Projeto Centro de Memória das Comunidades Quilombolas de Paracatu
Depoimento de Ademar Coelho Guimarães
Entrevistado por Nataniel Torres (P/1)
Paracatu, 22/11/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número PCSH_HV1172
P/1 - Gostaria que você me dissesse, por gentileza, seu nome completo, sua data de nascimento e onde você nasceu.
R - Ademar Coelho Guimarães, nascido no município de Paracatu, região esta onde foi reconhecida como Quilombo dos Amaros, foi lá que deu origem de tudo. E aqui, hoje, onde a gente mora, nós sabemos que é o lugar que encontramos o refúgio, após largar nossas terras. Eu nasci em primeiro de agosto de 1963.
P/1 - Aí você nasceu já dentro dessa região? A gente sabe da história que começou lá no Macaco. Quando você nasceu, o bairro já estava aqui no lugar que está hoje?
R - Não existia ainda. Nós nascemos todos lá, toda a comunidade dos Amaros foi nascida nessa região, por lá. Os mais velhos, né? E quando teve a vinda pra cidade é que meu pai adquiriu este pedaço, esse território, que não era ainda municipalizado, não tinha nada como bairro. Era só o início de um novo bairro que surgia na cidade, o Paracatuzinho. Foi aonde acharam por bem comprar um pedaço grande, que coubesse esse pessoal que veio do êxodo rural pra cá.
P/1 - E que pessoal era esse que veio do êxodo rural? Era tudo pessoal da mesma família, Ademar?
R - Não, eram da mesma comunidade, porém várias famílias, porque estavam todos morando lá. Aí veio e formaram essa colônia aqui, originada da família dos Amaros. Aí foi evoluindo o bairro, né? Nós fomos os primeiros moradores a chegar, no início, apossamos e ficamos. Alguns ainda ficaram por lá. Esses que ficaram por lá, resistiram até um bom tempo, quando também foram jogados pra fora. E nesse final de tempo, todo mundo já estava estabilizado nessa região que estamos aqui. Hoje se tornou o nosso lugar, o nosso recanto.
P/1 - O que aconteceu que o povo...
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Depoimento de Ademar Coelho Guimarães
Entrevistado por Nataniel Torres (P/1)
Paracatu, 22/11/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número PCSH_HV1172
P/1 - Gostaria que você me dissesse, por gentileza, seu nome completo, sua data de nascimento e onde você nasceu.
R - Ademar Coelho Guimarães, nascido no município de Paracatu, região esta onde foi reconhecida como Quilombo dos Amaros, foi lá que deu origem de tudo. E aqui, hoje, onde a gente mora, nós sabemos que é o lugar que encontramos o refúgio, após largar nossas terras. Eu nasci em primeiro de agosto de 1963.
P/1 - Aí você nasceu já dentro dessa região? A gente sabe da história que começou lá no Macaco. Quando você nasceu, o bairro já estava aqui no lugar que está hoje?
R - Não existia ainda. Nós nascemos todos lá, toda a comunidade dos Amaros foi nascida nessa região, por lá. Os mais velhos, né? E quando teve a vinda pra cidade é que meu pai adquiriu este pedaço, esse território, que não era ainda municipalizado, não tinha nada como bairro. Era só o início de um novo bairro que surgia na cidade, o Paracatuzinho. Foi aonde acharam por bem comprar um pedaço grande, que coubesse esse pessoal que veio do êxodo rural pra cá.
P/1 - E que pessoal era esse que veio do êxodo rural? Era tudo pessoal da mesma família, Ademar?
R - Não, eram da mesma comunidade, porém várias famílias, porque estavam todos morando lá. Aí veio e formaram essa colônia aqui, originada da família dos Amaros. Aí foi evoluindo o bairro, né? Nós fomos os primeiros moradores a chegar, no início, apossamos e ficamos. Alguns ainda ficaram por lá. Esses que ficaram por lá, resistiram até um bom tempo, quando também foram jogados pra fora. E nesse final de tempo, todo mundo já estava estabilizado nessa região que estamos aqui. Hoje se tornou o nosso lugar, o nosso recanto.
