gostava muito. A gente foi criado junto, mas não sei, gostava mesmo. Comecei a namorar com ele nessa [época], de dezoito pra dezenove anos. Só namorando, namorando. Quando eu engravidei de Bárbara eu já estava com vinte anos. Quando ela fez, ia fazer dois anos, ele faleceu.
P/1 - E ele faleceu de...?
R - Foi de um atropelo.
P/1 - Ah, tá.
R - Ele tinha saído pra trabalhar. Ele também trabalhava em oficina. Tinha saído pra trabalhar e... Foi uma história meio triste que...
Nessa época, meu pai também já tinha se desiludido com Pernambuco, estava meio doente, aí veio. Meu irmão também veio, com a esposa dele. Foi todo mundo pro mesmo lugar, lá pro Jardim Esperança. Como já tinha vendido o carro e não tinha mais nada, Dona Maria… Ela sempre foi uma mulher batalhadora e tinha casa de aluguel; deu sorte que quando ele chegou tinha um quarto e sala lá, vazio. Ela passou pra ele, não foi cobrando nem nada. Só pra... Consideração, mesmo, de amizade.
Nessa época, ele já estava bem doente. Mas quando ele chegou, ele começou a implicar com o meu marido. Ele não achava certo aquilo, [achava] que eu devia estar em outra vida e que não sei o quê. Não sei, ele tinha uma antipatia. Eles dois não se davam bem.
Foi quando… É um fato curioso também, acho que isso nunca aconteceu com ninguém. Um dia de sexta-feira ele saiu pra trabalhar, aí teve uma batida. Foi na entrada do [bairro] Pau da Lima. Hoje em dia tem até a noção do caminho. Muita gente ainda se lembra disso. [Foi há] muitos anos. Teve essa batida no poste, o caminhão da Brasil Gás junto com um caminhão, um caminhão comum. No que o poste caiu, pegou fogo o fio. Iam ele e o colega; ele correu pro outro lado, o colega correu pro lado de um bar, e o fio pegando fogo. Esse colega dele morreu, ele...
P/1 - Eletrocutado.
R - Sim. Quando ele viu aquilo, ele correu pro outro lado. Como a pista era larga, ele não viu um táxi que vinha, aí o táxi o apanhou. Ele caiu, bateu a cabeça no meio-fio, deu traumatismo craniano. Isso foi na sexta-feira à noite. Foi pro HGE, Hospital Geral, pronto-socorro - ainda era no [bairro] Canela nessa época.
Eu estava grávida do segundo menino, que hoje é falecido; eu estava com oito meses de grávida, mais ou menos. E cadê? Também ninguém queria me dizer. Foi quando um colega dele - hoje em dia, esse senhor é um pastor de igreja. Ele chegou: “Lita, ninguém quer lhe falar, mas o Carlos teve um acidente.” Eu digo: “Cadê ele? por que vocês não me disseram?” “Ele está no HGE.” Mas não me disse que ele tinha falecido. “Ele está internado.”
A gente foi. Fomos eu, a minha vizinha, aí mandei avisar Dona Maria. Dona Maria, nessa época, era viva ainda. Aí ela, já idosa: “Embora”. Foi mais eu, esse vizinho, a gente foi lá. [Quando] chegou no HGE, lá no pronto-socorro, o homem [ficava] fazendo muita pergunta e olhava pra mim sem querer dizer. Foi quando Dona Maria disse: “Não, não adianta enganar. Ele está morto?” “Está.” Ela era meio estourada, bem aquelas negras mesmo, bem disposta. “Ode está?” “Está no Nina.” - é o IML, Nina Rodrigues. “Embora lá.”
Aí ficou: entra, não entra. Nesse meio tempo - isso no sábado, eu estou lá entre o HGE e pra descer pro IML, pro Nina Rodrigues -, meu irmão… Nessa época, meu pai já não estava morando lá. Quer dizer, meu pai estava, meu irmão já morava em outro bairro próximo e meu pai tinha ido passar uns dias com ele. O que aconteceu? Nesse meio tempo, ele foi lá me procurar. A outra vizinha, Dona Zenaide, disse: “Você não soube, não? O Carlos faleceu, só que a gente não quis dizer nada a sua irmã porque a sua irmã estava naquele estado. Ela está lá pelo HGE, ou então já está no Nina pra reconhecer o corpo.” Dizem que ele fez: “Meu Deus, e como é que eu vou dar a notícia a ela que pai também faleceu?”
Nisso eu estou lá no Nina, aí eu desci. O pessoal querendo me dar água; eu só me conformava se eu entrasse para ver, e aquela agonia: entra, não entra. Aí uma doutora, nem me lembro o que era [disse]: “Não vou me responsabilizar se ela cair.” “Não vou cair, não.” Menina, aí... Fidélis, o nome, me lembrei o nome do rapaz. Fidélis, esse que hoje é pastor de igreja.
P/1 - Que estava contigo?
R - Que estava comigo, foi quem me deu a notícia.
Ele entrou. Não tinha reforma ainda, era aquele prédio antigo - aquelas paredes frias, aquelas gavetonas, não tinha negócio de câmara, nem nada. Tinha que puxar. Como o homem já estava com o papel, o funcionário com o papel e o número, aí ele puxou a gaveta.
Eu estava assim, aí eu olhei assim; não fiquei de frente, fiquei de lado. Quando ele puxou a gaveta, eu o conheci logo pelos pés. Eu digo: “É Carlos, mesmo.” Ainda disse assim: “O nome dele era Carlos Alberto Santos Chagas.” O rapaz puxou mais, eu digo: “Puxa mais aí.” Fidélis fez assim: “Puxa mais um pouquinho aí.” Quando o rapaz puxou, que ia fechar, eu disse: “Espera aí, deixa eu ver”, porque estava um corpo por cima do outro. E quando ele puxou, eu conheci a camisa, uma camisa de listra - listra, não. Não sei se você alcançaram isso ou se lembram. Umas camisas da Guararapes de tergal, que tinham uma renda, um bordado aqui, assim. Eu conhecia a de meu pai, ela era branca; o bordado era azulzinho, com as matizes. Ela veio com bordado azul, eu que fiz as matizes pra enfeitar e dei a ele de presente dia dos pais. Aí, ele: “espera aí, puxa aí.” Quando o rapaz puxou, era meu pai: um em cima, o outro embaixo.
Eu fui dando de costas, dando de costas, um espaço assim… Encostei na parede, a parede fria. Menina, parece que naquela hora o chão abriu e eu entrei. Eu não chorei, não fiz escândalo. E ali eu me abaixei, desci, fiquei toda encolhida. Fidélis parou, ficou mudo; ele também, como depois me falou, não sabia o que fazer. Ele também ficou... surpreso. O funcionário, essas pessoas já tem um perfil de ser frio. Pegou assim no meu braço, eu me lembro que ele me pegou: “Embora, senhora, a senhora não pode ficar aqui não.” Aí eu saí devagarzinho.
Dona Maria, com aquele jeitão dela, meio ignorante: “O que foi? É o quê? Eu lhe disse pra você não entrar. Senta aí, bebe um copo de água.” Eu disse: “Eu não quero água não, Dona Maria.” E ela também não sabia.
Eu queria falar e não saía a voz. Eu não chorava, eu não gritava, mas eu queria contar o que eu vi e não saía a voz. E Fidélis também ficou, sei lá, patético, não sei.
Quando ela estava: “Quê, menina? Que foi?”, chega meu irmão. Chega, vem de asa aberta. Quando eu olhei pra ele, as lágrimas desceram. Também foi só aquele segundo, mesmo assim. Dona Maria olhou pra ele: “O que foi, Nino? Você já soube?” Ele disse: “A senhora não soube, não? O pai também faleceu.” Aí que Dona Maria veio cair na real. Aí que Fidélis saiu do estupor, aí falou pra Dona Maria.
Menina, ali eu fiquei apática. Eu não comia, não bebia, não tomava café. Eu só fazia também… Nessa época eu já fumava, eu só fazia tomar café e fumar. As pessoas me perguntavam as coisas, eu respondia, mas aquilo não parecia que não estava acontecendo comigo. Parecia que era um sonho e que daquele sonho, pesadelo… Eu ia acordar e não era nada daquilo.
Fidélis, esse favor eu devo a ele. Graças a Deus, ele cuidou de tudo junto com meu irmão, de funeral. O rapaz que atropelou, que teve o acidente do táxi, eu me lembro que era um Fusca vermelho. Ele, não sei, também ajudou, deixou no Detran [Departamento de Trânsito]. Eu tinha que ir pro Detran fazer uma ficha, porque ele já tinha sido… Ele mesmo foi quem deu socorro, quem ajeitou. Tinha aquela questão de seguro de carro, aquelas burocracias, e eu não estava interessada em nada disso. Eu estava com a mente aérea, voando. Foi quando Seu Fidélis e meu irmão cuidou de tudo. Inclusive o enterro do meu pai, fizeram, ajeitaram tudo.
O enterro dos dois seria no mesmo horário. Só que por questões do Nino, a burocracia, não foram liberado os dois no mesmo horário. Um corpo foi liberado de manhã e o outro à tarde. Fidélis achou por bem, porque os dois eram muito conhecidos, tinha muitos amigos. Foi parece que uns quatro ônibus. O advogado, por conta do seguro do carro, fez um enterro de primeira. Foram uns quatro ônibus, foram muitas flores. Foi muito biriteiro que era colega de meu pai; foi muita gente porque o Carlos também… Ele tinha o pessoal do time do futebol, o time em peso, todo mundo foi. E eu vendo aquilo tudo ali, mas como se eu não estivesse ali.
O resultado: o corpo do meu pai chegou [às] onze horas do dia. Ficou no velório, Fidélis mais Dona Maria disseram que era pra enterrar tudo junto. E o do Carlos chegou [às] duas horas da tarde. Quando deu umas três e meia pra quatro horas, teve uma missa de corpo presente. Eu me lembro muito bem da missa.
Todo mundo foi embora pras suas casas. Aí Nino: “Vamos pra minha casa.” Dona Maria: “não, ela fica comigo, ela já ficou comigo esse tempo todo.” Fui pra casa de Dona Maria. E aí foi aquela burocracia.
Isso foi no dia sete de abril. Carlos faleceu no dia sete de abril, às oito horas da noite, foi numa sexta-feira. E meu pai faleceu no dia oito, às... Madrugadinha, uma pras duas horas da manhã. Na hora do velório ainda alguém… Eu era muito… A gente era muito conhecido, todos criados assim. “Eles brigaram tanto em vida e hoje estão unidos na morte, na dor.” Os dois foram enterrados na mesma… Acho que... Não me lembro, acho que um era 142, outro era 143. Eram esses números, agora eu não sei exatamente qual número ficou. Muitas flores, muitos chorando.
Passou, eu fui pra casa de Dona Maria. [Quando] cheguei lá tomei banho, não quis comer. Assim mesmo ela me forçou a tomar uma sopa.
Passaram aqueles dias, aí voltou a vida normal. Isso foi em abril, andando pro Detran, porque tinha que liberar o seguro do carro. A minha sogra e o meu sogro - hoje ele é vivo, ela não - queriam que eu fosse pra lá. Naquela época, eu recebi um bom dinheiro.
P/1 - De seguro?
R - De seguro. Como eu não tinha casa… “Ah, vamos fazer...” Na casa dele. “Vamos fazer um quarto e sala em cima, você vai ficar aí o tempo que quiser.” E eu com a... Nova, com uma filha e grávida. Comprei o enxoval do bebê, tudo bonitinho. O bebê nasceu no dia treze de junho, o Rafael. E morei lá até... Morei um bocado de tempo, foi crescendo o Rafael.
P/1 - E a Bárbara.
R - E a Bárbara, né?
P/1 - Então nessa época você tinha a Bárbara e o Rafael.
