P/1 – Então, Geralda, começar a nossa entrevista vou pedir pra você falar de novo o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Precisa declarar a minha data de nascimento?
P/1 – Não, só o dia!
R – (risos) Não, tudo bem, é brincadeira. O meu nome é Geralda Chaves Soares, normalmente o pessoal me chama de Gera, é o nome que eu me identifico também, né? E eu nasci em Santana, hoje é município de Ponto dos Volantes, mas antigamente era município de Araçuaí, depois de Utinga e tal. E nasci no dia 31 de dezembro de 42.
P/1 – E o nome dos seus pais e o quê que eles faziam?
R – Meu pai chamava Marcelino Antonio Soares, minha mãe chama Joventina Chaves, né, Resende. A minha mãe é viva ainda. E eu tenho mais uma irmã e dois irmãos. E meu pai, ele foi aqui natural de Araçuaí, ele foi criado pelos negros aqui dessa região de Baixa Quente, que é uma região vizinha. Ele, parece que de 12 aos 16, ele ficou com esse pessoal negro. E aí ele aprendeu muita coisa foi, acho que fez a cabeça por aí. E ele era branco de olho azul, cabelo loiro, e ele casou com a minha mãe que era de uma outra linha. Minha mãe, meu avô materno era descendente de uma, tinha várias famílias de açorianos que chegaram no Jequitinhonha em 1890, por aí, e se fixaram na região de Gumercindo Bruno, eram 13 famílias e ali estava o meu bisavô, que é o Bruno Resende, hoje chama Gumercindo Bruno lá. E minha mãe já foi neta dele. E eles só tinham um filho, o filho mais velho chamava Teodoro Resende, ele se transformou depois de um tempo de estudo lá, não sei se foi em Salvador, eu acho que foi Salvador, tava dando epidemia, foram lá, pegaram o filho e trouxeram pra cá pra não morrer porque era o único filho. E ele veio, como ele tinha aprendido muito, ele sabia latim, sabia muitas línguas, sabia latim, sabia português muito bem, contas, então ele se transformou em professor ambulante. Então o quê que ele fazia? Ele dava aula, vocês podem imaginar numa década dessa, quando ele andava de canoa na beira do Jequitinhonha os fazendeiros contratavam, ele ficava seis meses num lugar, seis meses em Taubinha, seis meses no Caju, seis meses em Jequitinhonha.
P/1 – Geralda, o microfone virou, vamos acertar?
R – Desendou aí. O quê que foi aquilo?
P/1 – Aqui virou!
R – Ah tá.
P/1 – Você tava falando do seu avô materno.
R – O Teodoro Resende, descendente de famílias açorianas, ele se transformou num professor ambulante aqui. E ele tinha várias filhas e foi passando aquela sabedoria dele de professor, de mestre – chamava Mestre Teodoro – para as filhas. Então a minha mãe aprendeu a dar aula com ele e as outras tias também. Então eles eram um pessoal que tava muito ligado com essa coisa da educação. Exatamente por causa da formação de meu avô lá em Salvador. E era um período assim, quando eles entraram no Jequitinhonha, esses açorianos, eles já estavam vindo da Bahia com problemas políticos, porque eles chegaram em Salvador e era aquele período, o pessoal que lutava contra o Império e queria República. Então meu bisavô já era republicano nesse tempo. Então ele “se ferrou” lá na Bahia, migrou pro Jequitinhonha com esse grupo de famílias. Chegando aqui ele encontrou exatamente o mesmo desafio: existiam famílias em Gumercindo Bruno, a família Martins, que era do lado do Império, e aí teve muita briga, muita confusão, né, como sempre. Mas acabou que o filho dele, o Teodoro, ele se transformou em professor, passou isso para a minha mãe, pra outra tia (Quelé?), ela é de Medina, um outro grupo grande de famílias, Medina era um pessoal muito ligado com arte, com música, minha mãe, por exemplo, tocava trombone, flauta, violão e harmônio, nesse tempo tinha harmônio, tocava na Igreja, era o padre, acho que Miliano, que era um padre negro que tinha na região que ensinou pra elas. Então a gente sempre teve na família essa ligação com a questão da educação, da crítica, da oposição. É esse negócio por aí. Minha mãe, então, casa com o meu pai numa outra família daqui da região originária do Alto, né, muitas famílias entraram para cá no período da decadência da mineração e casa aqui na família, em outra família aqui: Soares. Então aí começa um outro grupo de famílias.
P/1 – Então, Geralda, você estava falando da sua mãe, da família da sua mãe.
R – É. Então, ela se casou numa outra família, ela parou de lecionar e passou a acompanhar meu pai que era, o meu pai trabalhava de várias coisas, de garimpo, tinha uma fazendinha. Nós nascemos todos em Santana, que é ali perto Joaíma, chamava antigamente Fazenda Velha Terra da Isabel. Então nós nascemos ali. E eu saí dali e vim estudar aqui em Araçuaí, aqui era um colégio das irmãs. Minha formação começou por aí. Meu pai era um cara que lia demais, ele teve por “n” situações, por exemplo, ele foi criado com esses negros, ele não tinha muita ligação com Igreja, então ele criava um círculo de amizades, ele ficou com a loja do pai dele lá do povoado e loja é um lugar que passa muita gente, então aqueles viajantes começaram trazer livro pra ele ler, então ele lia muito, ele tinha uma biblioteca enorme no fundo da loja e tinha muitas amizades assim que, por exemplo, ele era Getulista, trazia um retrato de Getúlio lá embaixo, toda aquela história da época do Getúlio.
P/1 – Geralda, deixa eu recuperar. Você sabe por quê que ele foi criado por esse grupo de negros, você pode contar?
R – É porque a família não aguentava ele, né? Ele era terrível, aprontava demais.
P/1 – Era traquina demais.
R – Aprontava demais, então a minha avó entregou ele pra esse pessoal aí daqui da família dos... Então os negros realmente botaram ele no bom caminho, ele acordava de madrugada preocupado em sofrer alguma represália e aí ele começava a encher as talhas todas cheia de água, porque não tinha água encanada, tinha uns potes de barro, e moer cana de madrugada. O pessoal acordava, ele já tinha moído um monte de cana lá no engenho com medo de apanhar. Então com isso ele dançava o (candombe ?) que é uma dança dos negros daqui, eles vinham dançar aqui perto onde hoje é o, como é que chama aí? A Beira da Linha, antigamente era Bahia e Minas, tinha um espaço ali que eles dançava, o (candombe ?), né? Vinha pra essas festas aqui do Rosário e, segundo ele, era muito estranho porque todo mundo era negro e ele era branco de olho azul mas ele não pensava naquilo, ele se sentia muito integrado no grupo. Então acho que essas influências todas acho que fizeram a cabeça minha, de meus irmãos e tal. E eu tava contando que ele, depois de caso com a minha mãe, ele ficou mais estabilizado. E ele o povo conta muita história dele, que ele aprendeu com os negros a ficar invisível. Às vezes acontecia que ele ia, tinha uma tocaia, que ele aprontava muito, e ele ia, chegava lá o pessoal tava de lá e atirava nele e não vinha mais nada, quando voltava tinha um monte de murundu lá, ou tinha um cachorro, alguma coisa assim, o pessoal: “Ah, não, não tem nada” e ia embora mas que era ele, né? Então ele tinha muitas histórias assim fantásticas. E minha mãe sempre foi uma pessoa, assim, mais forte mesmo dentro de casa na formação dos filhos e tal, parou de dar aula, foi ser só trabalho de casa e a gente morava em Santana. Eu tava contando quando eu tinha essa faixa de 12 anos, eu vim para Araçuaí, por quê? Porque o meu pai incentivava a gente a ler demais, se ele entregava os livros pra gente ler e depois chegava tarde da loja e cobrava: “Ah, você leu então mude, o que você achou então?” E aquilo pra nós que era um povoadozinho de nada, Santana era, vocês viram Santana, é um mundo assim fechado, né? Aquilo a gente vivia voando, né, todas as fantasias dos romances.
P/1 – Você gostava de lá?
R – Gostava.
P/1 – Lia mais o quê assim?
R – Olha, com nove anos eu lia a história da colonização do México, você imagina! Os caras chegando com a roda, introduzindo a roda no meio dos índios, o índio achando bom empurrar o carrinho de mão, essa coisa toda. Então pra mim era uma coisa fantástica a história dos Maias, dos Astecas, era aquela coisa que ficou no inconsciente. E quando eu vim pro Colégio Nazareth foi um outro mundo, quer dizer, aqui tinha uma biblioteca, tinha irmãs que davam aulas, tipo a irmã Letícia que era uma pessoa que conhecia muito química, biologia, pessoal muito bom mesmo. E era um tipo de formação que a gente recebia que era muito forte, apesar de que era um colégio, assim, pros filhos do pessoal fazendeiro, o pessoal que tinha poder na região. Mas, como a gente não tinha, mas eu vinha, estudava externa, não estudava interna, mas recebia essa influência que foi muito importante na minha vida.
P/1 – E ficava aonde?
R – Eu ficava na casa de meus tios aqui, da família Resende, que também eram irmãos da minha mãe, Franca e Resende. E eles tinham muitos filhos, era uma experiência diferente porque lá em casa eram poucas pessoas, nós éramos cinco filhos e lá, aqui na casa de meu tio, eram 13 filhos! Você imagina, a minha cabeça assim foi a mil, né? E o colégio para mim era, eu acho que era uma janela do mundo, então eu vivia na biblioteca, eu lia tudo de história em quadrinho, até tudo que achava! Eu era muito estudiosa. E aí começou a participação mais forte, por exemplo, aqui tinha os grêmios, então a gente participava. O fato de eu ter lido muito me fazia escrever bem, destacada porque eu escrevia bem. E lembro de professoras muito importantes na minha vida como irmã Gema, irmã Marta, irmã Genoveva que era uma pessoa ligada com a Ação Católica, ela era orientadora aqui da Ação Católica estudantil. E foram pessoas que da minha formação política foram muito importantes. E também tive outros professores bons como o Dom Enzo, ele foi meu professor de física na escola, ele tava chegando da Itália. Então passei essa temporada, até me formei aqui, na época que eu formei, assim, eu tava deslumbrada com esse mundo de educação, o trabalho que as irmãs faziam, esse trabalho de politização que a irmã Genoveva, de formação que a irmã Genoveva, que a irmã Marta davam. Então isso pra mim eu não tinha retorno pra Santana, eu não via como voltar. Voltar pra lá, pra mim, significava voltar atrás e eu queria mais coisas, eu queria trabalhar com a juventude, ser aquela coisa que as irmãs eram. E assim eu decidi ir pro convento. Aí eu fui, fiquei dois anos no noviciado, aí por uma série de histórias eu não fiquei mais, saí. Aí fiquei em Belo Horizonte, fui fazer vestibular, aí eu trabalhava. Quando eu saí daqui, eu já tinha terminado o curso de professora, de magistério. Quando eu saí daqui, que eu fui pra BH, fui pro convento, eu já tinha terminado essa fase aqui. E depois eu fiquei em Belo Horizonte, era uma coisa muito interessante essa vida em Belo Horizonte, que eu vivia mais aqui de que lá, a cabeça estava lá, mas estudando, mas o mundo todo tava aqui, né? E em Belo Horizonte eu fiz o vestibular, que queria fazer psicologia, era um sonho que eu tinha, só que eu não passei na federal, fiquei como excedente. Aí eu tentei na PUC, passei na PUC pra pedagogia, e como não dava pra perder tempo eu fiz pedagogia na PUC.
P/1 – Junto com o convento?
R – Não, isso aí eu já tinha saído.
P/1 – Já tinha saído! Tá.
R – Já, já tinha saído. E no período que eu era noviça, não cheguei a ser irmã mesmo, fui só aspirante. Depois foram dois anos. Eu fui aluna de uma pessoa fantástica que eu acho que eu tenho no meu arquivo secreto, que é o padre Vaz, padre Lino Vaz que era jesuíta, uma pessoa que marcou esse período nosso de muita insatisfação na sociedade, na juventude que foi o período da Ditadura Militar. Então lá nesse instituto que eu estudava antes de fazer o vestibular, o padre Vaz era um arrimo, porque ali a gente estudava com ele filosofia, antropologia, e dava uma base pra gente enfrentar aquele mundo maluco que estava instalado com a Ditadura. E eu estudei, então, pedagogia na PUC, era uma época complicada demais, a formação da gente toda era gente discutindo o papel da educação, e a escola impingindo pra gente uma educação pro mercado de trabalho, era o grande debate da gente era esse. Quer dizer, você vai ser condicionado a entrar na filha e ir pro mercado, ou você vai fazer um outro tipo de educação? E aí eu conheci pessoas na PUC que foram, assim, que abriram a cabeça nossa. Eu, por exemplo, me lembro da Consuelo Quiroga, que era da área de assistência social, outra era o Filipe Aranha que morreu, que era uma pessoa que marcou esse Jequitinhonha aqui, né, ele era de (Rubi?), ex-padre, filósofo, educador. E o, como é que ele chama? Esse período aí que eu conheci a Consuelo Quiroga e o Filipe que a gente entrou mais contato, a gente começou a descobrir essa linha de trabalho social, quer dizer, é possível você ter pra trabalhar, né? E as alternativas que nós do Jequitinhonha e muita gente tinha nessa época era a guerrilha. Ou você, se você quiser mudar as coisas, você vai pra guerrilha e lá o pau tá quebrando, então você tem que ir pro Araguaia, tem que fazer isso. E a gente vivia naquele embate, aqui do Jequitinhonha mesmo muitos jovens entraram nessa, o Idalício, irmão do Filipe, Idalício Aranha foi assassinado naquele massacre do Araguaia, a menina dele, a Dinorá que era psicóloga. E um monte de gente que morreu naquele período e nós, a gente que ficou pra trás, a gente vivia naquele dilema: o que fazer diante de uma violência dessa instaurada no país? E foi nesse período que a gente descobriu o Paulo Freire, através da Escola de Assistência Social que era então, o pessoal importava o Paulo Freire em espanhol e a gente lia clandestinamente o Paulo Freire na PUC, que era proibido esse tipo de coisa. E a gente inventava mil artimanhas de trabalhar ali nos bairros, perto de Itabira, em vários lugares, tinha a atuação desses grupos mais ligados com a educação popular. E eu fiquei muito ligada a isso, nós tínhamos um grupo dentro do curso de pedagogia, eu acho que foi a coisa melhor que eu fiz, a gente tinha uma pedagogia paralela que discutia isso, estudava Paulo Freire, tentava ler em espanhol. Imagina, nós daqui do Jequitinhonha lá tentando ler em espanhol, entender, né? E nós acabamos participando de muita coisa, nesse período ali em Belo Horizonte. Agora, eu sempre tinha vontade de voltar, muita ligação aqui com a roça, com a família e muita preocupação com a situação de minha família. E quando eu me formei eu voltei pra cá. Dessas coisas incríveis, porque enquanto a gente tava lá na luta política muito grande, aqui o mundo tava cá atrás. Então teve uma época que o pessoal, saiu a notícia aqui que eu tinha sido presa e que tinha apanhado muito por causa disso. Mas não tinha acontecido isso. Tinha acontecido um problema de repressão na PUC, o pessoal saiu, eu fui pra casa dos franciscanos lá em Betim e eles me mandaram dentro de um carro de flores lá pra São Paulo.
P/1 – Ai que ótimo!
R – Fui pra Holambra dentro de um carrão daqueles cheio de flor que eles exportavam de Holambra, que é um...
P/1 – De Holambra.
R – Holambra. Então eu desci pra São Paulo num carro cheio de plantas e tal, fiquei lá um mês. E aqui todo mundo achou que eu tinha sumido, tinha morrido, tinha qualquer coisa, minha família ninguém tinha notícia, né? Aí quando acabou o problema na PUC eu voltei, mas voltei assim já com intenção. E tinha muito medo, o pessoal tinha muito medo, então muita gente que, se alguém era preso, o pessoal se afastava todo. Era uma situação meio complicada. Mas enfim, quando eu terminei a faculdade eu vim pra cá, eu vim, comecei a trabalhar no posto de saúde, era um trabalho que eu gostava muito. Eles estavam formando, como é que chama isso, grupos de suporte nas áreas rurais pra discutir a questão de saúde, como o povo poderia mudar essa coisa aqui. Na década de 70 isso aqui não existia, o povo era jogado no mato, morria de doenças, não tinha assistência nenhuma, isso que a gente tem hoje se a gente for olhar pra trás a gente vê o quanto avançaram as coisas. E eu vim pra cá nesse projeto do Centro Regional de Saúde, fiquei uma temporada e um belo dia o Dom Serafim, eu tinha estudado lá na PUC, tinha uma proposta do Projeto Rondon pra criar aqui o Campus Avançado, era aquele prédio grande que tá ali o Campus Avançado do Vale do Jequitinhonha. Bom, o Rondon todo mundo, nós sabíamos, a gente que era mais ligado com o movimento estudantil, a gente sabia que o Rondon era uma estratégia do governo de tirar a juventude da área urbana, no meio de toda a efervescência política e trazer pra essas regiões, chegava aqui o cara ficava deslumbrado, então achava que o fato de extrair dente, dar uma consulta, fazer um projetinho aqui que ele tava mudando o país, né? Podia tá mudando, eu acho que não era, o problema era a questão da consciência, pra onde essa juventude ia sendo encaminhada. Então a PUC ia entrar nesse convênio, me fizeram essa proposta, eu já tava assim muito angustiada porque quem voltava pra aqui pro interior, quem estudava nessa época, quem voltava pra cá nessa época era só os filhos de fazendeiros que virava médico, advogado, agora eu era filha de ninguém e no entanto tinha voltado pra cá e tinha uma formação boa. Então quando a PUC fez essa proposta eu já estava muito angustiada no Centro Regional de Saúde porque eu me sentia muito só. Então aí eu peguei e falei: “Não, isso aí vai ser uma coisa boa vai ter muito universitário, vai ter espaço para discutir, pessoas pra conversar, pra conviver!” E topei, ir pra aqui pro trabalho no Campus Avançado, tinha consciência absoluta do que significava, qual era a política do governo, eu acho que eu não entrei sem consciência não. E coincidiu que com o passar do tempo veio uma equipe muito boa, né, o pessoal: o Renato, o Renato foi da JOC ou da JUC, não sei, que era Juventude Universitária Católica, e tinha uma experiência de trabalho social muito bom. Então eu acabei ficando na vice-diretoria, nessa época tava aqui o Frei Chico, tava recém-chegado no Jequitinhonha, Frei Eliseu e eram pessoas de frente aqui ainda não tinha bispo, o bispo daqui tava, acho que tinha saído e não tinha outro em outro lugar, o trabalho era feito aqui com o povo, os padres, os franciscanos e outros e como tinha alguns voluntários da Áustria que atuavam aqui na região. Então a gente se segurou um pouco, tinha uma rede de pessoas que ajudava nesse trabalho do Projeto Rondon. E nós tivemos muitos desafios porque de repente chegavam 100 estudantes com a cabeça feita, que eles vinham com os projetos formados em São Paulo, em Belo Horizonte, em Lavras pra implantar aqui. Do lado de cá as prefeituras achavam que o Rondon ia resolver tudo, tinha gente que chegava pra resolver problema de casamento, pra alguém casar eles. É um período de muita seca, eu acho que nós tentamos contornar essa situação, então chegou um momento que a gente chegou a criar um regimento interno discutido com esses universitários qual era a política do Rondon: “Vocês estão aqui, então a gente tem que criar uma alternativa, isso aqui é a cultura urbana industrial chegando na área rural, que impacto isso vai ter, como nós vamos ter que atenuar esse choque?” E com isso a gente criou normas de comportamento com os jovens, começamos a questionar os projetos que eram feitos lá e adequar esses projetos à realidade aqui e foi durante um tempão, né? Então hoje, por exemplo, nós temos aqui no Jequitinhonha pessoas que voltaram pra cá, tipo a Maria Helena que hoje está na prefeitura, a Claudia (Sestilha?), foram ex-alunas. A Cacá que era prefeita aqui foi estagiária.
P/1 – A Cacá hoje ela está?
R – Está no Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], em Belo, em Brasília.
P/1 – Em Brasília, né?
R – Isso. Mas todos passaram por esse processo de Rondon aqui. Então eu fiquei e o que, uma parte que me marcou muito foi poder dar toda essa carga que a gente viveu, de tá estudando Paulo Freire. Aí tinha o pessoal da Comunicação, o Chico Pinheiro. O Chico Pinheiro trancou matrícula, veio e ficou aqui sete meses. O Chico foi uma pessoa amada aqui na região porque o Chico era universitário da Comunicação, de repente ele se apaixonou e ele falou: “Não, eu vou ficar sete meses aqui”, trancou a matrícula lá e veio embora. Então tinha coisa desse tipo, outras vezes eram os universitários que chegavam em São Paulo mudava, tinha um que era de Engenharia e mudava pra Serviço Social, outro era de educação, o outro era de Medicina e mudava pra outra área porque descobria alguma coisa nova aqui.
P/1 – Um maior impacto.
R – É, foi um retorno pra universidade e isso incomodou lá na Universidade nesse período. Tinha pessoas, assim, de muito destaque em São Paulo como a Conceição Bongiovani, é uma educadora muito incrível, ela hoje está numa entidade lá. E outros, que se eu for citar milhões de nomes eu acho que passaram por aqui, que ajudaram na formação desses jovens, abrindo pra eles essa coisa da cidadania, de descobrir que o mundo não era aquele mundo fechado, que as respostas não estavam prontas, né? E foi assim.
P/1 – Quais que eram, qual que era o panorama do Vale do Jequitinhonha nessa época, na década de 70?
R – Pois é.
P/1 – Essa questão do garimpo, da agricultura?
R – Das dragas do Jequitinhonha.
P/1 – Sim.
R – Das secas. Nós passamos por um período de seca aqui que a morte de crianças na área rural foi violenta, migração assim fortíssima. Isso sem nenhuma atenção, essa época que o Vale começa a ser chamado de Vale da Miséria, entendeu? Vale da Miséria, Vale da Pobreza, porque foi uma manipulação dos políticos pra poder ganhar votos e outras coisas aqui. E a gente tava aqui, via tudo isso acontecendo e tentando conter. O Frei Chico, por exemplo, o Frei Chico começa o projeto dele de, ele tava chegando da Holanda, na época áurea da Teologia da Libertação. E tem um fato muito marcante que ele sempre conta que ele chegou o Natal e ele foi celebrar na Itinga, e à noite missa de Natal ele se arrumou todo, ele preparou um daqueles discursos assim de sermão de arrebentar, mobilizar o povo mesmo. Ele falou, falou, falou, ficou super satisfeito e a igreja cheia de gente, aí ele falou: “Bom, agora eu vou dormir, né?” Foi embora e foi dormir. Deitou, dormiu, quando foi de madrugada ele escutou aquele barulhão impossível, a igreja inteira cantando, aí ele falou: “Bom, o quê que aconteceu, mas eu já celebrei a missa? Já fiz meu sermão, já estou dormindo, já tem o quê?” Aí ele levanta, veste a roupa e vai. Quando ele chega lá a igreja lotada de gente e eles tinham pegado a imagem do Senhor Morto botado no meio da igreja com dois velhos na cabeceira, um pratinho na barriga do Senhor Morto e o povo passava no maior carinho. Eles têm aqui uma música que chama, como é que é? É a que fala, né: “O Seu santo cabelo, Seu sofrimento / O Seu santo olho, Você foi tão marcado / Seu santo nariz, a Sua santa boca...” Aí vai até no pé de Jesus. Então o povo cantava aquilo circulando, beijando, passando a mão e ia embora. E ele olhou aquilo falou: “Nó, quê que eu fiz? Será que o meu sermão valeu mesmo?” E daí pra cá ele saiu da igreja, foi lá fora, olhou, olhou aquele povão na praça, a praça lotada, gente namorando, gente vendendo coisa de comer lá fora, comida. A igreja as mulheres tinham colocado as crianças no chão, nas esteirinhas dormindo, parecido, dizia ele, parecendo uma padaria aquele tanto de menino, e o povo todo rezando. A igreja transformou, o povo tomou conta da igreja. Isso pra ele foi um toque muito importante. Então ele começou a pensar: “Mas que povo é esse? Quê que é isso aqui, eu sou um holandês? Quê que tá acontecendo?” E a partir daí começou e já sentia muito essa coisa da diferença aqui, e ele começou a pesquisar. Nesse processo ele descobriu a Lira, mudou o coral e teve toda essa influência maravilhosa aqui no Vale que ajudou o povo a reerguer a cabeça e a gostar do que fazia, a dizer que o que fazia era importante. E ele teve influência fantástica aqui no Vale, acho que a gente ainda não sabe o quanto que ele foi importante porque nesse período só tinha batuque aqui, aqui perto da Igreja do Rosário que é o reduto aqui da irmandade, a resistência dos negros, e lá no Arraial dos Crioulos que é um quilombo. O povo vivia calado. E tudo isso era coisa do povinho. Lira, quando começou a fazer o artesanato dela tinha gente que reagia, dizia: “O quê que essa negra quer? Ela devia estar ralando com a bunda caco de vidro aí e tal”. A reação era muito essa, quando os negros, o povo começou a se reerguer. E ao lado de todo esse trabalho esse pessoal de fora, do Rondon, foi fantástico também. Eu acho que até hoje eles não imaginam o quê que eles fizeram. Porque o Rondon era o povo de fora, a classe alta daqui gosta de quem vem de fora, gente da TV, nessa época era mais forte ainda. Então quando aquela turma de universitários, engenheiros, médicos ia na casa da Zefa ali de baixo, no ranchinho de palha ali, falava: “Ah, que isso, o seu negócio é muito bonito, faz mais que eu vou comprar! Eu vou levar”. “Ô Lira, mas isso é bonito demais, faz mais, eu gostei do que você fez”. Aí o Sesc de São Paulo levou os artesões pra uma exposição lá em São Paulo no Sesc, tem cada história assim genial, eles mesmos podem contar. Depois a PUC, todo ano levava esse pessoal pra uma exposição de artesanato, isso passou a mexer muito com o povo, o povo começou se sentir orgulho que ver que aquilo era importante. Então os universitários eles de um lado tinham o Frei Chico pesquisando, do outro lado tinha o Rondon que incentivava isso, talvez inocentemente, sem pensar no que eles estavam fazendo, sem consciência, né?
P/1 – Uma espécie de efeito colateral?
R – É. Então, o fato desse pessoal, considerado “bem” pela classe alta daqui, engenheiro era sempre um candidato a casar com as filhas do pessoal daqui, médico, né? Então esse pessoal o quê que fazia? Ia pros batuques, aquele pessoal largado que vinha, tava no céu aqui do Jequitinhonha, saía de São Paulo caía no paraíso aqui: era rio pra tomar banho, andando de carro pelas roças vendo essas casinhas de todo tipo, porque eles nunca tinham visto. E tem uma cena assim histórica, né, que foi o universitário muito famoso, ele chegou no Jequitinhonha ele veio assim aceso, ele queria fazer tudo de bom aqui, quando ele chegou na Gontijo, que abriu a porta que viu aquele povão lá, um pessoal magrinho, escuro, pequeninho, ele olhou. E aquela seca tudo poeira, e ele também coberto de poeira, porque não era asfalto, né, era terra. Aí ele chegou lá, abriu os braços e falou: “Povo do Jequitinhonha, eu vim morrer com vocês!” (risos) De tanto pavor, ele não sabia o que fazer com isso daqui, né? Então foi tendo cenas assim muito interessantes de choque cultural do que chegava e dos que estavam aqui também, né?
P/1 – Isso que eu ia perguntar: a recepção dos moradores.
R – O povo adorava, era a maior novidade os Rondon. De um lado tinha uns que tinham medo, por exemplo, lá no morro da Lira, quando os meninos vinham com aquela camiseta de Rondon, eles falavam: “Iiii já vem o povo das camisas amarela aí!” Caía fora, né? Porque o pessoal entrevistava, queria saber coisas, né, e o povo não gostava de fazer isso. Mas com o tempo acho que o pessoal se aproximou mais e a gente também com o trabalho educativo aqui foi controlando mais. E essa época, menina, o controle do Estado era muito forte, então quando nós começamos esse trabalho aqui que começou a ter esse, por exemplo, os projetos que vinham eram discutidos. Por exemplo, nós fazíamos assim: em vez da equipe chegar e a outra sair, eles tinham que ficar uma semana juntos pra discutir o quê que o outro veio fazer e adequar aquilo com o que eles tinham feito e pra adequar tinha que ir pra comunidade discutir com o povo lá, entendeu? Então não mudava por completo a metodologia, então o Campus, ele passou a ser considerado um projeto melancia, né, era verde por fora e vermelho por dentro, né? E isso levou a um impasse, né, no Campus Avançado de forma que eles desativaram essa diretoria toda, o Renato saiu, mandaram ele pra Brasília, pro Rondon lá em Brasília, eu fiquei como diretora interina, a Maria Helena ficou aí ajudando. E aí mudaram todos os convênios e acabou. Essa experiência acabou, findou. Acho que a concordado com a diocese e acabou o Rondon. Mas olhando pra trás você vê que a influência dos jovens foi muito grande aqui, muito grande. E acredito que foi um processo de educação de um lado e de outro, na medida em que foi furando o balão, em que as prefeituras também começaram a ver que o Rondon não ia resolver tudo, aí a coisa foi atenuando e ficando mais pé no chão. Se tivesse continuado, acho que teria sido, saído muita coisa boa. Por exemplo, foi nessa época que eu fui pra um seminário no Equador, era sobre trabalho social rural, e lá eu apresentei as formas de intervenção que os jovens estavam tendo aqui na área rural, essa pedagogia diferenciada e tal. E, pra meu espanto, lá todo mundo queria saber sobre os índios: “Ah, tá tendo massacre dos índios no Brasil?” E Dom Pedro Casaldáliga? E como é isso lá? Essas denúncias que estão chegando?” E a gente não sabia quase nada! Então índio pra mim aqui não existia, né? Eu voltei dessa, eu conheci lá os índios Otavalo lá em Cuenca, depois nós visitamos um projeto de reforma agrária nos altos dos Andes, chegando lá os índios tinham jogado os tratores no buraco porque não queriam o projeto de reforma agrária, e nós lá indo ver o projeto do governo, aí frustrou tudo. Aí quando eu voltei eu voltei com aquela interrogação: que negócio de índio é esse? No Brasil está acontecendo isso mesmo e tal? E eu escrevi pra Pastoral da Terra porque eu achava que a CPT [Comissão Pastoral da Terra] que era responsável pela questão de terra. Aí lá vem uma carta: “Não, na igreja tem o CIMI, Conselho Indigenista Missionário, que é quem cuida da questão do índio, que era a única referência que a gente tinha, porque nós já tínhamos uma crítica da FUNAI, a FUNAI nessa época era o quê? Era o braço da ditadura com os índios. Aí eu fui, passou um período lá de ida e vinda de correspondência, me chamaram pra ir num curso de formação que ia ter em Alcobaça, era um mês, então haviam muitas pessoas que trabalhavam com índios no Brasil inteiro, do Sul, da Amazônia, de todo lado, do Nordeste e eu fui, e lá foi assim um revelação porque um dos pontos principais era a estruturação do CIMI Leste aqui nessa região Leste. E a história da nossa região, a resistência dos chamados Botocudos, né? E eu fiquei muito apaixonada com aquilo que enquanto eu tinha toda uma visão política da sociedade, do mundo, eu não conhecia a história daqui.
P/1 – A história indígena?
R – A história indígena que é a história nossa.
P/2 – Você dá só um segundinho pra gente trocar a fita?
R – Sim.
P/1 – Então vamos lá, você estava falando do começo do CIMI.
R – Então eu fui pra Alcobaça pra esse curso de formação, aí tinha antropologia, tinha essa visão nova da igreja para a Teologia da Libertação e como ver, eu lembro que tinha muita discussão nisso: o Evangelho fala da boa notícia, da boa nova e tinha um cara que era antropólogo e ele falava assim: “Pois é, mas você vai dar uma notícia boa pras pessoas, você tem que fazer a pessoa feliz, rir, né? Qual é a boa notícia que a igreja tem que dar pra esses povos?” E aí a gente foi refletir sobre isso. Quer dizer, não é catequese, não é doutrina, a boa notícia seria: “O quê que te faz feliz?” E aí nós começamos a ver a importância de fazer um mapeamento das áreas indígenas, a situação de cada povo. E aí começamos a fazer isso. Foi o começo do CIMI-Leste aqui. Eu, por opção, eu queria trabalhar com os Krenak, que estão no Vale do Rio Doce, que eram os Botocudos, os que resistiram dessa região inteira, que fizeram a cabeça dessa história toda. Mas já tinha um casal que estava acompanhando, era a Taís e o Willer. O Willer hoje está na Universidade de Viçosa. E a Taís, ela é linguista na Universidade Federal de Minas Gerais. Então fiquei meio sem espaço, e aí a diocese queria que a gente fosse trabalhar com os Maxakali. e eu falei: “Nó, tremi nas bases”, falei: “Não, não vou não, tô muito apaixonada mas não vai dar” porque eu não queria ir sozinha, minha mãe falava: “Olha, essa região é região de jagunço, isso é a mata!” Que na visão da minha mãe aquilo ainda era mata, apesar de que era tudo capim já de boi. Minha mãe: “Olha, essa região aí é região de jagunço, povo muito perigoso, essa coisa de índio dá problema de terra”, e dessa época tinha muita notícia de conflitos. E eu fiquei reticente, eu falei: “Sozinha eu não vou não: uma que eu nunca trabalhei com índio. Segundo, eu não falo a língua deles. E sozinha não tem pique pra isso, né?” Aí nós ficamos aguardando aparecer alguém, quando foi, acho que foi setembro, chegou um padre aqui de Teófilo Otoni, padre Jerônimo, com a moça dizendo: “Olha, tem uma menina que é do Rio, ela é de Valença, está estagiando lá no Rio, lá em Brasília, e quer vir trabalhar com os Maxakali com você, fazer uma experiência. E ele é advogada”. Aí eu fiquei super feliz, né? Aí quando foi dia 4 de janeiro eu saí daqui, encontrei com ela em Teófilo Otoni, né, ajeitando as coisas todas, e dia 6 de janeiro nós viajamos pra região lá do Mucuri, né, região dos Maxakali pra conhecer e aí é que deu o grande nó, nós fomos pra ficar uma semana e ficamos seis meses, não voltamos não, ficamos lá. Foi tão apaixonante, tão marcante pra nós, nós ficamos lá e a diocese era um barril de pólvora, nós tínhamos 14 conflitos de terra sem incluir índio, porque índio ninguém pensava neles. Lá era o SPI [Serviço de Proteção aos Índios], a FUNAI, aquele povo lá do canto, e Maxakali, assim, sendo assassinado. Todo dia pancada, morte, bebida, né?
P/1 – Os Maxakali ficam aonde exatamente?
R – Eles hoje estão no município de Bertópolis e Santa Helena de Minas, já é divisa com Bahia. Mas era tão ruim que a estrada, o Gontijo quando chovia não ia, você ia na Gontijo, a árvore passando em cima do ônibus, as estradinhas eram aquele caminhozinho, né? E muita lama, e quando chovia interditava as estradas, o governo mandava um aviãozinho jogar feijão e coisa pra população lá de Bertópolis quando a coisa ficava feia.
P/1 – Não tinha condições de chegar nada?
R – Nada, então foi um período muito complicado. E nós chegamos lá já tinha notícia que ia chegar duas moças que iam jogar os índios contra os fazendeiros, jogar os trabalhadores contra os fazendeiros, que ia essa coisa da agitação na região. Então já tinha uma notícia muito ruim sobre nós lá. Mas nós tínhamos acho que aquela força do sonho de trabalhar com os índios, de ajudar em alguma coisa. E a linha do CIMI nessa época era a luta pela terra, e realmente lá era terrível, eram duas áreas pequenas, uma de um lado, outra de outro, um corredor de fazendas no meio onde passava o córrego principal deles, o Córrego Umburanas e os índios queriam aquilo de qualquer forma e nós chegamos nesse tempo, né, um período assim bravíssimo lá, muita repressão, muita violência.
P/1 – Nessa época você estava com quantos anos?
R – Ah, devia ter quase 30 anos já. E foi um processo assim muito interessante porque primeiro ficou a Liana um período, ela saiu, casou, veio uma outra ficou mais um ano e saiu porque realmente a situação era muito grave. E eu por já ser aqui da região, eu não era de fora, lá eu encontrei muita gente conhecida de minha família que foi pra mata, e morava lá, lá do povoado que eu nasci e tal. Então eu fui ficando, então eu fiquei oito anos com os Maxakali. Peguei uma barra assim muito pesada e acho que me identifiquei muito com eles, eu não queria sair de lá, quando eu saí eu saí por força mesmo do problema ou morria lá ou ajudava a luta, ia continuar de outro jeito, dando força pra eles de uma outra forma. Aí eu fui pra Teófilo Otoni, morei um ano lá, mas a situação era muito insegura porque os fazendeiros todos moram nas cidades grandes, né? E aí fui para Belo Horizonte, lá em Belo Horizonte eu fui trabalhar no Cedefes [Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva], que era um centro de documentação ligado com a questão indígena e tal.
P/1 – Mas aí você estava em Teófilo Otoni.
R – Mas então no Cedefes eu aprendi uma outra coisa, eu gostava de fazer documentação, de escrever, fazer relatório. Lá em Teófilo Otoni foi um período assim muito rico, acho que eu aprendi demais ali, acho que na verdade, assim, a gente passou por todo esse processo, universidade e tal e você vai afunilando até quando eu cheguei na questão indígena eu falei: “É aqui, daqui eu enxergo o resto!” E aí eu comecei a ouvir dos Maxakali a história daqui, onde eles viviam, onde eram as aldeias, como eles foram expulsos daqui, como é que eles chegaram lá. A minha mãe sempre dizia que o pessoal, o melhor paneleiro do Jequitinhonha é o pessoal de Guaranilândia, só que era os Maxakali e lá eles falavam, mas nós não falávamos que era índio, a gente não falava que era índio, a gente falava que era bugre, ou então que já tava amansado e vinha vender panela aqui de canoa. Guarani é depois de Jequitinhonha na beira do rio, um povoado que tem lá, distrito hoje. E eu então, quer dizer, de um lado tinha uma visão do mundo a partir daquela coisa ali do Maxakali. Tinha tido aquela formação sobre os Botocudos, nessa época pra mim a questão Maxakali era maior, era um povo que eu estava mais próxima. Aí, quer dizer, você vai pros Estados Unidos, chega lá você não fala inglês você passa mal, então você tem que se virar, aprender a falar, aprender pedir as coisas, aprender, lidar com um povo que fala uma língua diferente pra você entender também o processo deles, quem são eles, a cosmovisão deles e como é que eles lidam com esse mundo aqui de fora da aldeia, quem somos nós, né? Que povo é esse? Que na cabeça, nos Maxakali na década de 80 eles chamavam a gente de “os portugueses”, “os portugueses aí fora”, era assim. Tinha índio velho que chamava o governo de “Papai Grande” que era a visão do Rondon, do Marechal Rondon e tal. Durante a Ditadura, muitos Maxakali e outros povos foram levados para Belo Horizonte como polícia, fundaram a Guarda Rural Indígena que era pra quê? Que era pra coibir o uso de drogas, de bebidas nas aldeias, mas na verdade virou um pessoal que aprendeu a torturar, como se fazia nos porões aí da Ditadura. E quando a gente chegou e começou a luta pela terra, a gente percebia que esse pessoal era o que falava melhor e era o pessoal que tinha ódio de polícia, então muitos deles se tornaram lideranças na luta pela terra como Carminho do Maxakali, Tintim que morreu, Tintim era um intelectual, né? O Kelé Maxakali que é cantado aí nas músicas, ele falava português, ele falava a língua botocuda e falava o Maxakali, então nada disso era conhecido, era um povo que era considerado bicho do mato, né, discriminado, passava alguém, batia a porta: “Os caboclos vão te levar”, a mãe ameaçava a criança, né? “Ó, se você fizer isso eu vou te entregar pros caboclos”. Então nós vivíamos isso, nós chegamos lá, a gente tinha que ter estratégia, primeiro porque tinha um pessoal da FUNAI e a FUNAI tinha poder de polícia lá dentro, então nós não podíamos chegar e entrar, principalmente porque era de uma diocese que a questão política tava estourando pra todo lado: luta pela terra, conflito de fazendeiro com terra, tudo assim. E nós passamos então a montar os nossos esquemas, por exemplo, a gente não comprava artesanato, por quê? Porque quem comprava artesanato nesse período era mascate que dava o cano neles, levava e nunca mais voltava com o dinheiro. Então nós comprávamos feijão que era uma coisa que eles plantam, mas não comem, não fazia na aldeia trazia pra vender, abóbora, batata, coisa assim da feira. E nossa casa ficou lá aberta pra eles. E como a gente não podia entrar na área, a gente só encontrava com eles na feira, e começamos então a trabalhar com o movimento de mulheres, ajudar a organizar o sindicato, teve um médico que depois foi pra lá e começou a ajudar a organizar o PT, que era o partido de frente nesse período de lutas. E um belo dia chegou um monte assim, era um grupo enorme de índios que tava de passagem, Maxakali, um povo nômade, sedentário porque está obrigado a viver naquele lugar. Os homens todos com arco e flecha, as mulheres com as crianças e chegaram, devia ser umas 15 pessoas, na nossa casa. E perguntaram, que eles iam viajar no dia seguinte na Gontijo que eles estavam indo pro lado de Teófilo Otoni, e se eles podiam dormir lá. Aquilo pra nós foi um sonho, realizou de uma vez, né? Aquele tanto de índio, então nós fizemos o seguinte: tiramos a mesa e as cadeiras, botamos esteira e como o povo lá da região fazia umas telhas no meio da sala fizemos uma fogueira dentro de casa porque tava chovendo muito, pegamos coberta pra todo mundo, deitamos na sala com eles, ficamos lá, passamos a noite conversando e ouvindo essa história, o outro lado da história da terra. E, até então, a gente não sabia o que motivou aquela aproximação, porque eram índios de uma área já na divisa com a Bahia, praticamente não falavam português, tinha dois que falavam, era o Camilo que era o pajé, e um outro. Aí, depois de um tempo, a gente soube o seguinte: que o chefe de posto da FUNAI falou que a gente é mulher da vida: “Tinha chegado duas mulher da vida em Santa Helena, em Bertópolis, e o governo não queria que os Maxakali fossem lá”. E eles passaram um tempo observando o que estava acontecendo e chegaram à seguinte conclusão, né: “Uai, se elas duas estão apoiando os trabalhador contra os fazendeiros, os fazendeiros estão com raiva delas, então esse povo não é gente ruim, a gente vai lá pra saber quem é.” Aí eles foram lá pra ver se realmente a gente era mulher de vida ou o quê que era, né? E nós, sem saber de nad,a dormimos na sala com eles, conversamos a noite inteira fazendo farofa de madrugada pra eles irem. E aí começou uma relação boa com os Maxakali, mas assim, a partir deles, da descoberta deles de quem era a gente, da investigação deles. E dessa data em diante mudou, nosso esquema de relação com eles, então eles passaram a ensinar a gente como chegar na aldeia sem passar pela FUNAI. Então a gente ia num caminhão de leite três da manhã, um frio de rachar, caminhão de leite deixava a gente num ponto lá, a gente descia, tava lá em pé quando você olhava os Maxakali saía atrás da gente de dentro do capim, estavam sentados escondidos lá: “Pois é, a gente veio buscar vocês”. Aí a gente subia a montanha, passava a chapada e saía dentro do pradinho. E aí foi que a gente começou a ver com os olhos da gente o quê que se passava, e ouvir a história deles, a história contada por eles. Isso aí são inúmeras coisas que eu acho que não cabe agora, né, mas foi um povo, assim, que marcou muito a minha vida. Eu acho que eu era uma ativista na universidade e com muita crítica de tudo assim, mas assim, eu acho que com os índios eu aprendi um outro lado, da afetividade, da proximidade das pessoas não era só a cabeça, você vivia uma vida junto, muitos desafios, mortes, assassinatos e famílias inteiras lesadas, né? Epidemias de gripe, de caxumba, várias coisas assim. Então aquilo assim aproximou, fez a gente descer do pedestal das análises e ir pro real, e a entender essa coisa da terra no país, não é? Essa coisa agrária que não resolveu até hoje, por que que não resolve? O Estatuto do Índio está aí pra ser votado mas se for votado é capaz que nem saia, saia as emendas dos madeireiros, garimpeiros, fazendeiro, né, que estão querendo modificar tudo. Então eu fiquei lá no Maxakali esses oito anos, depois fui pra Belo Horizonte, voltei de novo pra cidade era outro desafio, né? Aí comecei a trabalhar numa região ali do Rio Pará, Martinho Campos, Pompel, que já é região do Alto São Francisco, era um conflito de terra que a CPT, a Pastoral da Terra, tava acompanhando e eu, de repente, o pessoal falou: “Mas nós não somos trabalhadores, nós somos gentil! Nós somos índios, todo mundo aqui é índio!” Aí o pessoal da CPT pediu pra gente fazer uma pesquisa, um levantamento da História Oral e como eu era a interessada lá fui eu pro meio dos índios. Foi outro embate também porque hoje, isso foi na década de 80, era quase 90, nós temos o movimento dos povos indígenas que estão dizendo: “Nós somos indígenas!” Hoje nós temos a Convenção 69 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que dá direito tanto aos quilombolas quanto aos indígenas de se autorreconhecer como indígena e só ter que fazer alguma coisa. Só que nesse período, assim, tinha que ter o laudo antropológico feito pelos antropólogos de renome pra dizer se o cara era índio ou não. Quer dizer, para nós, hoje, que é uma violência muito grande na medida em que o outro tem que dizer quem você é, você abdica da sua autonomia, da sua identidade, de tudo, é o outro que diz se eu sou índio ou não sou, né?
P/1 – É um olhar de estrangeiro.
R – É o olhar do outro, né? Então hoje, com a Convenção 69, já mudou esse esquema, hoje não precisa mais desse laudo pra dizer. Se a comunidade se reconhece como indígena é outro problema, né? Bom, então eu fui pra essa região do Rio Pará, através do Cedefes e era terrível porque são índios Kaxixós, eles não tem cara de índios, eles são brancos, fala aquela linguagem ali do São Francisco, é um pessoal roçaliano mesmo, lá do canto. E pra sociedade daquele tempo era o desastre, né? Esses não são índios, os próprios índios diziam, a FUNAI dizia: “Esse pessoal não é índio não. O Cedefes, a Geralda estão inventando esses índios, estão inventando índios. Esse povo no máximo é descendente de negro, que aqui perto tem muito quilombo aqui no São Francisco e tal.” Aí foi um embate danado, entrou a Procuradoria da República era o doutor Adailton, a Ana Flávia, que era uma antropóloga, assim, fantástica, uma pessoa de uma sensibilidade muito grande. E acabou que os Kaxixós foram reconhecidos como povo indígena ali do Alto São Francisco. Mas até hoje é um nó nas cabeças das pessoas, tem gente que quer voltar atrás, apesar do Estado ter reconhecido, deles se dizerem que é índio, tem uma linha de pessoas que dizem: “Não, nós temos que rever tudo pra provar se eles são índios ou não!” Tem livros, eu tenho livros aqui escritos sobre os Kaxixós.
P/1 – Então a gente estava falando da história dos índios?
R – Dos Kaxixós, né?
P/1 – Isso. Então, o Kaxixós foi num período em que essas lutas dos povos que tavam se reerguendo, saindo do silêncio, era muito, aqui em Minas não existia e de repente o primeiro povo que começa a dizer que era índio foi dessa região ali do Alto São Francisco, e Pompel e Martins Campos e foi um horror, que ninguém aceitava, ninguém acreditava que esse povo era índio. E eles fizeram muita luta de forma que através de muita pressão, muito debate na ABA, antropólogos que entraram, uns diziam que era índio, outros diziam que não era e tal. Mas com a garra deles e o apoio de muita gente solidária, eles foram reconhecidos como povo indígena. E nessa época foi que a gente viu muita coisa sobre a geografia, por exemplo, lá tem o córrego da, como é que é? Rio das Velhas, Rio das Velhas, quer dizer, Rio das Velhas Tribos Originárias, o nome do Rio das Velhas, não é das velhas, velhas pessoas de idade, ali era um reduto das velhas tribos originárias. E hoje você vê não tem nada, ficou só esse grupo indígena que foi escravo, foi empregado lá da dona Joaquina de Pompel, misturou, tem descendentes dele com dona Joaquina e foi um primeiro embate. Depois os Maxakali, que era um povo reconhecido, com língua própria, estrutura da sociedade, religião, tudo né? De repente eu fui pro meio de um povo que ninguém reconhecia como índio e isso foi um trabalho muito assumido pelo Cedefes, com pessoas companheiras de trabalho, muito boas como Vanessa Caldeira que hoje está em São Paulo, a Isabel Missagia, que fez todo um estudo sobre a catequese missionária nos 800 em Minas Gerais que resgata muito o quê que foi o trabalho de catequese, e o processo de resistência, a mobilidade dos indígenas diante do impacto da invasão dos territórios, como é que eles se articularam, como que eles. Quer dizer, não tinha FUNAI, mas pra onde é que a gente vai? Onde é que é o ponto?
P/1 – O Cedefes era o quê?
R – O Cedefes surgiu também nessa década de 80, que foi o período muito rico de iniciativas e o Cedefes surgiu de um grupo de professores, agentes de pastoral, pessoas ali da sociedade que viram, que nesse período era produzido muita coisa, era abaixo-assinado, era folheto, era cartilha pra ajudar a discutir as coisas com a população nas periferias, nas áreas rurais e tal, e tudo isso se perdia. Foi o período também das CBs, das Comunidades de Base e da igreja dentro dessa linha da Teologia da Libertação e tudo isso ia e ficava solto. Então a ideia do Cedefes era documentar isso, organizar essa documentação. E ficou com o nome de Eloy Ferreira da Silva que foi um sindicalista que foi assassinado em São Francisco, no Vale do São Francisco. Era uma pessoa de muito destaque, uma pessoa muito boa e foi assassinado num conflito de terra, então o Cedefes ficou com o nome dele que marcou muito essa época aqui em Minas Gerais. Então o Cedefes nessa época tinha como referência a questão das comunidades rurais, as CBs e os indígenas, eu fiquei mais nesse setor e começou o setor de documentação da história indígena, quando eu entrei no Cedefes começou esse setor de documentação da história indígena de Minas.
P/1 – Você falou que foi uma descoberta também da geografia.
R – Da geografia.
P/1 – A gente tem uma informação e eu não sei se confere, de terras coletivas, os chapadões?
R – Isso a gente viu muito aqui no Jequitinhonha. Essa área toda que está coberta de eucalipto era terra devoluta, não tinha documento pelo próprio processo aqui do Jequitinhonha. O Jequitinhonha era uma sesmaria pertencente a uma família da Bahia que ia até o Serro, pegava lá da Bahia e ia até o Serro, você pode olhar muita terra aqui não tem documento, é muito difícil você conseguir documentação. O ITER fez, o Instituto de Terras de Minas, ele fez um levantamento das terras devolutas em Minas Gerais, é impressionante o tanto de terra devoluta que tem. Agora, então eu estava dizendo que essa época do trabalho lá no Vale do São Francisco, lá no alto São Francisco, abriu uma outra visão, eu não tinha, quer dizer, a minha visão era a do índio na aldeia, eu não tinha idéia, nem o CIMI nessa época, discutia essa questão do índio na cidade, não é? E aí começa aflorar essa questão, quer dizer, o cara tá na cidade não é porque ele não quer, é porque ele foi expulso, é a questão fundiária que está atrás disso. Então os indígenas eram contabilizados como zero vírgula não sei quanto porcento da população, mas os índios lá na aldeia, quem saiu é problema deles, não são índios mais. E hoje nós, isso foi, virou de pernas pro ar, seja com a Constituição Brasileira de 88, seja agora com a Convenção 69 da OIT, com a própria luta dos indígenas que estão dizendo como os índios Pankararu: “Nós estamos numa favela aqui do Real Parque, mas estamos lá na USP”. Tem até um filme com, quer dizer, você olha o cara naquelas vielinhas de nada da favela, mexendo com milhões de problemas, mas estão estudando lá na USP, estão como universitários, né? Então as coisas vão se transformando. E depois do Kaxixó os Krenak, que são os índios Botocudos, né, sempre um Botocudo volta na minha vida (risos). Então os Botocudos, eles eram os Krenak, estavam exilados nessa década de 80 no município de Carmésia, era uma fazenda abandonada e a FUNAI sempre que tinha índio com problema e tal despejava lá. E a terra deles lá em Resplendor ficou na mão dos fazendeiros, eu acho que também de um, era uma escola de crianças que tinha ali. E o desejo deles era voltar pra terra, o Guarani era frio, o Rio Doce é quente, o rio largo, aquela beleza de peixe, a gente tinha a vida boa ali, nós nascemos ali, o rio é nossa vida. E exilados: uma turma em São Paulo, lá em Tupã, no Posto Indígena Vanuíre, e outro grupo aí e outros em outras aldeias.
P/1 – Por que que eles foram pra Tupã?
R – Porque durante a Ditadura eles criaram um, chamava Centro de Reeducação Indígena, lá no Krenak, então todo índio que lutava pela terra em algum lugar, eles tiravam dali e botavam lá, tinha política, tinha essa Guarda Rural Indígena, e ali era o castigo, era a solitária, tinha tudo ali. Então os donos da terra mesmo foram retirados dali e mandados pra fora, acorrentados, teve índio que passou o juízo, né, como Joaquim Grande. Então é muita violência. E culminou com essa história da terra ficar na mão de quem não devia. E os índios então começaram esse sonho de voltar pra terra até que voltaram, o Zelito Viana, ele faz um documentário deles pegando o trem em Itabira até chegar na terra, tem um documentário deles sobre isso. Tem um que chama Terra dos Índios que ele conta um pouco de cada povo, o que tava vivendo nesse tempo, muito bonito. Bom, quando eu conheci então, me aproximei mais. Mas, então em, deixa eu ver quando foi. Então os Krenak voltaram pra terra, retomaram a terra deles, foi em 79, foram grandes enchentes aqui no Jequitinhonha. Esse bairro aqui nasceu depois que a cidade aí embaixo ficou coberta pelo rio. Então o povo mudou todo aqui pra cima, aí teve uma série de coisas, fizeram esse bairro e depois disso os Krenak então viram a terra desocupada porque o Rio Doce veio e encheu as casas de areia, tiveram que tirar o gado, uma casa de criança de orfanato que tinha lá. E eles diziam o seguinte: “Os marés, os espíritos estão dizendo que é para nós voltar, eles limparam a terra, tirou todo mundo de lá”. Então os Krenak voltaram pra terra e aí começou uma luta dura pela retomada, reconhecimento. É FUNAI, é CIMI, todo mundo junto nessa busca de que eles tivessem o direito a permanecer no território ancestral deles. Então uma época os Krenak foram pra Brasília, foi quando houve um massacre dos yanomamis, o massacre lá de Haximu. Os Krenak voltaram impressionados porque os Yanomamis conheciam a história, sabiam o passado, falava a língua e eles voltaram e falaram assim: “Olha, a gente tava querendo fazer um livro porque essa juventude nossa não sabe mais o que passou com a gente, a gente queria fazer um livro pra contar isso o que passou aqui.” E aí bom, lá fui eu pro Rio Doce, aí foram dois anos de gravação da História Oral, de procurar em arquivo, às vezes dava informação mas você não tinha ela completa, você ia lá no arquivo buscando dados e tal. E nós montamos o livro que é esse que está na mesa: Os índios do Rio Doce, contando mais assim a luta pela demarcação nessa época e o passado, o quê que tinha acontecido antes, porque que aquilo estava acontecendo ali. Ele foi muito importante nas escolas, nos movimentos pra divulgar essa história que era desconhecida, não tinha, ninguém tinha conhecimento disso. Então foram dois mil exemplares que puft, sumiram, acabaram de repente. Bom, então depois do Krenak, foi nessa época que eu ainda estava no Krenak que eu tive que ir em Carmésia porque lá eles tiveram exilados, lá tinha solitária indígena onde muitos índios passaram muita privação, muito sufoco. E indo lá eu conheci uma família Pankararu e essa família tava nessa época também: “Nós queremos fazer uma aldeia só nossa, de nossa cultura porque aqui é a cultura pataxó, aqui em Carmésia. Então nós não podemos fazer o praiado, nossas danças tradicionais, nossas roupas. Nós queremos vir”. Que é o povo aqui da Cleonice. E eu, nessa época, eu tava em Belo Horizonte e tava querendo voltar de novo pra cá, tava com meu sobrinho, era o pai da Silvinha, tava pequeno em casa, aí queria voltar. Aí chegou um tempo nós olhamos terra no Rio Doce, mil sonhos pra conseguir essa terra. Acho que foi o IEF [Instituto Estadual de Florestas], é um instituto lá onde Célio Vale trabalha, ofereceram para eles ficar no Parque do Rio Doce porque ali tinha mata e tal, mas ali tinha um complicador porque no período de visitas, que é aberta a visitas, deve ter uns oito mil turistas, os Pankararu tavam querendo sossego, imagina você ficar recebendo ali oito mil turistas, querendo comprar artesanato, querendo ver dança, querendo ver índio, querendo ver pintura, é um inferno! Então eles desistiram de lá. Andamos com a CPT olhando terras na região mas a família era um grupo pequeno, né, não dava pra grandes sonhos, né? E eu vim pra cá e como eu, era minha cidade, eu tinha muito relacionamento bom aqui com a diocese e certo dia eu visitando Dom Enzo, contando pra ele como era, como tava a situação, ele falou assim: “É, quando eu ficar aposentado eu quero passar os meus dias com os índios, conviver numa aldeia, viver com os índios”, eu ainda brinquei eu falei: “Ó, Dom Enzo vê, dá trabalho demais, porque você não arruma uns índios e de vez em quando vai visitar eles? Tem uns índios aqui perto, porque tem famílias aí que estão com a situação muito ruim”. Aí Dom Enzo falou assim: “Ah, tem? Como é que é?”. Aí eu conto a história dos Pankararu, que eram esses dois velhos, seu Eugênio e dona Benvinda com os filhos que estavam procurando um lugar. Aí Dom Enzo fala: “Não, tem uma tira da fazenda que era alagadiça que dá pra eles, é só convidar eles pra vir ver pra ver se eles gostam”. Aí eu convidei esses índios, veio a Cleonice, o pai e a mãe e foram visitar a terra, adoraram, porque eles são de Pernambuco, a origem dos Pankararu é Pernambuco, aqui também é semi-árido, né? Então gostaram muito, tem a montanha lá pra eles, é como se tivesse na aldeia mãe lá em Pernambuco, muito croá, que é uma planta que eles fazem muita atividade com ela e decidiram ficar. E Dom Enzo, assim, ele foi uma pessoa durante a Ditadura foi uma pessoa fantástica, é quem tinha lucidez aqui pros embates, nas discussões, pra se opor as coisas, foi uma pessoa de destaque aqui na igreja, assim como outro, mas ele como padre foi uma pessoa muito importante, depois como bispo. E com essa dos indígenas ele dizia: “Não, nós temos uma dívida histórica com os indígenas, então nós vamos arrumar essa terra pra eles.” E veio, os Pankararu vieram, hoje eles têm a aldeia lá, são, a diocese doou 60 hectares pra eles, aí nós fomos batalhar pra fazer a aldeia, construir casa. Do lado da FUNAI tinha um problema gravíssimo porque o administrador não aceitava essa coisa aí porque era uma coisa da igreja, essa coisa de igreja e Estado sempre tem pepino, né? Então a FUNAI não aceitava porque aí era um projeto da igreja. Aí do outro lado os índios novos como o Ivan, Cleonice os outros começaram a ter, como eu conhecia muita gente aqui começaram a vir, participar de discussão sobre o semiárido, toda essa linha de construção de caixas d’água, coleta de água de chuva, cisternas, pequenas barragens, né? E pra FUNAI isso soava como se eles fossem entrar no Movimento Sem Terra. Aí começou a criticar muito: “Ah, esses meninos seu já são tudo sem terra, vão virar sem terra, né?” Então houve muito problema assim com a FUNAI. E com a chegada dos Pankararu veio uma coisa estranha que é o seguinte: toda aquela região ali era terra de um antigo aldeamento indígena, chamava Lorena dos Tocoyós que foi dominado pela família Murta, né? E ali houve muitos índios aldeados, inclusive dessa moça que tava aqui agora.
P/1 – A família Murta lá de Joaíma?
R – A família Murta ela começou aqui no Tocoyós depois se expandiu, ela tinha terra até Almenar, até Salinas, Araçuaí, eram donos de terra porque o primeiro deles, chamava José Pereira Freire de Moura ele foi um inconfidente, ex-inconfidente foragido, se escondeu aqui, depois foi anistiado e foi declarado diretor dos índios e aldeou os índios aí pra tá bem.
P/1 – É, né?
R – Que isso pode acontecer porque aqui, depois eu vou contar mesmo, tem muita resistência ainda com a questão indígena por causa da guerra e da resistência dos Botocudos, né? Botocudo, ele atravessa os séculos marcando espaço aí.
P/1 – Vamos voltar?
R – Já? Onde é que eu parei? (risos)
P/1 – Você estava falando...
R – Vocês já estão zoados aí com tanta história.
P/1 – Não, é que a gente desviou o assunto.
P/2 – Você falava que os índios tinham assumido, tinham sido uns tribo, com o direito a ser uma tribo.
R – Sim, os Aranã.
P/1 – Isso.
R – Então, até então eles eram duas famílias, Família Cabocla e Família Índio. Depois nós ficamos vendo que a Família Índio é a mesma Família Cabocla só que o mais velho ficou muito revoltado porque sempre foi gerente de uma fazenda, sempre foi criado no meio do pessoal Murta Figueiredo e no fim da vida ele ficou cego e trabalhou muito, sofreu muito, mas não teve nenhum ganho com isso, nunca ganhou uma terra, nunca teve nem uma aposentadoria, que nesse tempo nem se falava nisso, então o quê que ele faz? Ele vai no cartório e registra todo mundo com o sobrenome Índio, então tem esse grupo de famílias. E tem o outro lado que continuou sendo os descendentes do Manoel Caboclo, Pedro Caboclo, tudo Caboclo, que hoje juntos formam o povo indígena Aranã que tem uma história mais longa, que acho que não é por agora que dá pra contar, vem lá de Itambacuri que é o último grande aldeamento indígena aqui da região. Mas então esse foi o ressurgimento dos Aranã foi em função da chegada dos Pankararu. Os Pankararu têm essa marca registrada no Nordeste, por exemplo, a maioria dos povos que surgiram, que quiseram se identificar como indígena nesse embate aí de mudanças das leis e da sociedade, a maioria é imbricado lá no Pankararu, foi pedir apoio, foi saber como é que era o toré, como é que cantava, quem eram os pajés, era tudo atrás do Pankararu porque o Pankararu tem esse mérito grande de ser a referência de muitos povos que estavam em silêncio, silenciados e começaram a sair das cinzas, né? Bom, depois dos Pankararu e dos Aranã, a gente começou, aí eu já fui trabalhar com um indígena que ele ficou muito, ele me acompanhava nessa Pankararu, ele via eu contando essa história da região. Então nós fomos pro Rio Mucuri, conseguimos um projeto, sempre assim no Cedefes com a Universidade lá de Granada e lá nós começamos a levantar história do grupo indígena Mokuriñ. Os Mokuriñ deram o nome a região Mucuri, é uma comunidade indígena, não, a FUNAI não tem ainda nada em relação a eles, contato assim pra regularizar essa questão de terras, é um grupo grande e eles foram os aliados dos frades Capuchinhos. Então os Capuchinhos chegam e esses povos já viviam na mata, isolados lá dos colonos e um grupo que tava fora conduz os Capuchinhos pra lá, e aí começa a cidade de Itambacuri, que era o aldeamento que é uma história muito interessante também. Então depois você vê: foi o Kaxixó, primeiro o Maxakali, Kaxixó, Krenak, os Aranã, os Pankararu são povos assim que me marcaram muito e com quem eu aprendi muita coisa, cada um com a sua cultura, seu jeito de ver o mundo, de se relacionar entre eles e fora, os conflitos. Muitas vezes eu, talvez porque a gente vai, você vai se aproximando muito, convivendo muito, faz amizades, vê nascer crianças, vê casamentos, então você fica muito próximo, e quanto mais próximo a hora que tem uma fogueira na aldeia, se você facilitar, você é queimado junto, né? Então eu já passei assim bastante dificuldades nesse sentido, mas acho que a gente tem que ter lucidez, né, de ver como é esse processo, qual é o seu papel nessa luta que é histórica de sofrimento deles, de conquistas e tudo pode acontecer nesse caminho: amizades, inimizades, desafios. E agora eu comecei a acompanhar um outro grupo que é Pankararu e Pataxó, que é essa aldeia aqui perto, já no município de Araçuaí que é um grupo mais maduro, passaram também por muitos desafios. Eles tem um projeto muito lindo que é de pernacultura que é um sistema de trabalhar a terra resgatando coisas que eles, os antepassados já faziam e ia juntando outras que são recentes, por exemplo, a coleta da água de chuva, cisternas e essas coisas que não era de indígena, né? Mas assim, por outro lado, o sistema de plantio em círculo, essa forma de mandala, que são coisas muito interessantes. E eles estão tentando entrar nesse projeto das águas, do Centro de Cultura Popular de Desenvolvimento e estão conseguindo aliados pra ver se consegue, porque numa região nossa semi-árida, com a migração violenta que tem aqui, você tem um grupo de índios que fala: “Não, eu vou viver aqui, eu vou mexer com a terra, vou plantar, vou produzir, vou curar as feridas da terra, dos desmatamentos, das queimadas”. Eu acho que é uma lição pra todo mundo, quer dizer, é possível viver aqui e viver bem. Então eles têm um projeto de, eles estão com... Só a língua Pataxó eles já tem mais de duas mil palavras, é uma língua que não estava sendo falada. A língua Pankanaru também já tem muita coisa, a cultura, os costumes, as danças, as pinturas. O Sairi, por exemplo, ele é especialista em pintura corporal, ele cria o tempo todo, né? Então ultimamente eu estou acompanhando esse grupo e agora com essa perspectiva do Festivale de trabalhar na formação dos artesãos eu achei que era o momento dos indígenas, eu não, quer dizer, a gente viu que era o momento bom de aproximar essa história, de uma descobrir onde é que tava o ponto, né, de contato.
P/1 – É o projeto da memória indígena?
R – É.
P/1 – Explica um pouco pra gente sobre esse projeto, achei lindo!
R – Olha, lá no que a gente discutiu no Festivale é o seguinte, eu vou contar um pouco da história pra gente ver onde é que tá o... Porque, por exemplo, no século XIX não existia essa história de Minas, aqui eram três regiões: região dos rios, Rio Pardo, Jequitinhonha, o Mucuri, o Rio São Mateus e o Rio Doce isso aqui era uma região indígena conhecida nos grandes escritores como País do Jequitinhonha, aqui era chamado de país. Muitos escritores vinham pra cá, viajantes, estudantes da flora, da fauna como o Saint-Hilaire, né? Eles vinham pra cá ver essa diversidade cultural que tinha aqui. Por exemplo, Araçuaí é o, nas tradições aí tem o Rio dos Cocares, o Rio das Araras, o Rio das Araras Grandes, por quê? Porque os índios usavam, aqui era Mata Atlântica, não é, de Berilo pra cá era Mata, né? Lá em cima, era o período, foi de 1701 em diante, foi o período das minas, Diamantina, Serro, então ali o primeiro embate com os indígenas é a expulsão deles. Eles desceram o rio e vieram pras matas, já era território deles aqui, mas muitos foram corridos de lá pra cá. Muitos foram pegos, escravizados nas minas que é um, acho que a, não sei como que ela chama, não sei se é Valéria Resende, ela que faz um estudo sobre a escravização dos indígenas em Minas Gerais, porque a gente sempre fala em escravidão do negro, a gente não fala do indígena, né? Então enquanto estava lá em cima, no Alto Jequitinhonha a escravidão, as minas, aquele embate todo, aqui era mata, era o reduto dos indígenas. Mas havia muito contrabando de ouro, diamante e saía tudo pelo rio. O Rio Jequitinhonha era o único meio de, não existia caminho, era só o rio. Tanto que não era conhecido, lá na foz ele era conhecido como Rio Grande de Belmonte. Então eles fazem expedições até aqui pra saber se o Rio Jequitinhonha era o mesmo de lá, né? E aí quando as minas de ouro começam a entrar em decadência no fim do século XVIII, começa a descer o povo em direção às matas: descia rico, descia pobre, descia escravos, mestiço descendo pra cá em direção às matas. Qual era o objetivo desse povo? Era ficar rico, ter uma posse de terra, ter índio pra escravizar porque não tinha mão de obra, ter um meio de vida que eles não tinham mais lá em cima. E o governo então, com essa vinda sem controle de gente pra cá e o contrabando arrebentando, o governo faz o seguinte: ele faz tipo a linha imaginária, então olha: daqui pro leste não pode abrir estrada pro litoral e nem de lá pra cá, e com uma porção de quartéis pra fiscalizar o contrabando. E aí esse povo vinha descendo, essas famílias, queimando, botando fogo porque tinha que entrar na mata, tinha fera, tinha os índios selvagens comedor de gente como era o boato, então eles desciam de lá desmatando, queimando e tal. Fixava num lugar, abria uma posse – uma posse era um pedaço de terra – fazia uma casinha, plantava umas roças. Quando ele estudava bem o meio de campo, ali ele abandonava aquilo e ia mais pra frente, queimava mais lá na frente, desmatava. E com isso, essa região foi sendo devastada, são muitas histórias de massacres, mulheres violentadas e escravizadas. Aí, o quê que vai acontecer? O ano de 1808, que é o segundo grande momento da história indígena daqui, é quando Dom João VI chega no Brasil e já pressionado pelos fazendeiros, colonos, ele recebe muitas cartas dizendo que a região do Rio Doce era muito boa pra colônia, tinha muita madeira, muita cachoeira, muito minério só que tinha um povo feroz demais ali que atacava os colonos, que matava, que eram facínoras, “incivilizáveis” e que tinha que fazer uma guerra contra eles porque não tinha jeito eles já tinham tentado de tudo catequese, tudo, não deu certo, que era os Botocudos, né, eram os Borun. Aí o rei, em poucos dias, ele declara guerra, ele oficializa o conflito. Ele declara guerra aos índios do Rio Doce e do Jequitinhonha. A guerra tinha uma estratégia que era formar as divisões militares na beira dos rios, sem falar do Rio Doce, você imagina, o Jequitinhonha assim, a sede, o quartel central era a cidade de Jequitinhonha, o outro era Joaíma, o outro quartel era Almenara, o outro quartel do Salto, depois na Bahia era quartel dos Arcos, Cachoeirinha até chegar no mar. Então era cheio de quartéis militares para combater os índios. Nesses 800, né, nessa guerra de 1808 a 1820 ela é a caça aos índios, quem matar mais índio limpa a região vai ter um título, anistia das dívidas que tinha com o Estado, porque muita gente se endividou nas minas. Era título, anistia das dívidas e escravos e terras. Então o índio que fosse pego, o homem era obrigado a ficar dez anos como escravo daquele cara que massacrou a aldeia dele, que tinha o poder absoluto sobre ele. Ali ele tinha que aprender a falar o português, trabalhar, porque o que eles precisavam era de mão de obra, esquecer que ele tinha uma língua, que ele tinha um povo, comer feito qualquer um, quer dizer mal, porque ele tinha alimentação boa e principalmente trabalhar e aí o cara recebia o título. São as nossas famílias tradicionais: coronel fulano de tal, capitão não sei das contas, é esse pessoal todo que matou índio, limpou a região e recebe em herança as terras e os escravos. As mulheres aqui, se você for nesse bairro aqui, você pode fazer uma pesquisa na minha rua aqui, o tanto de gente que fala: “A minha avó foi pegada no mato, foi laçada, foi pegada com dente de cachorro” como é que foi isso? Foi nessa guerra, as mulheres eram estupradas, eram violentadas, levadas. Aqui no Jequitinhonha, o Jequitinhonha ficou conhecido como o lugar do tráfico de crianças indígenas, foi muito forte aqui. Por exemplo, a história do Joaíma, que na verdade é Joimar. Joimar é um guerreiro, ele inicialmente se encanta com a chegada dos militares, aquele povo, tanto que eles fazem um quartel dentro do território dele e ele é incentivado a sequestrar crianças Maxakali, em represália os Maxakali sequestravam as dele, entregavam pros soldados para vender no litoral. Aí um belo dia, acho que caiu a ficha e ele diz: “Ah não, os cara aí estão matando as crianças, daqui uns dias nós não temos é guerreiro mais, estão acabando com as crianças, eles vão acabar com a gente”. Então ele rompe com, isso já é no fim do século XIX, ele rompe com os militares, abandona aquele território ali de Joaíma e vai pro Mucuri, vai se juntar com os Poixás que eram os combatentes, eram chamados “o terror do Mucuri”, “o terror dos colonos” que combatiam os colonos de Teófilo Otoni. E ele morre nesses combates, ali no Mucuri. Então esse era o clima dessa região até o fim do século XVIII, né? E o papel, por exemplo, dos capuchinhos que vinham cheios de boas intenção pra converter os Poixá, porque era o terror do Mucuri, os colonos não tinha sossego, então o governo traz os capuchinhos pra catequizar e aldear os Poixá e eles fundam, então, Itambacuri. E o quê que vai acontecer com a população indígena dessas regiões nossas, primeiro é ler o guerreiro dono da terra, lutador, muitos foram pegos aqui e levados pra França pra ser estudos porque era o período da nascente ciência, na época da Iluminação, do Iluminismo, da Racionalidade, e era impossível que um povo daquele não se deixasse civilizar, o quê que esse povo tem de diferente? Aí levava os índios daqui pra serem estudados lá na França, aí depois de estudar a língua, medir o tamanho da cabeça, o crânio e tal, eles eram jogados na rua no meio de pessoas com deficiente físico, anão, pra gozo lá da população. Tem um estudo muito bom disso pelo Morel lá da Universidade Federal, acho que Rural do Rio.
P/1 – Como se fosse uma curiosidade.
R – Uma curiosidade.
P/1 – Tropical.
R – Muitos morreram por lá, não aguentaram e tal. Mas enfim, então passa de guerreiro, segundo etapa ele é inimigo do Estado com a guerra. Daí ele passa a ser capturado, ele vira escravo. Uma outra geração você já encontra o pessoal agregado das fazendas trabalhando ali de vaqueiro, agregado e tal. Mas embaixo você acha esses moradores da periferia da cidadezinhas que vão surgindo, o artesão, o posseiro que conseguiu um pedacinho de terra por ali, ficou morando ali até quando veio a Lei de Terras em 1851 e os fazendeiros tacaram fogo neles, expulsaram da terra. E essa camada enorme de trabalhadores rurais sem terra, que é esse processo de transfiguração do indígena mestiçado com negro, com branco pobre, e que foi fruto dessa guerra. De forma que, enquanto ia acontecendo aquela mestiçagem normal das camadas dos pobres, no período da República isso é incentivado, por quê? Não existia o povo brasileiro, existia índio, negro e português e estrangeiro, não é? Precisava ter essa mistura, essa mestiçagem pra gerar isso que o Darcy Ribeiro conta tão bem, né? Mas assim, o que a gente tem visto hoje é o seguinte: nenhum povo é destruído assim, imagina lá no Iraque se os Estados Unidos vão conseguir mudar aquele povo lá, o quê que vai ser? Como é que vai ser o depois, né? Aqui, como foi escravidão brava, dez anos pra você deixar de ser o que é, misturar, não ter direito a nada, a lei era o coronel quem impunha. Eu, na minha análise eu falo o seguinte: eu acho que esse povo que fez isso: “Olha, eu não posso dizer que eu sou índio, eu não tenho terra mais, minha religião eu não posso tê-la, não posso dançar, não posso falar mas eu ensino pros meus filhos, pra minha descendência que está no cerne na minha identidade que é o trabalho, é o artesanato”, né? Isso daí você pode procurar, cada artesão desse teve uma avó índia, alguém que ensinou pra ela fazer que ela foi aprendendo de pequena. Então eu acho que esse resgate do Festivale tá tentando fazer é ajudar o pessoal artesão a reforçar esse conhecimento que ele tem, que ele conta com muita garra: “Foi minha avó!” Mas ele não conhece essa história. Muita gente fala assim: “Minha avó foi pegada no laço, foi amansada, ela era muito brava, aí teve que trazer ela pra civilizar, pra ela virar gente”. Aqui é comum você ouvir isso.
P/1 – E eles acham que é parte de um processo comum também?
R – Comum, é. É isso, né? Foi assim: “Ela era brava, depois ela viveu numa fazenda, aí naquela fazenda o filho do fazendeiro teve um menino com ela, que era meu avô, sabe?” É assim, você vê milhões de histórias dessas. Mas assim, fruto dessa dominação desses povos. E hoje quando eu vejo, por exemplo, os Krenak brigando contra a Vale do Rio Doce, fechando lá o veio de direito dele que é a exploração de minério que se exporta daqui pra fora, exigindo a terra ancestral que são os Botocudos. Os Aranã aqui que estão sem território, brigando por um espaço e por cidadania. Os Pankararu, os Pataxós, todos, eu vejo isso muito bonito, eu acho que esse Jequitinhonha se o povo daqui tivesse a consciência da história, da força e do passado eu acho que isso aqui ia ser igual Chiapas no México (risos), sabe, ninguém segura, né? Eu penso assim. Então espero que muitos outros povos comece com essa história a se assumir.
P/1 – Em relação a essa questão do artesanato, a gente conversou com muitas pessoas lá em Joaíma, e já nas nossas andanças, né? O que eles costumam falar é: “Ah, eu aprendi de olhar”. É algo que tá no sangue?
R – É porque eles viram alguém fazendo, ele viu e deu aquela vontade...
R - ... Aquela música e tal pra ele, ele era assim, ele chegou aqui assim, né? Imagina, isso fica na psique do povo, essa coisa boa de “a diferença não atrapalha”. Mas eu acho que nem por isso eles deixaram de ver o outro como algo bom, o ser humano é bom, eles se lascaram muitas vezes que os fazendeiros nem sempre são bons, eles estão querendo terras, mas não é por aí. Então até hoje o Maxakali ainda é essa cultura de receptividade, apesar da discriminação que eles sofrem por serem assim. Por exemplo, a Cleonice fala muito isso: “Nós educamos os nossos filhos pra partilha, não pra disputa, pra concorrência, pra essa coisa de um ser mais que o outro”. Se a criança recebe uma coisa e tem duas: “Ah, eu vou dar pro fulano porque eu tenho duas, eu não vou ficar com duas eu vou dar pro outro”. Então é outro tipo de educação, de formação das pessoas, do ser humano. E eu acredito muito nisso, talvez por isso que eu tô nessa, depois de ter passado tantas coisas, tantos processos eu acho que eu cheguei bem no funil, tô aqui em baixo no funil e acho que o indígena é o grande projeto de vida pro mundo, entendeu? Porque não é que o índio é bom e nós somos os ruins, os projetos de vida são diferentes. O indígena, ele tem um projeto de vida comunitário, de vida junto, de um responsabilizar pelo outro. O nosso projeto é egoísta, cada um se vira e...
P/1 – Individualista.
R – Individualista, né? O quê que se incentiva hoje aqui é isso: concorrer, e se você ganha, quanto mais você conseguir ganhar do outro melhor, você sobe. E quando eles fizeram essa proposta da aldeia tem uma coisa que ela escreveu aí sobre a casa. “Então, a nossa casa ela é redonda porque assim a gente se sente bem, porque o círculo não tem princípio, não tem fim, não tem em cima, não em baixo, nós iguais, né? Desde a casa, a formação até.” Aqui você não vai achar menino abandonado, velhice desamparada, existe uma vida comunitária onde as coisas se integram, tem problemas? Tem. Os jovens hoje têm problemas com essa avalanche de fora, com essa pressão da sociedade nas aldeias. Tem, são minorias hoje que estão sofrendo esse nova impacto, essa nova colonização como aqui agora. Todas as terras sendo cobertas, compradas pra plantio de eucalipto, as aldeias com esses projetos de vida do futuro da região e o agrotóxico chegando, a celulose, o etanol, e a cana, a mamona pra quê? Pro país desenvolver, agora eu me pergunto se isso é desenvolvimento, porque um tempo atrás a gente distinguia muito bem o quê que é crescer, o quê que é crescimento e o desenvolvimento. O desenvolvimento tinha a ver com a vida humana, nós estamos num planeta, ele é único, nós somos uma espécie que está aqui nele e somos responsáveis, então nós temos que buscar formas de sustentabilidade, de vida digna pra tudo mundo. E penso que na medida em que quer se uniformizar tudo com essa linguagem, que confunde as coisas isso pra mim isso não é desenvolvimento, isso aí tá crescendo a economia, a ditadura da economia. E todos esses projetos de vida vão sendo massacrados, empurrados pro fundo do baú porque não interessa, índio atrapalha o desenvolvimento.
P/1 – Com essa história que você contou da ocupação, o quê que acabou acontecendo com a geografia daqui? Você falou uma região de Mata Atlântica, né?
R – Sim.
P/1 – Hoje, o quê que seriam? Um semi-árido, assim?
R – Semi-árido, transição.
P/1 – Com essa desertificação que a gente está vivendo aqui?
R – Isso. O Mucuri, por exemplo, que foi a última área colonizada aqui de Minas, Mucuri era Mata Atlântica, foi o último reduto dos povos que foram sendo massacrados aqui no Rio Doce e foram se reduzindo ali nessa faixa do Mucuri pro sul da Bahia. E a destruição das matas na década de 50, a concentração de terras aqui no baixo Jequitinhonha que virou esse monte de latifúndio aí. No Mucuri também é muita criação de gado. Então a geografia mudou, então os indígenas eles tinham os nomes das serras, esses nomes mudaram, né? Os rios, a gente tava esses dias discutindo isso lá no Festivale, por exemplo, aqui nós temos um afluente do Araçuaí que chama Córrego do Fanado e o quê que é Fanado? Não, porque era o olho era “faiado”, né, tem uma porção de versões, mas na verdade Fanado é um ritual de iniciação dos negros de cultura Banta até hoje lá em Moçambique, então pra um lugar chamar Córrego do Fanado é porque aquilo lugar ali é especial demais pros negros, era onde se fazia a iniciação dos jovens na cultura Banta. Mas o tempo vai passando, isso aí vira, tem outra tradição. O Joimar, quer dizer aquele que é o articulador, que tem a resposta certa, na hora certa, tem a resposta na ponta da língua, que foi a tradução que o Krenak, o Douglas fez pra nós, virou Joaíma, a cidade Joaíma, o quê que é isso? Ah, era um índio, tinha a aldeia dele aqui. Não, não era uma aldeia, era um território com muitas aldeias, um povo grande que rompe com esses militares e vai combater lá no Mucuri, você entendeu? Então vai perdendo, quer dizer, a geografia, a linguística, tudo, a linguagem tudo muda.
P/1 – Como é que vai levar isso pras escolas?
R – Então, tem muita gente, nós tivemos um debate lá com pesquisadores do Jequitinhonha. Eu penso assim, que o Jequitinhonha é aquela história engraçada, eu vi uma vez um cara falando, é igual o elefante: um chega e pesquisa a orelha e acha que o Jequitinhonha é aquela orelha. O outro vai lá no rabo e o Jequitinhonha é aquilo ali. O outro vai na pata, então, nessa década de 80 pra cá começou um outro veio de pessoas, pesquisando essa história, quer dizer, se o Jequitinhonha é chamado de Vale da Miséria, tem algum motivo, como é que era antes que não era Vale da Miséria, né? E foi vindo à tona e essa outra face da história e eu, por exemplo, tenho o César Moreno, ele fez um livro, chama A Guerra contra os índios que é essa história dos quartéis no Vale do Jequitinhonha, o Eduardo Ribeiro fez a A Guerra na Mata, num livro que tem até ele aqui que chama Lembranças do Jequitinhonha e Mucuri. A Isabel Missagia fez agora a tese de doutorado dela, é A Catequese Missionária em Minas Gerais e que relata com detalhes o que aconteceu aqui com os Botocudos, né, e a resistência deles. E outras pessoas feito eu que tô mais convivendo com os índios do que pesquisando, que vou cutucando: “Olha gente, tem isso aqui, olha o povo Aranã, precisamos montar uma equipe pra resgatar essa história e devagarzinho as coisas vão fluindo, né?”
P/1 – Tem as pesquisas, mas essas histórias ainda não chegaram nos bancos escolares, não faz parte especialmente do currículo?
R – Não. Esse ano a gente tinha até pensado de fazer alguma coisa que pudesse contar pras escolas, pros movimentos essa história que tem esses índios do Rio Doce, mas é muito específico lá pro Krenak, embora relata o sofrimento dos indígenas nesse período de guerra. Mas era importante fazer um livro que as escolas pudessem utilizar nas aulas de história, que como já foi regulamentado, se tivesse a História Afro nas escolas, que tivessem a História Indígena da região, isso não existe, porque se você for olhar isso aqui ó, a História Indígena daqui é essa, você vai lá no Triângulo é a Guerra de 50 anos contra os Kayapós que hoje tem grupo lá no Xingu que fala a língua que era falada no Triângulo, né? Então é uma história de guerra também, de ocupação dos territórios indígenas do Triângulo. Você vai aqui no alto, na região do São Francisco outra, você vai lá no Sul de Minas outra. Então os Estados, na verdade, eles se constituíram em cima dos territórios indígenas. Então se hoje tem conflito de terra eles vão continuar porque os índios estão aumento, Maxakali na década de 80 eram 500, hoje são 1500, as crianças vão precisar de terra, mais terra. Então esse embate com o Estado não adianta o Estado fazer isso, de agora em diante vamos resolver os problemas de terra, vamos marcar o pedacinho aqui, cada um fica lá e a gente lava as mãos, né? Isso não existe porque essas populações eles crescem, eles vão reivindicar os direitos a ter terra, a ter...
P/1 – É um problema a ser resolvido.
R – É, não é assim.
P/1 – Geralda, a gente tá acabando a nossa entrevista. Eu queria te agradecer demais, você deu uma aula pra gente hoje, te agradecer mesmo.
R – Pois é, ué, mas isso é bom, de vez em quando eu faço isso aqui, né? Eu espero que seja uma história que possa ser conhecida por mais pessoas, não a minha pessoalmente, mas eu acho que essa coisa da história indígena daqui, de como esses artesãos, esses artistas todos tem uma raiz e muitas vezes eles não sabem disso.
P/1 – Mas teve muita gente que falou isso pra gente, né, que a avó foi pega.
R – No laço, né?
P/1 – No laço, que foi amansada.
R – Amansada.
P/1 – A gente ouviu essas histórias por aqui.
R – Pois é.
P/1 – É recorrente isso.
R – Aqui você vê essa periferia inteira você for aí. E com a chegada dos Pankararu foi interessante.
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