P/1 - O que aconteceu que o povo teve de sair de lá, desse lugar que eles estavam antes?
R - Nesse período, houve as invasões dos próprios fazendeiros da época, que hoje estão apossados lá. Vamos dizer, a raiz já se foi, fomos escorraçados.Os proprietários que hoje se intitulam donos do local. Foi aonde que nós tivemos tudo que sair, às pressas. Saímos livres, sem nada. E pra não ficar jogado no tempo, nós achamos esse pedaço do início do bairro. Tava iniciando quando comprou o pedaço grande, que foi dividindo com essas famílias. Nessa família, estava a minha avó, que faleceu com quase cem anos de idade, que era a matriarca, a mãe do meu pai, e assim, sucessivamente os seus filhos. E também temos a família, aqueles que permaneceram aqui, tem aqueles que foram embora, que não acharam mais como lidar com a vida por aqui, então hoje estão no Goiás. Tanto que somos vários esparramados pelo Brasil aí afora. Nós temos uma família tradicional que é a de Cristalina também, conhecida pelo José Coelho Guimarães, que também já é falecido, mas os seus filhos permaneceram no Goiás, onde se formaram em professores, não levaram a atividade à frente. Eles foram os primeiros a estudar, a deixar de lado a vida da cultura, que era do tempo lá da roça, e partir pra esse lado. Mas mesmo eles lá são os que ainda mantêm a cultura, que é a caretagem. Mesmo que o patriarca morreu, foi o meu tio, com quase 90 anos, mais ou menos, 80 e tantos, ele que levou daqui pra lá… Ele mudou pra lá, mas levou a origem dele. Ele manteve essa cultura, que era a caretagem. Lá tem ela até hoje, embora não mais formada assim, pelos próprios membros dos Amaros, mas outros que gostaram e assumiram. E, às vezes, tem ainda um, dois ou três misturados no meio, mas foi esse tio meu que esparramou essa cultura lá. E como eles também não tinham como manter, que era essa daqui, do nosso povo, eles também se arrumaram lá com a cultura que hoje é muito tradicional lá, que é a Folia do Divino. Essa eles também se juntaram com o povo lá e continuam levando até hoje.
P/1 - Mas ele misturou a caretagem com a Folia do Divino?
R - Não, não misturou assim. Cada época tem a sua. Eu digo que eles vivem mais essa cultura, eles ganharam mais essa cultura lá e se abraçou essa cultura, porque a deles mesmo, a nossa, que era a caretagem original, não tinha lá. Aí meu tio resolveu levar, e a outra já estava na frente há muito tempo. Eles acharam interessante e abraçaram mais essa cultura. Lá essas duas ainda continuam.
P/1 - Ele levou a caretagem, aí eles mantêm a caretagem, mas também abraçaram a folia de lá. Qual é o nome da matriarca? Você não falou o nome dela.
R - Inês Pereira de Sena.
P/1 - Ela era sua avó.
R - A mãe do meu pai.
P/1 - E como era o bairro nessa época da infância?
R - O bairro era tudo mato. Nós já chegamos, começou com nós. Demorou muito a desenvolver e com o tempo é que foi ganhando essa estrutura de um bairro novo. Já tinha gente morando sim, quando nós viemos pra cá. Mas era um aqui, outro ali. Foi apovoando, né? Tanto que aqui é o início do bairro. Nós viemos logo ficar aqui no início, porque tava expandindo ainda pra frente, mas muito pouco. Era muito difícil, não tinha estrutura nenhuma. Era como se diz, era mesmo uma currutela, vamos dizer, não tinha avanço de nada.
P/1 - E as estruturas do bairro, quando precisava de água, as necessidades, a comida… Como vocês faziam?
R - Não tinha isso. A gente tinha que usar dos vizinhos, aqueles primeiros que foram furando os poços. Não tinha banheiro, não existia isso, então tudo era feito no sistema antigo. Quando eu cheguei pra cá, como a gente tinha a tradição, a vida era do campo, meu pai não conseguiu ficar aqui. Ele deixou a gente aqui e foi continuar sua vida no campo, como agregado de fazenda. Ele foi sempre apaixonado pela terra e continuou mantendo. Deixava a família em casa, a gente ainda tava pequeno, e ele ficava nas fazendas de um e de outro pra não perder esse vínculo.
