Projeto Centro de Memória das Comunidades Quilombolas de Paracatu
Entrevista de Valdete de Fátima Lopes dos Reis Brandão
Entrevistada por Nataniel Torres (P/1)
Paracatu, 27/11/2021
PCSH_HV1179
P/1 - Seu nome completo, data de nascimento e onde a senhora nasceu?
R - Eu me chamo Valdete de Fátima Lopes dos Reis Brandão, eu nasci aqui em Paracatu e sou da comunidade Quilombola de São Domingos. Os meus pais chamam, Aureliano Lopes dos Reis e a minha mãe, já falecida, Luiza Lopes dos Reis. A minha mãe faleceu com 101 anos. Os meus irmãos foram 10, pouco a pouco foram morrendo e hoje tem só 3. E eu, entre os meus irmãos, sou a caçula, sou a rapa de tacho do meu papai e da minha mamãe.
P/1 - A senhora contou que teve um tratamento um pouco diferente por ser a caçula, conta isso para a gente, por favor?
R - Eu noto que meus pais, todos os pais não tem distinção de filho, mas para mim, eu senti meus pais mais carinhosos comigo, mais atenciosos, como diz, passaram a mão mais na minha cabeça.
P/1 - E como é que seus irmãos lidavam com isso?
R - Eles tinham ciúmes, tinham mágoa de mim, porque minha mãe era o meu xodó, eu era o xodozinho dela. E minha mãe fazia chapéu de palha daqueles coqueiros que está lá e nos ensinou a trançar. E esse chapéu era vendido aqui na cidade e ela me levava com ela, subindo de pé o morro, e quando ela vendia o chapéu, ela me sentava num lugarzinho, num barzinho e me dava o que eu quisesse, tipo assim, se eu quisesse suco, seu eu quisesse refrigerante, o que eu quisesse. E eu fazia a festa.
P/1 - Seus irmãos trabalhavam com o que dona Val, nessa época?
R - Os meus irmãos sempre mais velhos. Os meus irmãos sempre trabalharam fazendo tijolos, os meus irmãos foram mais sofridos do que eu, eu tive mais mordomia. Os meus irmãos, levavam comida na cabeça, as gamela de comida que os meus pais faziam a comida. Trabalhava plantando feijão, arroz, mandioca, então eles tinham as pessoas para ajudar eles...
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Entrevista de Valdete de Fátima Lopes dos Reis Brandão
Entrevistada por Nataniel Torres (P/1)
Paracatu, 27/11/2021
PCSH_HV1179
P/1 - Seu nome completo, data de nascimento e onde a senhora nasceu?
R - Eu me chamo Valdete de Fátima Lopes dos Reis Brandão, eu nasci aqui em Paracatu e sou da comunidade Quilombola de São Domingos. Os meus pais chamam, Aureliano Lopes dos Reis e a minha mãe, já falecida, Luiza Lopes dos Reis. A minha mãe faleceu com 101 anos. Os meus irmãos foram 10, pouco a pouco foram morrendo e hoje tem só 3. E eu, entre os meus irmãos, sou a caçula, sou a rapa de tacho do meu papai e da minha mamãe.
P/1 - A senhora contou que teve um tratamento um pouco diferente por ser a caçula, conta isso para a gente, por favor?
R - Eu noto que meus pais, todos os pais não tem distinção de filho, mas para mim, eu senti meus pais mais carinhosos comigo, mais atenciosos, como diz, passaram a mão mais na minha cabeça.
P/1 - E como é que seus irmãos lidavam com isso?
R - Eles tinham ciúmes, tinham mágoa de mim, porque minha mãe era o meu xodó, eu era o xodozinho dela. E minha mãe fazia chapéu de palha daqueles coqueiros que está lá e nos ensinou a trançar. E esse chapéu era vendido aqui na cidade e ela me levava com ela, subindo de pé o morro, e quando ela vendia o chapéu, ela me sentava num lugarzinho, num barzinho e me dava o que eu quisesse, tipo assim, se eu quisesse suco, seu eu quisesse refrigerante, o que eu quisesse. E eu fazia a festa.
P/1 - Seus irmãos trabalhavam com o que dona Val, nessa época?
R - Os meus irmãos sempre mais velhos. Os meus irmãos sempre trabalharam fazendo tijolos, os meus irmãos foram mais sofridos do que eu, eu tive mais mordomia. Os meus irmãos, levavam comida na cabeça, as gamela de comida que os meus pais faziam a comida. Trabalhava plantando feijão, arroz, mandioca, então eles tinham as pessoas para ajudar eles capinar o mato nessas lavouras. E aí, meus irmãos, além de ajudarem a capinar, eles tinham que levar essa comida na hora certa. Minha mãe levantava 5h da manhã para fazer a comida cedo - quem mora em roça come cedo, 9h, 10h, já está comendo - e os meus irmãos coitadinhos, ia longe levar essa comida para eles, com aquela gamela quente na cabeça, fazia uma rudia e punha na cabeça. E eu não, nada disso aconteceu comigo.
P/1 - Então por isso a vida deles era um pouquinho mais sacrificada que a sua?
R - Era mais difícil para eles. E muita das vezes, eles também nem tiveram uma escola adequada, por causa de que, porque eles ajudava a criar nós. Eu e minha irmã que somos as caçulas. Tinha que trabalhar para ajudar o meu pai a nos criar, entendeu? Então eu não fui aquela pessoa que tive que trabalhar para criar os outros, não, eles que criaram, ajudou o meu pai a me criar. Então por isso que a minha vida era mais tranquila. E a minha mãe, ela é prima do meu pai, e o que aconteceu, eu tinha um problema nas pernas, por causa de familiar, o sangue.
P/1 - Mas já nasceu com esse problema?
R - Nasci com o problema. Minhas pernas era torta, aos 3 anos. Mas os médicos falam que é genético…
P/1 - É um problema sanguíneo?
R - Genético. Então com isso, com essa doença minha, que eu tinha as pernas tortas, aí a minha mãe passava mais a mão na minha cabeça.
P/1 - E o pai, ele trabalhava com o que na época?
R - O pai fazendo tijolo, fazendo adobo, plantava roça. E toda vida foi tirando ouro também, costurando e vendendo chapéu na cidade. E buscava lenha, e no buscar lenha para fazer comida, os meus irmãos buscava o fecho com as lenhas mais pesadas, e eu não, eu buscava lenha com os gravetos. Por que? Porque era mais leve. Menina, um dia se dei mal, minha mãe foi para a cidade vender chapéu e falou com a minha irmã Maria José, você não leva Valdete para cachoeira, hoje é a da Kinross, que nos buscava lenha lá - Não tinha gás, o nosso sustento para cozinhar, era buscando lenha lá na cachoeira - Minha irmã teimou com mamãe e me levou. E lá é assim, cada buracão lá embaixo e cheio de meloso. E tinha uma galha seca e que dava lenha. E eu peguei, minha irmã pegou, “ali um pau, ali um pau seco”. E eu toda entusiasmada para pegar esse pau, fui lá, quando eu fui lá, blaf! cai dentro do buraco, fiquei lá, que a estrada é assim, o buracão da cachoeira está lá. Aí eu gritava, “Maria José, Maria José”. “O que foi Valdete?” Aí o que eles fizeram, uma escada com os meus irmãos, um foi subindo no outro, e eu fui indo, fui indo. Um subindo no outro aqui, no ombro, até eu conseguir sair. Mas quando chegou lá em casa, mamãe ficou sabendo que eu tinha caído nesse buraco, mas a minha irmã apanhou. Antigamente o povo batia, não em mim.
P/1 - Você não apanhou, mas a irmã apanhou porque deixou você cair?
R - Minha irmã apanhou. Antigamente era uma surra, os mais velhos batia nos meninos para valer mesmo, mas eu não apanhava. As vezes eu fazia as coisas erradas, que toda criança faz, mamãe chamava atenção, mamãe me punha de castigo, mas ela não batia em mim. Eu sou contra apanhar, eu não gosto de ver ninguém apanhando, até hoje eu sou a favor do castigo, e do castigo que você disciplina. Aquilo dói, dói na alma, você quer aquilo, mas você não pode fazer, ai você, “por que?”. Porque você tem obediência, aí você quer continuar fazendo e não pode fazer. Então o castigo pra mim que bate no corpo e bate na minha alma.
P/1 - Seu pai era bravo também?
R - Meu pai era bravo também, batia nos meus irmãos pisando no pescoço. E como eles não tiveram muita escola, eles estudaram, mas não muito. Mas porque não muito? A gente aprendeu a contar dinheiro, porque o meu irmão Sérgio recebia o dinheiro dele, e ele dava a nós o dinheiro todinho, todinho. Para a gente contar. A gente aprendeu a contar com a liberdade que ele tinha com o dinheiro dele para dar para nós. Então hoje a gente sabe sobre dinheiro, desde a infância. Meu irmão que dava todo pagamento dele para nós contar. Então nós já sabia dinheiro bem antes da escola.
P/1 - Conta um pouquinho para a gente a história da comunidade?
R - Eu nunca estudei lá, eu estudei no Afonso Arino. Afonso Arino é aqui em Paracatu. A escola mais antiga da cidade. Tinha escola, mas os meus irmãos não gostava que eu estudasse lá, dizia que a escola lá era atrasada, eles tinham um preconceito de escola rural, porque a escola lá era multisseriada, primeiro com segundo, segundo com terceiro, multisseriada. E meus irmãos não gostava que nós estudássemos nessa escola. Então a preferência era Afonso Arino, até hoje é. Aí o meu pai mais meus irmãos, fazia um embornal de calça, de perna de calça jeans para a gente colocar os cadernos, chama embornal jeans, de calça jeans, a gente punha os cadernos, e nós ia para a escola. De lá de onde eu morava, que hoje é a casa museu, toda vida nós moramos lá, e nós vínhamos para a escola. Quando chegava aqui no Afonso Arino, era uma poeira, que nós tinha que passar no alto do açude. A gente chamava o alto do açude de estradão, mas era muita poeira. Ai minha mãe dava um paninho para a gente passar, que a gente chegava na escola com as canelas sujas de terra, era uma gozação, esses meninos da cidade aqui, “malhava” a gente. Mamãe ensinou, trazia um paninho molhado, quando nós passávamos, do asfalto para cá, passava o pano. Nas pernas, no pé, para não ter poeira, para não chamar assim: perna de poeira, perna de poeira. E os meus colegas me chamavam de perna de Alicate, “perna de alicate, perna de alicate”. E eu ficava numa tristeza, chorando, portanto hoje até é bullying, né? Então a diferença de hoje, que o deficiente tem, com antigamente. Hoje o deficiente pode tudo e antigamente não, era tudo escondido, os deficientes era tudo escondido. Não tinha liberdade. E hoje não, graças a Deus nós somos libertos e temos até direitos, com a graça de Deus. Aí a minha infância foi muito boa, porque a gente tinha muitas brincadeiras, a gente brincava roda, nós brincávamos de comadre, “o cumadinha”. Nós tinhamos as bonecas, as bonecas que nós tinha, era de pano. Nós fazia os batizados das bonecas, aí tinha as comadres, os compadres, o padre. Nós inventava tudo, nós brincava dentro da bananeira, cada pé de banana era um casinha. Aí nós tinha as comadres, “o comadre fulana”. Mas de boneca, brincadeira de boneca. Era uma beleza, nós fazia cozinhadinho também, nas trempe, no chão, aí nos servia, a gente tinha as cuias. Cuia é uma cabaça, serra, e a gente cozinhava, dava as comidas na cuia. Mas só que tinha prato, só que o prato era esmaltado, não tinha prato de vidro. E tudo que eu queria, lá dentro da vasilha da minha mãe, minha mãe me dava, concha, colher.
P/1 - Para você brincar?
R - Brincar com as minhas coisas. E as minhas coleguinhas já tinham também a caixinha delas, de brincadeiras. Elas já tinham as panelinhas delas, elas tinham os pratos delas, tinha tudo. E eu não, eu sabendo que minha mãe me dava tudo, eu ia lá, vapo.
P/1 - Aí você levava e juntava com as meninas e vocês montavam isso para brincar.
R - Brincava. Aí nós brincava de roda, (canta) “atirei o pau no gato to to, mas o gato to to não morreu reu reu, dona chica ca ca admirou c c co o berro, berro que o gato deu, miau”. “E do tango, tango morena e do carrapicho morena, vou pegar o Natan morena lá no latão de lixo”. E várias outras brincadeiras de roda, tinha cobra cega, era muito bom. Fora os poços para nadar, tinha o poço da mulher e o poço dos homens.
P/1 - Tinha isso, era diferenciado?
R - Tinha. O poço dos homens e o poço das mulheres. As mulheres não podia ir no poço dos homens e os homens não podia ir no poço das mulheres. Porque era um preconceito, que às vezes os homens ficavam olhando as mulheres tomar banho de short, eles ficavam tudo de olho. Aí os homens não podiam beirar o poço das meninas e nem as meninas beirar o poço dos meninos.
P/1 - E eles respeitavam? Dava certo?
R - Respeitava. E se caso um menino chegasse na beirada do poço das meninas, nós falava assim: ó mamãe, Natan foi lá nos olhar. Mamãe falava com a sua mãe assim: ó comadre Maria, as meninas estavam nadando, Natan foi lá e olhou. Você apanhava.
P/1 - Tinha uma cultura assim, os mais velhos batiam nas crianças?
R - Tinha sim. Só que muita das vezes, o povo antigamente, na minha época, era muito obediente, ouvia mais, prestava mais atenção. Eu também fiz minha catequese aqui na matriz de Santo Antônio, a igreja em baixo, o porão, eu estudava lá em cima. Aí fiz minha catequese, fiz minha primeira comunhão. Quem fez minha primeira comunhão foi um padre muito amado, que todo mundo gostava dele, Frei Pedro de Caixeta. Frei Pedro é um padre bonzinho, trabalhou mesmo com a missão e não tem muito tempo que ele morreu, todo mundo conhecia ele. Ele falava muito manso. Eu quase não trabalhei na casa dos outros, por que? Porque…
P/1 - Mas você teve algumas histórias, mas menos.
R - Meus irmãos trabalhavam mais para ajudar minha mãe. A minha irmã Bené, saiu cedo para trabalhar também. E ela trabalhou muito em Brasília, forante as lavouras, ela sofreu demais, para ajudar mamãe, para nos criar. Era os mais velhos ajudando os pais a cuidar dos mais novos. E minha irmã trabalhava em Brasília, dava para nós muitas roupas, trazia muita roupa que ela comprava, as vezes ela ganhava que servia em nós. Quando a minha irmã Bené chegava, era uma festa. Ela fez uma festa para mim de 7 anos, uma festa de forró, de Soliu, é um tocador e tanto. Eu lembro dessa festa que minha irmã fez para mim e a noite toda dançamos. Dançava era assim: nas casas e fazia o rancho, chama torda. E essa torda era feita de palha de coqueiro e com as lamparinas, ou lampiões. Naquela época não tinha energia e todo mundo dançava de boa na festa, com maior respeito e cantava parabéns. Essa festa de 7 anos que a minha irmã fez pra mim, foi a festa.
P/1 - Ficou na lembrança essa?
R - Ficou lá na mente, eu nunca esqueço dessa festa. Minha irmã sempre foi boa, meus irmãos sempre foram unidos. Comigo, com a minha pessoa, eu tive muito carinho, eu fui muito paparicada, graças a Deus. Então eu falo que eu não sofri de forma alguma, só que às vezes eu falo, após o casamento, aí veio meu sofrimento. Mas depois eu vou contar. Aí o que aconteceu, eu estudei no Afonso Arino, fiz o primeiro, segundo, terceiro e quarto. Aí depois que eu fiz o quarto, eu fiz 5ª série do fundamental, 6ª série do fundamental, 7ª, 8ª no Virgílio de Melo Franco, que o povo hoje fala que é Polivalente, na cidade, uma escola maravilhosa que tem aqui. No correr do tempo, meus pais me levaram no médico e doutor Romero Mariano de Almeida, é um médico muito bom. Ele era médico para tudo. Já tinha hospital, já tinha médicos, então a medicina já era mais evoluída. Mamãe não ganhou eu com parteira, minha mãe me ganhou no hospital. Eu tive médicos para me olhar, eu tive enfermeiro para me olhar, porque já tinha o hospital. Os meus irmãos não, meus irmãos foi as parteiras, mas eu não. Aí mamãe levou eu no doutor Romero…
P/1 - Isso aqui em Paracatu?
R - Aqui em Paracatu. Mamãe me levou em 2 médicos, excelentes, Doutor Chiquito, que era o médico dos pobres e doutor Romero. Aí doutor Romero, como doutor Chiquito é um médico assim, mais idoso, era o clínico geral, mas ele fazia de tudo. O doutor Romero operava, ele é vivo ainda, é cirurgião, doutor Romero Mariano de Almeida. Ele era aquele médico, que todo mundo gostava. E aí minha mãe me levou. Minha mãe falou assim: essa perna dessa menina vai ter que operar, aqui em Paracatu não faz essa cirurgia. E nessa história toda, meu pai já tinha ido para Brasília. Aí meu pai já tinha ido para Brasília, chegando lá, a medicina era mais fácil. Tinha muita gente, mas hoje o mundo ficou muito cheio, tem muita gente, o povo cresceu, a medicina cresceu e as doenças cresceram também, são muitas doenças novas que tem. Mas eu fui vacinada de todas as vacinas, por causa que eu vacinei de coqueluche, catapora, tudo quanto foi vacina eu vacinei, até pouco tempo eu tinha o meu cartão de vacina. Aí o que acontece, doutor Romero falou que eu tinha que fazer uma cirurgia em Brasília. Meu pai trabalhando lá, foi na Sarah Kubitschek, fica atrás do distrital, e lá ele marcou uma consulta pra mim. Aí eu fui, só que minha mãe não podia deixar meus irmãos aqui e me levar. Ai meu pai me levou no dia da minha consulta. Chegando lá, é um hospital só de osso, um hospital ortopédico. Aí você via cada deficiência, uma pior que a outra. Aí meu pai consultou, o médico era uma médico japonês, chamava doutor Jorge, só que eu estava na fase de uns 14 anos já. Aí ele falou: essa menina vai ter que operar, não tem remédio, ela tem que fazer uma cirurgia para voltar o osso pro lugar. Só que lá não era assim, vai operar, opera amanhã. Tinha que fazer vários acompanhamentos. Aí ficava Brasília, Paracatu, Brasília, Paracatu, meses e meses. Só que o meu pai não podia me trazer, ele fazia a declaração, me colocava no ônibus, o motorista que levava. Responsabilidade minha era do motorista. Aí ficava nesse vai e vem, eu pegava Longarina, meu pai me deixava dentro, sentada, na Longarina em Brasília e eu ficava lá. Aí vinha para Paracatu, quando chegava, antes de operar. Aí eu tinha um taxista, antigamente era taxista, chamava Otair, aí punha no táxi e me levava em casa. Mas eu já não estava mais gostando, eu já estava triste quando era o dia de voltar pra Brasília. Até que fiz vários exames, saiu a minha cirurgia. Aí estava em Brasília, fui operada, só que lá não tinha local para ficar naquela época, hoje já fica. Antigamente operava e ia embora. Fui morar num barraco, onde meu pai morava, na Ceilândia. Meu pai tinha alugado lá, porque as minhas irmãs já não estavam mais. Elas estavam trabalhando lá, mas elas já eram casadas, não moravam no mesmo barraco. Aí a pessoa que o meu pai alugou é que cuidava de mim. Porque as consultas eram muito pequenas, com 8 dias. E meu pai não tinha condições de me mandar mais para Paracatu. Aí essa senhora que cuidava de mim. E quando eu fui operada, André ali, que foi meu cunhado, que a esposa dele faleceu, ele foi me visitar mais a minha irmã. Eu tive apoio dos meus familiares. André era casado com ela, ia lá. Eu tive apoio. Aí operou uma perna, fiquei um ano de gesso andando de muleta, aquilo em mim chegava a assar, tanta muleta. E sabendo que tinha outra para operar e fazendo fisioterapia.
P/1 - Dessa que tinha operado?
R - Sido operada. E fazia as fisioterapias lá mesmo, na Sarah Kubitschek. As minhas fisioterapias era toda segunda, toda quarta e toda sexta, esses eram os dias que eu entrava no turbilhão, fazia movimento com a perna, as minhas fisioterapias. Aí eu fiz todas elas, depois vim aqui para Paracatu, chorava para não voltar mais.
P/1 - Mas aí já tinha tirado o gesso nessa época?
R - Já tinha tirado o gesso, já tinha feito a fisioterapia, eu estava já para fazer a outra.
P/1 - Mas já não queria mais?
R - Já não queria mais, porque eu ficava na mão dos outros, sentia triste, eu chorava.
P/1 - Ficava longe de mãe.
R - Ficava longe de mãe, ficava longe de pai. Eu já me sentia muito triste. Fiquei muito decepcionada, porque eu ficava com outras pessoas em Brasília e pensando na beleza da minha comunidade, na minha infância, nas minha comadres, eu ficava muito triste, mas eu tive que fazer. Aí eu fiz, mas um ano de gesso.
P/1 - Isso bem na época que você era mocinha?
R - É, época de mocinha. Aí fiz a cirurgia na outra perna, mas eu tinha que fazer fisioterapias também. Aí eu falei para o meu pai que eu não queria mais ir, não queria mais fazer, “você precisa fazer essa fisioterapia”. “Não quero, eu quero a minha perna torta mesmo”. Mas só que eu tinha que fazer uma outra cirurgia, eram 4 cirurgias, uma embaixo e uma em cima, para a perna ficar reta.
P/1 - Aí ia ser duas em uma perna e duas na outra, 4 cirurgias nesse tempo todo?
R - Nesse tempo todo. Aí eu não quis mais. Eu desisti de fazer essas cirurgias. Não foi o médico que me deu baixa, foi eu que abandonei, mas só que eu não sabia o mau que isso ia me fazer, porque se eu tivesse sabendo o mal que ia acontecer para a frente eu tinha ficado. Aí voltei a estudar, já estava com os meus 14, 15 anos. Eu sofri demais com gesso, era tudo gesso, dava um calor, 1 ano andando de bengala, muito sofrido nesse período. Passei a estudar no Polivalente e eu trabalhei nas casas de família. Estudava a noite numa escola perto de Dedé, Audemar Neiva, e trabalhava de doméstica para os outros. Maria José mesmo me ajudou muito, porque aqui em Paracatu era muita escravidão, as pessoas mais ricas escravizava muito as empregadas, as empregadas eram marginalizadas, não tinha carteira fichada, até domingo você tinha que trabalhar, to mentindo Maria José? Até domingo meio dia eu tinha que trabalhar. Aí com a lei trabalhista é que mudou. Aqui em Paracatu ganhava tão pouco, nós era escrava. Mas aí foi mudando com as leis trabalhistas, agora tem que ser fichado, não trabalha feriado, não vai domingo, aí melhorou mais. Bom, o que você quer saber mais da minha juventude?
P/1 - Perdeu essa época da juventude que estava correndo atrás…
R - Com o tratamento das pernas.
P/1 - Aí veio a idade adulta, o que aconteceu logo em seguida?
R - Aí veio a idade adulta. Com a idade adulta, aos 16 anos eu já comecei a trabalhar, aí comecei um namoro. O primeiro namorado meu foi com o Bernardo, filho dessa professora que a Maria José falou. Só que Bernardo era namorado de todo mundo. Isso já é velho, não é de agora, os homens gostam de namorar várias vezes. Os homens gostam de pegar, hoje fala pegar né? Gosta de pegar um, pegar outro. Aí eu namorei com o Bernardo, era a paixão da minha vida. Mas só que o Bernardo namorava várias, aí eu já não quis. Aí eu fiquei meio parada de namoro, eu me entusiasmei muito dentro da catequese.
P/1 - Nessa época de mocinha?
R - E as minhas irmãs moravam tudo em Brasília, todas casadas, não morava aqui, elas tinham a vida delas. E eu ficava com a minha irmã Isabel, com o meu irmão Antônio, que hoje os dois são solteiros e a minha irmã Magna. Minha irmã Magna é a que morreu de Covid, que é a mãe de Sibele. Minha irmã tinha o mesmo defeito que eu, com as mesmas pernas tortas, a minha irmã que morreu. Aí o pessoal confundia eu de mais com ela, nós era a xerox, quando o pessoal via ela, “oi, Valdete”, quando me via, “oi, Magna”. Mas não era, é porque o andado, o jeito, parecia de mais.
P/1 - A fisionomia de você era parecida também?
R - A fisionomia diz que parecia, aí confundia. Quando ela ia no posto de saúde, o povo conversava com ela pensando que era a Valdete, mas ela já estava casada, ela casou primeiro que eu. No São Domingos, tinha as tradições, as festas boas, tinha a Caretagem, que é uma festa tradicional, 24 pessoas dançando, 12 vestida de meninas, de mulher, e 12 de cavalheiros. Eu acompanhava essa Caretagem a noite toda, comendo tudo que tivesse, toda casa tem comida, até hoje, só paramos por causa da pandemia. Todo mundo comia e todo mundo andava naqueles bairros da casa do principio ao fim. O careta dançava e hasteava as bandeiras. Lá na casa da dona Cristina, ela tem uma tradição lá, de hastear a bandeira de São João, ela tem dois filhos, um chama João e o outro chama Joana, era o aniversário da Joana. Aí ela hasteava as bandeiras e as caretas dançava as danças todinha, lá na casa de dona Cristina. E dona Cristina parou por causa da pandemia, até pouco tempo ainda teve e se Deus quiser ela vai continuar. Aí nós acompanhava a careta e nós hasteava essa bandeira, aí nós rodeava o mastro e cantava assim: (canta) “São João que bem soubesse quando era o vosso dia, São João se bem soubesse quando era o vosso dia, desceu da terra com prazer e alegria, a ira, tomou conta da bandeira derradeira verdadeiro capitães, viva são João Batista”. E nós tinha bomba, bombinha, traque, nós tinha tudo, e nós fazia uma fogueira. E você sabia, se você não sabe, vai saber agora, eu aprendi na catequese que São João Batista é o primo de Jesus, que batizou Jesus e Jesus batizou João, lá no rio de Jordão, então esse dia 23 de junho é o dia de comemorar São João, é o nascimento. Na igreja católica só tem Jesus e João Batista que comemora o nascimento, o resto tudo memória, tudo é falecido, só João e Jesus. Jesus natal e João em junho. A gente aprendeu também todo mundo ficar alegre, que João nasceu. E todo mundo comia de graça, zero 800, até hoje. Vocês estão convidados, quando acabar a pandemia, vocês passarem uma noitada lá com nós, vocês vão ver que beleza, que show que é a festa. Todos os lugares de Paracatu, as vezes tem careta, mas a melhor é nossa, não vou falar, porque a coruja que gaba o toco, mas careta saiu do São Domingos para as outras comunidades, foi de lá que foi a primeira careta, desde os meu bisavô. Aí eu casei, conheci o meu esposo, uma festa, lá no Nicolau, uma festa boa que tem lá. Aí a festa era festa de São Benedito, todas as festas tinha dança, São Benedito e festa de morto, mas tinha festa junina aí eles faziam fogueira e forró. Mas o forró antigamente, na minha época, não era ao vivo, era de radiola, a tecnologia estava chegando, era de disco, você conhece disco? O disco. Aí tinha uns forrós que eles rodavam na radiola. E era música não de pandeiro, não de sanfona. Aí eu conheci o meu esposo, ela chama José dos Reis Brandão, ele filho lá do São Sebastião. E aí o que aconteceu? Eu trouxe ele para o São Domingos.
P/1 - Vocês foram morar lá no São Domingos?
R - Vai escutando… Aí namorei com o meu esposo por bastante tempo, ele é vivo, noivei, casei. No casar, morei no São Sebastião, mas não tinha casa. No São Domingos água não tinha, mas tinha luz elétrica. Lá no São Sebastião é outro bairro, o bairro que ele mora, lá não tinha energia. Aí minha mãe falou assim: por que você não vem morar aqui? E deu para nós um pedacinho de terra lá, pequeno, só mesmo para fazer a casa. Depois vou entrar na história do terreno. Aí nós vendemos lá no São Sebastião. André aqui é um pedreiro de mão cheia, ele fez a minha casa rápido, pensa num pedreiro bom. Desde que eu casei até, tem mão de obra dele, lá em casa as mãos de obra quem faz tudo é André. André é um parceiro, e ele foi casado com a minha irmã, além de cunhado, é meu vizinho, além de vizinho, é meu compadre. E aí, é junto e misturado. Construiu minha casa, mais o meu esposo, que meu esposo vendeu o que tinha lá, aí ele construiu rapidinho, não tinha nada de cerâmica, não tinha reboco, só para entrar mesmo. E o meu pai falou assim: não toma espaço do lote, porque não está dividido, então era só um pedacinho. Só que a minha irmã, essa minha irmã que é esposa de André, já morava lá também, perto de papai. Aí eu tive meu primeiro filho aqui no hospital, esse era do estado, não era municipal. Pensa num hospital ruim mesmo. Porque a medicina está muito evoluída, a ciência, mas só que antigamente não era tão bom, ainda precisa melhorar mais ainda.
P/1 - Seu filho nasceu em que época?
R - A minha filha nasceu em 66, parece. Só que eu perdi ela, porque demorou nascer. Eles tinham que fazer uma cesárea. E naquela época era doutora Erika, ela morreu há pouco tempo, acho que ela morreu de covid. Naquela época era pra mim fazer uma cesariana, demorou demais para fazer. E a neném minha nasceu roxinha, morta. Aí eu fiquei no hospital, que a gente ficava 4 dias, e meu marido enterrou mais eles lá no São Domingos, a primeira filha minha. E doutora Erika, me deu um documento escrito assim: que a minha bacia era estreita, justamente por causa das pernas, então eu não podia ganhar neném normal, os meus filhos tinha que ser cesárea.
P/1 - Sempre cesária?
R - Sempre cesária. E eu já tinha esse documento em mãos, que se quando eu ganhasse neném para apresentar no pré-natal. Eu apresentava esse documento.
P/1 - Aí eles já sabiam que ia ser cesárea.
R - Já sabia que ia ser cesárea, por causa de que, porque eu já tinha a bacia estreita. Então eu ficava com o documento em mãos. E o meu marido era assim, quando nós namorávamos ele bebia, mas não era aquele bêbado chato, ele para lá, nos finais de semana para cá, não era aquele marido bebum, enjoado não. Mas aí no correr do tempo, eu tive a minha primeira filha que morreu, depois eu falei “vou ter logo um, eu sei que só vou ter mais 2 partos”, que era só 3 partos naquela época, agora que é 4. Então vou ter meus filhos logo para acabar com isso logo, cesárea né? Aproveitar que eu estou mais nova também. Aí parei de tomar remédio, já tinha remédio, engravidei. Fiz o pré-natal e minha barriga estava muito grande e aqui não tinha exame de ultrassom, para você fazer, tinha que ir para Unaí. E os médicos, quando fazia o pré- natal, “sua barriga está muito grande, eu vou pedir uma ultrassom”. Ambulância não tinha, você tinha que ir por conta própria. Era uma pobreza. E o meu marido trabalhava do quê? De garimpo, fazendo tijolinho também, sempre foi do ouro, você sabe por que o ouro? O povo prefere ouro, que ouro é dinheiro na mão, quem tem ouro é vendaval, ouro é assim, você trabalhou de manhã cedo, de tarde você tem dinheiro, de tarde você vai lá compra um arroz, uma carne. Quem tem dinheiro tem ouro, quem tem outro tem dinheiro, é jogo rápido. Naquela época, fui eu para Unaí fazer ultrassom, quando chegou lá, gêmeos, “ai meu Deus”, quase desmaiei, “dou conta não, meu Deus”, desmaiei. E a minha irmã que parece comigo, já tinha feito um chá de fraldas, não, chá de berço, chamava berço. Eu tinha ganhado tudo, ela fez lá na casa dela. Ela morava na cidade, tinha um banco lá, acho que é Provale, não sei, sei que ela mora lá perto da cooperativa. Eu ganhei de tudo, mas só que eu não sabia que era gêmeos, quando eu fui descobrir, aí tudo teve que dobrar.
P/1 - Teve que duplicar o que tinha ganhado.
R - Mas só que a fralda era fralda de pano, não era fralda descartável, tinha que lavar aquela fralda. Era calça plástica, se punha a fralda, dobrava e punha a calça plástica, assim tive os meus meninos, todos dois homens. Aí o pai pôs o nome de Evaldo e Evandro. E os meus meninos toda vida estudou lá no São Domingos. Meus meninos é de 88. E depois eles já foram para a cidade, eles estudaram na cidade, só que quando eles tinham uns 16 anos, eles já moraram na casa da minha irmã, do meu cunhado, que a minha irmã morreu, depois vou contar a história. Lá no Paracatuzinho, eles estudavam lá e também aprendendo a lavar carro. Que o meu sobrinho trabalhava lá no Posto União, mexendo com lavação de carro e os meus meninos trabalhou lavando também. Não podia trabalhar, mas trabalhava. Aí final de semana ia lá para casa. E depois, no ano de 90, eu tive uma outra menina. Apresentei o documento, foi cesárea, pensa numa menina bonita, até hoje ela é bonita.
P/1 - Qual o nome dela?
R - O nome dela é Naiane. Ela é minha princesa, eu falo para ela assim… eu tenho muito carinho pelos meus filhos, falo para ela assim: você é bonita. E ela é bonita mesmo. Coruja que gaba o toco, mas a minha filha é bonita. Aí eu fazia e faço até hoje tudo por ela e ela nunca me decepcionou, sempre estudou, ela tinha de tudo também. Eu fiz com ela igual minha mãe fez comigo. E hoje ela casou também e me deu dois netos. Eu tenho 1 neto de um mês, de Naiane, de 1 mês, e tenho um neto de 9. Minha filha precisa ter mais filho. “Deus me livre, não quero mais”. E aí o meu genro também quis, aí engravidou. E hoje ele tem um mês de vida, ele chama Davi Emanoel, pensa num menino levado, o menino é deste tamanho, grandão, já está espertinho. Mas a mãe não dorme, o dia para ela é noite, a noite para ela é dia, dor de barriga, nenenzinho pequeno você já sabe. E meus meninos, o primeiro menino dos meus meninos, que é o Evaldo, Evandro, hoje ele é um vereador, ele foi candidato 2 vezes, ele foi suplente a primeira vez, ele é presidente dos sindicatos de Paracatu, do pequeno, porque aqui tem um sindicato pequeno e um grande, ele é do sindicato dos pequenos ruralistas. Ele mexe com os sem terra, com os PA, aqueles menores.
P/1 - Que não tem grandes terras?
R - Não, não tem. Então é um sindicato dos trabalhadores, do pequeno. Aí ele descobriu essa chapa lá e participou, ganhou como presidente e atua até hoje. Está mandando um convite para outra chapa, 4 anos, por causa da pandemia, eles não fizeram eleições, agora eles estão fazendo, abrindo espaço para ter novas eleições e você acredita que não está achando, ninguém está querendo pegar, ninguém manifestou. Porque tem que ter presidente, é uma associação, e ele trabalhou muito nessa associação, desse sindicato, ele melhorou muitas pessoas, o pequeno produtor. Aí nessa bandeira de presidente, ele foi candidato pela primeira vez nas políticas aqui da cidade, ele foi suplente, quase ganhou, da outra eleição. E dessa eleição, que tem só apenas uns 10 meses, é de 4 em 4 anos, aí era com o prefeito nosso, Olavo Condé. 4 anos mudou de prefeito, já com a pandemia. E aí teve vários prefeitos e o prefeito que ele apoiou não ganhou, é um tanto de partido que eles arrumam, mas ele ganhou como vereador. Ele teve 620 votos, então ele foi o único partido dele que foi. E aqui na câmara dos vereadores, são 17 cadeiras, então a décima é a dele. Hoje ele é candidato a presidente do sindicato e é vereador. Ele é muito atual, a bandeira dele, porque lá na câmera, aqui em Paracatu, eles trabalham assim, cada um tem o prol de todos. O dever do vereador é fiscalizar, é fazer a lei funcionar. O prefeito que é o principal, ele que faz, e os vereadores, da câmera dos vereadores é como se fosse um deputado, um senador, mas como aqui é um município, tem só prefeito e vereador, eles que fazem as leis e tem que ter as votações, e se ganhar, bem, se não ganhar, as leis não são executadas. Então São Domingos hoje tem um representante, o primeiro da história. 300 anos que São Domingos deve ter, a primeira pessoa que foi candidato foi meu filho, Evandro dos Reis, palmas para ele. E com isso eu fico muito feliz, e oro muito a Deus, mesmo que ele não ganhe outras eleições, porque político hoje, a gente já não está mais nem acreditando, a classe desclassificada, uma mentiraiada que eles aprontam, é uma fofocaiada que eles aprontam, é uma politicagem. Se eles trabalhassem sem politicagem, era uma beleza. Um quer, outro não quer, um quer, outro não quer, é muita democracia, é muita falsidade. Você vota pensando que vai ser uma coisa, acaba não vai ser nada. Você não está vendo Bolsonaro, então a gente já não está mais animado com política, a gente vota porque a gente é livre, mas só que a gente está desanimado. Eu mesmo, tô desanimada com política, ano que vem vai ser ano político, mas eu nem sei para quem eu vou votar, porque a obrigação da gente é votar, mas eu vou votar, eu não deixo que os outros escolham por mim, eu vou escolher o meu, mesmo que o meu não ganhar, mas não tem problema, mas é democracia, você tem o direito de votar e você é livre, você vota para quem você quiser. E o voto é livre e secreto, não é verdade? Se o seu partido ganhou, beleza, se ele não ganhou, os outros vão fazer por você. Mas precisa mudar muito a política, a política é muito suja. Eu tive muito trabalho com o meu marido, eu tive quase separando dele, porque ele bebia muito, perturbava demais, pensa num homem que perturbava. Só André e Maria José que mora lá, sabe o tanto que ele perturbava, mas com a graça de Deus, superei e já tem 5 anos que ele não bebe. Meus filhos todos casados, tenho 6 netos, cada um mora na sua casa, mora só eu e o meu marido. Meus netos vai lá em casa, eu não sou muito chegada a menino não. Vai lá em casa, faz uma beija-flor, beijinho, beijinho, vai para as suas casas. O que eu posso fazer eu faço, mas não sou de ficar paparicando muito neto. Não tenho forças nas pernas para ficar andando, ando de bengala, mas sou feliz, hoje eu sou feliz, com a graça de Deus.
P/1 - Como está a comunidade hoje? E o que ela tem de diferente da época que a senhora era criança?
R - Hoje ela está mais evoluída, chegou mais pessoas diferentes. Porque lá em São Domingos era construído só de 5 famílias, a tradicional era Lopes dos Reis, Costa Pinheiro, Moreira Mendonça, Ferreira Gomes e Cotrim Ferreira, só 5. E todas as casas de adobe. A única casa que até hoje é, é a casa Museu, que é a casa do meu pai, hoje ela é ainda de adobe, a mais antiga que tem lá. Pra hoje, a comunidade evoluiu mais, tem um lado bom, mas tem um lado ruim, vou falar dos dois lados. O lado bom, porque aí já tem água canalizada, já tem energia, cada um tem os seus computadores, cada um tem suas televisões, não existe a gente ficar assistindo televisão na casa dos outros mais, não existe a gente ficar pegando internet dos outros mais, todo mundo tem suas internets, todo mundo tem seus telefones, todo mundo tem telefone individual, não é só o meu que eu vou falar para todo mundo. Eu tenho o meu, você tem o seu, cada um tem o seu. A tecnologia melhorou nesse lado. Eu estou aqui, eu falo para Deus e o mundo, então com isso eu mando mensagem, não precisa de carta mais, já acabou, deve ter acabado. Então foi bom nesse sentido. E outra coisa, hoje tudo é escola, se não for as escola hoje, você não tem nada. E o que eu falo com os meus netos, se você não tiver interesse pela escola, você não consegue trabalhar. Antigamente era enxada, ninguém quer mais saber de enxada, Deus me livre! Dá calo na mão, quem quer? Então hoje você tem que estudar, sentadinho, com ar condicionado, de boa ali. Tem ônibus escolar, as crianças não estudam porque não quer, eu não estou dizendo agora, porque agora que as aulas começaram, antes tinha a pandemia, mas as crianças que não gosta de estudar é porque não quer. E toda criança é na sala de aula. Mas o ensino não está bom, não estou culpando o professor, não estou culpando os pais, eu estou culpando os governantes. Eu falo porque eu fico triste, de ver o meu neto, a minha neta, que está aí com os seus 15 anos. Meu neto que está com 9 anos passou, mas não sabe, o básico, não sabe olhar um relógio, só sabe no celular, 17 e 15, olha no celular, 14 e não sei quanto. Mas não sabe aquele ponteiro do relógio, não sabe que um hora tem 60 minutos, o básico, não sabe tabuada, não sabe nem ler. Não é o caso dos meus netos, eu não estou falando dos meus filhos, estou falando dos meus netos. Tem um que não sabe nem ler.
P/1 - Tem a vantagem de ter a escola, mas a escola não é tudo isso?
R - Não é tudo isso. Eles não estão interessados, só computador, e a vasilhada lá para lavar, “vai lavar as vasilhas, vai limpar a casa”. É uma luta para esses pais, eu estou falando não dos meus filhos, eu estou falando das gerações que estão chegando.
P/1 - E isso é independente de ser em Paracatu na cidade ou lá em São Domingos, é uma coisa da sociedade mesmo?
R - Da sociedade, é lá em São Paulo, lá na sua terra. Então essa tecnologia, ela foi boa, mas também dificultou. E os governantes vão passando os meninos assim. Mas saber mesmo que é bom, nada. Aí tem bolsa disso, bolsa daquilo, ENEM, quem é que consegue passar nesse ENEM, gente? O governo facilitou muito, deu Bolsa Família, deu Bolsa Brasil para as famílias carentes. Mas eu vou falar para você, tô muito triste, com ensino, com educação. Uns meninos, que Deus me desculpe, nem todos, todas regras tem sua exceção, tem uns meninos, eles querem saber é de fumar droga. “Morreu fulano, morreu cicrano, ganhou um tiro na cabeça, fulano de tal está preso”.
P/1 - Mas esse tipo de coisa a senhora tem visto na comunidade também?
R - Hoje eu tenho visto acontecer na comunidade. O menino que você viu na barriga da mãe, está na droga. Eu tenho um sobrinho que é preso, neto da minha irmã, tá preso, droga. Naquela pracinha que vocês está ali, de noite, você vê só a lanterninha assim, tic, tic, só maconha. Ali está fazendo medo.
P/1 - Isso é totalmente diferente do que foi no passado a comunidade, não tinha nada disso?
R - Nada! Na geração dos meus meninos não tinha. Tinha, mas muito escondido, hoje está tudo relaxado, hoje não tem respeito. Hoje você está aqui, fuma uma maconha, não quer nem saber se tem criança, se tem gestante, quer nem saber, não sabe o que é? Respeito com a sociedade.
P/1 - E como a comunidade lida com isso agora?
R - Vai falar para você ver, meu filho, eles entram na casa dos outros e rouba, os ladrões nossos, são os nossos mesmo. Você não pode brincar, lá rouba com borra, rouba tudo se precisar. Porque todo mundo lá é murado? Muro hoje não é para defender o ladrão, não serve murar por causa de ladrão, mas é para você ter pelo menos uma privacidade. Antigamente era tudo cerca de arame. Minha filha, se você deixar um negócio lá, o povo rouba.
P/1 - Isso também é uma coisa que mudou bastante na comunidade?
R - Demais, hoje meu filho, já era. Não é o meu caso, eu não tive esse problema, mas eu estou vendo que o vizinho tem, o cicrano tem, rouba dos próprios pais. E não quer estudar.
P/1 - Uma das coisas que a senhora vê que acontece lá na comunidade.
R - Acontece lá na comunidade, polícia vai lá. Outro dia mesmo, não tem nem uns meses, entrou na casa do meu vizinho, ele teve prejuízo de 15.000,00 mais ou menos, roubou tudo. Aquele centro de catequese que a gente estava lá, entraram lá e roubaram um tanto de coisa alí.
P/1 - Dentro do centro?
R - Dentro do centro. E se você brincar rouba dentro da sua casa. Eu estou aqui, não estou? Meu marido tem que estar lá, meu marido tá lá, eu tenho que estar cá. Mas mudou demais, para pior. E é da onde esses ladrões? De lá mesmo.
P/1 - Essas questões culturais que vocês tinham antigas, é uma coisa que não está passando para as próximas gerações.
R - Não, não tá seguindo porque não interessa as culturas. As menininhas novinhas, tudo engravidando, quer saber mais é de arrumar menino tudo novinho. Antigamente, a gente sabe que tinha, desde quando o mundo é mundo teve isso, quando os meus pais, os meus avôs, também tinha as mesmas coisas, mas agora está tudo pior, pra mim está pior.
P/1 - E nessa época que a gente passou pela pandemia e teve a vacina e tinha uma questão da vacina ser para pessoas indígenas e quilombolas, como é que foi isso dentro da comunidade?
R - Foi excelente, que nós temos a presidente, que correu atrás. Eles nem queria, a secretaria nem queria, só consegui porque teve um documento do meu pai, Aureliano, que tem 109 anos, foi através desse documento que a presidente correu atrás e vacinou de mamando a caducando. Todo mundo é Quilombola. E com isso descobriu que o meu pai é o mais idoso da cidade. A nossa comunidade vacinou todo mundo, de 18 até 109 anos, porque foi prioridade, mas não foi fácil conseguir, foi tanta barreira, só a presidente para contar.
P/1 - Algumas pessoas já faleceram, mas os descendentes continuam na comunidade?
R - Estão lá. Muitos saíram, a fundação de Brasília tirou muita gente de lá, mas ainda tem muita gente lá. Mas se for para contar, deve ter só família mesmo. Lá deve ter quantas famílias André, mais ou menos? Você fez o censo.
P/1 - Algumas famílias ainda estão lá.
R - Família mesmo, por exemplo, eu é o meu marido é uma família, meus filhos já formaram outras famílias. Na minha família eu tenho 3 filhos, então cada um tem sua casa. Deve ter umas 400 mais ou menos, pessoas.
P/1 - Morando na comunidade hoje?
R - Mora tudo lá. Mas só que o território está ficando pequeno, talvez os meus netos, os meus bisnetos, já não tem mais lugar para eles. Por isso que nós fizemos uns estudos com a Kinross, com o INCRA, federal, que nós queria um pedaço das nossas terras.
P/1 - Dessas terras que são originárias, esses territórios originários?
R - Originários para nós. Porque a kinross comprou, é dela, mas ela está com a nossa parte também, é nossa.
P/1 - Essa que era as terras antigas, originárias de vocês?
R - Nós queríamos um pedaço, pelo menos um pouco, um pedaço das nossas terras, porque não está tendo terra lá nem para sepultar as pessoas. Talvez daqui 30 anos não tenha mais lugar para furar buraco naquele cemitério, porque já acabou a terra. Quem enterrou, enterrou, quem não enterrou… Se a Kinross não tiver a caridade de nos dar ou vender para o INCRA, nós não vamos ter terra para enterrar.
P/1 - Além das famílias, chegou um monte de gente que não tem a ver com Quilombola?
R - Tem uma norma, que a presidente acho que fez, uma lei, que é tipo assim: só enterra quem é de lá. Se você morreu, se você morou lá, problema é seu com o prefeito. O prefeito vai enterrar você onde você quiser, mas no São Domingos você vai ter que passar pela presidência para ver se ela vai deixar ou não, entendeu? Porque se não, você vai tomar espaço meu. Se você morrer e depois cadê o meu espaço? Você tomou conta dele, aí não tem espaço.
P/1 - Qual a diferença dessa época que a senhora via na infância para agora?
R - E aquilo que eu falei, antigamente você tinha liberdade, respeito, você não roubava nada de ninguém, obedecia os mais velhos. Não tinha mentira, o povo era mais sincero, era mais honesto.
P/1 - E as pessoas pareciam mais unidas.
R - Mais unidas, era cheia de comadre e compadre. Hoje não tem não, hoje já era. Eu vou contar uma história para você, hoje se você perder um celular lá, você passou, eu estou sabendo que o celular é seu, eu “lapo” no seu celular, você fica doidinho procurando, eu não te entrego.
P/1 - Isso é uma coisa que antigamente não era desse jeito, ninguém agia dessa forma?
R - Isso tá geral, a ladroagem está geral.
P/1 - E que chegou na comunidade também?
R - Também chegou na comunidade. Hoje a ladroagem está mato. Que mais você quer saber?
P/1 - Tem alguma pergunta que eu não fiz e a senhora gostaria de contar.
R - Vem agora a história do meu pai.
P/1 - O Museu da Pessoa agradece a sua história. Muito obrigado, dona Val.
R - De nada.
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