R - Enquanto eu tinha dinheiro estava tudo bem. E eles que tomavam conta era aquela... Bebida, meu sogro bebia, até hoje ele ainda bebe. Muita festa, muita farra; lá vai, lá vai e eu não me programei. E quando o dinheiro acabou, eu fiquei com dois filhos sem saber o que fazer. Já tinha perdido o emprego, desde aquela época da Cesalan. Ainda tinha uma indenização da Cesalan pra receber, lá da... Não era Cesalan, era uma firma terceirizada, de serviços gerais. Nesse meio-tempo, também, que eu me lembro, acho que saiu… Eu tinha botado na justiça, saiu esse dinheiro e aí eu fiquei com Bárbara e Rafael.
Começou a confusão, aí eu voltei pra casa de Dona Maria.
P/1 - Que confusão?
R - Briga, por tudo brigavam. Se os meninos choravam, é...
Rafael novinho, com quase seis meses… Quando começou a nascer os dentes, ele começou a ter um problema de diarreia. E eu só andava com ele no médico, ele tinha problema de cansaço e chorava muito, aí começavam falar que ele era muito chorão. Ele teve uma… Nasceu bonito, gordinho, mas depois ele… Devido aos problemas que ele tinha.
O médico me disse isso: todo o abalo que eu tive na gravidez e não botei pra fora passou pra ele. Isso enfraqueceu o organismo dele. E aí eu sempre parava com Rafael no hospital. Eu sempre ia pro Hospital Santo Antônio, da Irmã Dulce. Várias entradas com ele lá, inclusive ele faleceu lá, de insuficiência respiratória.
P/1 - Nessa época mesmo?
R - Nessa época mesmo. Depois ele… Não, no dia treze de junho ele nasceu; ele faleceu [quando] ia fazer onze meses. Não teve saúde, ele só teve saúde até uns três ou quatro meses, quando começou a fase de nascer dentição, essas coisas.
P/1 - Ele mamava?
R - Mamava. Todos os meus filhos meu mamavam, mas não teve jeito.
Nisso, nessas saídas, a Bárbara ficava. Bárbara chorava, aí elas batiam [nela]. [Quando] eu chegava, eu não gostava. Eu discutia, eu [estava] nervosa, sem dinheiro.
Foi um período bem pesado. Dona Maria já doente, eu não podia… Eu reconhecia que não podia deixar eles dois lá nas costas de Dona Maria. Silvanira, também, tinha casado, tinha a vida dela. E aí eu fiquei meia perdida no mundo. Foi quando eu comecei [a] caminhar pro lixão.
P/1 - Você decidiu sair da casa?
R - Aí decidi sair.
P/1 - Depois que Rafael faleceu?
R - Depois que o Rafael faleceu, e eu só com Barbinha. Eu parei, discuti com uma cunhada minha. Eu não tinha natureza muito boa também; ela veio em cima de mim, a gente foi aos tapas, aquela confusão. Eu disse: “Olhe, eu não fico mais aqui.” Peguei minha filha, peguei as poucas coisas que eu tinha e saí pelo mundo. Quando chegou a tarde, fui lá pra casa de Dona Maria, fiquei com Dona Maria. Mas eu tinha consciência, Dona Maria...
P/1 - Ela estava doente?
R - Doente. Ela gostava muito de Barbinha. Silvanira tinha a vida dela, o esposo de Silvanira não deixava muito ela vir pra casa da mãe. Os homens de Dona Maria também já estavam casado, as noras não ligavam muito. Eu me sentia mal de estar ali, eu não era a filha dela. E começou comentário que eu estava ali porque ela recebia uma pensão, que era eu que ia... Aquelas coisas que sempre dá, de gente egoísta, né? Foi aí que eu peguei Bárbara e saí pelo mundo, mesmo.
Tinha uma vizinha lá, um rapaz, disseram que no Posto São Luís… É um lugarzinho lá, pertinho, é na Estrada de Feira. Tinha uma fazenda que o pessoal estava botando pra cortar cana. Eu nunca tinha cortado cana, mas “não deve ser difícil, eu vou”. Passei uns dois, três meses lá cortando cana. Não deu certo.
P/1 - Com a Bárbara?
R - Com a Bárbara do lado. Voltei. Aí, trabalhar em casa de família, não tinha com quem deixá-la. Ficava e foi quando eu comecei mesmo...
P/1 - Mas me conta, você voltou, mas não voltou pra casa da Dona Maria?
R - Não, não voltei.
P/1 - Você chegou, voltou pra cidade...
R - Voltei pra cidade, aí fiquei morando assim… Eu tinha muitas colegas. Morava um tempo na casa de uma, morava um tempo na casa de outra.
P/1 - Você não chegou a morar na rua, então?
R - Morei dentro do lixo, mas na rua não. Foi quando eu [fiquei] de galho em galho, sem ter opção; faltavam as coisas pra Bárbara, faltava leite. Comecei a ir pro lixo, depois eu comecei a levá-la também. Ela já [estava] crescidinha, meio taludinha, já com dois anos e meio, caminhando pra três anos. Muito gordinha, bonitinha.
Nesse meio tempo, eu conheci uma senhora também, vivendo as minhas peripécias, meus sofrimentos. Ela morava em outro bairro, lá mesmo na Estrada Velha do Aeroporto. Ela me levou pra casa dela e a gente tirava, cortava folha. O pessoal lá na Bahia gosta muito de tomar banho de folha, banho de erva. A gente ia... Eu ia com ela pro mato, a gente cortava e vendia na feira do Curtume. Fazia aqueles maços, muita pitanga também. Eu comecei a ajudá-la e [fiquei] morando na casa dela. Descia de manhã cedo, pegava o primeiro ônibus, com Barbinha enganchada do lado. Quando chegava na feira… Ela era muito engraçadinha, eu passava as folhas, eu mais ela pra o pessoal das barracas. Todo mundo gostava de Barbinha, aí um dava um copo de mingau, outro dava uma banana, outro dava um biju… E nisso eu fui vivendo.
P/1 - Mas aí você cortava folha, ia pra feira e ia pro lixão também?
R - Não, nessa época não...
P/1 - Você ficou na folha.
R - Fiquei na folha. Lá perto onde essa moça morava, tinha gente que ia pro lixão. Naquela região toda.
P/1 - Quer dizer, você não tinha ido pro lixão até então?
R - Não tinha ido. Eu conhecia o lixão, ia de vez em quando, mas não ia pra... Fazer daquilo trabalho, mesmo.
P/1 - Só ia de vez em quando.
R - Ia de vez em quando. Quando chegou um período de chuva, estava muito difícil pra gente cortar folha e eu, vendo a dificuldade dela também, comecei a ir pro lixão. No princípio, eu deixava Barbinha com ela, às vezes deixava até com Dona Maria, mesmo. Depois eu… Aí que fazia um bom dinheirinho e trazia, ficava todo mundo...
P/1 - Como era, você chegava no lixão e fazia exatamente o quê?
R - Eu chegava no lixão, armava a... Começava a catar: catava lata, plástico, papelão. Eu sempre gostei mais de catar papelão. Papelão, as latinhas de alumínio - naquela época era mais difícil, alumínio era mais difícil de achar do que hoje. O forte mesmo era catar o papelão. Fazia uma barraquinha e aí fui vendo outras pessoas também morando lá.
Quando chegou uma época de festa, não me lembro qual foi a festa...
P/1 - Deixa eu te perguntar, vocês vendiam pra quem?
R - Tinha atravessador, tinha gente com balança lá dentro que comprava. Todo dia tinha dinheiro.
P/1 - Quando você entrou a primeira vez no lixão, que você falou: “Bom, então agora vou pro lixo, vou lá.” O que você sentiu?
R - Eu não tive nojo, não, mas passei mal por causa do mau cheiro. O mau cheiro, o cheiro forte, aquele cheiro ativo… Eu quase corria doida. Mas eu não podia dizer nada, nem falar que estava com mau cheiro, porque já tinham me dito que as pessoas, como eu, através dos anos… Eu compreendi isso. Se a gente chegasse lá e dissesse que estava fedendo, a gente era apedrejado e botado pra fora.
Aquela agonia, eu me lembro que me deu muita dor de cabeça. Aquele cheiro, eu procurava respirar e só sentindo aquele cheiro do lixo, azougue. E no princípio, também, eu não conseguia comer nada, nem beber um gole de café. Sempre tinha pessoas que vendiam merenda lá, cafezinho no isopor, vendendo suco, pão, mas eu não conseguia comer nem beber nada. Depois fui me acostumando.
P/1 - Porque vocês não podiam usar luva?
R - Não pensava nisso. Tinha algumas pessoas que trabalhavam até de luva, que cavava muito lixo, que achava ali mesmo. Não usava luva nem por saber que era uma necessidade pra se proteger. Sabia que com aquela luva poderia cavar o lixo mais, não ia se cortar, mas não usava no sentido que a luva protege de uma contaminação, de uma doença.
]Eu, particularmente, eu nunca trabalhei de luva, porque pra trabalhar eu catava mais papel e luva não era bom. Eu só trabalhava mais de luva quando era inverno, porque o lixo vinha muito molhado. Às vezes eu catava plástico fino, às vezes eu ia catar latinha ou alumínio mesmo, aí tinha que cavar o lixo. Era quando eu usava luva, mas no geral eu catava o plástico, o badame mesmo e o papelão e sempre trabalhei sem luva.
Hoje em dia eu tenho essa unha minha aqui… É aleijada aqui. Foi uma micose, tipo um... Quando a gente lava muita roupa tem unheira. Não sei se aqui fala assim, né?
P/1 - Sim.
R - Mas eu foi o azougue do lixo, o chorume mesmo que bolina. Tinha essa e essa unha daqui, também. Ela já caiu, já nasceu de novo.
Teve uma vez que meu dedo inchou, aí eu fui pro médico. Eu me lembro que eu fui lá pra… Atrás da rodoviária velha tinha um centro de saúde. Marquei uma consulta, aí passou pra dermatologista. Ele me aplicou uma injeção que graças a Deus sarou e eu nunca mais eu senti nada. Mas devido a isso a… Eu acho que mais isso.
P/1 - E depois disso você começou a usar luva ou não?
R - Não. Eu fiquei vários dias sem poder trabalhar, porque com o dedo inchado, eu tive até febre, nessa época, por causa disso. Ele disse que… Eu fiz exame de sangue, disse que era uma bactéria. Ele perguntou, sem saber… Como eu nunca tive vergonha de dizer onde eu trabalhava - porque tinha gente que tinha vergonha, nunca tive. Aí: “A senhora lava muita roupa, o exame da senhora está acusando… O que que a senhora faz? Está acusando algumas bactérias.”
Eu naquela época, eu não entendia muito bem. Mas, como eu era uma pessoa que eu lia muito, tudo que eu achava eu lia, aí eu expliquei pra ele. Eu disse: “Olhe, eu trabalho no aterro de Salvador.” Ele ficou pensando, ficou sem entender. Disse: “É, eu sou badameira, eu trabalho no aterro.” Aí ele se lembrou, disse: “Lá em Canabrava?” Eu disse: “É.” Aí ele fez: “Então é isso, está explicado esse problema; isso é uma bactéria que deve ter vindo da contaminação do lixo. Agora ficou mais fácil eu entender, já sei que a senhora vai ficar boa.”
Esse dia, eu estava queimando de febre, por conta disso. Foi quando... Ele perguntou se eu tinha me furado com alguma agulha de injeção. Eu disse: “Não, isso nasceu assim, começou a coçar, aí começou a inflamar.” Tomei a medicação certa, fiquei boa.
P/1 - Você levava a Bárbara pra lá. E ela, como é que era?
R - Ela ficava… Eu fazia uma casinha, botava uns paus assim, às vezes forrava de palete, aquelas coisas que caem de tábua. Forrava de papelão e a botava sentadinha ali, coberta por causa do sol. Aí ia, e o badame ali. Eu ia uma viagem, trazia; achava merenda, achava laranja, vinha. Eu sempre trabalhava com uma garrafinha de água, um bujãozinho de cinco litros, aí lavava ali aquela laranja e dava a ela. Lavava por lavar, porque dentro do lixo a contaminação é a mesma.