P/1 - Aí ele saía daqui, ele ia e voltava todo dia, ou como fazia?
R - Não. Finais de semana ou até meses.
P/1 - E o que vocês faziam aqui? Porque aí estava a mãe e os filhos.
R - A minha mãe era lavadeira e passadeira pros outros, pra defender o pão, o que ela podia aqui, enquanto meu pai batalhava nas fazendas lá, dando o sangue e a vida pra adquirir o arroz, o feijão e aquilo que vinha da roça. Fora disso, a gente passou muita fome, porque até então, naquele tempo, as pessoas não eram tão generosas. Mas a gente tinha a ajuda das tias, elas estavam com a vida mais ou menos arranjada, ajeitada, então ajudavam a gente desta forma. Só pra você ter noção, a nossa família aqui é 13 filhos. Hoje restam 11 dessa família que vocês estão aqui hoje. Essa família tinha um prato de comida pra dividir com todos os 13 na mão, uma colher pra cada um, pra não dizer que não dormiu sem a janta, ou que não teve o almoço. Então era muito difícil. Se na roça a gente achava que a dificuldade lá no quilombo era difícil, por não ter estrutura pra manter nossas características lá, mas era melhor porque pelo menos você tinha a terra. Sabia que o que plantava era seu. Mas quando perdemos tudo, aí já não tinha nada pra gente fazer lá, viemos pra cá e viemos passando essas necessidades, piores ainda do que lá. A gente vivia, se alimentava das frutas temporãs, as coisas que surgiam na época, que matavam mais a nossa fome, até que a gente foi crescendo e foram todos ajudar meu pai, ajudar no sustento da família.
P/1 - Depois que vocês foram crescendo vocês faziam isso também, iam pra uma fazenda, pegava o sustento e trazia de volta para família todo para poder existir?
R - Nós acompanhava meu pai, né? Onde ele tava, nós acompanhava ele, até a idade de 25 anos. Pra gente casar, a gente pensava muito, como que fazia, se mantinha ao lado deles ou assumia a nossa vida. Mas aí já, graças a Deus, estava tudo evoluindo. A cidade já estava evoluindo, o bairro já estava bem emancipado, tinha melhores condições de vida.
P/1 - Seus irmãos também foram crescendo, começaram a casar, foram ter filhos e viver a vida deles. E como é que ficaram seus pais nessa história?
R - O meu pai ficou até os seus setenta e poucos anos ainda trabalhando assim, até que ele não teve mais como tocar as lavouras só. E ele não podia, porque o que ele fazia lá atrás, ele tinha forças, tinha ajuda da gente. Também ele tinha pessoas para ajudar na lida, tinha moagem de cana, tinha umas tábuas na cultura moar de cana, fazeção de farinha, além da lavoura. Tudo isso ajudava no sustento e tudo. E como ele não tinha mais isso para fazer e não tinha também as roças para ele ir, ele já não tinha condição de estar na roça, então ele finalizou a sua vida recomprando do pessoal que produzia nas roças pra sair vendendo na carrocinha. Aí ele saía vendendo para não perder esse vínculo.
P/1 - Mas seu pai já era idoso quando ele começou a fazer esse comércio.
R - Já tava com seus 75 anos, por aí. Ele viveu até os 82, aí até os 80, ele parou com média dos seus 75 anos. Ele já tava parado, mas aí era essa luta nossa.
P/1 - E sua mãe nessa história? Porque o pai saiu para comerciar e nessa época ela também já não lavava mais...
R - Graças a Deus já tava os filho criado, tavam tudo grande. Tava estabilizada em relação ao que vivemos lá atrás, então ela ficava já em casa.
P/1 - Nessa época, os filhos adultos já trabalhavam, todos já tinham a sua vida?
R - Já trabalhava, tinha a nossa vida.
P/1 - E você, conseguiu estudar alguma coisa, como era isso? Ou não chegou a estudar nessa época de infância?
R - Nessa época nossa, que era esse número de filhos, os mais velhos... O meu pai conseguiu dar até a quarta série primária para todos, e depois, quem quisesse, continuasse depois de velho. E assim que foi aqui em casa, só demos continuidade depois que pegamos uma idade maior. Eu, por exemplo, concluí o meu primeiro grau depois de casado. E o segundo também, pelo sistema SESEC. Aí, dessa minha família, só dois que se formaram e têm curso superior.
P/1 - Nessa época da infância tinha escola por aqui ou era longe? Como vocês faziam?
R - Não. Era longe. A escola que a gente tinha era o Dom Serafim. Então a gente estudava no Dom Serafim, era perto.
P/1 - Depois você começou a crescer um pouco mais e chegou a trabalhar em fazenda também?
R - Não. Depois que eu deixei meu pai, não mexi com fazenda nenhuma mais. Nenhum de nós, depois que amadureceu, pegou. Emancipou suas famílias, não ficou mexendo com fazenda. Cada um se virou do seu jeito, nos 30, como diz o meu primo aí. (risos) “Se vira nos 30 agora”.
P/1 - Aí você foi trabalhar com o que depois de adulto, Ademar?
R - Eu trabalhava de serviçal, serviço de pedreiro, né? Parei nessa função e fui abraçando o que aparecia. Por exemplo, nós vivíamos a nossa cultura no garimpo, que tava logo atrás... Você perguntou como é que se virava o nosso viver, então era, graças a Deus, o garimpo no caixote. Quando não era ouro, era coação de areia. Quando não era coação de areia, a gente ficava esperando a chuva pra o ouro descer, pra a gente ir lá lavar. O garimpo e a coação de areia era o sustento que nós tinha de mais relevância na época, para nos ajudar. Além do meu pai cuidar da lavoura. Nessa época, ele deixava a lavoura aos cuidados de Deus... (risos) E ia buscar esse sustento, esse meio, que era o mais fácil pra gente, que era o garimpo ou coação de areia.
P/1 - Vocês chegavam a encontrar ouro, achavam alguma coisa aqui?
R - Achava não, ainda acha, porém nós não podemos ter a felicidade de continuar por causa da embargação, né? É o que a gente achou estranho e acha até hoje. Quando as nossas famílias, e não só nós, dessa geração, os demais da cidade garimpavam o ouro no caixote, diziam que estava estragando, prejudicando o meio ambiente e tudo mais. E hoje chegou a multinacional e ela não tá prejudicando nada, ela não [tá] embargada, pois nada. E o nosso foi suspenso, sem direito de beirar um desses lugares que a gente viveu no passado buscando o nosso sustento. Então, para nós foi cruel, tirou de nós aquilo que era o sustento de todos nós.
P/1 - O pessoal já tava garimpando, começou com vocês, mas depois, já tinha um pessoal, tinha uma estrutura, não da empresa, mas de vocês. Vocês já tinham criado uma estrutura, pelo menos uma cultura do local, né?
R - Nós já tínhamos criado a cultura do caixotinho, que é a verdadeira, antes de tudo isso. Mas aqueles que já estavam envolvidos, da minha família, aqueles que foram criando, foi aparecendo o estilo do garimpo por dragas, antes da Kinross. O jeito mais favorável era a draga. A draga, essa destruía sim. Quebrando barrancos, tirando ouro como a Kinross faz. E através dessa draga, todos foram prejudicados, porque os que não prejudicavam nada, que tiravam no caixotinho, ficou todo mundo indo de mão abanando, porque quando eles suspenderam, suspenderam tudo. Logo depois, veio a Kinross e nada fez. Mas o ouro era certo, ele era a situação. A gente trabalhava e tinha vez que você trocava todo final de semana, dependendo da necessidade, ou de 15 em 15 dias, quando vinham os compradores de fora para levar o ouro. O pouquinho que a gente comprava, ia juntando, até dar um valor. E, muitas vezes, não tinha o necessário para a gente alimentar. Você trabalhava cedo para vender de tarde, para comer no outro dia. Então ele tinha essa vantagem para a gente, a gente não passava muita necessidade quando era a época desse garimpo. Era a época que a gente era feliz e não sabia, né? Aqueles que não adaptaram com o garimpo, que não todos pegaram jovens, mais novos… Esses que estavam sempre estudando, manteve, e os que não estavam acostumados, que estavam acostumados com garimpo, com essas coisas, teve que se virar, igual eu tô falando. Eu passei a serviço de pedreiro. Uns viraram pedreiro, outros serventes, no meu caso, e trabalhando para os outros, pra aqui, pra ali, pra conseguir levantar o nosso sustento, manter a estrutura. Então, é isso mesmo. Depois que isso tudo acabou, nós tivemos que se virar, continuar na roça ajudando meu pai. E depois que a roça acabou, cada um já teve que se virar da sua forma, foi casando, foi trabalhando por dia. No governo, no primeiro mandato do governo Lula, que foi resgatada a nossa identidade, porque até então, quando a gente mudou para cá, não existia essa de falar que era comunidade quilombola, ninguém reconhecia nós como nada disso. Se você falasse, ninguém sabia que era ex-quilombola, que era isso. Essa identidade passou a ser trabalhada e estudada a partir do governo, do primeiro mandato do governo Lula. E daí para cá, em 2004 que foi isso, começou esse longo processo, onde foram desvendados vários trabalhos, mistérios dessa geração, dessa comunidade - como que ela surgiu, de que forma, daonde que vem.. Ancestral, que veio originalmente da África, como é que foi. Então foi trabalho que eles fizeram, tá tudo documentado em vários documentários, da Casa da Cultura. Tem os esparramado pelo Brasil afora, a origem e o início que se deu, a retomada para se identificarmos como os quilombolas, família dos Amaro. Aí veio a briga com a Kinross, onde ela entrou junto com os fazendeiros e os processos [foram] montados em cima contra os fazendeiros, que hoje estão nas terras e em cima da Kinross, que é a proprietária, e, junto com eles, tomaram tudo, né? Tanto que para nós, termos a Kinross, não ajudou em nada. Ao contrário. Ela tirou de nós, acabou de se tirar o que nós ainda tínhamos esperança dos meus antepassados, que é o meu pai e os demais, deram a vida sonhando de retornar para o quilombo, para suas terras de origem. Tanto que meu pai, em seu leito de morte, sempre pedia que quando ele viesse a falecer gostaria de ser colocado onde o seu pai estava, que era lá no quilombo, tanto que foi sepultado lá no cemitério da Lagoa Santo Antônio, para pelo menos cumprir esse gosto, esse desejo, se a terra ele não conseguiu em vida ter de volta. E a Kinross, com o grande papel que ela sempre faz, de iludir as pessoas, porque infelizmente fomos iludidos com o processo que estaria para devolver as nossas terras. Entrou no segundo mandato de Lula, deu mais uma alavancada, chegou o de Dilma, e nunca mais mexeu com nada. Viagem mais viagem para Brasília, tentando rever isso, e na hora da titulação de nós para receber a terra, para devolver para nós, a Kinross, com os fazendeiros, puseram pedra em cima e arquivou, e tá lá arquivada. Tanto que falam de cultura, se a gente tem desejo de voltar. Eu, Ademar, nós não mexeremos mais com essa cultura que vocês viram aí apresentada, os meus irmãos. Os demais, se você procurar perguntar se eles querem retomar, ninguém mais quer retomar, porque a cultura maior nossa ficou perdida lá atrás, que os nossos antepassados sonharam reter para ela para continuar suas origens e não puderam por causa desse desrespeito que foi feito quando a kinross chegou e os fazendeiros, que tomaram essa pedaço de chão que era adquirido pelo nosso bisavô Amaro, que é intitulada a comunidade, leva o nome dele, Amaro das Mercês. Porque foi ele que adquiriu essa gleba de terra lá, que foi onde ele viveu sua vida. E aonde que nós falamos que nós nascemos. Macaco, Pituba, é tudo no mesmo local, só que tá em regiões separadas, os pedaços assim. Então, a cultura deve ser vivida dentro do seu território, na sua terra, onde você sente ali que os ancestrais viveram tudo. Quando você desloca, perde o seu chão, como é que você vai viver sua cultura? E a kinross sempre propôs dentro desses processos que estão presos lá, arquivados, que iriam nos dar um local para gente construir um centro comunitário, um centro para gente reativar nossas culturas. Chegamos ao ponto de procurar, o local hoje está ao lado da Unitec, o terreno lá. A gente avaliou o valor, na época estava em um milhão, apresentamos para Kinross o valor, eles pediram que procurassem o local, que eles pagariam até o processo encerrar para a gente ter ou ser indenizado ou receber de volta o terreno, então que nós procurássemos. Quando nós apresentamos todo o documento do terreno, o valor, mais uma vez nós levamos na tarraqueta. Puseram pedra em cima e nunca saiu, nem sai mais nada. Então, a gente tá desacreditado, não temos mais crença que a Kinross vai fazer alguma coisa por nós, e se fizer, ela vai dar com uma mão e tomar com a outra, porque nós conhecemos muito bem quem é essa Kinross. Eu fui um que acompanhou o processo em Brasília. Estive nas reuniões com os deputados pra se tratar desse assunto várias vezes, com a Kinross na mesa redonda, para tratar da devolução das terras e só levamos na tarraqueta, está aí como está hoje. Como nós vamos levar nossa cultura, que quando falam que nós vamos ter os direitos de quilombolas, que é garantido por lei, falam lá que você tem que estar empossado na sua terra? E aonde que a gente não consegue, porque nós não temos o território mais, falam que vai voltar e nunca voltou.
P/1 - Até esse próprio território que você tá contando, que foi avaliado em um milhão, esse não era o território originário?
R - Não era, era aqui na cidade, pra nós irmos desenvolvendo as atividades, pra não ficar tanto no prejuízo até acabar o processo de voltar pras terras. E aí, nem uma coisa nem outra.
P/1 - Essa outra terra que você tava contando, que era na cidade, era pra vocês irem produzindo lá, pra dar um tempo pra sair, é isso?
R - Não…Esse não é bem uma terra grande, seria o lote... Qualquer um vê lá aquele lote vago, lá do lado, abaixo do Objetivo. Aquele lote lá dava pra gente construir um centro comunitário, com atividades que davam renda pra comunidade ir desenvolvendo, até acabar esse processo. Só que ficou só na vontade, no desejo, nos trabalhos nossos, em busca disso aí. Com isso, nossos ancestrais morreram sem ver a coisa acontecer. E nós, que estamos na meia idade, não vemos mais essa chance, essa oportunidade. E agora, se esses mais novos que aí estão, quiserem reerguer essas culturas, eles que vão reerguer. E pra isso, é como diz, nos documentários eles vão ver o que tinha. Se eles ainda tiverem forças, esses meninos que tocaram aí, eles herdaram do pai esses belíssimos toques que eles cantam. Eles foram os únicos que abraçaram, que é originalmente do pai. Meu pai, como não tocava nada, meu pai era apenas o gestor que levantou a dança da caretagem aqui em Paracatu e daqui foi esparramando pro São Domingos, o do Açude meu pai que levou pra lá, São Domingos já tinha, que é a única comunidade que não perdeu seu território. As demais que não tinham. Aliás, meu pai buscou, acho que foi do Alto do Açude, pro lado de lá tinha caretagem das outras comunidades, e trouxe pra cá, pro Paracatuzinho. O meu pai parou exatamente pela idade e pelas condições de dar continuidade, como os meninos aí falaram, que se não tiver a pessoa disponível e de boa vontade pra erguer essa bandeira, não vai pra frente, só traz problema. E com isso, nós vemos muito difícil de retomar. Eu, por exemplo, não mexo. Os demais irmãos, quando falam de caretagem pra dançar, só no passado, porque até vocês viram as roupas aí. Só eles que têm, porque as nossas, um bocado se doou para a Casa da… Pro museu, vocês podem ir lá ver algumas doadas, e as outras, algumas foram consumidas pelo tempo. Ficavam guardadas, mofou tudo, então não tem mais. Eles ainda têm. E tinha também na nossa comunidade, a cultura não era só a caretagem. Nós tínhamos também as rezas, as rezadeiras, as parteiras. A reza de Santa Cruz, a minha avó que era essa matriarca, ela já fazia. Tinha a avó da Marina, que fazia a reza de Santo Antônio, tudo isso no quilombo, já acontecia lá. Essas trouxe pra cá, aí foi perdendo também com o tempo. Tinha a de Santo Antônio, que era ela, e tinha a outra que rezava lá pro Alto do Açude também, bairro Nossa Senhora de Fátima. Isso tudo era tradição, acabou tudo e não vejo possibilidade de volta, porque os novos não querem e têm razão, porque eles não viveram isso, né? Eles viveram já numa era de avanço das coisas, da tecnologia. Quem é que quer perder tempo com as culturas? Só a gente, que viveu aquilo, não esquece o passado porque nossos pais viveram aqui, vieram daqui. Um povo sem cultura é um povo sem identidade. Por isso, a gente ainda mexe e vive até lembrando da cultura, e ela faz parte da nossa história.
P/1 - Vou só voltar um pouquinho porque eu quero continuar nessa parte da cultura. Você falou que nessa época do Lula, no primeiro mandato, começou a acontecer esse resgate, foi o primeiro momento. Como era antes desse momento?
R - Como era antes? Era só a vontade e o desejo dos meus antepassados de um dia voltar para onde era o seu patrimônio. O meu pai, com o irmão mais velho dele e a minha tia, que é mãe do Eliomar, foram os três primeiros que se… E a tia Maria, que eles deram… Fizeram vaquinha e iam à fazenda pra tentar resgatar essa história, comprar, buscar o terreno de volta, onde foram barrados por todas as vezes. Os advogados iludiram eles, levavam o dinheiro e não voltavam pra dar continuidade nos nossos processos. E eles viveram essa esperança, até que chegou um ponto que eles viram que não tinha jeito, depois de três advogados iludirem e levar o dinheiro, que eles deixavam de comer, pra juntar o dinheiro pra dar pra eles. Nessa luta toda que eu falei, quem trabalhava tirando ouro, ainda juntava dinheiro com essa esperança de ter as terras de volta. Como não conseguiram, aí parou e agora não mexe mais, acabou e não tem jeito. Mas aí, veio o governo Lula, que reacendeu a chama de reconhecimento das comunidades quilombolas. Como surgiu esse primeiro movimento? Em memória do então Dario Alegria, foi ele que foi o primeiro incentivo, porque ele fundou em Paracatu, no Santana, principalmente, o movimento Raça Negra… Fala Negra. Como ele estava envolvido no Fala Negra, ele era o presidente lá e fundou isso aí. Ele veio conhecer a nossa história também, como vocês hoje estão aqui. Meu pai expôs pra ele qual era o desejo dele, como é que surgiu, como que a gente veio parar aqui, daonde que nós éramos, e meu pai falou de onde que veio, e tal tal... E [o Dario perguntou] se ele tinha desejo de voltar, ele falou: “Ter, tenho, mas não tem como.” “Mas como o senhor acha que não tem como?” “Porque depois que os fazendeiros tomaram tudo de nós e a Kinross, como que a gente volta pra lá? Eu já gastei o que eu pude e o que eu não pude pra tentar reverter, porque ele disse que nós tínhamos direito de recorrer, porque ainda que existisse uma descendência, que nós tínhamos direito, então nós caímos na besteira e enfiamos dinheiro na mão dos advogados e eles vinham, rapavam o dinheiro daqui, iam lá e nunca mais voltavam.” Foi aí que o seu Dario: "Então, você me dá esses documentos que vocês deram entrada na época e eu vou levar até Brasília, pra gente ver o que o que tem lá em Palmares. