Mulheres na Construção Civil
Entrevista de Márcia Cristina Santos da Silva
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo / Rio de Janeiro, 18 de maio de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MNCC_HV001
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:22) P/1 - Boa noite, Márcia. Tudo bem?
R - Boa noite! Tudo ótimo!
P/1 - Para começar, gostaria que você se apresentasse informando para a gente o seu nome completo, a sua data de nascimento e o local, a cidade em que você nasceu.
R - Meu nome é Márcia Cristina Santos da Silva. Nasci em 15/04/1969, no Rio de Janeiro.
(0:50) P/1 - Qual o nome dos seus pais, Márcia?
R - Minha mãe é Neusa Maria dos Santos Silva, meu pai é Walter Schwang da Silva, falecido recentemente.
(1:04) P/1 - E o que os seus pais faziam?
R - O meu pai sempre foi da área da construção civil. E eu acabei me inspirando nele, na construção da nossa primeira casa. Eu sou a terceira filha, os meus irmãos são mais novos, e aí [era] eu que ajudava na construção da casa e peguei amor por isso. Minha mãe era doméstica.
(1:32) P/1 - Contaram pra você como foi o dia do seu nascimento, Márcia?
R - Bom, minha mãe só me contou que meu pai queria [um] homem, porque já tinha a primeira e a segunda filha mulher. Quando soube que era uma menina, ele saiu gritando igual um desesperado: “Outra menina, não é possível!”
Tentou de novo, aí veio uma quarta menina. Só na quinta gestação que veio um irmão, depois na sexta veio outro irmão, depois na sétima veio dois meninos gêmeos, que faleceram. Então, eu acabei sendo o menino que ele tanto queria, em todos os sentidos, ou em alguns sentidos, principalmente na parte de trabalho com ele. Ele sempre falou: “Esse é o menininho que eu queria ter.”
(2:25) P/1 - Tá certo! E me fala um pouquinho sobre o seu pai e sua mãe. Como você descreveria os dois?
R - Nossa, [foi] muita luta! A gente passou por muitas dificuldades, éramos seis filhos....
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Entrevista de Márcia Cristina Santos da Silva
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo / Rio de Janeiro, 18 de maio de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MNCC_HV001
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:22) P/1 - Boa noite, Márcia. Tudo bem?
R - Boa noite! Tudo ótimo!
P/1 - Para começar, gostaria que você se apresentasse informando para a gente o seu nome completo, a sua data de nascimento e o local, a cidade em que você nasceu.
R - Meu nome é Márcia Cristina Santos da Silva. Nasci em 15/04/1969, no Rio de Janeiro.
(0:50) P/1 - Qual o nome dos seus pais, Márcia?
R - Minha mãe é Neusa Maria dos Santos Silva, meu pai é Walter Schwang da Silva, falecido recentemente.
(1:04) P/1 - E o que os seus pais faziam?
R - O meu pai sempre foi da área da construção civil. E eu acabei me inspirando nele, na construção da nossa primeira casa. Eu sou a terceira filha, os meus irmãos são mais novos, e aí [era] eu que ajudava na construção da casa e peguei amor por isso. Minha mãe era doméstica.
(1:32) P/1 - Contaram pra você como foi o dia do seu nascimento, Márcia?
R - Bom, minha mãe só me contou que meu pai queria [um] homem, porque já tinha a primeira e a segunda filha mulher. Quando soube que era uma menina, ele saiu gritando igual um desesperado: “Outra menina, não é possível!”
Tentou de novo, aí veio uma quarta menina. Só na quinta gestação que veio um irmão, depois na sexta veio outro irmão, depois na sétima veio dois meninos gêmeos, que faleceram. Então, eu acabei sendo o menino que ele tanto queria, em todos os sentidos, ou em alguns sentidos, principalmente na parte de trabalho com ele. Ele sempre falou: “Esse é o menininho que eu queria ter.”
(2:25) P/1 - Tá certo! E me fala um pouquinho sobre o seu pai e sua mãe. Como você descreveria os dois?
R - Nossa, [foi] muita luta! A gente passou por muitas dificuldades, éramos seis filhos. Minha mãe é de Minas, meu pai é capixaba, então casaram cedo, vieram os filhos cedo. E lá era muito difícil a vida, então vieram aqui para o Rio, se aventurar mesmo, já com duas filhas mais velhas, tanto que uma é nascida lá em Cachoeira do Itapemirim, o restante é para cá.
Olha, foi assim… Eu vou te falar, eu tive infância, mas foi uma infância muito sofrida. Meus irmãos também. Meu pai fazia cocada, minha mãe fazia bolo, a gente ia nas portas das fábricas vender. Eu trabalhei com carroça de ferro velho, ajudando a comprar ferro velho. Íamos para a feira pra catar o final de feira, sempre no finalzinho a gente ia, ajudava a desmontar as barracas para ganhar um legume. Eu vendia amendoim no trem, vendia picolé.
Nossa, eu acho que eu já fiz de tudo nessa vida. Dentro da honestidade, eu acho que eu já fiz de tudo. E os meus pais sempre passaram valores para a gente, que independente da situação que a gente esteja passando, a honestidade e o caráter tem que sobressair, em todos os sentidos.
Eu já tive até oportunidade de subir na vida, tipo assim, ligar o botão do lado mau… Lado mau, que eu digo… Do lado da dificuldade, passar para o lado da prosperidade. Mas às vezes você paga um preço tão grande… Eu falei não. A vida é feita de escadas e cada escada tem o seu degrau, e devagar a gente vai conseguindo.
Eu evoluí muito na construção civil. As conquistas que eu tenho, materialmente falando, foram advindas da construção civil. Já trabalhei em vários outros lugares, como eu te falei, ambulante, feirante, ferro velho, casa de família. Só na praia eu trabalhei dez anos como ambulante, andando pra lá e pra cá. Mas as minhas conquistas materiais e pessoais, eu consegui advindas da construção civil.
(4:58) P/1 - Conte um pouquinho sobre seus irmãos? Você falou que é a terceira, que havia duas irmãs mais velhas. Mas me conta um pouquinho de todos eles, os nomes e como vocês se davam na infância.
R - Nossa, era legal, cara! Era uma infância difícil, mas ao mesmo tempo a gente sempre foi muito unido. Nós somos… Hoje somos cinco, porque dois anos atrás a minha irmã caçula, que tinha acabado de completar cinquenta anos, faleceu de AVC e a gente está passando ainda por um processo de luto. A gente perdeu uma sobrinha numa tragédia de trem, no ano seguinte a gente perdeu a minha irmã e esse ano que passou a gente perdeu o meu pai. Foi tudo assim, sabe?
A gente sempre foi muito unido, desde a infância. A educação que meus pais nos deram, nunca permitiu que nós brigássemos um com o outro. Hoje, eu quando eu vejo às vezes, um irmão de sete, de dez [anos] brigando mesmo, fisicamente, eu falo assim: “Gente, o que está acontecendo com o mundo? Eu não fui criada assim”.
Os valores que eu recebi dos meus pais eu passo para as minhas filhas - eu tenho duas. E passo para os meus netos. Eu tenho 54 anos e ligo para minha mãe todos os dias; se eu ligar para minha mãe dez vezes ao dia, dez vezes eu peço benção para minha mãe. Dez vezes ao dia eu pedia benção para o meu pai, entendeu? Não está fisicamente aqui, mas em pensamento: "Bênção, meu pai, boa noite”, oro e tal.
A gente teve uma infância muito difícil, mas era uma infância muito unida, muito respeitosa. Os mais novos respeitavam os mais velhos. Independente de ser irmão ou não, havia esse respeito. E graças a Deus eu consegui passar isso para as minhas filhas. Eu tenho uma de 31 e tenho uma de 24 e elas nunca brigaram, uma respeita a outra.
Hoje a gente tenta passar tudo isso para os nossos descendentes. É difícil? É difícil! Mas os valores que eu recebi dos meus pais, nossa! Até as correções rigorosas eu agradeço muito, porque hoje em dia você não pode brigar com filho, não pode chamar muita atenção. “Ó, vou ligar para não sei o quê, conselho tutelar”. Você não pode corrigir o seu filho, você tem que ter a sabedoria, democracia e a atualidade de como corrigir seu filho, sem você como educadora, como mãe, como provedora, se prejudicar em relação a isso.
Nossa, eu sou grata demais aos meus pais. Não tenho o que falar dos meus pais. Se eu tivesse que nascer numa outra vida, “quem você quer como pai e mãe?” Quero seu Walter Schweng e Dona Neusa Maria, não quero mais ninguém na vida.
(7:58) P/1 - E falando sobre sua infância, você disse que você trabalhava, seus irmãos também provavelmente trabalhavam, para conseguir ajudar. Sobrava tempo para vocês brincarem? Do que você gostava de brincar?
R - Ah, sobrava, sempre sobrava, porque naquela época a gente só estudava o básico, né? Hoje em dia, não, você tem várias entidades aí, várias instituições, que te oferecem cursos de qualificação, cursos de especialização grátis, às vezes te dão a passagem, te dão um lanche. Você só não se qualifica hoje se você não quiser. Na época da minha infância, não. Você fazia ali o primário, o ensino fundamental. Quando conseguia, fazia o ensino médio e pronto. Aí, dizia-se assim, “acabei os meus estudos”.
Eu sempre digo para as minhas filhas e para os meus netos: “Acabou não, agora que vocês vão começar, porque isso que você aprendeu no primário, no ensino fundamental, foi só uma base para você não ser analfabeto, para não entrar na estatística do analfabetismo, mas agora que você vai começar.” Eu tenho 54 anos, eu estou estudando o tempo todo, estou sempre procurando me aperfeiçoar.
A gente estudava de manhã, eu lembro que era uma vida muito difícil. E hoje em dia o governo fornece material, fornece uniforme, fornece o tênis, fornece o cartão RioCard. Na nossa época a gente estudava longe de casa, então tinha os vale-transportes, um passe estudantil, que você tinha que usar para ir para escola. E o uniforme… Eu lembro que eu e uma irmã estudávamos de manhã, e as outras duas estudavam à tarde. Então, eu tinha que ir para escola e não podia sujar o uniforme, porque quando eu chegasse em casa, as outras duas irmãs já estavam esperando para usar o mesmo uniforme que eu havia usado de manhã. Era assim. E não tinha material não, a gente tinha que comprar. Eu lembro que tinha uma papelaria que até hoje existe na Baixada Fluminense, que ali a gente comprava e fazia um carnê dessa grossura, porque eram quatro filhos em idade escolar, depois que os mais novos foram estudar no jardim. Eram as quatro filhas mais velhas em idade escolar, então era um carnê dessa grossura que se fazia ali para comprar o uniforme, o tênis, o material. E foi desse jeito que a gente conseguiu.
A minha mãe alfabetizou a gente em casa, embora tenha pouco estudo. Quando a gente foi… Era o quê? Acho que chamava de mobral. Quando a gente foi para a escola, eu e minha outra irmã já estávamos alfabetizadas.
Eu lembro [que] quando entrei para a primeira série eu era uma das alunas que mais se destacava. Antes de terminar o ano, fiz uma prova e já pulei logo para a segunda série. Havia essa sensibilidade por parte dos educadores: “Não, essa menina é muito forte, ela é muito qualificada…” Aí fazia-se a prova e você já avançava de série, entendeu? E havia tempo, a gente conseguia brincar sim, conseguia cuidar dos irmãos, conseguia cuidar dos vizinhos.
Meu pai já trabalhava com obra. Chegava em casa, fazia cocada, bolo de fubá, empada. Meu avô torrava amendoim para fazer paçoca, naqueles negócios que até hoje a gente vê o amendoim torradinho. Meu avô fazia isso, naquela máquina. A gente saía nas fábricas para vender. Eu vendia as coisas na escola, levava amendoim para vender na escola. E a gente conseguia sim, conseguia da nossa maneira - brincar com bola de meia, cabo de vassoura. A gente dava o nosso jeito, não tinha brinquedos. Quando a gente conseguiu uma bola de couro, de couro de animal, aquilo ali era… Ardia no couro, mas a gente… Era o que a gente tinha. A gente era muito feliz, cara, muito feliz!
(11:47) P/1 - Você estava comentando sobre o seu avô. Eu gostaria de perguntar: você teve contato com seus avós, tanto por parte de pai, quanto por parte de mãe?
R - Não! Eu não tive, porque meu pai é capixaba, de Cachoeira do Itapemirim. Meu pai veio para cá e a gente nunca conseguiu voltar lá para rever. Eu saí de lá
[quando] devia ter uns quatro anos de idade.
Já o meu avô [materno], que era casado com a minha avó, não era avô de sangue mesmo. A minha mãe nem conheceu o pai dela, minha mãe é filha única. Meu pai é de uma família grande, já minha mãe é filha única. Teve uma irmã, acho que adotiva, e nunca conseguiu encontrar essa irmã. Ela até tem uma certa frustração em relação a isso. Já entrei em alguns sites, tentando encontrá-la, mas a gente tem poucas informações.
Então, a minha avó casou com meu avô, que não é pai da minha mãe, mas a gente tinha contato com eles porque moravam aqui no Rio também, vieram da Bahia morar aqui, então a gente teve contato sim, com o meu avô, com a minha avó. Mas a minha avó faleceu nova também, aos 53 anos. E ela nunca revelou a origem da minha mãe, então a minha mãe ainda tem essa frustração.
Minha mãe está com 75 anos e ela é muito triste por não saber a árvore genealógica dela. A gente entra em sita, busca, aí eu falo assim: “Mãe, a gente vai tentar, um dia quem sabe a gente vai conseguir.”
A gente teve esse contato com o meu avô, com a minha avó, com a minha madrinha, que é filha do meu avô, as irmãs da minha madrinha… A gente teve, sim. Não era um contato direto, sempre, porque era distante de onde a gente morava, tinha que pegar duas conduções para ir e duas para voltar. Eu lembro que quando a minha mãe fazia isso - éramos seis filhos -, ela mandava a gente dar aquela mão assim, para não perder um do outro. Eu me recordo que uma vez minha mãe estava passando em frente a um ponto de táxi, lá em Nova Iguaçu, e o taxista ficou contando - um, dois, três, quatro, cinco… Contando a quantidade de filhos. Aí o taxista perguntou para minha mãe: “Tá vindo mais aí?” A minha mãe: “Tá, tá vindo a sua mãe, seu não sei o quê”. Ela ficou muito brava com isso porque era difícil sair, meu pai trabalhava direto. Eram seis filhos, então quando a gente conseguia sair tinha que dar a mão para não se perder, entendeu?
(14:16) P/1 - E me conta uma coisa: tem algum cheiro, alguma comida, alguma coisa que toda vez que bate assim, você fala: “nossa, isso daqui é a cara da minha infância”?
R - Tem, tem! O cheiro de angu ‘garrando’ na panela. Até hoje eu gosto, adoro angu ‘garrando’ na panela. Esse!
Eu lembro muito da minha mãe, a gente cozinhava na lenha. O meu pai fez uma cozinha do lado de fora, enorme, com um fogão de lenha maravilhoso. E ali a minha mãe fazia… Tinha aquelas panelas de ferro; ela passava óleo, para não agarrar muito carvão. E aí ela fazia aquele panelão de angu, botava pé de galinha dentro, tudo isso. Quando aquele angu tava ‘garrando’ na panela, aquela crostazinha, aquilo ali… Poxa, o angu tá quase pronto. Era uma felicidade. E para o meu avô era o amendoim torrando para fazer a paçoca. Do meu avô era o amendoim torrado, maravilhoso!
(15:18) P/1 - Conta um pouquinho para gente como era essa casa onde você passou a infância. Você se lembra dela?
R - Lembro, lembro! Era uma casa muito humilde, era uma casa que não tinha esgoto - passava uma vala imensa na entrada do quintal, não tinha saneamento básico. Era uma casa de telha de amianto, inicialmente eram umas telhas francesas, vermelhinhas, aí depois foi telha de amianto.
Eu lembro de uma vez que minha mãe estava de resguardo do meu irmão caçula, e aí teve uma chuva muito, mas muito grande, lá onde a gente morava. E não tinha saneamento básico ainda, não tinha manilhamento, não tinha nada, e aí a casa encheu, da água vir na cintura. Minha mãe [estava] de resguardo do meu irmão caçula. A gente colocou uma tábua para atravessar esse valão, só que a água subiu, então tapou essa tábua.
Eu lembro até hoje que a gente foi tirando só os irmãos - meu pai não estava em casa - de casa, e aí eu fui atravessando. Eu sempre fui aquela que resolve tudo, depois que eu desabo. “Ah, não, tem que fazer. É sofrido, mas temos que fazer!” Eu lembro que fui atravessando um por um, conseguindo passar mais ou menos na direção onde estava a madeira; quando chegou a minha vez de passar, eu já estava tão cansada que errei a madeira e caí nesse valão, no esgoto, com água, com tudo. A sorte é que quando eu caí, eu bati com a cabeça na madeira, então eu marquei mais ou menos onde estava a madeira, e ali eu segurei e consegui subir. Subi com a cara toda suja de lama, de esgoto. Mas fiquei feliz, porque minha mãe estava de resguardo, minha mãe teve até uma complicação. Fomos para a casa da vizinha, que era a parte mais alta.
Nós perdemos tudo, tudo na nossa casa. Meu irmão está com 46 anos, era recém-nascido. Isso tá gravado aqui comigo, eu não esqueço disso nunca, nunca na minha vida. Foi uma das maiores tristezas, porque a gente, como pobre, já tinha poucos recursos, não tinha conforto. Meu pai fez uma cama beliche, que não era beliche, era treliche; meu pai fez de madeira, aí dormiam dois embaixo, dois aqui, dois ali. E a gente perdeu tudo, tudo, que a gente tinha.
Quando meu pai chegou em casa… Não tinha telefone, não tinha nada. Quando meu pai chegou em casa e viu a situação, meu pai desesperou, mas estava todo mundo na casa da vizinha, todo mundo bem. Só minha mãe que teve que voltar para o hospital, por conta do resguardo. Mas essa foi uma tristeza muito grande na minha infância, eu não consigo esquecer nunca, nunca.
(18:05) P/1 - E como foi em seguida? Vocês continuaram morando na mesma casa, ou vocês… Conseguiram recuperar os móveis, comprar de novo?
R - Nós continuamos morando [ali]. Passado esse resguardo, a minha mãe foi trabalhar na casa de uma patroa, na zona sul aqui do Rio, e contou para ela o que tinha acontecido Olha, Deus faz tudo certinho. Eu lembro que essa patroa dela… Lembro até hoje o nome dela, dona Linda, não esqueço nunca do nome dela. Essa dona Linda foi embora do Rio para um outro estado e se desfez de tudo que tinha na casa dela. Tudo que tinha na casa dela ela botou num caminhão-baú grande e mandou tudo para nossa casa - inclusive seis bicicletas. Não esqueço disso nunca, aquilo foi a maior alegria.
A gente passou um período muito triste, porque meu pai teve que recuperar algumas coisas. Foi quando ele fez o tal do fogão de lenha, porque tínhamos perdido o fogão, a geladeira, tudo. Aí ele fez o fogão de lenha, a gente passou a cozinhar na lenha. Começou a refazer a cama. As pessoas, algumas, ajudaram, mas era um local muito pobre, então até o pobre, para ajudar outro pobre, fica difícil, né? Porque muitos tinham perdido as coisas também, nós não fomos os únicos; o bairro todo alagou, só quem morava na parte mais alta, graças a Deus, não foi afetado. Nós morávamos na parte baixa.
Eu lembro que essa patroa da minha mãe deu um caminhão de coisas para ela. Nesse caminhão veio sofá, veio cama, muitas roupas de cama, muitas panelas e seis bicicletas - a minha era Monark, não vou esquecer disso aí nunca!
A gente conseguiu aos poucos ir recuperando e passou a trabalhar mais, vender mais cocadas. Meu pai inventou de fazer sacolé porque a gente tinha ganhado a geladeira; a gente ia vender sacolé no isopor pequenininho. Depois passamos a pegar o picolé no bairro de Nilópolis, numa sorveteria, com gelo seco; eu passei a vender picolé, amendoim no trem.
É, rapaz, foi bravo, mas foi… Cara, muito aprendizado.
(20:17) P/1 - Vamos conversar um pouquinho sobre a escola. Você se lembra das primeiras vezes que você foi para a escola, como você se sentiu em um ambiente diferente? Já não era mais em casa. Como foi para você?
R - Eu sonhava muito em ser professora. Eu sempre tinha isso comigo, queria ser professora de inglês também. Eu queria ser professora de história, porque eu queria conhecer as nossas ancestralidades, a história do nosso país e passar isso adiante, e ao mesmo tempo eu queria ser professora de inglês - eu sempre tive muita facilidade com o inglês. Mas aí você vai crescendo, vai vendo o quanto o professor é desvalorizado; acho que é a profissão que deveria ser muito mais valorizada, infelizmente não é. Então, eu fui perdendo o amor, não pela profissão, mas aqueles valores que deveriam existir não existiam. Então falei assim: “Não é isso que eu quero para mim, vou ver outra coisa.” Aí continuei.
Mas cara, depois eu comecei a trabalhar muito cedo… Quer dizer, eu já trabalhava, então a gente não conseguia conciliar muita coisa com estudo. O único curso que eu consegui fazer, pagando, foi datilografia. Um dia desses eu estava falando para o meu neto o que é datilografia. Ele: "O que é isso, vó?" “É o digitador de hoje! O único curso que a vovó conseguiu fazer foi esse! A vovó estudava de manhã, trabalhava à tarde e à noite a vovó ia para um curso de datilografia.”
Eu pensava em voar alto. Queria estudar muito, queria desbravar muitas coisas e multiplicar conhecimentos; eu nunca quis deter o conhecimento só para mim. Eu acho que todo mundo tem que ser um agente multiplicador. O que você aprende, se você puder multiplicar para esse, que multiplica para aquele, a gente vai ter uma sociedade que não vai ser tão manipulada. Porque, infelizmente, os nossos governantes querem marionetes, então quando uma ou mais pessoas se movimentam na sociedade, isso afeta eles. É isso que eu procuro.
Tentei estudar o máximo que eu pude, mas quando meu pai e minha mãe se separaram as coisas ficaram muito difíceis, porque meu pai foi embora de casa, vivia com uma outra pessoa. Minha mãe ficou com seis filhos. A gente morava numa casa humilde, mas grande; era uma casa bem humilde, mas espaçosa. Meu pai teve um desentendimento com ela e a gente teve que sair de casa. Ele queria que minha mãe saísse, ele queria ficar com a casa. Minha mãe saiu de casa com seus filhos e a gente foi morar num quarto com banheiro. Minha mãe, com seis filhos.
Foi uma fase que eu vou te falar, cara, foi difícil para mim! Eu fiquei muito mal, desenvolvi uma bronquite nervosa, porque eu sempre fui muito agarrada com meu pai. Eu [estava] no alto dos meus quatorze, que foi a idade que eles se separaram. Fiquei muito mal e não desampararei meu pai. Eu dizia assim: “Peraí, são seis filhos. Alguém tem que ficar com alguém, eu não posso!”
Meu pai nunca foi de beber, mas quando eles se separaram, meu pai passou a beber cerveja como um louco. Eu ia na casa lá, onde ele ficou morando, tinha [tantos] engradados de cerveja que parecia que ele [iria] abrir um bar. Tive até alguns desentendimentos com a minha mãe, porque minha mãe dizia: “Não, tem que deixar seu pai para lá. Não foi ele que botou todo mundo para fora de casa?” Eu falava: “Eu não vou abandonar, porque se fosse o contrário eu também não abandonaria a senhora.” Tive um desentendimento com a minha mãe, mas nada [do tipo] “ah, não, vou parar de falar com a minha mãe!” Eu tentava colocar na cabeça dela a racionalidade. Eu sempre digo, a melhor maneira de você respeitar o próximo é se colocar no lugar do próximo. Aí depois ela entendeu, ia lá, visitava meu pai.
Meu irmão caçula ficou morando um tempo com meu pai e os outros cinco filhos ficaram com a minha mãe. Depois o meu irmão mais velho, que é o Marcelo, foi morar com o patrão dele, o mais novo entrou para marinha, ficou lá com meu pai, então minha mãe ficou só com as quatro mulheres. Mas foi uma fase muito difícil, porque a gente tinha saído de uma casa grande, humilde, mas era uma casa própria. Não pagávamos nem água, nem luz, naquela época, porque era um bairro muito humilde. E a gente vai morar mais para o centro, num quarto com banheiro, cinco pessoas, com a minha mãe. Era muito difícil, a gente tinha que trabalhar, ajudar a pagar aluguel, ajudar pagar água, ajudar pagar luz. Foi ali que as coisas ficaram bem difíceis mesmo, então eu só fiz o ensino médio e não consegui fazer nenhum outro curso.
Aos 22 anos eu engravidei da minha primeira filha. Assumi sozinha, sou mãe solteira das duas, então as coisas ficaram muito difíceis. Eu me dediquei integralmente à criação das minhas filhas. E a primeira casou, a segunda casou, então agora que eu estou… É faculdade, é curso, é isso. Porque eu sempre dizia assim: “Eu não abandonei o meu sonho, só guardei ele na gavetinha, mas daqui a pouco eu vou voltar lá e vou concluir o meu sonho”. Estou concluindo.
(25:38) P/1 - Me conta como é que você começou a se envolver com a construção civil.
R - Quando nós começamos a construir a nossa primeira casa lá, que era muito humilde. O meu pai, eu lembro que meu pai trabalhava num sítio, construindo uma casa muito grande. Eu estudava de manhã, aí eu tinha que chegar rápido em casa, passar o uniforme para minha irmã e arrumar aquele almoço, um prato em cima de um prato, amarrado com paninho, e levar lá para o meu pai. Lembro que eu tinha que andar uma linha do trem direto para sair no sítio; o sítio era na beira da linha do trem, um sítio imenso. Minha mãe já trabalhava fora e dizia assim: “Você vai lá, leva o almoço do seu pai e volta para cuidar dos irmãos mais novos”, porque os mais novos ainda não estavam em idade escolar. Mas eu já tinha a minha outra irmã que tinha estudado de manhã comigo e ela estava em casa para cuidar dos outros, então lembro que minha mãe sempre mandava voltar, mas eu nunca voltava. Porque quando eu chegava lá, cara, eu via meu pai peneirando areia, serrando um pedaço de madeira, aí eu ficava olhando aquilo tudo ali. Desamassando prego - tomei muita martelada na cabeça do dedo, fiquei com muita unha roxa. E eu dizia assim: “Não vou voltar para casa, não, vou ficar aqui ajudando meu pai”. E dali eu fui ficando.
Meu pai [dizia]: “Vai ficar aí me olhando? Então vai, peneira essa areia aí, cata esses pregos do chão aí e aproveita.” Aí eu ficava desamassando prego, peneirando areia, ajudando a fazer um traço de massa, carregando tijolo. Aquilo para mim, pô, uma criança com dez, onze anos, era o máximo. Falei: “O que eu quero é isso daqui para mim, não quero fazer outra coisa na vida. Eu não quero cuidar dos meus irmãos, eu quero ficar aqui com meu pai.” E foi aí que eu fui.
Quando meu pai pegava essas obrinhas particulares, que não fosse de empresa, ele sempre dava um jeito de me levar: “Sai da escola e vai para lá.” Minha mãe não gostava, não, porque eu vivia me machucando. Teve uma vez que caiu uma madeira do teto, eu tomei uns pontos na cabeça. Meu pai achava que ia aguentar: “Segura, segura!” “Tô segurando, pai, tô segurando!” “Pode largar?” “Pode!” Quando largou veio tudo aqui, tomei onze pontos na cabeça. Então, minha mãe não gostava, porque ela [dizia]: “Olha a menina, Walter. Para de fazer isso com ela, só porque ela é forte. Deixa os meninos crescerem que você leva!” Aí meu pai falava: “Oxe, vou esperar crescer, aí como que vai trabalhar? Você só me deu filho homem mais novo!” E era eu que ia, cara, e eu achava aquilo o máximo.
Aquilo ali, cara, foi a definição do que eu sou hoje, do que eu sou, a Márcia Cristina, mestre de obras. Eu me orgulho muito, sempre falo para o meu pai… Meu pai tinha orgulho de mim, sabe? Quando ele estava vivo, ele ia no trem vendendo balinha, nas dificuldades dele, mesmo depois de aposentado. Eu tinha os meus cartõezinhos, fiz cartões de visita; meu pai vendia bala e dava o cartão: “Essa daqui é minha filha, Márcia Cristina, ela é a primeira mulher mestre de obras do Brasil. Procura ela na internet, ela é famosa!” Às vezes as pessoas me ligavam: “Caramba! Conheci teu pai no trem, o teu pai é um amorzinho!”
Meu pai morreu com 82 anos, ainda trabalhava em construção civil, morreu no ano passado. E ele dizia: “Ela é famosa, procura ela na internet aí que vocês acham ela.” Às vezes as pessoas me ligavam: “Conheci teu paizinho, que amor de pessoa, me falou de você!” Foi aí que ele foi divulgando mais o meu trabalho em construção civil. Era aquele homem assim, que levantava a bandeira mesmo: “Essa é minha filha! Essa é meu orgulho, orgulho de todos!” Devido a eu ter seguido a profissão dele, ele tinha, sabe, aquele cuidado, aquele carinho. Um amor de pessoa, um amor!
(29:27) P/1 - Você tinha comentado que engravidou cedo da sua primeira filha e depois você teve a segunda, você foi cuidar delas. Nessa época você já trabalhava como mestre de obras, ou foi depois?
R - Não, não trabalhava. Quando eu engravidei da primeira filha, eu trabalhava como babá na zona sul do Rio. Fiquei um bom tempo trabalhando lá. A patroa me aceitou com a minha filha, minha filha era criada como filha dela também, tanto que ela tirou a ficha da portaria como funcionária e botou como moradora. Uma pessoa que foi muito especial na minha vida.
Depois eles foram embora para Juiz de Fora, porque o marido dela era publicitário, teve uma proposta e foi embora. Na época eu morava com eles, ainda não tinha casa própria. Tinha minha mãe aqui, que tinha um barraco de madeira - onde eu moro hoje era um barraco de madeira. E eu pensei assim: “Pô, eles vão embora. O que é que eu vou fazer agora? Vou morar no barraco de madeira com a minha mãe e com uma filha?”
Eu não saí da casa da minha mãe grávida. Eu saí de casa com dezoito anos, fui trabalhar em casa de família. “Quero a minha Independência, quero conquistar algo, não quero ficar o tempo todo com a vida parada aqui.” Foi quando eu engravidei da minha primeira filha. Eles foram embora depois de um tempo e falei: “Não vou voltar para casa da minha mãe. Eu vou dar um jeito de arrumar um canto para mim.”
Foi quando teve essa desapropriação de terras aqui, onde eu moro até hoje - moro aqui tem 32 anos. Minha filha está com 31. Foi a invasão de terras aqui. Graças a Deus, na época foi o governo Brizola que liberou, deu a desapropriação de terras; hoje nós temos o documento direitinho, IPTU, conta de luz, tudo direitinho. E eu vim para cá, grávida, pra marcar o terreno.
Fiquei aqui grávida, passei muita, cara, mas muita dificuldade. Olha, se contar dá vontade de chorar, mas eu não vou chorar, não. Vim para cá grávida, primeiro, porque tinha que segurar o barraco, para depois, quando autorizassem fazer de alvenaria, você fazer.
Passei a minha gravidez aqui e continuei trabalhando lá, com essa patroa, na Zona Sul. Depois tive minha filha, continuei trabalhando com eles lá, mas sempre vinha para cá, para dormir no barraco, para não perder. Não era nem barraco, era uma lona azul, que eu prendia as pontas e botava um plástico no chão. Eu lembro que eu botava o berço da minha filha, os quatro pés do berço, dentro de vasilhas de água, para que se subisse inseto, não conseguisse subir até o berço e alcançar a minha filha. Essa é uma imagem que eu tenho muito viva na minha cabeça.
Continuei vindo para cá, trabalhava lá na Zona Sul e vinha para cá todo dia, dormia no barraco. Um barraco sem luz, as necessidades fisiológicas eram feitas dentro de uma lata e a gente enterrava no fundo do quintal. Isso foi com a minha primeira filha, mas eu não desisti. Eu falei: “Uma hora vão liberar aqui para fazer [uma casa] de alvenaria.
Aí beleza, criei, tive a primeira, assumi a minha filha sozinha, embora eu já namorasse o pai dela já tinha quatro anos - tinha ficado até noiva dele. Quando eu engravidei, ele falou que não estava preparado para ser pai. [Eu disse:] “Eu também não estou preparada para ser mãe, mas e agora? Tá aqui dentro, vamos fazer o quê?” “Ah, você dá o seu jeito aí!” Ele me deu dinheiro para abortar, virava as costas para mim, mas eu falei: “Não, não vou abortar. Eu vou assumir a minha filha sozinha!”
Lembro que eu estava fazendo pré-natal lá na Zona Sul, ao lado do apartamento onde eu trabalhava com essa madame. O médico que fez o meu pré-natal me fez uma proposta assim… Cara, é disso que eu te falei, das oportunidades que tive na minha vida, mas falei assim: “Não, lá na frente eu vou pagar um preço.” Ele quis que eu desse a minha filha para ele. Ele falou: “Eu vou te dar uma quantia X, você vai mudar radicalmente o seu modo de vida. Eu sou casado há tantos anos, nem eu nem minha esposa podemos engravidar.”
Naquela época não era tão falado sobre inseminação, acho que era bem mais inacessível. E eu não aceitei. Falei: “Não, eu vou levar essa gravidez até o final. Eu vou levar e seja o que Deus quiser.” E, cara, vou te dizer, nunca me balançou, essa proposta que eu tive nunca me balançou, nunca! E acho que não deveria balançar ninguém, porque é um negocinho seu que tá gerando ali. “Ah, vou mudar de vida!” E daí? Vai mudar de vida, mas e o preço que você vai pagar? Então tive a primeira filha.
Depois, graças a Deus, esse casal foi embora. Voltei para o meu barraco. E aí as coisas ficaram mais difíceis, porque a fonte de renda que eu tinha era ser babá da filha deles.
Comecei a catar xepa no Ceasa. Desde criança, eu já ajudava a desmontar barracas de feira em troca de um legume, uma fruta. Aqui montava-se uma feira todas as quintas e domingos, então eu, com a minha filha recém-nascida, ia para lá cedo, madrugava, ajudava a montar as barracas de feira. Depois, na hora de desmontar, às duas horas, eu ajudava a desmontar e ganhava caixotes e mais caixotes de frutas e verduras. Trazia para mim, cozinhava em fogão de lenha aqui. Trazia para mim e ainda dividia com os vizinhos. [Com] a minha primeira filha, foi assim, dificílimo.
Depois, quando a minha primeira filha estava com seis anos, seis para sete anos, eu me envolvi com uma segunda pessoa e acabei engravidando. Foi uma pessoa muito especial na minha vida, mas infelizmente, reagiu a um assalto e foi assassinado quando a minha filha tinha seis meses de idade. Minha filha não chegou nem a ser registrada no nome dele; minhas duas filhas são registradas no meu nome. E aí, quer dizer, se já estava difícil com uma, com duas a situação piorou muito. Essa minha filha, inclusive, tem uma lembrança na cabeça dela: a gente tinha ido num lugar que era uma criação de cavalos e o pessoal do Ceasa vinha com os caminhõezinhos, com os restos de legumes estragados, frutas, e jogava ali para os cavalos comer. E antes dos cavalos começarem a comer, muitas pessoas iam lá para catar. Minha filha me conta isso. Ela tinha quatro anos de idade. A gente entrava debaixo da carroça com o cavalo e minha filha [ficava] tentando puxar uns tomates - minha filha tinha quatro anos, a mais nova. Quando ela foi puxar, eu vi que o cavalo fez assim, e eu botei a minha mão em cima da mão dela; a pata do cavalo com a ferradura veio direto na minha mão. Foi uma dor! Mas consegui tirar a mão da minha filha, se não ele poderia esmagar a mãozinha dela. Puxei ela, mas a minha mão ficou.
A minha filha - ela está com 24 anos -, até hoje ela lembra disso. Teve uma entrevista que a gente deu, não lembro nem para qual lugar foi, que ela falou sobre isso. Ela falou: “Uma imagem que me marcou muito foi a gente catando legumes antes do cavalo comer e a minha mãe quase esmagou a mão.” Ela não esquece disso nunca! Isso foi muito marcante também. A gente brigava ali com o cavalo para se alimentar, entendeu? Foi muito triste, isso.
37:18 - E me conta como foi essa regularização do terreno. Como foi para você, como você conseguiu construir a sua casa?
R - Demorou um pouco para sair. Não só eu, como muitas pessoas aqui, foram as últimas a fazer. Eu não tinha ninguém, era mãe solteira, tinha que trabalhar. Trabalhava na praia, trabalhava num monte de lugares. Foi quando eu comecei a pegar… Meu pai voltou a falar com a minha mãe e como eu tinha muito conhecimento aqui no Rio, meu pai [dizia:] “Márcia, vamos pegar obra juntos.”
Voltei a trabalhar com o meu pai, na área da construção civil. Mas era muito difícil, era um ambiente muito fechado para mulher. Eu fazia pequenos favores aqui, capinava terreno e tal; a pessoa perguntava quanto eu cobrava, aí eu dizia: “Você não está fazendo obra também? Não me paga em dinheiro, não, vê o que que você tem aí de obra para me ajudar”. A pessoa tinha lá… Às vezes as pessoas compravam o material para segurar o terreno, deixavam lá e não faziam, então crescia o mato e outras pessoas poderiam pegar, porque [o terreno] não era murado, era só cercado; outras pessoas poderiam pegar, [porque] todo mundo [estava] querendo construir, todo mundo querendo sair do barraco. Então eu falava pra pessoa: “Você me paga em material. Pô, tô vendo umas barras de ferro lá no teu terreno. Eu capino o terreno para você, estico a cerca; me dá aquelas varas de ferro lá.” As pessoas iam me dando, aí dessas varas de ferro eu fazia o alicerce. Ganhava os tijolos, às vezes tijolos quebrados.
Fiz a minha casa toda fora do esquadro, porque eu não entendia nada de obra na época. Gostar de obra é uma coisa, entender de obra é uma distância muito grande. Acabei eu mesma fazendo, estiquei o alicerce. As marcações dos terrenos não eram perfeitas, então você tinha uma medida de oito por quinze [metros]; todos os terrenos aqui são padrão, oito por quinze, então às vezes o vizinho do lado invadia um metro. Eu sozinha, sem um marido, sem um irmão por perto, sem um pai que também que pudesse me auxiliar, perdi pedaço de terreno aqui, mas.. Fiz fora do esquadro, mas hoje tá aqui, de pé. Não vai cair não, tá firme para caramba agora.
(39:39) P/1 - Você comentou que você fez um curso técnico. Isso foi depois, quando as suas filhas já tinham crescido? Conta como foi essa experiência para você.
R - Quando eu ainda era solteira, nem tinha engravidado ainda, nem nada, só namorava, eu comecei fazendo no curso de Edificações, lá em Nova Iguaçu, próximo de onde eu morava. Quando eu estava no segundo ano, eu engravidei, e aí era difícil levar aqueles canudos, com planta, com aquela régua T nas costas.
Eu já trabalhava com essa madame, que na época morava no Méier e depois foi morar mais para a Zona Sul, então era difícil trabalhar na Zona Sul, ir para a Baixada Fluminense estudar, sair da escola às 22h20 e voltar para casa dela.
Tranquei a matrícula no meu segundo ano de Edificações, mas fiz vários outros cursos na área da construção civil. Porque é o que eu digo, hoje em dia tem tanto curso bom, cursos técnicos, cursos de qualificação, que te dão uma base para construção civil - não tão graduada como uma engenharia civil, uma arquitetura, mas te dão uma base legal. É leitura, interpretação de projeto, desenho técnico. Fui fazendo assim: tinha curso, era de graça, dava a passagem? “Tô dentro!” “É à noite, é longe? Tô dentro!” Fiz vários e vários cursos.
Já com esses cursos em mãos, eu falei: “Vamos batalhar, vamos de canteiro em canteiro e tentar alguma coisa na área da construção civil”, mas era difícil. Lembro uma vez que eu parei num canteiro de obras; era um canteiro tão grande, eu fiquei fascinada com aquilo. Quando eu vi aquele monte de maquinário, [pensei] assim: Vou tentar aqui!”
Lembro que eu fui com os meus diplomas, que na época eram todos impressos; elaborei um currículo direitinho. Quando eu cheguei na portaria e expliquei para o rapaz, o rapaz falou assim: “A moça para fazer o cafezinho já tem.” Ah, mas eu saí dali muito brava! “A moça do cafezinho por quê? Eu tenho cara de quem faz cafezinho? Nada contra, mas nem de café eu gosto!” Aí ele: “Não, é porque geralmente a mulher trabalha na cozinha, na limpeza.” “Você está muito enganado, filho, cuidado que você ainda vai ouvir falar de mim.” Beleza!
Fui embora dali, saí um pouco frustrada. Andei, andei, mas não desisti, continuei batendo perna.
Olha o mundo como é pequeno! Um belo dia, eu vejo um anúncio no jornal, precisando de encarregado de obras. Liguei para o número. Eu tenho uma voz meio grossa, principalmente quando eu acordo. Tem muita gente que fala comigo e pensa que está falando com homem. “Quero falar com a dona Márcia.” “Mas é ela.”
Quando eu liguei para esse patrão, para esse cara que botou o anúncio, ele falou: “Mas você tem experiência na carteira?” Falei assim: “Olha, não tenho na carteira, mas se você me der oportunidade, você vai ver que você não vai se arrepender. Sou uma pessoa de fácil aprendizagem.” “Mas eu estou falando com quem?” “Márcia!” “Márcio?” “Não, Márcia!” Aí ele falou: “Então você é mulher?” “Sim, sou mulher! Qual o problema? Entendo bastante de obra, tenho vários cursos, ajudei a construir nossa primeira casa.”
[Ele disse:] “Mas eu tô precisando de um encarregado!” “Porque não um encarregada? Me dá oportunidade!”
A obra era bem distante de onde eu estava. Ele falou assim: “Onde você está?” “Depende, onde é a obra do senhor?” Aí ele falou: “[No] bairro [de] Laranjeiras.” Eu estava, vamos botar, duas horas de Laranjeiras. Aí ele falou: “Você consegue chegar aqui até tal horas?” “Consigo sim, senhor!”
Marquei com ele, fui igual a uma maluca. Bati o pé para lá. Quando cheguei lá, ele falou assim: “Rapaz, não é que ela veio mesmo!” Aí comecei a conversar… Seu Antônio, o nome dele. Comecei a conversar com ele. Ele falou: “A minha obra é assim, assim. Nunca trabalhei com mulher, não sei como é que é!” “Me dá oportunidade, o senhor vai gostar.” Aí marquei, na semana seguinte comecei com ele.
[Era] uma obra grande, de uma construtora imensa. Cara, quando eu coloquei o pé naquela obra ali, meu Deus! Falei: “Jesus, que coisa mais linda!”
Comecei a trabalhar com ele como auxiliar técnica de engenharia, aí depois fui passando, fui graduando, encarregada das turmas. Tinha um outro encarregado, que depois veio até ser meu compadre, que via o meu trabalho e sempre dizia para o seu Antônio: “Seu Antônio, pode classificar a Márcia porque ela dá conta do recado. A peãozada toda respeita ela. Ela entende bastante, pode dar oportunidade para ela, pode classificá-la como encarregada de obra.” Aí ele me classificou.
Com menos de um ano que eu estava prestando serviço, a empresa me puxou. Menos de um ano, não, menos de um mês que eu estava prestando serviço para ele. Nessa construtora, ele tinha outras obras. A empresa principal viu meu desenvolvimento, o andamento do trabalho com os empreiteiros, aí me chamou. Eu falei: “Seu Antônio, eu vou ter que deixar o senhor.” “Não!” Eu estava há um mês nesse canteiro, mas com ele eu estava há uns dois anos, mais ou menos. Aí a empresa principal me fez um convite: se eu ganhava um salário X, meu salário dobraria. Mas o desafio foi bem maior, porque uma coisa é você lidar com uma empreiteira, sei lá, com trinta homens, outra coisa é você lidar com uma construtora, onde estão sendo feito seis blocos, que você vai lidar com mais de vinte empreiteiras, entendeu? Foi quando eu fui classificada como mestre na empresa principal. Pô, isso já tem acho que 22 anos.
(45:24) P/1 - Depois que você foi para essa empresa, você também encontrou essas dificuldades do tipo “você é mulher, o que você está fazendo aqui?” Você teve essas dificuldades?
R - Muita, muita! Depois, já trabalhando nessa empresa, eu conheci o meu companheiro. A gente veio morar junto e ele não aceitava, de jeito nenhum, não aceitava o meu trabalho, mesmo eu sendo a provedora-mor, porque eu ganhava bem mais do que ele.
Eu não quis abrir mão do meu sonho. Falei: “Eu demorei tanto para chegar aqui, por que eu vou abrir mão? E outra coisa, o que ele ganha não vai dar para bancar os meus sonhos, não vai dar para ajudar minha família, não vai dar para realizar os sonhos das minhas filhas, então eu vou continuar.”
O casamento não durou muito e eu não me arrependo! Tem entrevistas, inclusive, que ele mesmo dá o depoimento dele: “Nunca aceitei o trabalho da minha esposa”. Tem a foto dele lá, dizendo que não aceitava.
Cheguei até a arrumar… Ele trabalhava dia sim, dia não. Para você ver que não tem nada a ver, [eu dizia:] “No dia que você estiver de folga, vai lá trabalhar na portaria, porque tem vaga lá!” Ele chegou a trabalhar comigo, mas mesmo assim, ele era muito possessivo, muito ciumento, então o casamento não foi adiante.
Eu abri mão de um casamento para realizar o meu sonho e digo para você que eu sou muito feliz! Eu sou muito feliz com o que eu faço. Tenho orgulho de ter criado as minhas filhas sozinha, de estar ajudando a minha filha na criação dos meus netos! Bato no peito e digo: “tenho muito orgulho!” Não vale a pena você viver uma vida de frustração, por abrir mão… “Ah, porque o marido não deixa!” Não, independente [disso], cara, é o que eu sonho. Às vezes eu digo assim: “Eu não trabalho só por dinheiro, eu trabalho por amor à profissão e por dinheiro. Você podendo juntar os dois, satisfação plena!” Não tem como não ser feliz trabalhando naquilo que você gosta, é impossível não ser feliz porque o trabalho torna-se prazeroso, entendeu?
(47:35) P/1 - De lá para cá, você ficou quantos anos nessa empresa?
R - Nessa eu fiquei quatro, depois eu saí, fui para outra. Depois eu fui para… Tive um convite, fui para o sindicato da construção civil. Ali também foi um divisor de águas.
Vou te falar uma coisa. Um dia desses eu recebi um vídeo de uma amiga de obras que me emocionou muito. No meu trabalho no sindicato eu tive toda a estrutura. O presidente do sindicato abriu um leque de oportunidades para eu fazer, ter livre arbítrio ali, inserir as mulheres na construção civil, então o que que eu fazia? Eu fazia um trabalho de fiscalização; tinha as equipes de segurança do trabalho, que fazia as fiscalizações dentro dos canteiros de obra. E eu criei um departamento, chamado departamento feminino, tinha uma salinha lá para mim. O que eu buscava nesse departamento, qual era o meu intuito ali? Buscar parcerias com cursos de qualificação voltados para mulheres, [para] essas mulheres se qualificarem. Quando eu fosse fiscalizar os canteiros de obras, eu veria as deficiências de mão de obra. “Tá com pouco carpinteiro, tá com pouco pintor.” Eles sempre buscavam a mão de obra masculina, aí era nessa que eu entrava, chamava os gestores de obra para uma reunião particular. “Eu tenho uma equipe de mulheres que estão se formando agora, no próximo mês. O senhor pode dar oportunidade para elas, para não ter essa deficiência de mão de obra e obra atrasar, ser embargada. Tem uma equipe de mulheres se formando, se o senhor quiser dar oportunidade, o senhor bota elas como meia-oficial. Elas vão fazer a grade de treinamento, de qualificação dentro da empresa, depois o senhor classifica elas como pintoras, rejuntadeiras, como eletricistas, com a NR-10, tudo direitinho.”
Era difícil o convencimento, era muito difícil, mas consegui inserir muitas mulheres na construção civil. Quando você insere a mulher na construção civil, a estrutura da obra tem que mudar, porque você não pode colocar o alojamento da mulher com parede dividida com o alojamento do homem. Quando ia implantar o início do canteiro de obras eu tinha que falar: “Onde vai ser o alojamento aqui?” Já pedia a planta, o esboço da instalação provisória, tudo. “Aqui inicialmente vai ser um almoxarifado." “Então, beleza. Vamos ter mulher nessa obra, ok, doutor?” “Ok!” Era assim que tinha que chegar, já respondendo por ele. “Então o almoxarifado no meio, o alojamento feminino do lado de cá.” O alojamento feminino [era] todo forrado com lona por dentro, para os caras não pegarem as ferramentas e irem lá no nozinho da madeira, pra ficar… Naquela época já tinha celular, tudo isso. [Era] todo forradinho com fórmica, ou com lona, alguma coisa, para eles não terem acesso. Era assim que eu fazia, a exigência principal era essa. É um canteiro de obras misto, então você vai ter mulher e vai ter homens aqui dentro. A gente tem que dar estrutura, conforto e segurança para essas mulheres.
Eu dava palestras nas obras, chegava nas obras às seis horas da manhã, antes do expediente, porque começa às sete horas; o pessoal tem que tomar café, mudar de roupa, então eu chegava às seis da manhã com o pessoal do Sindicato da Construção Civil e a gente dava uma palestra ali.
Eu lembro da primeira palestra que eu fui dar, numa obra muito grande; os homens [estavam] todos à frente e tinha um grupinho de mulheres lá no final, todo acuadinho. E eu sou aquela de levantar a bandeira mesmo, de ir lá buscar, se tiver que subir no palco, eu subo! Quando deram o microfone para eu falar, eu falei: “Só um minutinho, queria só dar bom dia a todo mundo aqui. E outra coisa, abre espaço aqui, gente.” Chamei as meninas lá, as meninas todas tímidas e tal, [com] pouco tempo na obra, estavam chegando. “Faz favor, vocês são minoria, então vocês têm que ficar destacadas. Por favor, abre aqui, quero elas todas do meu lado.” Então, o que acontecia? Ali elas puderam ver que, pô, a mestre Márcia não está de bobeira, ela está destacando as mulheres. E isso levou a um empoderamento, a encorajar as mulheres a trazer mais mulheres para as obras.
Como eu buscava parcerias em cursos de qualificação, o que eu dizia também para o trabalhador homem da construção civil? Ia no psicológico de cada um. “Sua família é composta de quantas pessoas?” Virei psicóloga da obra. “Lá em casa é difícil, Dona Márcia, porque eu pago aluguel, tenho quatro filhos, tem que dar pensão para o primeiro.” “Cara, porque você não bota sua mulher para fazer um curso de qualificação e traz sua mulher para dentro da obra? Você vê que eu trabalho aqui, você vê que eu venho aqui. Cara, eu vou te falar uma coisa. A mulher aqui, dentro do canteiro de obras, é mais respeitada do que lá fora, às vezes, trabalhando numa lanchonete, num restaurante, trabalhando no coletivo, porque os caras pensam assim: ‘Pô, uma mulher para estar dentro do canteiro de obras rodeada de homens, essa mulher não deve ser moleza, não.’ Então eles pensam duas vezes antes de mexer, entendeu? Traga sua mulher para dentro. Você passa a ver a mulher dos outros como se fosse a sua, então você vai passar a respeitar a dos outros e os outros vão respeitar a sua.”
Eu consegui convencer os homens da construção civil, a trazer as mulheres deles para dentro da construção civil. E hoje eu tenho casais que trabalham, que são pintores juntos, que fazem lavagem de sofá quando a gente entrega as obras, que fazem rejunte, que fazem elétrica, marido e mulher trabalhando juntos.
Um dia desses eu recebi um vídeo de uma amiga que mandou um vídeo também lá para a Vedacit, e ela falou assim no vídeo: “A minha musa inspiradora se chama mestre Márcia. Se hoje eu sou uma mulher que eu tenho a minha microempresa, eu devo tudo isso à mestre Márcia, que nunca me deixou desistir, falava assim: ‘Vai em frente, vai dar certo! Se errar, tenta de novo; caiu, levanta de novo.’”
Eu fiquei muito emocionada quando ela mandou o vídeo, falando que eu sou uma das inspirações da vida dela. E tantas outras, então isso é legal, você vê que você tá no caminho, você tá deixando o seu legado ali, vendo que você abriu um espaço grande para mulher na construção civil.
O Rio de Janeiro, na obra do Maracanã, foi a obra que mais tinha mulheres, o maior efetivo lá era de mulheres. Fiz até uma matéria lá também. E tantos outros.
Passei a ser convidada para a Faculdade de Engenharia, para dar palestra para as mulheres se motivarem mais e mais. Cursos de qualificação… Cara, eu viajei o Brasil, dando palestras para tudo quanto é lugar. Eu fui no seminário, onde eu fui palestrante… O seminário era “Salário igual, para trabalho igual”. Porque eu enfrentei preconceito dentro da obra. Tinha mestres de obras com a mesma data de admissão que eu, a mesma função que eu, e eles ganhavam mais do que eu. Fiquei numa luta ferrenha ali, procurando essa igualdade de salários, eu não conseguia. Eu falava assim: “Mas por que, se eu exerço a mesma função que ele? Ele é responsável pelo bloco X, eu sou responsável pelo bloco X, é o mesmo andamento de obra, mesma execução de obra. Por que ele tem que ganhar mais?” E eu lembro que a resposta era: “Ah, mas você já é a primeira mestre de obras do Brasil, o que mais você quer? Você já está na mídia!” E eu respondia: “Mas eu não sou artista, eu sou trabalhadora da construção civil, e eu cheguei aqui foi por meritocracia. Não cheguei aqui pulando janela, não cheguei aqui me relacionando com ninguém. Eu cheguei aqui cavando buracos, peneirando areia, descarregando material. Se eu cheguei onde eu cheguei, eu quero a igualdade.”
De tanto falar de igualdade, fui convidada a palestrar em vários estados, falando exatamente sobre salário igual para trabalho igual. E até hoje eu levanto essa bandeira.
(55:51) P/1 - E nessas palestras que você fez, você percebia que tinha poucas mulheres nesses cursos?
R - Não, até que tinha bastante, mas o difícil era inserir essa mulher.
Teve uma empresa grande em que eu fui dar uma palestra, e eu encontrei um engenheiro lá muito flexível, que falou assim: “Márcia, eu trabalhei numa obra assim que eu me formei e a obra dava muita oportunidade para mulheres. Eu gostei de trabalhar com mulheres.” Ele tinha tido uma experiência com mulheres, assim que ele se formou. E quando eu conheci ele, ele já devia ter uns 48, por aí. Ele falou: “Eu eu tive essa experiência com mulher e eu gostei, porque a mulher tem um diferencial, ela é mais caprichosa.”
Eu falei: “Opa! É esse aí que eu quero para mim!” E eu grudei nele, nunca mais soltei. Onde ele tinha obra, eu estava lá botando mulher. Eu falava assim para ele: “Ó, doutor, não esqueça do espelho da mulher lá no banheiro! Mulher tem que ter o espelhinho dela lá, para ela poder se maquiar, se ajeitar direitinho.”
Eu tinha que trabalhar também o psicológico da mulher, tinha que trabalhar também em cima das mulheres, porque foi muita garota nova que começou a trabalhar em obra. Tinha as mulheres que eram chefes de família, sim, mas uma vai chamando outra, que vai chamando a outra, aí a garotada nova, mulherada nova, assim como os garotos novos também… Já viu! Vê a mulher ali e tal…. Eu tinha que trabalhar a mulher e o homem. Eu dizia assim: “Nunca chame ninguém em obra pelo apelido, porque você está criando uma certa intimidade. Se hoje você chama ele, sei lá, de novinho, amanhã ele está te chamando, “fala aí, novinha”. Já cria aquela intimidade, sabe. Não é legal!”
Tem nome? Chama pelo nome, de preferência nome e sobrenome. Eu nunca me importei de me chamarem de Márcia Cristina, Dona Márcia, mestre Márcia, mas eu nunca aceitei apelidos, porque apelido é uma coisa muito íntima. Eu sempre dizia isso para elas. E eu fui educada com meu pai e minha mãe, que sempre diziam: onde se ganha o pão, não se come a carne. Você tem que separar essas coisas! Tudo bem, de repente numa sexta-feira sai, toma uma cerveja, porque rola sempre, mas, cara, aprende a separar. Tomou uma cerveja, cada um para o seu canto. Não mistura as coisas, porque vai dar ruim. Se cair no canteiro de obras, na rádio peão - a gente chama de rádio peão. Caiu na boca do ‘rádio peão’, meu amigo… Confiança, credibilidade e respeito é uma coisa que você tem que ter aqui na porta, no teu portão. Se você não consegue impor respeito ali no portão da sua casa, você não consegue impor mais em lugar nenhum. Ou então você vai viver de hipocrisia, aqui eu sou uma coisa, dentro da obra, e outra [fora]. Não, você tem que ser a mesma pessoa sempre.
Eu tinha uma sala reservada e uma vez por semana eu reunia as mulheres. “Essa semana eu vou para a obra tal, vou conversar só com as mulheres.” “Essa semana eu vou para a obra tal, vou conversar só com os homens.” Principalmente [para] os homens que viam a mulher ali como oportunidade de ter uma relação. Foi uma coisa muito trabalhosa, porque você tem que mexer no psicológico deles, entendeu. Quer ser respeitado? A melhor maneira, eu sempre dizia, assim… São duas frases que eu falo muito, que eu digo que são minhas, patente minha! “Nada muda se você não mudar” e “a melhor maneira de respeitar o próximo é se colocar no lugar do próximo”. São frases que eu sempre vou levar comigo, sempre.
(59:33) P/1 - Você tinha muita resistência da parte das mulheres ou dos homens, em relação a essas conversas que você tinha com eles?
R - Tinha, tinha sim! Principalmente dos homens.
Cara, os homens, às vezes… Eu falava: “Onde se come o pão não se ganha a carne”. Aí eles diziam: “Eu como o pão e ainda boto a carne dentro!” A resposta que vinha deles era assim, porque eles, infelizmente, viam as mulheres como um pedaço de carne. E, às vezes, a mulher é casada. A maioria é chefe de família solo, mas eles não querem saber não! Então eu falava assim para elas: “Já que eles vêm em cima de vocês, cabe a vocês manter uma barreira. Já que eles não enxergam essa barreira, coloca uma barreira de concreto aqui. Minha filha, se você ficar falada, já era!
Foi muito trabalhoso, eu encontrava muita resistência. Chegou a ponto de um topógrafo perguntar para mim, na época - eu morava ainda com meu ex-marido - se em casa eu era brava assim. Porque na obra você não vai falar mansinho, na obra você tem que falar firme. Aí teve esse topógrafo, eu lembro, que ele perguntou para mim, assim: “Dona Márcia, deixa eu perguntar uma coisa para senhora, a senhora é casada mesmo? A senhora é casada, seu Ivan vem aqui te buscar, às vezes vem aqui de carro, te buscar. A senhora é casada mesmo? A senhora gosta de homem mesmo?” Eu escutei isso de um topógrafo, olhando nos meus olhos. Eu falei: “Olha, meu filho, a minha intimidade na minha casa, entre quatro paredes, não diz respeito nem a você, nem a ninguém! Assim como sua intimidade também não me diz respeito, então vamos tratar só de trabalho aqui, tá bom? E eu não quero mais ouvir esse assunto.” Aí o ajudante dele falou assim: “Toma! Poderia ter ficado sem essa.” Até a sua opção sexual é colocada em xeque quando você tem um cargo de liderança quando a maioria dos seus subordinados são homens, entendeu.
Às vezes eu ia lá passar uma ordem de serviço, projeto, tudo direitinho, passava a ordem de serviço. E eu lembro que quando eu dava as costas eu ouvia muitas vezes, assim: “Em vez de estar em casa lavando uma roupa, cuidando dos filhos… Quando é assim os filhos devem estar todos catarrentos!” A primeira vez que eu ouvi isso eu falei: “Vou responder, porque isso daí é igual porrada de marido, se você tomar a primeira e aceitar, vai aceitar sempre.” Eu escutei e falei assim: “Olha só, eu ouvi isso e não quero mais ouvir, nem da sua boca e nem da de ninguém. Se eu estou te dando uma ordem é porque eu sou capacitada e gabaritada para isso. E não quero ouvir reclamação, quero que execute da maneira que eu estou mandando, porque abaixo do engenheiro a autoridade maior sou eu!” E virava as costas. Não ouvi nunca mais desse funcionário.
Um tempo depois eu tava fazendo uma fachada de uma vila olímpica. E não tem aquele ditado, que quando você está muito grudado você não vê o erro, quem está de fora enxerga melhor? Lembro que toda vez que eu passava onde o cara estava colando a cerâmica na fachada eu escutava ele falar assim: “Lá vem dona Márcia. Quer ver? A cerâmica vai entortar toda”. Ele que tava colando, mas era eu que entortava.
Eu tô passando, tal, o andaime tava lá, montado. Aí eu afastei assim, chamei o profissional: “Meu filho, faz favor. Desce aqui, dá uma olhada aqui para mim, vem de longe!” “Ô, dona Márcia, vai me dar esse trabalho todo, descer do andaime?” “Sim, desce do andaime. Tá de cinto de segurança, desce direitinho!” O cara foi descendo, foi descendo. “Vamos lá do outro lado da rua comigo. Dá uma olhada ali, vê se aquela cerâmica ali tá certa, ou se ela tá camelando. Aquilo ali é o quê, é um toboágua, ou é uma fachada que tem nível, tem tudo direitinho, tem prumo?” “Dona Márcia, é só a senhora passar aqui que entorta!” “Não, meu filho, não é que eu passo e entorta, não. É que você está muito assim, afasta um pouquinho o teu olhar, aí você vai ver que não sou eu que estou entortando a cerâmica.”
Ele falou assim: “Então faz o seguinte, dona Márcia. Sobe lá, então, e me mostra como é que faz.”
Eu não sou muito amante de altura. Eu trabalho em obra, mas eu não sou paraquedista. Então beleza, falei: “Tudo bem!” Botei todo o aparato e subi. Fui trepando no andaime, trepei, trepei.
Lembro até hoje, cara, nossa! Fui aplaudida e tudo no canteiro. Subi e falei: “Me dá essa linha de nylon aí”. Estiquei a linha para um lado, subi, estiquei para o outro, subi, estiquei para o outro. Ou seja, botei três linhas para ele, na horizontal, três linhas. Aí falei: “Agora você dá a partida de lá, da partida de lá e da partida de lá. É só você ir seguindo a linha, filho, não tem como errar. Você quer seguir no olhômetro, então para quê que você está com essa linha aqui em cima? Se você continuar assim, eu vou falar uma coisa para você: você vai perder dinheiro, porque você vai produzir e eu vou mandar arrancar, e cada material que arrancar, que estragar, eu vou passar a descontar do seu bolso, da sua medição.” “Não, dona Márcia!” “Existem duas coisas sagradas, família e bolso, ninguém mete a mão! Se você não está respeitando o seu trabalho, não está dando valor ao seu trabalho, eu vou passar a descontar de você. Cada cerâmica que eu arranco… A cerâmica às vezes eu reaproveito, mas e a argamassa que você já gastou, e a mão de obra do ajudante que a empresa está pagando? Então, a partir de hoje estamos conversados. Você vai seguir três linhas, o que der de erro eu vou descontar de você, da medição, ok?”
Desci do andaime. Quando eu desci o pessoal tava saindo para o almoço. “E isso aí, dona Márcia, mostra como é que se faz!” Mas não precisava disso.
É assim, é a resistência de uma mulher me mandando, uma mulher me explicando. Só que ele me desafiou, ele mandou eu subir no andaime, e eu subi de boa. Tudo bem que depois a perna ficou bambinha. Fui para o escritório: “Dona Maria, me dá uma água com açúcar, pelo amor de Deus!” Mas fui lá e… Quer dizer, são os desafios da profissão, entendeu.
(1:05:39) P/1 - Você falou no início, antes da gente começar a gravar, que você tem interesse em fazer cursos, em dar cursos para capacitação de outras mulheres. Você já chegou a fazer isso? Isso é um plano que você quer para o futuro?
R - É um plano que eu quero, mas para breve, para breve mesmo! Porque graças a Deus, aqui no Rio estão voltando bastantes obras. Devido a queda que teve na construção civil, de 2015 para cá, teve uma queda muito acentuada das obras, agora que as obras estão retornando.
Depois tivemos a pandemia. Muitas mulheres que trabalhavam na área da construção civil migraram para estética, gastronomia, cuidadora de idosos; muita gente teve que ingressar na área da saúde. Muitas mulheres mudaram de ramo, só que agora eu estou resgatando todas.
Isso, não digo nem [que é] um sonho, é um projeto, porque sonho é uma coisa que você dorme, você tem que dormir para sonhar. Projeto, não, você tem que estar acordado, entendeu? Não é um sonho, é um projeto que eu quero fazer, mas para ontem, o mais rápido possível, para qualificar essas mulheres e inserir novamente essas mulheres… As que saíram, se quiserem voltar, claro, serão bem-vindas, e as que ainda não entraram, entrar e descobrir o mundo magnífico que é a construção civil, cara! Porque a coisa mais prazerosa, eu sempre digo assim, que eu tenho amor em trabalhar em construção civil, porque eu sempre vejo que quem vai cuidar daquela casa, daquela obra, é sempre a mulher. Por mais que ela seja bem casada, que o marido chegue junto, lave um prato, faz… Não adianta, o feeling da mulher, o toque final daquela casa, é da mulher! Então, eu penso assim, poxa, é uma mulher que vai cuidar desse banheiro aqui, então eu vou facilitar o máximo para ela. E a mulher tem um diferencial, eu sempre digo: a mulher é caprichosa, ela é limpa, organizada. É difícil a gente ter retrabalho. O homem, ele vai trabalhar, mas em dia de jogo ele pode parar num bar, assistir o jogo ali; ele vai chegar em casa, a janta vai estar pronta, a marmita vai estar arrumada, os filhos já vão estar dormindo. A mulher, não: ela sai para trabalhar, tem que deixar o filho na escola, na creche, na casa da sogra, na casa da avó e voltar correndo, igual eu voltei ontem, para pegar o meu neto na explicadora porque deu um probleminha aqui, então não podia liberar as crianças. [Eu disse:] “Segura ele aí que eu vou pegar!” Ele sai geralmente da explicadora às dezessete horas, eu peguei meu neto às seis horas da tarde. Tem essas correrias, esses imprevistos que a mulher tem que resolver. Já o marido não, o marido não tem essa preocupação, então a mulher gosta de fazer o serviço uma vez só. O cara não, ele sabe que amanhã ele vai estar na obra. “Amanhã eu limpo isso aí, dá um arrematezinho, amanhã eu volto para fazer.” Mas não é assim, podendo fazer aquilo ali para acelerar a obra, você sair daquela e ir para uma outra, é melhor, entendeu? A gente não pode ter aqui monotonia, aquela rotina. “Amanhã eu vou quebrar essa parede mesmo, para que eu vou começar a quebrar hoje se amanhã eu vou quebrar?” Dá para fazer hoje? Vamos fazer hoje. Não deixa para amanhã, não, você não sabe o dia de amanhã.
(1:09:11) P/1 - Você falou da pandemia, Márcia, e aí eu ia te perguntar. Muita gente, muitas mulheres, você disse que foram para outras áreas. E como isso foi para você, durante a pandemia?
R - Olha, por incrível que pareça, foi a época que eu mais trabalhei em obras, porque eu sou uma pessoa… Eu sou muito visionária, eu sou uma pessoa muito eclética, sou uma pessoa muito criativa. Em tudo eu enxergo o lado bom, porque o comércio em geral fechou, só ficaram os entregadores. Então, eu criei uma postagem nas minhas redes sociais: “Alô você, comerciante, pequenos empresários, lojistas, shoppings, consultórios. Essa é a hora de vocês darem um upgrade no seu estabelecimento. Meu nome é Márcia Cristina, eu sou a primeira mulher mestre de obras. Vamos fazer aquela reforma, vamos trocar aquele piso, vamos ver aquele vazamento, aquela infiltração, vamos aumentar o seu estabelecimento!” Criei uma postagem, cara, nas redes sociais. Cara, abalou, abalou, todo mundo me chamava.
O complicado era conseguir sair, trabalhar com todos aqueles aparatos, máscara. Foi a época que eu peguei mais reformas de comércio para fazer, shopping, pequenas lanchonetes. Trabalhava durante o dia. Tinha algumas que só podia trabalhar à noite, porque ao lado tinha que fechar. Foi a época que eu consegui trabalhar. Mas eu não botei mulheres para trabalhar comigo, trabalhávamos eu, meu pai, que na época ainda era vivinho, e mais uma pessoa - pouca gente, às vezes era um comércio pequeno.
Eu consegui reformar alguns estabelecimentos, consultórios de psicologia que ficaram fechados e depois foram abrindo. Eu consegui trabalhar, em plena pandemia eu consegui trabalhar com obras. Eu enxerguei ali uma oportunidade. Eu não sou entregadora, eu não piloto moto, peraí, como é que eu vou fazer? Eu vou ficar sem dinheiro, e as minhas contas? E alimentação, e remédio? Não! Aí fui, criei… Cara, foi tremendo. O pessoal ficava: “Márcia, só você mesmo!” Cara, em tudo, em tudo, bota na cabeça de vocês, em tudo tem o lado bom! Não é só obscuridade, não é só treva não; a luz está sempre lá, é só você olhar para a luz e saber separar, “essa aqui é boa, essa aqui é ruim.” E foi o que eu fiz.
(PAUSA)
(1:11:36) - Você tinha contado, antes do intervalo, a respeito da dupla jornada de trabalho da mulher, que a mulher tem coisas para resolver antes de ir para obra e depois também - voltar, cuidar da casa, enfim. Como era isso para você?
R - Teve uma fase que foi muito complicada para mim, porque eu estava com a minha filha caçula, ela tinha oito anos. Fui trabalhar numa obra bem distante da minha casa e eu não encontrava tempo para deixar ela na escola e chegar antes das sete na obra. Então, o que que eu consegui? Consegui uma vaga numa escola que era horário integral, que ela pegava de sete e meia às quatro e meia da tarde, e essa escola era do lado do canteiro de obras onde eu estava. Então eu saía de casa mais ou menos umas quatro horas da manhã, levava a minha mochila de trabalho, com almoço - eu sempre fiz questão de levar minha comida, meu lanche, as coisas para ela. Saía de casa às quatro horas da manhã com a minha filha de oito anos de idade, com a minha mochila de trabalho, com as minhas coisas pessoais, com a mochila da escola da Isadora e com mais uma roupinha para depois da escola ela trocar. E eu lembro que eu tinha que estar na obra antes das sete, então eu chegava, ficava aguardando o meu horário de entrar na obra e deixava ela às vezes na responsabilidade de uma senhora, que também tinha uma criança que estudava lá. Essa senhora levava ela para mim, entregava na escola. Eu voltava, entrava na obra, batia o meu cartão, começava a trabalhar. E dali, do canteiro de obras - isso era tão mágico - eu via a minha filha no pátio da escola e ela me via no canteiro de obras, trabalhando.
Ela largava às 16:30 e eu largava às dezessete horas. Eu tinha que pagar também essa senhora, que tinha uma criança que estudava lá. Essa senhora pegava ela às 16:30, levava lá para comunidade onde ela morava - era na mesma reta da escola, um morro alto. E lá ela mudava de roupa, dava banho na Isadora. Quando eu saía da obra… Muitas vezes eu saía às dezessete, 17:30, dezoito, dezenove horas. Eu tinha que sair cansada da obra, subir aquele ladeirão todinho e pegar minha filha. Muitas vezes pegava minha filha já dormindo, porque ela acordava às quatro da manhã. E às vezes eu pegava o ônibus lotado, nem todo mundo dá lugar para uma criança já com oito anos, mas a criança com oito anos, às quatro horas da manhã, tá sonolenta ainda, então às vezes eu tinha que segurar a bolsa, segurar a mochila dela e apoiar o rostinho dela aqui no meu braço, em pé, com ela dormindo.
Isso foi uma fase muito cansativa na minha vida. Cansativa para ela também! E quando eu voltava, voltava com ela às vezes já dormindo, no colo. Era distante [de onde] o ônibus passava, para onde eu moro. Foi uma fase muito difícil da minha vida, era a jornada dupla.
A mais velha, que ficava em casa, que ia para a escola sozinha, que saia da escola e ia para o curso, que muitas vezes cuidava das coisas de casa, ela tinha… Que dizer, enquanto a Isadora tinha oito, ela estava com doze anos, então ela tinha essa responsabilidade também, de ficar em casa, dar conta da escola dela, do curso dela e ainda me ajudar dentro de casa.
Olha, foi uma fase, eu vou te falar, foi muito cansativo para mim, muito! É aquilo que eu falo, é a jornada dupla, tripla, às vezes até quádrupla, né?.
(1:15:32) P/1 - O que você acha que falta para que mais mulheres entrem, trabalhem no setor da construção civil, Márcia?
R - Eu acho que falta mais incentivo e valorização por parte dos gestores de obra. O salário da construção civil é um salário bom; é um trabalho pesado, cansativo, mas a remuneração é mais alta. Você entra como ajudante e tem a possibilidade de você galgar, assim como eu galguei. Foi uma trajetória longa, mas eu nunca pensei em ficar só naquilo.
Eu acho que falta até campanhas, políticas públicas também, que incentivem a mulher a ser o que ela quiser, onde ela quiser, a hora que ela quiser, mas que venha também junto com esse sonho da mulher, essa independência da mulher, o respeito por parte da classe masculina. Não só no setor da construção civil, eu estou falando da construção civil porque é o ramo que eu trabalho, é o ramo que o domínio, mas essa diferença salarial é muito grande, muito discrepante, em todos os setores.
Acho que falta mais o chamamento: “Tá começando uma obra em tal lugar”. Pô, às vezes são obras grandes que uma mulher ali, duas, três, dez, vai fazer uma diferença muito grande. O canteiro de obras fica mais atrativo, fica mais organizado, fica mais florido. Eu sempre digo que fica até mais florido. Tenho até um programa que foi feito aí por um sindicato aqui do Rio, acho que é Flores da Construção Civil, alguma coisa assim. Não lembro agora. Eu participei desse projeto, falando exatamente desse encantamento da mulher pela construção civil e como pode ficar mais florido um canteiro de obras com mulheres.
Quando tem um canteiro de obras com mulheres eu verifiquei isso, já consegui ter essa sensibilidade, essa observação. Se tiver uma mulher do lado, o cara pensa duas vezes antes de soltar um palavrão, uma grosseria. Quando escapole, ele: “Pô, desculpa aí, dona Dona Márcia, desculpa aí!” “Tá desculpado, mas pega mais leve!” Querendo ou não, a gente acaba, involuntariamente, exigindo o nosso respeito, porque eles pensam duas vezes. É aquilo que eu falo, se põe no lugar do próximo. Imagine que essa daqui pode ser a sua mulher, pode ser sua filha, pode ser a sua cunhada, pode ser a sua enteada que está trabalhando aqui. Então, vamos nos respeitar mutuamente para a gente ter uma convivência harmoniosa. Mas olha, falta muito [pra] avançar ainda. É uma luta coletiva, mas ao mesmo tempo uma luta solitária.
Embora o público feminino seja maioria, a discrepância, o preconceito, ainda está enraizado, entendeu? Não tem muito tempo que a gente conseguiu o direito ao voto, direito a pílula. Não tem muito tempo que a gente conseguiu isso, é surreal, no século que a gente está, ainda falar sobre isso.
(1:18:58) P/1 - Você continua envolvida no sindicato também?
R - Sim! Eu sou feminista, sou militante. Sou diretora de uma federação de mulheres, aqui no município do Rio. Travo uma luta constante pela igualdade de oportunidades, igualdade de salário. Não estou mais atuante no sindicato, mas já fui da Força Sindical, fui secretária da mulher na Força Sindical. Quando estive à frente do departamento feminino do sindicato, eu consegui muitos avanços, avanços significativos; muitas mulheres colhem essa conquista até hoje, muitas mulheres conseguiram independência financeira, conseguiram até sair de relacionamentos abusivos - eu me deparei muito com isso dentro da construção civil, dentro do sindicato. Eu tinha uma sala separada só para mim, e muitas vezes quando essa mulher vinha pra… Eu mandava convite para essas mulheres, para fazerem os cursos. E elas chegavam ali, às vezes, muito travadas.
Eu lembro que teve uma… Olha, é um caso sensível. Eu lembro que teve uma que falou assim: “Dona Márcia, eu até posso fazer o curso, mas o meu marido não pode saber que eu vou fazer esse tipo de curso.” Aí eu falei: “Mas como assim você vai esconder dele?” “Não, vou falar que eu vou fazer um curso de beleza, de manicure, de alguma coisa, mas eu não posso falar que eu vou fazer um curso de construção civil, porque ele não vai aceitar.” Eu falei: “Olha, é você que convive com ele. É você que vai saber conduzir isso, eu não posso nem entrar nesse mérito, porque quem convive com ele é você.” E ela fez o curso todo com a gente, fez o curso de pintora com a gente e não falou com o marido, continuou fazendo. Ela dependia dele financeiramente, tinha dois filhos do primeiro casamento, teve mais dois filhos com ele e era ele que pagava o aluguel da casa, era ele que bancava o aluguel. Então, ela pensava assim: “Poxa, como é que eu vou fazer com quatro crianças? Sair daqui para onde?” Então, ela continuou fazendo o curso com a gente.
Ela se formou. A formatura dela foi muito engraçada, ela pediu para eu tirar foto, mas não podia publicar, não podia fazer nada, então guardei essas fotos comigo. Tempos depois, ela me procurou no sindicato e falou que tinha conseguido uma obra perto de casa. A vizinha chamou ela para fazer uma coisa, ela fez outra, daí ela migrou para construção civil e conseguiu sair do relacionamento abusivo. Conseguiu se separar desse marido e vive hoje… Eu nunca mais tive contato com ela, não sei nem se ela está ainda no Rio. Mas há um tempo atrás, antes da pandemia, ela entrou em contato comigo e falou que tinha conseguido se separar.
(PAUSA)
(1:21:56) P/1 - Márcia, você estava me contando sobre essa mulher que se formou, você não sabe mais se ela está no Rio. Conta pra gente qual foi a conclusão, até onde você sabe.
R - Um pouco antes da pandemia, ela entrou em contato comigo e falou que tinha conseguido muito serviços, por conta do curso de pintura. Depois ela ia fazer um curso de drywall, rebaixamento de gesso. Tinha conseguido se separar do relacionamento que ela tinha e era pelo que ela sempre me contava, quando ela ia no sindicato. Ela dizia que era um relacionamento abusivo, que ela já tinha dois filhos e aí se deixou engravidar dele com mais dois filhos, então formaram-se quatro. E ela financeiramente dependia dele. Eu sempre usava com ela o seguinte: “Nada muda, se você não mudar. A sua situação está lhe incomodando, então você tem que fazer algo. Eu não posso fazer por você. Eu posso te orientar, eu posso te dar os caminhos, posso te botar nos cursos de qualificação, posso tentar inserir você dentro da construção civil, mas, ainda [com] tudo que eu fizer, se você não tomar a decisão de mudar, não vai mudar! Você vai ficar qualificada dentro de casa, lavando, passando, cozinhando e dependendo financeiramente desse marido.”
Antes da pandemia foi a última vez que eu falei com ela. Espero que esteja bem.
Muitas outras vieram nesse mesmo nicho, nesse mesmo caminho. “Não, peraí, eu estou com ele por quê? Porque ele paga a casa. Eu estou com ele, por quê? Porque a casa é da mãe dele? Não, espera aí, eu posso!”
Às vezes - eu uso muito a minha história - eu falo assim: “Gente, se eu sentar para contar para vocês a minha trajetória pessoal, a minha trajetória profissional, vocês vão dizer assim: ‘Se ela conseguiu, por que que eu não consigo?’” Quando eu falo para elas que morei em barraco de madeira, [que] eu não tinha onde fazer as necessidades, [que] eu botava o berço da minha filha dentro de quatro latas com água para os insetos não alcançarem… Eu lembro da gente morando aqui, nessa casa; ainda era de telha e vazava muito, porque nos fundos tem um campo de futebol, então era muita bolada que levava naquelas telhas de amianto fininhas e a telha era toda rachada, tal. E eu sem condições, em época de chuva aqui chovia muito. Aí eu lembro que eu cobria as minhas filhas e por cima da coberta eu colocava um plástico.
A mãe tem aquele cuidado de zelar pelo sono do filho, e alguma coisa me chamou atenção. Eu fui até a cama das meninas, era uma cama de casal em que dormia eu e minhas duas filhas. Quando eu cheguei pertinho do rosto da mais nova, eu vi que tinha uma lacraia andando no rosto dela. Ela também conta isso, ela não esquece disso nunca, ela passou perrengue também. Tinha uma lacraia andando no rosto da Isadora. E naquela defesa voraz de mãe, eu dei um tapa no rosto dela. Ao mesmo tempo que eu dei o tapa, eu esmaguei a lacraia aqui na minha mão, porque ou eu dava um tapa para matar ou eu esmagava ela na minha mão. Eu dei um tapa, puxei, esmaguei a lacraia na mão.
A Isadora acordou, com aquele susto. “Calma, calma, que tinha um bicho no teu rosto!”
Quando eu conto isso para algumas mulheres, elas falam assim: caramba! E a Márcia está sempre assim, para cima, sorrindo; ela não conta essas coisas com frustração, com amargura, com revolta da vida por tudo que ela passou. Também teve um casamento com um relacionamento abusivo. Eu sofri violência doméstica dentro de casa, pelo meu próprio marido, uma violência, nossa, ferrenha mesmo; tive vários boletins de ocorrência contra ele e nunca deu em nada.
Chega uma hora que você [pensa]: “Espera aí, eu estou caminhando para o caos. Do que adianta eu me qualificar, tentar fazer aquilo que eu gosto, aquilo que me dá prazer, que me dá uma remuneração legal, se dentro de casa eu estou vivendo um inferno? Pera aí! Acorda, acorda, Márcia Cristina!”
Quando eu conto para elas tudo que eu já passei, elas [dizem]: “Márcia, meu marido nunca me bateu, meu marido bota as coisas dentro de casa, mas é isso, mas é aquilo.” Esse “mas” é que é o problema. “Ah, ele é bom para as minhas filhas, mas…” O “mas” que é o problema, porque o “mas” hoje pode se tornar um tantão amanhã, virar uma tragédia e você entrar para estatística. Então, gente, vamos mudar, vamos mudar a nossa vida. Vamos ver aquilo que está nos incomodando, o calo está apertando em quem? É no meu pé ou no seu pé? Não, é no seu! “Ah, ele não é agressivo comigo, mas ele implica com os meus filhos.” Já tá errado, se ele te aceitou com os teus filhos, ele tem que ter respeito, ele tem que ter carinho.
Eu acabei virando, cara, uma coach, que é o que se usa hoje. Mas eu era psicóloga, eu ouvia problemas na obra e aquilo me fazia mal. Quando eu chegava em casa, às vezes desabafava com as minhas filhas. “Poxa, filha, a gente acha que a nossa situação está ruim, mas caramba, hoje eu conversei com um rapazinho de obra, o rapaz está passando por isso e por isso.” Acabei virando uma psicóloga deles e fui pegando esses ensinamentos para minha vida e levando os meus aprendizados, os meus ensinamentos, os meus sofrimentos, a minha trajetória, desde a infância, até agora, para eles. Foi uma troca de experiências; aprendi muito, ensinei muito. Aprendo muito e ensino muito, até hoje. É troca de experiências, troca de vivências, entendeu?
(1:27:43) P/1 - A gente vai caminhando para as últimas perguntas. Primeiro eu queria te perguntar a respeito da faculdade de Letras, que você comentou que você está fazendo. Como isso aconteceu, de onde veio essa ideia? Como é que está sendo?
R - Bom, [foi] quando eu consegui o meu diploma de ensino médio. Eu consegui pelo ENEM, porque eu tinha parado no último ano, vim para morar aqui e aqui não tinha escola de ensino médio próxima. Fiquei três anos fazendo ENEM para conseguir nota suficiente, para conseguir o ProUni. Quando eu botei a disciplina lá, eu botei para fazer Engenharia, Arquitetura ou Letras.
Eu fiquei três anos batendo na porta, porque você tem que ter uma quantidade x de pontos para você conseguir um desconto pelo ProUni - melhor, para você conseguir o ProUni. Quando saiu para Engenharia, o desconto não dava para eu pagar, [o valor da] faculdade de Engenharia era muito alto. A outra opção era o ProUni 100%, com Letras. Aí eu falei: “Vou fazer Letras, eu gosto de ensinar.”
Fiquei um tempo, comecei muito bem. Foi quando eu tive as perdas na minha família, de 2019 para cá. E a faculdade começou exatamente em 2019. O ProUni eu consegui, o incentivo do governo, exatamente em 2019. Em 2019 eu perdi a minha sobrinha, com 28 anos; deixou uma filha de quatro anos, que a minha irmã cria brilhantemente e eu, na medida do possível, auxilio minha irmã, claro!
Depois veio a minha irmã Patrícia, que era a caçula. O marido dela cometeu suicídio em Florianópolis e minha irmã ficou muito sentida com isso. Ela não chegou a ter filho com ele. Era uma mulher linda, independente, viajava bastante com ele, um cara supermaneiro, mas entrou em depressão por conta de um negócio mal feito, uma sociedade mal feita e se suicidou. A minha irmã veio de Florianópolis morar no Rio, ficou muito doente também, entrou numa depressão profunda, era difícil a gente convencê-la a se tratar. Ela acabou tendo um AVC hemorrágico muito violento e faleceu no ano seguinte à morte da minha sobrinha. Ano passado foi o meu pai.
Inicialmente eu tinha começado letras com graduação em inglês. Começou a cair o meu desempenho e como você tem o incentivo do governo, você tem que ter um aproveitamento melhor. Como eu fui caindo muito, acabei perdendo essa bolsa do governo e passei a ter que pagar a minha faculdade. Então, hoje eu não tenho mais o ProUni, eu tenho que pagar a minha faculdade. Ainda tem mais essa.
(1:31:00) P/1 - E como é que está sendo essa experiência para você agora, a faculdade? Você tem gostado? O que você está achando?
R - Sim! Eu tenho gostado, só que agora eu mudei para para híbrido. Não estou presencial, porque o campus é muito distante da onde eu moro. Aqui é muito deficiente de transporte público, aqui onde eu moro. Cheguei a fazer presencial por pouco tempo, mas depois, devido à pandemia, eu passei a fazer on-line. Hoje eu faço online, mas vou ao campus quando tenho que ir, vou, faço as provas. Eu tento conciliar. Às vezes, até na condução mesmo, eu venho com fone de ouvido, venho assistindo a aula ali; chego em casa, eu faço as anotações que dá. Essa é a minha tripla jornada.
(1:31:54) P/1 - Em relação às suas filhas, me conta, o que você achou de ser mãe? O que a maternidade representou para você?
R - Nossa, eu seria vinte vezes mãe. Quando eu era pequena, eu sempre dizia que eu queria ter doze filhos, um time de futebol completo e um goleiro reserva. Aí meu pai - minha família não é muito de futebol não, mas meu pai: “Onze, mas se um se machucar?” Quem não pode se machucar é o goleiro, o restante dá pra gente capengar e jogar, o goleiro que não pode. Se se machucar, tem que ter um goleiro reserva. Mas eu sempre dizia que eu não queria ter filhos gerados por mim, eu queria ir num orfanato e escolher ali onze crianças, ou que aquelas crianças me escolhessem. E eu tinha sempre um pensamento comigo assim, que eu ia ter um terreno muito grande e ali eu ia fazer a casa para todo mundo. Ainda que todo mundo se casasse, eu queria que todo mundo morasse perto de todo mundo. Pra mim a visão de família é isso: é um elo, vocês têm que estar ali juntinhos, unidos. Mas conforme a gente vai crescendo, a gente vê que a realidade não é assim. Como dizia a minha avó, família é boa em porta-retratos. Sentiu saudade? Você vai lá, dá um beijinho; chega o dia de festividades, você vai lá, passa um dia junto, daqui a pouco cada um está na sua casa.
Eu sou uma pessoa muito fácil de lidar. Eu sou calma, mas faço mil coisas ao mesmo tempo, sem me enrolar e sem estressar a mim e nem as pessoas que estão à minha volta. Eu sou muito organizada, antecipada, mas sem muita agitação.
Conforme eu fui crescendo, eu fui vendo que não era bem assim. Principalmente quando você vê o ideal de família, eu via meu pai e minha mãe tendo muitos desentendimentos, aí eu falava: “Poxa, casar é isso?” Eu achava que casar era diferente, era ficar apertadinho assim, juntinho com os filhinhos.
Quando eu tive as minhas filhas, e fui mãe solteira, eu tentava ao máximo criar esse elo familiar. São minhas filhas, são as minhas companheiras. As minhas filhas são a melhor coisa que aconteceu na minha vida, se eu tivesse que ser mãe mais dez vezes, eu seria mais dez vezes. Queria ter condições para isso. Amo crianças, tenho muita paciência com crianças, tenho muito jeito com criança. Aliás, eu amo gente, não criança; eu amo gente, eu amo independente da idade, da religião, de nada. Eu amo gente, eu amo lidar com pessoas.
Quando eu tive as minhas filhas foi preocupante, devido às minhas condições. A época que eu engravidei foi uma época que eu não tinha… Trabalhava numa casa de família, eu era uma babá; não tinha uma casa, não tinha nada. Mas eu sempre digo [que] às vezes você se prepara tanto, mas quem sabe a hora certa é Deus. “Ah, vou me preparar, vou casar, vou ter filhos com trinta anos.” Você não sabe, porque quando você vem de lá, já tá lá no livro. “Fulano vai morrer com tantos anos, vai viver…” Deus já tem tudo… Pelo menos é a minha concepção, eu não sei se realmente é assim que acontece, porque eu nunca fui para o lado de lá e não quero ir nem tão cedo. Me escuta aí, tá Deus!
Eu tinha essa concepção. Quando eu tive as minhas duas filhas… Cara, elas são minhas amigas, não tenho nada a esconder das minhas filhas, assim como elas não têm nada que esconder de mim. Tudo que a gente vai fazer, uma pergunta para a outra: “Mãe, eu estou pensando em fazer isso. O que você acha?” “Pô, filha, acho legal!” “Pô, filha, dá mais um tempo!”
A gente tem uma conexão assim, cara, inexplicável. Às vezes eu falo com a minha irmã aqui e ela fala assim: “Poxa, eu queria ter tido com a minha filha” - a minha irmã que perdeu a minha sobrinha. “Eu queria ter tido com a minha filha a conexão que você tem com a Carol e com a Isadora.” Porque a gente pensa junto, a gente se respeita, a gente respeita a opinião dos outros. Às vezes ela me pede opinião, aí ela fala assim: “Mãe, é exatamente isso que eu imaginei que você ia dizer, eu só queria…” Tipo quando você está executando alguma coisa na obra, como mestre. Eu já tenho a solução, eu só preciso da autorização do engenheiro, do gestor da obra. As minhas filhas falam a mesma coisa: “Mãe, eu só queria ouvir isso de você, mas eu já sabia que a resposta seria essa. Você só confirmou”.
Nosso pensamento é muito igual. É muito, cara, é mágico ser mãe. Ser vó, então, nossa, é indescritível, cara. Ser vó é maravilhoso!
(1:36:50) P/1 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje, Márcia?
R - Hoje, minha família! Ontem mesmo, eu falei que eu vou entrar para o BBB e vou ganhar, vou tirar toda a minha família daqui e alguns amigos. E aí a minha filha: “Ih, vai ficar pobre logo!” Eu falei assim: “Não, porque quem vai para o BBB nunca fica pobre, é só você saber administrar. E outra coisa, tem gente que ganhou e até hoje não mexeu no prêmio, porque são tantos patrocinadores, te chamam para isso, te chamam para aquilo.”
Como eu moro em comunidade, ontem aqui foi um pouco violento. Eu tive que fazer essa manobra, de pedir para sair um pouco mais cedo, para dar tempo de pegar o meu neto antes que as coisas piorassem. Botei lá no grupo da família, porque a gente tem um grupo - fica “fulano, já está em casa?” Porque uma sobrinha estuda longe de casa. Outro neto estuda um pouquinho mais distante. Então, a gente fica se comunicando ali, mandando as informações: “Ah não, tia. Já tô em casa!” “Marcelinho, já tá em casa?” “Já, já tô em casa!”
Botei no grupo da família: “Olha, eu vou entrar para o BBB.” Porque as pessoas ficam [falando]: “Pô, Márcia, você é tão conhecida.” Eu sou líder comunitária aqui, faço um trabalho social também, muito bonito. Nas minhas redes sociais tem muitos trabalhos sociais que eu faço: doações de remédio, alimentos, roupas, brinquedos. Faço ceia de Natal aqui para as crianças, com a ajuda dos amigos. Tenho trabalho social desde que eu vim morar aqui, porque eu vi a dificuldade, não só a minha, como de outras pessoas. O que eu ganhava, eu sempre dividia. Quando eu ia para o Ceasa, que é a nossa central de abastecimento aqui no Rio, eu não ia sozinha. Eu chamava todo mundo para ir a pé, vamos de carrinho de mão. Ganhava peixe, ganhava legumes, tal. E [quando] chegava aqui, aqueles que iam e traziam comigo, beleza; aqueles que não podiam ir, que eram as pessoas de mais idade, as gestantes, eu chegava aqui no meu quintal aqui e dividia com elas: “Vamos ver aí o que vocês precisam.” Eu já fazia esse trabalho e eu continuo fazendo esse trabalho.
Mas eu não tenho ajuda de político, não tenho ajuda de pastor, eu não tenho ajuda de ONG, não tenho ajuda de ninguém! A minha ajuda é dos amigos, das minhas redes sociais. “Gente, tô com uma família precisando disso e disso aí, se alguém puder ajudar.” Daqui a pouco surge um fogão, surge um alimento, um remédio, cara, ‘n’ coisas.
As pessoas falam assim: “Cara, você tem uma influência tão grande nas redes sociais. Se você entrar para um programa de reality desse aí, você pode até não ganhar o primeiro prêmio, mas zerada de tudo você não vai.” Até tentaram me colocar na política aqui. “Márcia, entra para a política!” Eu sempre digo o seguinte: para fazer política não precisa entrar para a política. Eu já faço política quando dialogo com o meu filho, com o meu neto. “Ah, vó, mas por que que eu não posso ter um celular com seis anos de idade?” “Você não pode por isso, por isso e por isso! Você pode ter um tablet com alguns joguinhos e tal, [com] a vovó, a mamãe e o papai ali orientando, fiscalizando.” Você está fazendo política! Você precisou entrar para política para fazer política com os seus filhos, com os seus netos? Então, eu sempre digo, para fazer política não precisa entrar para a política, porque a gente é politizado desde quando nasce. É politizado de uma maneira, mas a política já é outra coisa, entendeu?
Eu não sou analfabeta política, sou bem politizada, em todos os sentidos. Sempre falo assim: “Tenho vontade? Tenho vontade sim, de entrar para fazer algo pela minha comunidade e avançar para outras comunidades.” Mas é um nicho tão fechado, sabe? Ainda mais quando é comunidade, você tem que ter aquela sensibilidade, o que você pode avançar e o que você não pode. Porque eu sempre digo, o presidente da associação é o primeiro a ser morto. O BOPE, daquele filme que teve, Tropa de Elite… “Entra, Márcia!” “Não, não quero nada disso! Deixa eu fazer do meu jeitinho. Como eu falo assim, pelos bastidores.”
Sou conhecida nos bastidores, pô. “A Márcia da doação?” “Caraca, a Marcinha do futebol, conheço.” É melhor você ser conhecida assim, porque quando você entra para política, tem certas coisas que você vai bater de frente com o sistema, e às vezes você não pode bater de frente com o sistema. Então, deixa eu quietinha assim. O BBB é melhor, porque não é política, então acho que é mais tranquilo, entendeu?
(1:41:14) P/1 - Quais são os seus sonhos para o futuro, Márcia? Além de entrar no BBB.
R - Além de entrar para o BBB, é finalizar a minha casa. Na minha casa ainda falta muita coisa, porque tem aquele ditado, casa de ferreiro, espeto de pau. Na casa da minha filha que é casada, a laje foi batida no dia nove de março. Agora vem a parte dos acabamentos, tudo isso é a parte mais cara, mais demorada, então eu quero ajudar a minha filha a finalizar essa casa. E a minha outra filha, ela conseguiu comprar um apartamento, e está com ‘n’ prestações aí. Eu falei com ela, que eu trabalhando, o que eu puder [ajudar].... Porque ela também está fazendo faculdade, está fazendo concurso para Polícia Rodoviária Federal.
Cara, não digo sonho; o meu projeto é estabilizar a minha família, é tudo que eu quero, estabilizar a minha família. E claro, continuar com os meus trabalhos sociais para ajudar a comunidade, porque aqui é muita carência.
Um tempo atrás teve o filho de um amigo meu, que teve uma moto furtada. E foi falado que essa moto veio aqui para cima da comunidade. Como eu, graças a Deus, conheço todo mundo aqui, eu acabei subindo lá para tentar resgatar. Tenho, graças a Deus, entrada livre lá. E rapaz, tinha muitos anos que eu não subia nessa outra comunidade ao lado daqui. Olha, o que eu vi lá me impactou. Eu moro aqui há 32 anos, tem gente que ainda mora aqui que não tem um banheiro, que as necessidades são feitas no quintal, que as pessoas têm um caninho com um pedacinho de torneira lá no pé do morro, lá embaixo, e carregam água ainda nos baldes, para poder levar para cima do morro. Quando eu vi isso, falei: “Gente, às vezes é do nosso lado. Às vezes você está no asfalto e as pessoas morando aqui no morro, aqui do seu lado e você não sabe a necessidade que essas pessoas estão passando.” É claro, não conseguimos recuperar a moto, mas aquilo ali me impactou.
Veio o ano passado a política, aí pronto, os candidatos começam a me rodear. “Pô, Márcia, você tem uma liderança comunitária muito grande. Vamos me ajudar.” “Posso ajudar, cara, mas e você, o que você vai fazer pela comunidade?”
Foi uma época boa, porque como eu digo para você, eu sempre vejo o lado bom em tudo. Quer que eu te ajude, me ajuda também! Então, eu consegui muita doação de cesta básica, pessoas que precisavam de atendimento médico, às vezes o candidato tem um conhecimento no hospital X, entendeu. Negócio de operação de varizes, operação de cataratas, ligadura de trompas. Infelizmente é assim que funciona: na época da campanha todo mundo faz tudo, todo mundo aparece. O cara está lá nas cinzas o tempo todo; chegou a campanha política, aquela poeira se levanta, cheia de cheiro de naftalina.
Beleza, quer que eu te ajude? Então vem me ajudar. Consegui muitas doações, a gente conseguiu atender dezesseis comunidades no total. [Era] um candidato muito bom daqui, mas infelizmente ele não conseguiu se eleger; ele mora aqui há mais de cinquenta anos, mas infelizmente não conseguiu se eleger. E aquilo que eu falo, é o sistema, às vezes o sistema te impede; te dá uma gana de coisas para você resolver, mas te impede realmente de entrar lá. Falei assim: “Não, bate na porta, vai de novo. Se realmente é determinado e quer fazer isso, então vai à luta.” Eu prefiro ficar pelos bastidores, auxiliando um e o outro.
Eu moro aqui há 32 anos e foi o segundo político que eu ajudei, foi o segundo só, não gosto, não gosto! Eu acho que a política não é para mim, não. BBB é, política não!
(1:45:19) P/1 - Qual legado você quer deixar, Márcia?
R - Olha, eu quero deixar um legado legal e eu acho que já tenho tudo isso. Eu tô tentando escrever um livro, sabe? Já tenho algumas coisas de rascunho. Tô tentando escrever um livro porque a minha história virou uma história que não passa despercebida. Foi uma coisa tão despretensiosa, mas eu não sabia que ia gerar tanta empatia, tanta sororidade. Mas eu acho que por ser mulher, eu acho que o legado é um legado legal, é bonito!
Às vezes eu passo num lugar, tem gente que me para as vezes dentro do metrô e fala assim: “Caramba, eu te conheço! Tu já foi no programa da Globo, da Ana Maria Braga?” “Já, já sim!” “Eu te vi também na Globo News, não sei o quê”. Aquilo é legal, você pensa que você está anônima ali no meio da multidão e tem sempre alguém que te conhece. Então, eu tenho que usar isso não só a meu favor - a meu favor já está, já uso, mas eu quero usar isso a favor de outras mulheres, que isso [se] perpetue.
Teve uma matéria muito bonita comigo, dizendo que eu sou a pioneira na área da construção civil. E eu quero que esse pioneirismo não seja só meu, que outras venham a ser protagonistas das próprias histórias - se não forem como mestres, como pintoras, como arquitetas. Caramba, a primeira arquiteta que eu vejo, primeira engenheira que eu vejo executar uma obra de pontes, uma obra grande, uma obra de rodovias, porque geralmente você vê homens… Eu quero que esse pioneirismo avance mais e mais para o lado das mulheres, não só a Márcia, primeira mestre de obras do Brasil. Legal! Mas a gente pode ter a primeira engenheira tocando uma obra de ferrovia, uma obra de rodovia, uma obra de tatu, aquela onde vai perfurar para fazer passar o metrô. Eu quero, sabe, que esse legado que eu estou querendo deixar, que eu estou plantando essa semente, ele se perpetue, assim como se perpetuou o direito ao voto, o direito a evitar filhos, entendeu? Porque são tantas mazelas que a mulher passa, principalmente a mulher negra. Se cada um pegar, “opa, isso aqui está me incomodando, eu vou levantar essa bandeira aqui e vou passar para frente”, “isso aqui está me incomodando, eu vou pegar”... Cara, eu acho que a gente consegue construir um mundo mais justo, um mundo mais igualitário.
(1:48:04) P/1 - Então, vamos para a última pergunta. Márcia, o que você achou de contar a sua história de vida para gente hoje?
R - Achei muito bonito da parte de vocês, uma iniciativa como essa. Porque são coisas que serão eternizadas. Assim como muitas protagonistas passaram nas nossas ancestralidades, assim como surgiu o Oito de Março, Dia Internacional da Mulher, mas vai saber como surgiu isso? Tudo tem um fundamento.
Hoje eu estou contando para vocês aqui uma história que de repente daqui a vinte anos, vão achar um absurdo. “O quê? Mas gente, isso foi no século passado, como é que pode? Que é isso? Como é que pode naquela época, 2023, a mulher passar por isso ainda? Já tinha o voto feminino, já tinha mulher pilotando avião, já tinha mulher sendo comandante de navio!”
Acho que essa iniciativa foi maravilhosa. E que venham mais iniciativas como essa, que venham mais campanhas como essa para abrilhantar esse empoderamento feminino. A gente fala muito em empoderamento feminino, mas é um empoderamento mascarado. A realidade é que é um empoderamento mascarado. Você às vezes está numa função de destaque, como eu já estive e estou atualmente, mas quando você vai ver os bastidores, é totalmente diferente. Você tá ali, caramba, a mulher é mestre de obras! Mas vai ver na carteira dela se ela tem ali a mesma igualdade salarial que o outro tem, às vezes o mesmo tempo de casa. É um empoderamento um pouco mascarado.
Quando a gente consegue trazer essa fala a público, tornar isso público e fazer disso uma história e fazer disso um legado, vamos movimentar a sociedade feminina e a sociedade masculina. E aqueles que vierem…. Eu sempre falo assim: a mulher não veio… “Eu vim ocupar o meu espaço.” Não, eu não vim ocupar, porque o meu espaço já está aqui. Em Ciências dizem que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, então eu não estou aqui para ocupar o meu espaço, porque o meu espaço já está aqui. Eu estou aqui para caminhar ao lado do meu companheiro, ao lado do homem que está trabalhando aqui comigo.
Eu dei uma palestra uma vez e o auditório, nossa, foi abaixo. Eu abro espaço para as perguntas da plateia, aí geralmente a pergunta vem sempre do homem: “Ah, mas vocês falam tanto empoderamento feminino, que vocês estão aqui para ocupar o espaço que é do homem.” Eu falei assim: “Não, eu não posso ocupar o espaço que é do homem. Faz favor!” Chamei o cara lá na frente, cara, foi massa isso que eu fiz, eu sou muito de interagir com a plateia a qual eu estarei falando. “Faz favor, vem aqui você, por favor!” Aí ele veio, subiu lá onde eu estava dando a palestra. “Fica aqui do lado. Agora eu vou chegar para cá, vai caber eu e você aqui? Não, eu vou ter que te empurrar para você ir para lá, ou você vai ter que me empurrar para vir para cá. Não é mais fácil a gente fazer isso?” Aí dei o braço para ele. “Não é mais fácil a gente caminhar junto? Vamos caminhar juntos! Eu ocupo meu espaço, você ocupa o seu. É igual você pegar um feixe de lenha: se você pegar uma lenha, um graveto, você quebra ele na perna. Agora pega um feixe desse graveto, tenta quebrar na sua perna. Tu vai quebrar a perna, mas não vai conseguir quebrar o graveto.”
É isso que eu mostrei para eles. “Eu não estou aqui para ocupar o seu espaço, se você estudou ciências, física, você sabe disso, que a gente não pode ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, você vai ter que sair para eu chegar ou vice-versa. Então, eu não estou aqui, nem mulher nenhuma está aqui para ocupar o espaço de vocês. O espaço de vocês já está garantido quando você está concebido lá no ventre da sua mãe. Você sai, ganha um espaço na sociedade, no mundo! Agora cabe a você saber ocupar esse espaço ou não, entendeu?” Nossa, o auditório, meu Deus! “Eeeeee, é isso aí mesmo! Bora, bora, tamo junto!”
É você saber conduzir esse tal empoderamento. Eu não quero brigar com homem, eu quero me aliar com ele, vamos caminhar juntos. Uma suposição: você casou com a mulher, teve quatro filhos, só você trabalha. Cara, você vai trabalhar 35 anos e às vezes não vai conseguir uma casa própria. Então, se você liberta sua mulher para se qualificar, seja na área da construção civil, seja na área da beleza, seja na área da gastronomia, o que você de repente iria conquistar, vamos botar em vinte anos, com a sua mulher trabalhando você pode conquistar em dez, quinze.
Daqui a pouco o seu filho está aí com treze anos, vai para um menor aprendiz, jovem aprendiz. Minhas duas filhas, meus sobrinhos todos foram menores aprendizes, todos foram jovens aprendizes. A minha filha, com treze anos, vendia churrasquinho aqui em Guadalupe, ela e o primeiro namorado dela. Hoje ela está com 24 anos, conseguiu comprar o apartamento dela mês passado. Está no sufoco para pagar, mas com 24 anos. Tem habilitação de carro, tem habilitação de moto. A outra eu ajudei a comprar o terreninho para ela aqui onde eu bati a laje.
Eu crio elas o mais independentes possível: “Vocês tem que ter o canto de vocês, porque amanhã ou depois se não der certo, você tem a sua casa e a casa dos seus filhos. Geralmente é o marido que sai de casa. Ele sai com a roupinha dele, leva as coisinhas dele e você está ali, com a sua garantia. Nada de filha minha ficar na dependência de homem, às vezes num relacionamento abusivo, porque depende do cara. Não, você tem que ter o seu canto.” A mesma coisa quando eu falo para o meu genro: “Compra um terreno e constrói uma casa para você, amanhã ou depois. Porque nada é para sempre, a gente quer que seja eterno enquanto dure e se tiver em boa convivência, mas se não tiver e se separar não vai fazer igual ao meu ex-marido. Separou da mulher, veio morar comigo; não deu certo comigo, foi morar de aluguel.” Um cara com 35 anos de carteira assinada, foi morar de aluguel! Mora até hoje de aluguel.
Eu progredi, porque eu estou com 54 anos, tenho a casa que eu moro. Tenho a casinha que comprei aqui para minha filha, tem uma outra que eu comprei lá embaixo, que estou reformando para alugar. Então, que dizer, você tem que ter… Fazer um jeito de fazer dinheiro.
A minha mãe é aposentada com salário mínimo. A minha irmã, quando faleceu…A quitinete que a minha irmã morava em cima eu estou reformando pra gerar mais uma renda para minha mãe, porque uma pessoa de 75 anos no Brasil ser aposentada com salário mínimo, cheia de problemas de saúde, não dá!
Meu sonho, meu projeto é esse, estabilizar a minha família. Depois que estabilizar a minha família, cara, o que vier para mim, tô bem, tô tranquila. Para mim o que eu tenho já tá legal! Eu quero ajudar minha família, meu foco principal.
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