Às vezes caía o carro do 61, vinha muita merenda, Danone, vinha aqueles bolos... Que vinham nos pratinhos de alumínio, Bauducco - era Bauducco, eu acho. Era bolo, biscoito; o que achava comia. Não [era] resto; às vezes as pessoas dão algum depoimento do lixão e dizem que as pessoas comiam resto. A gente não comia resto, porque sempre teve a coleta dos supermercados. A gente já sabia quais eram os carros.
Todo lixão, acho que tem… Quase toda a cidade têm aqueles carros específicos que fazem a coleta nos supermercados. E lá tem isso, aquele caminhão que vai nos mercados - naquela época era o Paes Mendonça, aí a gente chamava de 61. Mas só vinha merenda, doce de banana… O que você pensasse no mercado que estava próximo ao prazo. Tinha coisas que não estavam nem vencidas ainda, eles botavam no lixo.
P/1 - Quer dizer, a coleta que eles fazem é pra tirar o que está pra vencer, o que venceu, aí eles levam pro lixão.
R - E naquela época levavam todas pra lá. Bastante verdura, às vezes caía caminhão de verdura, cenoura. Verduras boas, mesmo, que a gente lavava, aproveitava, levava pra casa. E ninguém nunca sentiu nada.
P/1 - Então você, por um lado, catava o papelão e também catava toda essa....
R - É, catava todas essas coisas. Hoje, lá em Salvador, talvez não fazem mais porque eles têm um programa Prato Amigo, essas coisas, aí recolhem essas verduras, levam pras instituições que recebem e outras, hospitais, que aproveitam. Mas antes, uns dez anos atrás, jogavam tudo no lixo, era um grande desperdício. Não era desperdício porque quem trabalhava no lixão aproveitava muito bem as coisas; levava pra casa, cuidava, e comia. Nunca ouvi dizer que ninguém passasse mal ou morresse por ter uma verdura do 61, do carro do Paes Mendonça. Pode até acontecer algum caso de alguém ter se intoxicado ou envenenado, mas não desse carro.
P/1 - Você passou a levar a Bárbara, foi se especializando em papelão...
R - Aí foi quando... Levei um ano, mais ou menos...
P/1 - Você saiu da casa da senhora?
R - Sim. Nesse meio-tempo eu saí de lá. Teve uma época de festa, aí eu lá dentro com Bárbara… Passei um dia, dois e dormindo por lá mesmo, e lá vai. Deixei minhas coisas guardadas lá. Nesse período, eu levei quase uns dois meses morando dentro do lixo. Só trabalhando.
P/1 - Como é morar dentro do lixo? Você dorme onde?
R - Fazia uma casinha de papelão. Não é bem uma casa: bota quatro paus, bota uma coisa, fecha com roda com papelão; [a gente] se cobria com papelão mesmo.
Eu estava, botei na mente, que eu estava… A vizinha lá, o pessoal tinha… Foi quando tinha esse terreno, essas invasões. Eu tinha que comprar madeira pra poder fazer um barraco pra mim. Se ficasse indo pra casa ou pra casa dessa… Eu me esqueci o nome dela agora, ela me ajudou muito, mas eu esqueci o nome dela, lá de Nova Brasília. Ou pra casa de Dona Maria, todo o dinheiro que eu pegava, eu tinha que gastar. Eu morava nas casa dos outros, ela também tinha filho, vendia folha e umas besteiras - vendia, vendia manga, caju, essas coisas assim.
Quando eu chegava com o dinheiro... Eu não tinha aquela natureza de pegar o dinheiro e esconder. “Aqui, Dona Maria. Eu ganhei tanto aqui, vamos ver o que que está faltando.” Era pão, era café, os filhos dela [diziam]: “Tia, me empreste aí um dinheiro.” E eu não ficava com dinheiro. Quando eu trabalhava à noite - às vezes eu trabalhava o dia e a noite - e chegava no outro dia, aquilo que eu ganhava já foi. Eu voltava dura de novo pra dentro do lixo.
Como minha filha estava crescendo, pensei que eu tinha que ter um lugar pra eu morar. Dona Tereza trabalhou muitos anos no lixo, hoje ela está em outra cooperativa. Ela sempre dizia: “Litinha, você tem que...” Ela me chamava, todos lá me conhecia como Litinha. “Litinha, você tem que ter um barraco, tem que ter uma casa. Você tem sua filha, tem que arranjar uma casa pra você. Você não pode viver toda a vida assim, com essa menina dentro do lixo, à toa.” Por sinal, algumas vezes eu fui pra casa de Dona… [No] final de semana. “Vá passar o domingo lá comigo.” Eu ia, passava lá o sábado e o domingo. Nessa batida eu levei uns quase… Eu não sei se foi uns dois ou três meses morando lá dentro do lixo, rolando.
P/1 - E quanto se ganha?
R - Naquela época? Era pouco dinheiro, mas as coisas eram mais baratas. E dava. Eu me lembro que com as coisas que eu arranjava… Naquela época, eu [estava] juntando dinheiro, mas quando passei a ter minha casinha mesmo, meu barraquinho, eu trabalhava, recebia por quinzena. Eu juntava, só queria receber por quinzena, aí dava pra eu fazer uma feirinha. Comprava roupa, comprava chinelinho. Minha filha andava tão bonitinha. Tudo quanto era coisa de cabelo, tanto eu achava no lixo como eu comprava. Carne, verdura eu não comprava, mas o que você pensasse de cereal… Comprava margarina, o leite dela, Farinha Láctea, Neston. Dava pra comprar naquela época.
Era um dinheiro que… Não sei, é porque as coisas eram mais em conta mesmo, mais baratas. Dava porque eu juntava. Eu vendia… Eu trabalhava por noite. Se eu trabalhasse um dia à noite naquela época eu fazia oitocentos, mil quilos de papelão.
P/1 - Você trabalhava de dia e à noite?
R - Trabalhava de dia e à noite.
P/1 - Nisso você também estava morando lá?
R - Morando lá. E aí eu agregava outras coisas - eu achava um plástico, eu jogava ali, eu achava plástico fino. Quando eu vendia, vendia aquele bolo de coisa. Eu tirava naquela… Eu não tenho certeza da época do salário, porque o salário... Teve uma dobradinha do salário, o salário foi pra 42. Era um negócio assim.
Eu, naquela época, tirava mais do que o salário. Eu tenho certeza disso, eu me lembro. Foi negócio de um governo: o salário era X, acho que era 20, aí quando dobrou foi pra 42... Cruzeiros, eu não sei. Mas eu sei que nessa época eu já tirava mais do que o salário.
Foi quando eu vim pra… Quando eu passei esses, acho que dois ou três meses, até uns quatro meses morando dentro do lixo. Eu não recebia o dinheiro porque tinha medo de perder ou alguém roubar. O que que eu fazia? Eu deixava juntando lá na mão do rapaz. Hoje em dia, ele se diz até… A gente se considera como compadre. Ele gostava muito de Bárbara; às vezes, a esposa dele ia lá e levava sempre merenda. Levava uma marmita, uma comidinha feita de casa, pra mim e pra ela. E o ajudava também na balança, muitas vezes.
Eu ia pesando meu material e guardando o dinheiro. Só pegava o essencial. Eu fumava, comprava o cigarro, comprava o óleo pra trabalhar de noite - a gente, às vezes, comprava óleo; às vezes, tirava dos tratores da prefeitura escondido, quando não conseguia tinha [que] comprar. Tinha uma venda lá em Canabrava que vendia. Venda de chicharro, vendia as garrafinhas pra a gente fazer tipo candeeiro pra trabalhar à noite. E aí juntava.
Foi nessa época que eu juntei esse dinheiro, aí deu pra comprar telha, comprei madeirite. Nisso eu juntava madeira, comprei o terreno. Esse primeiro terreno meu, eu nem me lembro mais, acho que custou sete contos. Paguei o terreno em duas vezes, depois comprei as madeiras, comprei as telhas por último. Foi madeirite, fora as madeiras que eu acho que caíam muito no lixo, ia levando e botando lá. Já tinha gente que trabalhava no lixo que morava lá e tomava conta.
Naquela época, não tinha negócio de roubo, que era próximo ali... Tinha muita fartura, ninguém se preocupava em pegar nada de noite. Tinha alguém, não deixa de não ter; nunca deixou de ter, mas não era como é hoje, a violência de hoje.
Fiz o meu barraquinho, graças a Deus. Eu me lembro que por último eu comprei as telhas, comprei um fogão de segunda mão e um bujão de gás. E fui tocando a minha vida.
P/1 - E esse terreno era perto do...
R - Perto do lixão. Hoje é adjacências, a área. Inclusive ela está… Essa parte, da Boa Paz, está incluída na… [É] uma das áreas que foi degradada pelo lixão. Porque tinha uma lagoa, um lençol freático, e hoje ele é contaminado pelo chorume do lixão. Nem peixe hoje mais tem - antigamente tinha peixe, era muito limpo. Já foi várias... Pessoal de faculdade fazer exame, colheram amostra da água. Transformou, num esgoto mesmo, porque devido ao chorume não serve mais pra nada a água. Estão fazendo trabalho de beneficiamento pra limpar.
Eu fui vivendo a minha vida. Foi quando eu conheci o meu segundo marido. Aí foi que eu tive a Débora, Ivana, o Railson e o...
P/1 - O seu segundo marido se chamava como?
R - Chamava-se… Chama, é Raimundo Silva, ele ainda é vivo.
P/1 - Você conheceu no lixão?
R - Lá no lixo também.
P/1 - Então conta essa história pra gente.
R - A gente se conheceu assim: ele também morava lá dentro do lixo. Depois de anos morando com ele eu vim saber que os parentes dele… Ele era perdido lá dentro do lixo. Foi quando...
Por eu também morar lá dentro e ele também, às vezes a gente juntava, fazia comida junto. Ele achava as coisas, me dava; eu lavava, ajeitava, fazia aquela panelada de comida. Todo mundo comia. Quando eu consegui fazer o meu barraco, ele começou a frequentar a minha casa. Ele gostava muito de Barbinha; tudo que ele achava de brinquedinho ele levava. E aí a gente… Foi até Dona Tereza mesmo: “Rapaz, vocês dois faz um bom casal. Por que vocês não se acertam e vão morar juntos, vocês dois?” Foi daí que começou. Ele passou a dormir lá em casa, no barraco. já me ajudou a construir mais um vão, trazia uma tábua... O que ele achava levava direto pra casa. A gente foi ficando. E nisso a gente ficou dezessete anos.
P/1 - Aí você teve..?
R - Eu tive a Débora, a Ivana, o Railson e o Silmário. Hoje moram comigo.
P/1 - Você trabalhou no lixão todo o tempo que esteve grávida?
R - [Por todo o tempo que] estive grávida. Débora, mesmo, eu saí do lixão toda suja pra… Peguei uma carona pro [Hospital Geral] Roberto Santos, pra poder ter Débora, já estava mesmo na hora. Estava lá trabalhando, eu tinha sentido dor de dia, aí à tarde eu melhorei. Ele ainda disse assim: “Rapaz, é melhor você ficar aí, não vá pro lixo, não.” “Ah, eu vou ficar aqui não, eu vou.” Botei Barbinha pra dormir, tinha uma vizinha, tudo pertinho. Todo mundo subia naquele horário, disse: “Vou, se eu sentir alguma coisa eu venho embora.” Só que quando eu estava lá trabalhando, quando eu senti a dor já foi pra ter Débora.
Era uma hora da manhã. Tinha um motorista índio, da Limpurb [Departamento de Limpeza Pública] - até hoje ele trabalha na Limpurb. Ele chama Débora de Deo, Debby, e diz que é a filha dele. “Minha filha, cadê a minha benção?”
Na hora, eu apertando a barriga, aí todo mundo: “Ai, acode, acode!” Esse homem: “Embora, entra aí que eu boto você lá no Roberto Santos.” Do jeito que eu estava eu cheguei no Roberto Santos. O pessoal pensou que eu era mendiga, até as enfermeiras estavam... Com coisa. Mas não tinha mais jeito, eu já estava lá. Elas tinham que... Fazer o parto mesmo.
Eu entrei lá no banheiro, tomei um banho. Eles me deram aquele roupão da maternidade, já quase sem aguentar mesmo. Assim que eu terminei de tomar banho, que eu subi na maca, eu nem fui pra sala de parto. Eu tive Débora ali mesmo. Depois que eu tive Débora…
No bolso da minha bermuda eu estava com dinheiro, porque eu estava interessada mais em ir à noite… Tinha um rapaz lá que comprava material à noite. E eu tinha vendido meu material de dia. Eu disse: “Se eu não vir à tarde, à noite eu pego em sua mão.” Quando foi à noite, que eu cheguei no lixo - ele chega umas dez, onze horas -, ele fez: “Aqui, Lita, seu dinheiro.” Aí eu contei, botei no bolso.
Eu [fiquei] preocupada: minha roupa, se eles jogassem fora, ia o dinheiro todo no bolso. Documento não tinha, mas dinheiro tinha. Quando eu pedi a ela, ela pegou bem assim… Peguei o dinheiro; ela olhou, ela disse assim... Aí eu disse a ela: “Olhe, eu trabalho. Isso aqui não é roubado, não é pedido de esmola não; aqui é o meu suor, eu trabalho catando papelão no aterro de Canabrava.” Elas ficaram me olhando assim... Aí me deu uma louca pra ir embora.
P/1 - Você ficou se sentindo mal?
R - Foi. Aí eu digo: “Cadê?” Quando ela já sabia que era… “Cadê minha filha?” Ela fez: “Está no berçário, já vem.” Eu disse: “Eu quero minha filha agora, eu vou embora é agora. Eu quero ir embora.” Aí eu pulei da maca e o médico: “Calma.” Elas dizendo que eu estava louca: “Eu quero ir embora, não quero ficar aqui. Não estou sentindo mais nada, não.” “Calma, você tem que ficar de repouso.” Foi já amanhecendo o dia, aí chegou Dona Tereza, chegou Dona Maria - já estava bem velhinha.
P/1 - E ele? Também chegou?
R - Ele chegou também, aí eu me acalmei. Assim mesmo, eu não fiquei lá muito tempo. Acho que era pra eu passar uma noite; quando foi de tarde eu não estava sentindo, de tanto estar zoando que eu queria ir embora pra casa; à tarde eu fui pra casa.
Os meus outros filhos eu tive em casa. Peguei trauma de hospital, não gosto, não.
P/1 - É. Porque você ficou com trauma? Foi dessa vez?
R - Do hospital? Não. Porque quando aí passou… Eu engravidei de Ivana, não deu tempo. Meus partos eram muito rápidos. E eu me lembrava… Eu fazia pré-natal e tudo, mas quando chegava a hora de ir pra maternidade eu ficava me amarrando, ficava sem querer ir. Eu acho que era isso, não sei. Eu não queria ir. Eu tive Ivana, Railson e Silmário, todos em casa.
P/1 - E quem te ajudava?
R - Ah, tinha vizinha lá. Tem Dona Tertu, ela já está… Ela ainda é viva. O pessoal diz que ela tem cem anos, mas eu acho que ela tem mais. Ela é bem magrinha, trabalhadeira. Já é aposentada, vende cocada. Silvanira também, ela fez o curso de enfermagem. Ela também me ajudou [em] todos os meus dois partos, tanto de Ivana como de Railson. E Silmário, quem o aparou foi Dona Tertu, lá mesmo, na Boa Paz. Ele a chama de avó. É bem idosa ela, o povo diz que é cem anos, mas eu nem sei. É tanto tempo que a gente se conhece que perde até a noção do tempo.
P/1 - E que aí esse lugar foi virando, cada um foi fazendo casas...
R - É, e cada um foi crescendo. Outros foram vendendo, chegando outros moradores novos. E alguns foram construindo sua casa - um tijolinho hoje, outro amanhã… Levei muitos anos morando num barraco de tábua, no tempo com o Raimundo. Ele se viciou em jogo de baralho e bebida, mas a bebida não era tanto, o problema era o vício do jogo.
P/1 - O dinheiro que ele ganhava...
R - Perdia tudo no jogo. E ainda o que tinha dentro de casa ele pegava, dizia que ia recuperar e perdia. Levei muitos anos nessa batalha, tentando tirá-lo do vício do jogo, tentando tirá-lo da bebida e sem conseguir. Quando ele perdia, que não tinha mais nada, aí ele bebia. [Quando] chegava em casa era briga, era confusão. Até quando a gente se separou.
Depois que a gente se separou, foi que eu vim [a] reorganizar minha vida, com meus filhos. Aí sim, meus filhos começaram a ir direto comigo pro lixo - pelo menos as duas maiores, Barbinha e Débora.
Débora ia pro lixo. Teve um período [em que] ela estudava de manhã, ia de meio-dia pra tarde. Quando ela chegava da escola tomava banho, comia, descansava um pouquinho, subia. Ficava lá até umas sete, oito horas da noite, aí descia.
P/1 - E a Bárbara?
R - A Bárbara levava direto comigo…
P/1 - Ela não foi pra escola?
R - Ela só estudou até a quarta série. Ela teve que parar de estudar pra me ajudar cuidar dos outros irmãos. E Ivana não ia, porque Ivana com sete anos teve um problema de... Problema de cansaço mesmo, problema pulmonar; levou muito tempo internada. A gente tinha mais cuidado com ela e não deixava.
Ivana ficava olhando Railson e Silmário, em casa. Hoje em dia, a mais dedicada dentro de casa é a Ivana. Ela foi criada nesse ritmo, ela administra tudo.
P/1 - Quer dizer, então a Bárbara ia com você direto, a Débora ia de manhã pra escola e ia pra lá.
R - Sim. [Em] época de férias ou fim de semana trabalhava à noite. Todo mundo conhece a Débora do lixo.
P/1 - Os meninos ainda eram muito pequenos?
R - Os meninos pequenos não iam. Iam, mas não catavam, ficavam ali. Às vezes iam de tardinha, voltavam, mas não era fixo estar catando lá dentro.
Os meninos não alcançaram isso muito, não. Quem batalhou bastante dentro do lixo comigo foi a Débora e a Barbinha. Hoje Débora está com dezenove anos, ela está concluindo, passou pro terceiro ano agora. Ela está com a média dela pronta, passou de ano - segundo ano do ensino médio, passou pro terceiro. E a Bárbara casou cedo, com quinze anos ela teve a primeira menina.
Mércia, hoje, está com nove anos. Depois teve a Bianca, que está com... Tem sete, vai fazer oito. Foi uns três ou quatro anos com o marido; também negócio de jogo, também bebia, parece que a mesma sina. Aí largou o primeiro marido, Wellington. E aí começou, coitada, a se bater. Trabalha em casa de família, faz diária. Esse ano, com fé em Deus, ela diz que vai voltar a estudar. Aí já estudou, depois disso ela conseguiu concluir. Fez a sétima, fez a… Aquele, não sei se aqui tem, é... Faz duas séries num ano, tipo um supletivo. Ela fez a quinta e a sexta, depois fez a sétima e a oitava. No ano passado, ela era pra fazer o primeiro; não conseguiu porque o sorteio da matrícula foi uma escola longe, à noite. Era perigoso, questão de dinheiro de transporte também. A menina dela também estuda em um colégio meio distante. Tem que dar o transporte: ou bem dá o transporte de Mércia, ou bem o dela. Por causa das dificuldades também... No ano passado ela não estudou, mas esse ano que vem, com fé em Deus, ela vai estudar, vai continuar.
P/1 - E Bárbara não voltou, não trabalha mais no lixão?
R - Não, não. Fechou o lixão. Também não trabalha porque fechou, eu digo a você. Fechou em 2000, ninguém mais trabalhava no lixão. Tem muitas pessoas que trabalham na… Tem uma parte que não conseguiu ir pra empresa. Eles fizeram um remanejamento: alguns foram pra empresa de limpeza urbana, pra varrição, e outros não conseguiam. Aí associaram uma cooperativa deles e muitos ficaram no meio da rua - como eu também fiquei no meio da rua, né?
P/1 - Quando fechou?
R - Quando fechou. Eu fiquei vivendo assim: às vezes eu ia catar, aí eu comprava litro, garrafa, na porta e revendia. E fazendo diária, até quando surgiu a oportunidade desse projeto social, do Pangea [Associação Ambientalista Internacional]. Aí a gente fez a capacitação, o curso e formou a cooperativa.
P/1 - Voltando um pouquinho, como foi a separação?
R - Foi devido às brigas. Era o que eu estava falando, devido ao jogo. A separação mesmo foi porque ele perdeu no jogo o dinheiro todo; não quis pagar, não sei o que foi que houve, confusão lá com os moleques. E aí os moleques ameaçaram matá-lo.
Eu tinha quase uma carga de papelão no chão. Um vizinho meu, a gente estava trabalhando de sócio. A gente vendeu esse papelão, arrumou a passagem e ele foi embora.
Nessa época, Barbinha estava grávida de Mércia. Estava com quatro meses de gravidez. A gente o levou pra rodoviária escondido, pra ninguém ver. E aí foi uma nova vida pra mim, que a vida que eu tinha com ele, como eu citei… Tudo que tinha em casa ele pegava, botava no jogo.
Teve uma época que eu estava com um material bom no chão pra vender, e eu ia comprar uma coisa... Ah, eu me lembro, eu estava criando porco. Um vizinho lá tinha me dado um casalzinho de porco. Como eu trabalhava no lixo... Eu estava juntando esse dinheiro pra comprar remédio, vacina que tinha. A gente sempre dava vacina ao porco, comprava material de limpeza do chiqueiro. E aí ele pegou esse material - ele nem chegou a vender, botou o material no jogo. Quando chegou em casa, foi confusão, foi briga. Ele não se conformou, voltou pro jogo; quando eu estava cozinhando o feijão, ele pegou o bujão e levou. Nesse tempo, já estava mais esclarecida: “Tem que dar uma queixa.” Ele disse que se eu fosse dar queixa ia ser pior. Aí eu fui, registrei uma queixa dele.
O pessoal achou um absurdo ele fazer isso. Teve a acareação: tudo bem, ele disse que ia botar o bujão no lugar, que ia trabalhar, ia comprar o bujão, mas não me disse nada. Aí eu fui trabalhar no lixo. Ele foi, arrancou as telhas e botou no jogo. Quando eu estou no lixo, chega a Débora: “Mainha, mainha, arranja uma lona aí.” Eu digo: “pra que?” “Pra cobrir a casa, porque painho tirou as telhas.” Eu digo: “É o quê, menina?” Aí Barbinha: “Não disse à senhora que ele… [Que] não ia ficar barato? A senhora deu queixa dele.”
Foi outra confusão. Foi quando ele deu essa doideira e foi pro jogo com a cabeça quente de briga. Acho que perdeu tudo que tinha, mesmo. Foi bafar o dinheiro dos outros, aí os moleques quiseram bater, ele foi embora.
Comecei [a] reorganizar minha vida com minhas filhas. A Débora ia, Barbinha ia, eu ia também, direto; conciliava os horários. Eu só não ia, não gostava de trabalhar dia de sábado. O sábado e o domingo eu reservava. Eu pegava sexta de manhã, trabalhava sexta [de] dia e à noite; quando dava oito, nove horas do dia de sábado eu vendia meu material e vinha embora pra casa. Só pegava na segunda-feira. O sábado era [o] que eu tinha pra organizar as coisas, cuidar de roupa, cuidar delas.
P/1 - Quer dizer, sábado você ficava em...
R - Ficava em casa. Não gostava de trabalhar dia de sábado, não. Aliás, eu não sei, eu não sou muito chegada, por necessidade… Se tiver necessidade - às vezes, a gente tem que trabalhar. Mas, eu... No sábado, eu gosto sempre de dar uma paradinha. Até sexta, até meia-noite, o que for, a gente trabalha. Mas sábado, pra mim, é sagrado. Não sei por que. Não é nem por força de religião, é porque no dia de sábado a gente bota tudo em ordem. Fica a semana toda na rua, chega o sábado tem ainda trabalhar, o dia de domingo não dá pra gente organizar tudo.
P/1 - Domingo também você tirava pra…
R - Descansar. Às vezes eu vou lá pra igreja de manhã. Às vezes eu vou à missa, duas vezes no mês. Saio com os meninos. Tem o futebol, o meu menino joga, às vezes eu vou assistir. Ele gosta que eu vá. Fico torcendo pra ele ganhar. E às vezes eu sento mesmo, vou ler, vou dormir um pouquinho. Descansar mesmo, no dia de domingo.
P/1 - Você reorganizou sua vida, aí você conheceu a cooperativa. Como é que foi?
R - Sim, organizei a minha vida e continuei trabalhando no lixão.
Quando chegou o período de 2000, 99 pra... Nesse meio tempo que começou a se organizar o lixão, com eles lá, começou a mídia a invadir o lixão, jornalistas. Até uns anos ninguém sabia, né? Começou essa coisa. A gente, a Limpurb, que era da prefeitura… Tinha uma menina, a Marília, que era assistente social. Trabalhava com a gente e ela ia dentro do lixão. Por sinal, uma pessoa muito dada, uma pessoa de fé, que luta e torce pelos catadores. Ela ia, calçava bota, ia lá no meio do lixo e fazia cadastramento, procurava benefício pra gente, mesmo no lixão a céu aberto. E ela veio com a história de uma cooperativa. Só que essa cooperativa, como era apoio da prefeitura, não deu muito certo. Eu mesma não fiquei nessa cooperativa. Fui pra outros lixões.
P/1 - Aí o lixão fechou.
R - Em 2000, o lixão fechou. 98 pra noventa e... Fechou.
Ficou todo mundo sem saber o que fazer. Uns foram pra empresas, outros... Eu não consegui ir pra empresa nessa época porque também eu estava com problema de documento. Devido à área que eu moro… Negócio de barranco, essas coisas, frieza. Eu não tinha condições naquela época de trocar todos os documentos, aí não fui. Fiquei fazendo diária, isso e aquilo. Outros ficaram, como estão até hoje, trabalhando na rua, nos condomínios, nas lixeiras.
É muito ruim a pessoa sair do lixão pra se adaptar ao mundo cá fora, é muito difícil. É uma mudança de vida.
P/1 - Por quê? O que acontece?
R - Não sei. As pessoas, é o preconceito na rua. No lixão não, todo mundo trabalha ali, sabe que está dentro do lixão. E cá fora é muito difícil. Você, as pessoas trabalhando cá fora, avistando a lixeira de um condomínio. Chega aquele dono de condomínio, aquela do... Olham assim, ninguém sabe nem o que que se passa na cabeça daquela pessoa que está olhando da janela e...
Por exemplo: eu catando aqui, ele olhando pra mim. Ele está imaginando que eu sou mendiga, ele está imaginando que eu sou preguiçosa, ele está imaginando que eu sou ladra. Tem muito dessas coisas. O preconceito é muito grande ainda em relação ao catador de rua. Principalmente lá, né?
Passou-se um tempo, aí Marília… No que o lixão fechou, a cooperativa lá também não deu certo, não foi à frente. Ela se afastou também da prefeitura e voltou. Como ela tinha uma relação de muitos anos com a gente dentro do lixão, aí ela sabia quem era quem, sabia onde morava. Foi lá na Rua Boa Paz, que é esse bairro - é Canabrava de um lado e Boa Paz de outro. A maioria, quase todo mundo teve uma passagem pelo lixão, ou não trabalhou, mas sempre ia lá. Todo mundo se conhece assim. Ela foi de casa em casa, convidou… Seria uma proposta de uma organização. Ela estava trabalhando com essa ONG, esse projeto social, o Pangea. Muitos ficamos… Muitos não acreditaram. Eu mesma, no princípio, porque já tinha tido uma experiência que não tinha dado certo no lixo, fiquei meio assim. Mas não custa nada. Eu estou sem fazer nada. Ela sempre me chamou de Lita: “Vamos, Lita, você sempre foi ativa, sempre ajudou o pessoal. Você sempre trabalhou no lixão, mas sempre correu atrás de alguma coisa cá fora de benefício. Muito bem, você vai fazer um curso, uma capacitação; [com] isso você vai crescer mais, vai”... Como ela disse, “vai agregar mais valor na sua vida.” Ela disse assim: “Mesmo que não venha o retorno financeiro, você vai se sentir outra pessoa. Vai ser melhor pra você.” Aí eu e um outro companheiro, o Seu Cícero, que hoje está na cooperativa, no Conselho de Ética, a gente [respondeu]: “A gente vai.” “Vai fazer o curso?” “Vai.” Todos vizinhos de muitos anos. Aí começamos a fazer a qualificação, a capacitação.
P/1 - O que era? O que tinha, basicamente?
R - Na capacitação tinha o módulo de cooperativismo. Tinha as habilidades técnicas, que a gente sabia trabalhar na catação, mas não sabia, não tinha técnica. Não sabia definir o que era um plástico, não sabia o que era definir os termos técnicos de um papelão. Como trabalhar dentro de uma cooperativa, como formar a cooperativa, estatuto, regimento interno. Administrar, como funciona a administração de uma cooperativa, porque é uma cooperativa, mas acima de tudo é um empreendimento. É, digamos, uma empresa de negócio, uma coisa que tem que gerar lucro pra dividir com aquelas pessoas.
A gente tomou essa capacitação [por] quase um ano. No início foram uns oitenta, cem selecionados. Muitos não acreditaram, saíram, porque foi um ano de muita luta. A gente tinha que trabalhar em outras coisas cá fora e participar do curso.
P/1 - À noite?
R - À noite. Muitos não queriam, ainda tinha aquela ideia do assistencialismo. “Eu só vou se me der… Nem uma cesta básica dá?” Eu disse: “Minha gente, a gente não está atrás de cesta básica. A gente está atrás do curso. Se der certo a gente fica, se não der, paciência, pelo menos a gente toma o curso.” E por aí foi. Foi diminuindo, ficou em oitenta - outros não se adaptaram porque é o cooperativismo, outros por problemas pessoais saíram. Hoje nós somos cinquenta, mas estamos em fase de ampliação, de agregar novas pessoas, entrar outras, fazer o curso pra entrar.
P/1 - O curso, aí vocês montaram a cooperativa?
R - Montamos a cooperativa. Começamos do zero, com o apoio do Pangea - até hoje nós temos o apoio do Pangea. Tem equipe de mobilização, tem equipe de logística, uma equipe de administração que ajuda no computador a toda a logística, [a] estrutura da cooperativa, processo de dividendos, de remuneração.
Fora isso, o apoio também, o apoio social. Marília é assistente social. E no princípio, que foram os primeiros meses, foi uma barra, porque a gente começou do zero. A gente entrou pro galpão - o aluguel desse galpão quem financia, também, é o projeto. A gente começou do zero, então o apoio dela foi fundamental.
Ela construiu o apoio social dela, construiu uma base muito forte. Pelo menos, a maioria assimilou essa base que a Marília fez. E hoje nós estamos… Crescemos. Até surpreendeu, porque muita gente pensava que a gente ainda ia levar cinco, seis anos pra conseguir; a gente rapidamente, [em] um ano e meio, já tem... Já tem uma renda de um salário mínimo.
[A gente] continua com o apoio do projeto. O Pangea financia cesta básica, ajuda com vale-transporte, algumas capacitações, vários cursos que a gente já fez na OCEB [Organização das Cooperativas do Estado da Bahia], seminários… Tudo isso, esse custo é do Pangea ainda. E o custo da cooperativa mesmo, a gente trabalha, vende a produção, separa, faz o beneficiamento todo do material, vende. E aí, o que... Depois da produção toda vendida, a única despesa que a gente tinha era dos frete dos caminhões; hoje, graças a Deus - através do Pangea, buscando parceiros -, a gente ganhou um caminhão. Já temos transporte próprio. Mas a gente, à medida... Também, de capacitação… A gente já está descontando o combustível, nada mais justo. O protagonismo do Pangea é os catadores caminharem pra autogestão, pra cooperativa se dirigir, auto-administrar. Então, aos poucos, a gente vai passando a assumir alguns custos; ainda está muito pouco porque o valor do material reciclável é muito barato.
P/1 - Vocês vendem pra onde?
R - A gente vende pro Nordeste, mesmo. Lá pra Bahia.
P/1 - E lá tem fábrica?
R - Tem a fábrica, a gente leva diretamente pra indústria de papelão. É quando a gente consegue um preço maior, um pouco.
P/1 - Quanto é o quilo?
R - O papelão está em média de 22 a 23 centavos.
P/1 - E o alumínio, quanto está?
R - O alumínio a gente passa a quatro reais - já beneficiado, limpinho, as latinhas. O alumínio de perfil é um pouco mais barato - 3,50, 3,20.
P/1 - Vocês têm prensa?
R - Temos prensa, temos balança. Recentemente, a gente conseguiu através do Pangea… Conseguiu um terreno com um centro, com dois galpões, que vai ser a nova sede. A gente está mudando agora no final do ano; não vai ter mais esse custo do antigo aluguel. E tem o elevador de carga. Tem toda uma estrutura.
Tudo isso foi conseguido através do Pangea - buscando recursos, parceiros, se tem toda uma estrutura montada. Temos refeitórios, uma geladeira, temos o fogão, o gás. Alimentação, tem o almoço do pessoal; por enquanto, tudo isso ainda vem por parte da ajuda que ele está dando até a gente poder terminar… Organizado nós já estamos, mas se firmar, pra poder... E também o valor do material, a renda melhorar, pra poder a gente ter um custo. Uma estrutura dessa vai, tem que… É muito alto o custo operacional.
P/1 - Mas o que mudou, basicamente? O trabalho, o pessoal cata onde? Exatamente o que mudou?
R - O que mudou [é] que hoje não tem mais lixão, né? E também não catamos na rua, [é] mais na lixeira, não está diretamente com os resíduos in natura.
Tem um trabalho da mobilização que faz uma conscientização com moradores de condomínios em alguns bairros, algumas sedes de algumas empresas, escolas, faculdades. Basicamente, a coleta seletiva nossa é ir buscar o material que já vem, praticamente… Ele vem separado do orgânico. Vem um saquinho com os materiais: papelão, plástico, papel branco. Vem latinha, litro, o vidro. O que acontece? Chegou ali na cooperativa, a gente faz a triagem técnica; nós, na cooperativa, é que fazemos. Não tem mais aquela de estar na rua, na lixeira mesmo, junto com… Misturado. Isso mudou, é bom até, valoriza como profissional.
Hoje em dia, o CAEC [Cooperativa Catadores Agentes Ecológicos de Canabrava], lá na Bahia, todos já conhecem. Tem lugar que a gente passa que os moradores: “Ah, tem um material aqui, amanhã venha buscar.” Já tem aquela relação muito próxima, porque o trabalho de conscientização e, também, o trabalho de educação ambiental e de relações interpessoais, dentro da capacitação, dentro da própria cooperativa, foi uma coisa muito bem feita. Por isso que eu digo que a base… Marília construiu uma base muito forte, muito profissional com todo o grupo; hoje, qualquer um da gente lá chega e faz uma palestra, no sentido de educação ambiental, no sentido da reciclagem. Não é chegar só lá e falar sobre o que é separar o lixo. Faz uma palestra técnica mesmo do que são os resíduos sólidos. Todos. E [tem] também esse lado da relação interpessoal, a relação da gente, do grupo com o cliente. As empresas, os condomínios são clientes nossos, a gente tem que tratá-los bem. Ser educado, saber chegar, dar bom dia, farda limpa, tudo direitinho pra poder conqui... Acho que é através disso que a gente vem conquistando os espaços lá.
P/1 - Mas são vocês que negociam com os condomínios? Vocês que vão lá?
R - Vai a equipe da mobilização, um técnico, e vai sempre um da gente. Eles fazem, abrem o caminho, e a gente vai junto - não só na equipe de mobilização dos condomínios, nas empresas, mas em tudo. Envolve os cooperados. É tipo um aprendizado mesmo. Se vai vender uma carga de material, o cooperado vai, a pessoa vai. Um vende o papelão, outro vende... Pra poder ir aprendendo, tem que aprender.
P/1 - Antes você vendia pra alguém que estava lá no lixão.
R - No lixão [era] o atravessador. Hoje a gente vende pra algumas indústrias já.
P/1 - E são vocês que vão negociar ou pessoal da cooperativa?
R - Não, tem um estudo. Tem o pessoal da administração, que faz o primeiro contato. Ele chama sempre a gente, e está passando: “Gente, tem essa empresa aqui. Ela está comprando por tal, ela vem aqui olhar o material.” Geralmente, sempre vai uma pessoa da empresa, olha o material, olha o que é o projeto. Aí se encanta quando vê as coisas, quer ser parceiro, quer ajudar.
No dia da venda mesmo, a gente tem todo um controle da balança: o material está saindo pra carregar o caminhão, a gente está pesando, sabe quanto está saindo de material. A maioria das vezes, quando o material sai, a gente já sabe o valor e, às vezes, o dinheiro já está até na conta, do valor daquele material que está saindo. E isso tem o envolvimento de todos: tem o Conselho Administrativo, tem o Conselho Fiscal, tem o Conselho de Ética, que é o Seu Cícero - pessoa muito boa, muito pé no chão.
P/1 - Que é responsável pelo quê, basicamente?
R - É pelo Conselho de Ética, ele é responsável pelo comportamento das pessoas, porque sempre tem… Não deixa de não ter, né? Querer fugir à regra, um pouco. Mas ele está ali, ele já chama: “Não é bem assim, o caminho é esse.” E isso é fundamental.
P/1 - E o que é fugir à regra?
R - Às vezes perde a cabeça, chega mal-humorado. Às vezes tem uma discussão.
P/1 - Você ainda cata papel ou trabalha só na cooperativa?
R - Eu trabalho só na cooperativa. Algumas vezes eu vou à coleta de algumas empresas e coleta no condomínio. Mas devido essa movimentação de estar indo pra seminário, às vezes eu tenho que sair muito, às vezes eu viajo, aí eu não vou pra coleta. Quando eu estou dentro da cooperativa, que não tem viagem, eu dou apoio. Não fico realmente nas frentes de serviço; é específico, lá está dividido em seis coordenações. Entrada de material, tem a triagem de material, tem a prensa do plástico, tem o papelão, que nós trabalhamos com duas prensas. Uma fica com plástico, outra fica com papelão. Tem a separação das peneiras.
Eu não fico especificamente num lugar só. Eu desço, fico um pouco na entrada de estoque enquanto eu estou conversando, passando as coisas; [enquanto] a gente [vai] botando a conversa em dia eu estou fazendo, ajudando ali na triagem. Aí outro já me chama, vou pro outro lado. Dou apoio na limpeza.
P/1 - Por que, Joselita, o seu papel é de coordenadora geral?
R - Eu sou a presidente da cooperativa. Às vezes eu sou… Às vezes a menina da limpeza não pode ir, as outras estão na cozinha, aí eu limpo cá o escritório. [Se] chega uma pessoa, pelo menos pro escritório está com uma apresentação melhor. Às vezes eu lavo os banheiros.
De tudo eu faço um pouquinho, itinerante. Aí já desço pro plástico, fico com as meninas na separação do plástico, separo um PET, dois de PET. E aí vou passando o dia. De repente, o telefone toca - eu já largo ali [no] meio de caminho, venho pra atender o telefone. E nisso eu passo o dia assim.
P/1 - Quantas pessoas estão na cooperativa hoje?
R - Hoje temos 49. Tem um rapaz que se afastou, porque teve que fazer uma cirurgia de hérnia. Está afastado.
P/1 - E Joselita, vocês ainda têm os catadores de rua, com a carrocinha?
R - Tem… Mas a coletiva seletiva nossa, que vai aos condomínios… Na região próxima tem vários conjuntos habitacionais, no Vale dos Lagos; [a gente] vai com os carrinhos. Chega lá, recolhe o material; as pessoas ajuntam, aí a gente sobe.
Eu já fui várias vezes pra coleta seletiva: a gente sobe, o pessoal vai doando o material, a sacolinha, a gente vai enchendo o carrinho. Quando o carrinho está cheio, [a gente] traz pra cooperativa.
P/1 - Entendi. E eles usam uniforme?
R - Temos farda, temos luva, temos a bota. Tem o bonezinho por causa do sol, tem o crachá. Agora está se providenciando outro crachazinho digital. Tudo...
P/1 - O desafio é ter mais gente na cooperativa?
R - O desafio agora é isso. A fase é de ampliar. Mais gente, porque devido ao bom trabalho dos profissionais do Pangea, que isso é… Tem que falar, tem que elogiar. São uma categoria de profissionais, são profissionais no que estão fazendo, no trato com as pessoas. Não tem besteira com ninguém, entendeu? Do mesmo jeito que eles conversam com dono de empresa, eles conversam com a gente. Trabalham sempre numa linguagem simples, acessível pra gente entender o que está se passando. E aí, eles têm todo um envolvimento.
Agora, devido a esse trabalho tão bem feito que está sendo lá fora, a divulgação do Pangea… O Pangea tem uma credibilidade imensa. São pessoas responsáveis mesmo, que trabalham na atuação, do protagonismo, do crescimento do catador.
A demanda de material está muita; [está] vindo muito material e às vezes [a cooperativa] não está dando conta. Porque sai uma equipe pra mobilização - que tem que ter, essa equipe que abre o caminho. Sai uma equipe pra coleta seletiva, aí fica pouco no centro. Saí uma equipe pra carga nas empresas, aí às vezes no centro, na triagem só ficam cinco, seis, sete pessoas. E aí acumula o material. Não dá conta mesmo, porque é muito material.
A gente está nessa fase de ampliação tanto por conta da demanda dos materiais e [do] movimento [quanto] pelo Pangea querer participar da organização dos catadores, aumentar o que puder. Trazer essas pessoas de volta à sociedade.
P/1 - Como vocês fazem pra trazer essas pessoas? Como é o trabalho?
R - Tem um cadastro sócio; de início é um cadastro socioeconômico, que já foi feito. Vários catadores e isso... E é fácil que está… A maioria daqueles catadores, todos da região conhecem a gente, têm uma relação muito próxima. Às vezes é vizinho, ex-vizinho que trabalhou no lixão. Todo mundo se conhece, todo dia está se vendo. De início, tem o cadastro socioeconômico e todos que têm que vir pra cooperativa ter a capacitação. Não nesse período tão longo que a gente, que esse grupo agora passou, mas talvez num período menor. Mas tem que fazer a capacitação, tem que saber o que é cooperativismo, tem que saber o funcionamento de uma cooperativa pra poder participar do projeto.
P/1 - Mas o pessoal se interessa?
R - [O pessoal] se interessa. O pessoal da rua, tem muitos que todo dia perguntam, vão lá na porta [perguntar] quando vai abrir inscrição, quando vai começar o novo curso. Muita gente interessada, mesmo.
P/1 - E tem muita gente resistente também? Que fala: “Não quero”?
R - Não. Nesse nosso grupo ali da região, Canabrava - quando fala Canabrava é região: Sete de Abril, São Marcos -, todos têm interesse de participar. Porque veem o crescimento, veem o que está acontecendo, como as pessoas hoje valorizam o catador. Depois de estar uniformizado, associado, organizado, não existe mais o preconceito. As pessoas já tratam como se fosse… É uma categoria de profissionais, que está trabalhando como outra qualquer. Eu sinto que, infelizmente, hoje a demanda é muita e o... Tem-se muita força de vontade pra trabalhar, mas infelizmente o que a gente tem é pouco recurso, não dá pra demanda, pra fazer essa organização como a gente gostaria de organizar.
Nos lixões pelo interior é mais difícil. As pessoas ficam mais retraídas, ficam com medo, mas através desse mesmo trabalho, dessa equipe do Pangea estão, graças a Deus, conseguindo. Feira de Santana está bem organizado, o pessoal já está saindo do lixão, indo pro galpão. Em Vitória da Conquista também já tem uma cooperativa formada. São cem pessoas, todos foram do lixão; começaram a trabalhar esse mês. Já estão fazendo coleta em condomínio, nas empresas, estão na maior alegria.
É outro ambiente de trabalho, é uma outra vida. Valoriza muito a pessoa como ser humano.
P/1 - Você mesma, sentiu o quê? O que que mudou, fora a sua atividade, dentro de você?
R - Eu caí muito pro lado… Eu fiquei uma pessoa… Eu já tinha aquele lado solidário e hoje o que mudou é que eu estou mais aberta à solidariedade, através da capacitação, do curso de cooperativismo, [em] que se bate muito a união, a ética, a solidariedade. Hoje, eu estou com uma cabeça mais aberta a entender o lado das outras pessoas. E o reconhecimento, também, das pessoas, valorizando, porque o importante não é… Às vezes não é tanto o retorno financeiro, mas aquele retorno espiritual de a gente se sentir bem; de saber que está num projeto, num trabalho que está trazendo benefício, não só pra gente, mas pra outras pessoas, pra sociedade. Estar sendo reconhecido, valorizado, isso é muito bom.
Pra mim, como pessoa, melhorou bastante. Graças a Deus, hoje eu não vivo mais mal-humorada, eu vivo alegre. Preocupada, buscando; tem hora… Eu sou muito ansiosa, quero que as coisas aconteçam logo. Ver todo mundo trabalhando bonitinho, organizado, todo mundo com sua fardinha, mas infelizmente as coisas têm que ir passo a passo. Tem que conseguir devagarinho.
P/1 - Os cooperados recebem por mês ou recebem por carga que eles trazem?
R - Não, a gente recebe por mês. Vende toda a produção e a remuneração é dividida por todos por igual. A gente tem, claro, um controle básico, uma ficha de freqüência, porque às vezes tem uns que trabalham mais, outros trabalham menos, uns faltam. Às vezes tem uma demanda de colégio, alguma coisa pessoal, pra resolver. Então não é justo [que] aquele que falte ganhe igual aquele que trabalha os trinta dias.
A gente tem um cartão de remuneração. É um cartão-salário, o mesmo de uma empresa, mas como cooperativa não tem salário, a gente fala cartão de remuneração. Quando chega do dia trinta - geralmente fecha tudo dia 29, trinta. Vendeu tudo que tinha que vender e aí o que ele faz? Faz a transferência daquele valor pra… Divide e faz a transferência pras contas. As filiais das contas, cada cartãozinho.
As pessoas vão lá, geralmente, do dia primeiro ao dia cinco; às vezes atrasa, cai [em] um feriado ou [em] um fim de semana, aí [cai do] dia quatro até o dia cinco. A gente já tem um controle dos débitos, dos gastos. Um crédito: “Tal dia, está o dia cinco”, já marca a partir do dia cinco. É muito bom isso. [A pessoa] vai lá e retira seu dinheiro e...
P/1 - A média mensal hoje é?
R - É de 270 até trezentos reais.
P/1 - E isso equivale ao que você tirava antes?
R - Não, às vezes não. Quer dizer, não dá porque cá na rua o valor do material está muito barato. Baratíssimo, mesmo. Tem material que chega a ser… É uma vergonha. Tem lugares que compram material até de vinte centavos. Vinte centavos hoje não dá nem uma bala. Isso...
Já a gente organizado consegue vender o material por um preço melhor, e não é o ideal ainda. A gente também agrega esse preço, esse valor mensal de 270, 300 reais, porque o nosso material é de primeira qualidade. É um material que vem limpo - por exemplo, papelão vem limpo, vem seco. Porque tem a questão com o papelão molhado: eles descontam, pagam menos.
Tem o beneficiamento: vai enfardado, o material vai pronto pra indústria. Eles não têm custo nenhum com o material que sai de uma cooperativa, que já vai pronto pra reciclagem. Então a gente consegue um valor a mais, alguns centavos a mais. Mas ainda é muito pouco.
P/1 - Tem que mudar a negociação com a indústria?
R - Com a indústria. A gente tem que buscar a valorização do preço, a valorização do material. Porque a gente, valorizando esse material… O material reciclável é uma demanda de produtos que hoje está inserida no mercado na economia brasileira.
Hoje o Brasil é campeão das latinhas principalmente, o alumínio. Da mesma forma tem o mercado de boi, de carne de boi. Eles valorizam o preço da arroba do boi. Tem o mercado do cacau, tem o mercado do café. E por que não ter o mercado do material reciclável, se é uma coisa que beneficia não só a categoria de profissionais, mas beneficia a sociedade como um todo?
As indústrias também lucram. Trabalhando com material reciclável, elas diminuem o custo de energia quase [em] 100%. Então por que não pagar um preço melhor, mais justo? Até pra valorizar e fortalecer a categoria dos profissionais que hoje estão aí.
P/1 - Mas como vocês estão fazendo? Vocês já estão discutindo isso no movimento? Como é?
R - Já tem algumas discussões sobre isso, mas ainda está uma coisa muito no princípio. Tem que se buscar pesquisar mais, ver de que maneira a gente pode fazer isso. Buscar parceiros, buscar o apoio também do governo, buscar o apoio também... Campanhas de divulgação do material reciclável, do que é o material. Tem que ir por esse caminho pra poder até chegar a valorizá-lo. Sendo mais valorizado, as pessoas consumindo mais o material reciclável, logicamente, vai ter um preço melhor. Não desmerecendo, também, os nossos produtos in natura porque são uma referência, mas a gente… Eu, como catadora, que trabalha com material reciclável, tenho que valorizar o material reciclável. É muito boa a economia.
P/1 - Nesse trabalho de movimento organizado tem uma diferença entre ser mulher, ser homem? Tem mais homem, tem mais mulher?
R - Nas lideranças tem mais homem, mas está se buscando o espaço da mulher, porque a mulher, ela sempre… Ela tem um papel de liderança e um papel, digamos assim, de mediadora. Em determinadas situações, a mulher se sai melhor do que o homem, porque ela tem aquele jeito, digamos, o jeito feminino de conduzir as coisas. Até se tiver uma dúvida, [se] criar uma divergência, diferença de ponto de vista. Tendo uma mulher, ela sabe contornar aquela situação; ela sabe acalmar, sabe minimizar aquilo. E homem não, homem não tem muito jeito pra essas coisas. Mas já está se pensando que o movimento precisa de mulheres. É uma dificuldade. Ser mulher no movimento dos catadores, trabalhar como liderança, conciliar o trabalho da base, que muitas vezes está… As bases são as cooperativas, o lugar que a gente trabalha. Conciliar ser mãe - a exemplo da minha pessoa, tem várias mães e chefes de família ao mesmo tempo, mãe e pai, que cuidam de tudo dentro de casa. Fica difícil, mas eu procuro dividir as coisas. Então eu...
P/1 - Como você organiza isso?
R - Eu organizo isso. Quando eu estou em casa, pra organizar as coisas de dentro de casa, eu esqueço - esqueço, não, mas eu separo a cooperativa. Quando eu estou no movimento, movimento.
A gente, mulher, todas no movimento, às vezes somos incompreendidas pelo... Às vezes a gente tem que se afastar muito da nossa base, da nossa cooperativa, aí [isso] fica incompreendido pelos nossos companheiros. Pensam que [a gente] está abandonando, mas não é bem isso. A gente está no movimento, está numa viagem trabalhando, mas buscando benefício e parceria. Falando, divulgando pra trazer mais benefício pra nós, que estamos… Todos, né? Porque o grupo todo não pode sair pra buscar, tem que ter um pra ir. E às vezes isso não é bem entendido na base. Sempre tem essas divergências.
E também ser mãe, conciliar. Você tem uma reunião da diretoria, uma reunião de assembleia da cooperativa; nesse mesmo momento tem uma reunião de escola de seu filho ou tem uma reunião de um projeto social que seu filho participa. Como conciliar isso? Como fazer? Às vezes seu filho [diz]: “Ah, mãe, a senhora não vai.” Às vezes tem uma festinha de fim de ano. E é ruim pra criança, adolescência: “A mãe do meu amigo, do meu colega está lá. A minha nunca pode estar, porque está trabalhando.” Ninguém sabe o que se passa na cabeça da criança. Fica meio embolado, mas dá tudo certo no final. A gente tem que [ir] um pouquinho por aqui, um pouquinho por ali e aí vai.
P/1 - Os seus meninos hoje estão com que idade?
R - O caçula está com doze anos. Tem o Railson, com quinze anos. A Ivana vai fazer dezoito agora, no dia oito de janeiro. Débora tem dezenove, [vai] fazer vinte. E a Bárbara vai fazer 24 em fevereiro.
P/1 - Em relação a eles, ao jeito de você lidar com eles, organizar a vida deles, mudou alguma coisa na sua vida?
R - Mudou. As meninas, porque… Ivana, Débora, Bárbara praticamente são adultas, entendem mais. O pequeno, às vezes, se queixa. O Railson é um pouco... Ele se queixa, às vezes: “Se eu fosse mainha eu largava esse negócio. Mainha agora só vive viajando, não fica mais em casa.” Aí ele diz: “Se eu fosse do tamanho de Dé” - Débora tem dezenove - “[Se] eu tivesse trabalhando mesmo, a senhora não ia trabalhar mais, em lugar nenhum.” Acho que isso é uma queixa dele, ele sente falta.
Agora mesmo, ele: “Vai viajar, mainha? Que dia a senhora vem?” “Eu volto domingo, estou em casa.” “Ah, está bom. Vá com Deus viu, mainha, não esquece da gente não, viu?” Como se eu fosse esquecer deles [em] algum momento. Pede pra eu tomar cuidado. A Ivana mesmo pede: “Mainha, não sai de noite sozinha, viu? Não fica andando assim pela rua, não. Cuidado com assalto, com sequestro”, não sei o quê. Ficam tudo com a cabeça imaginando um bocado de coisa. Aí digo: “Tenham fé em Deus que eu vou e volto, com Deus e Nossa Senhora.”
P/1 - E qual é o que fala que vai trabalhar pra te sustentar?
R - Ele tem quinze anos. Ele é… No ano passado me deu um trabalho, abandonou a escola no meio do ano e não quis trabalhar.
P/1 - Ele está em que série?
R - Está na sétima série, mas esse ano ele diz que vai estudar. Ele já falou: “Olhe, espero que a senhora vá me matricular. Tomara que a senhora não esteja viajando pra senhora ir me matricular, ir ao colégio comigo.” Eu digo: “Não se preocupe não, que eu vou.”
P/1 - E eles não podem trabalhar na cooperativa?
R - Podem, mas a demanda é tanta... Eu tenho uma ideia assim: é um projeto social, tem que… Se pudesse colocar na cooperativa, seria muito bom, mas se o projeto é de inclusão social, se eu sei que ali na rua… Por exemplo, ali na minha região tem cem, 150, duzentos catadores. Na minha concepção, pelo que aprendi, pelo que a Marília passou pra mim, a ideia é a gente contemplar o maior número de famílias. Se eu colocar um filho meu, eu estou tirando, digamos, o pão da boca de outra família.
Na minha concepção, eu acho que a gente podia, nesse cadastro socioeconômico, fazer uma seleção e de cada família se tira um - o pai, ou a mãe, ou o filho mais velho. Acho que aí sim seria inclusão social. Seria justo, eu acho que é uma questão de justiça.
Por exemplo, a gente, que está trabalhando nesse tipo de organização - por que eu vou colocar a minha filha? Eu já estou, então eu vou colocar a minha filha? Sendo que a minha vizinha tem sete, oito pessoas em casa, estão todos desempregados. Não é justo. Se a gente seguir o protagonismo do projeto, que o objetivo da cooperativa é a inclusão social, é a geração de emprego e renda. Eu penso assim. Eu tento passar isso também pros meus companheiros e a maioria lá, o Seu Cícero, o pessoal do Conselho Fiscal, também pensa assim. Sempre tem um que quer botar o irmão, o sobrinho, quer botar o filho. Mas nada como a gente ter um bom diálogo e explicar que a ideia é a ampliação da geração de emprego e renda.
Na maioria dos projetos sociais de assistencialismo, de geração de renda, não tem um critério? É por família, é contemplar o maior número de famílias. Acho que a gente, nessa linha dos catadores, tem que ser... Eu penso em ter, amanhã ou depois, no futuro, os parceiros; a gente se organizar mais ainda, se estruturar mais e ter um projeto, um protagonismo pros jovens, uma capacitação [em] informática e dar uma capacitação em padaria, [pra] que ela possa se formar e possa fazer uma cooperativa de doces, de pães, ou... Sempre vai ter várias opções.
Na cooperativa, eu tenho a impressão que o melhor caminho seria isso, a gente contribuir mais, fazer, abrir um leque. E um leque sem preconceito de religião, de sexualidade, sem preconceito. Às vezes a pessoa...
Outro dia eu estava pensando: um ex-presidiário, às vezes vítima do sistema, da nossa sociedade, ele cai no erro. Ele pára numa casa de detenção, passa cinco, seis, sete, oito anos por lá, ninguém sabe quanto, quando ele sai. Ele não tem opção, as pessoas não dão oportunidade. Eu nunca convivi com ninguém assim, mas eu fico pesquisando, fico lendo e vejo muitos relatos. Aquela pessoa que saiu dali não tem opção, ninguém quer dar um emprego pra ele. Eu acho que, no futuro, quem sabe, aquela pessoa saindo, a gente fazendo um trabalho de capacitação, de orientação diferenciada, um apoio psicológico… [Talvez] a gente pudesse também organizar essas pessoas que quisessem trabalhar, sobreviver dignamente. Se ele sai dali, ele não tem outra opção. Ele vai fazer o que? Ele vai voltar ao mesmo erro do passado. Eu, se eu puder... Tudo isso, eu tenho essas ideias em mente.
P/1 - Como você pensa, como a cooperativa lida com o problema de alcoolismo? É um problema pro catador, o alcoolismo?
R - O alcoolismo é. Não tanto lá na nossa cooperativa, porque o pessoal… As pessoas bebem sua cervejinha, mas é socialmente, [de] fim de semana. Nós não temos casos lá de pessoas viciadas que chegam a prejudicar seu trabalho por causa do álcool, mas na rua eu vejo muitas pessoas com esse problema. No lixão tinha muito, tanto alcoolismo como outras drogas, também. Eu acho que o ideal seria se encaminhar… Porque tem órgãos, entidades que trabalham com isso; se fazer a inclusão dele na sociedade e, paralelo a isso, se fazer a capacitação dele na cooperativa. E também incluí-lo pra fazer um tratamento porque no fundo, hoje em dia, alcoolismo e drogas são tratado como... Doença, né? A pessoa é doente. Já tem várias entidades capacitadas, vários profissionais que fazem esse trabalho e vem dando certo.
Eu acho que o caminho seria esse. Não desprezar essa pessoa porque ela é alcoólatra, mas sim tentar fazer um trabalho com ela, pra ela melhorar, se curar dessa doença.
P/1 - A relação da sua cooperativa com as outras cooperativas, como vocês se relacionam?
R - Lá nós temos poucas cooperativas organizadas, mas essas poucas que tem, quando a gente se encontra, às vezes [em] algum encontro, algum seminário, graças a Deus a relação é muito boa. E eu, no trabalho do movimento de organização, quando encontro com pessoas de outra cooperativa, eu procuro sempre passar aquela imagem que a gente não deve ser inimigo. A gente não deve ser concorrente. No capitalismo, no [mundo] empresarial existe aquela concorrência, aquela briga. Enquanto cooperativas, temos que nos unir pra valorizar o material, porque todos nós sabemos que o mercado é amplo.
Não tem por que a gente brigar, ter concorrência por ponto, por material porque é uma coisa que a cada dia que passa está crescendo mais. Hoje está melhorando o padrão de vida das pessoas, elas estão ganhando um pouco mais e quanto mais elas ganham, mais elas gastam e desperdiçam muito mais. Então, eu nesse… No nosso ramo de catadores eu sempre procuro passar uma imagem que a gente não deve existir concorrência. Deve sim existir uma união, um diálogo e, juntos, a gente valorizar mais os materiais reciclados, porque a demanda de material dá pra todos. Por mais cooperativa que se forme, por mais catador que você organize, nós não vamos jamais poder fazer 100% da coleta dos materiais recicláveis, porque isso não... É muito material, a demanda é muita.
Acho isso, eu gosto de ressaltar isso: é importante, a gente não deve ser competitivo. A gente tem que ter uma competição, sim, bastante; é um desafio, com os atravessadores, com esse pessoal que está explorando o catador. Mas nós, enquanto organizados, cooperativa pra cooperativa, a gente tem mais é que se unir.
P/1 - Por que o atravessador compra muito barato...
R - Ele compra barato, ele explora. Ele compra barato e vende três vezes mais o material. Ele não trabalha visando a conscientização, visando a preservação do meio ambiente, visando a melhoria... Ele trabalha no sentido do lucro, do capitalismo mesmo, ele quer ganhar mais e mais.
Ele não se importa [com] quem está lá na rua catando, na base, na origem. E se ele puder, em vez de ele… Chega o catador com o material, com o fardo dele de papelão, a sacolinha do PET, a latinha; em vez dele pagar pra ele chegar ali, adiante, [e] comprar um pão, se ele puder trocar por um litro de caninha, de pinga, ele troca, porque pra ele é lucro. Isso acontece muito. É aí que entra essa questão do alcoolismo. Então, as pessoas...
É isso. Ele não quer que a pessoa se valorize, ele não quer levantar a autoestima daquele cidadão. Ele não quer que ele seja cidadão porque sabe que ele não vai catar. Mas ele sabe que ele tem aquele material, que ele [vai comprar] de graça e que vai ganhar três, quatro vezes mais. Não é à toa que a maioria dos sucateiros têm carro, têm prédio, têm boas construções, bastante dinheiro no bolso.
Eu acho que o nosso desafio é organizar essas pessoas pra tirar da mão dos atravessadores. Eles se unem, fazem uma rede. Eles trabalham em rede de mercado, que tem certos bairros lá, que você vai ali: “Quanto é o quilo do PET?” “É vinte [reais].” Você vai ali: “é vinte”, “é vinte”, aí fecha o cerco. [Com] a latinha, a mesma coisa. Eles têm essa união, pra o catador não ter pra onde correr e não ter como se valorizar, nem pegar um preço a mais no material. É um desafio pra todos nós, catadores. Tanto que as bases do movimento, as cooperativas, associações... Isso é agora, 2005, 2006. A gente tem que trabalhar em cima disso. Tirar mesmo essas pessoas da mão desses... Chega a ser até… Digamos, é um crime.
E principalmente crianças também, que catam. Tem crianças que passam o dia catando junto do pai ou da mãe. Fazem um saquinho de PET, um saquinho de latinha [e] eles pegam um pipocão. Não sei se aqui em São Paulo tem; lá tem muito, umas pipocas salgadinhas. Os meus meninos gostam muito, é desse tamanho assim. Uma pipoca daquela no varejo são cinquenta centavos, mas quando se compra em grosso são trinta e poucos centavos. Então vem uma criança com o material, passa pra ele, ele dá um pipocão e a criança sai alegre. E ali ele [vai] separando aquele material. Um pipocão ele compra por trinta e poucos centavos; naquele material que ele tem ali, ele vai ganhar dois ou três reais. Veja a diferença. É isso que a gente… Que não pode existir.
P/1 - E essas crianças não podem chegar na cooperativa e levar esses produtos?
R - Pra gente comprar?
P/1 - É.
R - Aí a gente teria que estar fazendo o papel do... A ideia não é essa. A ideia da criança [é que] ela vá pra escola e que vá pra uma jornada ampliada.
P/1 - Mas, por exemplo, um catador que não é cooperado. Ele achou vocês; ele pode chegar lá com o material e vender pra vocês ou ele tem que ser cooperado?
R - Na nossa cooperativa, no CAEC, ainda não trabalhamos assim. Mas já existe, até aqui mesmo em São Paulo, algumas cooperativas, que às vezes até as pessoas confundem [que] estão fazendo o papel do atravessador. Em Pernambuco também tem, mas não é bem assim. É uma forma de ajudar o catador. É um caminho, só que por enquanto a gente não tem condições, não temos estrutura pra fazer isso.
À medida que ele está trazendo o material, passando pra cooperativa, ele [vai] vendo aquele tipo de organização. Quem sabe, ao longo de um prazo, de um tempo, ele queira se organizar, queira fazer parte daquele corpo, daquela cooperativa. É um caminho, só que lá a gente ainda não tem estrutura pra trabalhar isso. Tem que se estudar mesmo, pra depois não passar a imagem… [O] papel do atravessador. Tem que ser uma coisa muito bem trabalhada: o lado social, o lado psicológico daquela pessoa que vem trazer o material. Tem que fazer um estudo, ainda não temos essa estrutura.
P/1 - Joselita, qual o seu sonho pra frente, o futuro?
R - O futuro é eu trabalhar na organização da cooperativa, dos catadores; as pessoas estarem…. Serem uma nova categoria de profissionais. Melhorar a renda, aos poucos. Eu não sou uma pessoa ambiciosa em dizer: “Eu não quero, não.” O que eu quero é ter uma renda digna, que a gente possa viver com tranquilidade. Que possa ter uma sobra pra fazer uma poupança, pra quando chegar a velhice, uma emergência, ter aquele dinheirinho num canto. E organizar as pessoas, trazer essas pessoas, porque quanto mais a gente for conseguindo trazer esses nossos companheiros que estão lá na rua, mais a categoria vai se fortalecendo, vai crescendo a coisa e vai valorizando. Aí que eu chego à questão: quem sabe a gente vai valorizando mais o ganho. Só assim a gente vai conseguir.
P/1 - E pros seus meninos, o que você quer no futuro deles?
R - Ah, eu quero como mãe é que eles... É o que eu passo pra eles, é a ética. Que tem que se trabalhar, que eles estudem, que quem sabe Deus me ajude, ajude a eles, que a gente possa bancar uma faculdade, porque hoje em dia educação no Brasil está muito difícil. As faculdades só são pros filhos dos ricos. Mesmo que eles não possam concluir uma faculdade, que eles possam fazer algum curso profissional. E que possam ser felizes na vida.
Eu passo isso pra eles: a responsabilidade, a ética, sem preconceito, porque hoje a gente tem que ter preconceito na vida, tratar bem. E acima de tudo ter humildade, porque aí a gente consegue vencer na vida. Eu estou vencendo, cada um novo dia é uma batalha e nós estamos vencendo. E assim eles também. E passo sempre o princípio: se a gente quer ter alguma coisa, a gente tem que lutar. A gente tem que batalhar sem prejudicar os outros, a gente tem que... E todos eles já têm aquela ideia: se trabalhar, eu tenho; se não trabalhar, eu não tenho. Já têm aquela ideia, porque é pra não fugir. Às vezes, quando a gente dá muita coisa à criança, eles se acostumam. Um dia que ele não tem, como é? Aí ele vai querer pegar o que é dos outros.
Eu divido as tarefas, cada um tem sua ocupação. Até o Silmário tem a ocupação dele. Qual é a ocupação dele? De manhã, ele acorda primeiro porque estuda de manhã. Ele vai comprar o pão. Quando ele chega, já brincou… De tardezinha, antes de ele tomar banho, [depois] que limpou tudo, limpou cozinha, está chegando a tardinha, ele vai jogar o lixo fora, separa o material. A gente faz a coleta. Às vezes, eu levo pra cooperativa, umas duas vezes eu levei. E às vezes não dá nem pra levar, porque eles mesmo pegam e trocam por merenda, lá na rua mesmo, pertinho, coisa de menino mesmo. Faz e já tem essa consciência.
A Ivana cuida da casa, ajeita as coisas, administra, paga uma coisa e outra. A Débora me ajuda a fazer faxina [no] dia de sábado. Bárbara já cozinha e por aí vai, sem preconceito e a gente unido. Eu não tenho problema, graças a Deus, com meus filhos. Não ando reclamando, não ando brigando. Eles não brigam também. O único problemático, um pouquinho, é Railson, mas no final, ele se entende com Ivana, com Deia. E também a fase da adolescência, de quatorze, quinze anos.
P/1 - Ele o que? Ele briga contigo?
R - Não, comigo não. Comigo ele me obedece, eu o chamo. Ele às vezes briga mais [com] Silmário, porque já está com outra cabeça, quinze anos. E Silmário, com doze, é meio brincalhão, num... Criança, mesmo. Aí: “Todo bobo esse cara, quero ver quando ele vai crescer.” Aí começa aquela picuinha de irmão com irmão. Um: “Você é feio, eu sou bonito”, aquela coisa. Eu tento: “Para com isso, vocês são irmãos.” “Mas ele é bobo, é abestalhado.” Aí, começa. Também, falou ali, parou.
Não tenho mais problemas, não. E as meninas, graças a Deus, não brigam. São… Se unem, uma veste a roupa das outras. Dividem as coisas. Débora está fazendo um estágio, está tomando o dia todo. Às vezes tem um dever que a Ivana… Ela sabe…. Ela é [do] primeiro ano, está passando pro segundo, mas é muito inteligente. Débora [diz]: “Faça o meu dever.” Aí ela: “Você vai me dar o quê?” “Faça o seu dever que eu trago um negócio pra você.” “Só vou fazer se você se você trazer isso pra mim.” E ali vão se controlando, se organizando elas mesmas.
Ivana olha a Mércia, porque a Barbinha, às vezes, vai trabalhar na diária. Ivana, de manhã, penteia o cabelo de Mércia, vai pro colégio. Barbinha também, quando recebe dinheiro… Essa semana passada ela deu uma blusa a ela de presente: “Ó, mainha, o que eu comprei pra Ivana. Dei a ela porque ela já olha as meninas, [quis] dar um agradozinho a ela.” Eu digo: “É.” E por aí vai. A gente vai vivendo, né?
Graças a Deus, eu trabalho assim. Todo mundo vê lá. Às vezes, a gente conta uma história, fala assim, aí pensam que não é verdade. Mas se for lá na rua, vê que é assim mesmo. E a Ivana não sai de casa. Ou ela não vai pra capoeira, ou ela vai lá pro teatro. Se for possível, ela termina as coisas dela, ou assiste televisão, ou está fazendo dever, está escrevendo. É muito difícil, ela não vai na casa de vizinho nenhum.
A Débora sai muito, às vezes, por conta do negócio. Ela faz esse negócio de dança, é convidada pra dançar em algum lugar, lá mesmo. Gosta, às vezes, de ir pra um show. Ela já tem namorado, a Débora, aí eles dois vão junto. Mas a Ivana não, é dentro de casa mesmo. Quando sai, às vezes vai à praia. Aí vai, leva Silmário e leva Railson, e às vezes leva Mércia. E aí eu vou vivendo. Agora a gente está programando a ceia de Natal. [A gente] vai fazer uma feijoada.
P/1 - Uma feijoada?
R - É a ceia de Natal da gente, fazer uma feijoada pra gente passar o Natal. E no dia 25, ir na praia todo mundo, tomar um banho de mar e acabou. Quando der meio-dia, vem pra casa, almoça de novo, come e descansa pra dia 26. É um novo dia.
Vai chegar o final do ano e aí a gente vai… Novas perspectivas, esperança, o futuro batendo na porta. Novo ano está nascendo e é isso, é esperança que as coisas vão melhorar. Se a gente não tiver pensamento positivo, o tempo passa e a gente fica ali, sempre naquela, mal-humorada, chateada, mas... Eu não sou assim, não. Eu sempre tenho pensamento positivo, que as coisas vão melhorar e a gente vai conseguir chegar lá.
Cada ano que passa é uma batalha. E aí, agradecer a Deus pelo ano que passou e pedir a ele força e coragem pra vencer o próximo ano. Não só eu, mas todo mundo que tiver fé em Deus, porque o homem não vive sem a fé e sem Deus. Eu tenho muita fé que a gente vai vencer.
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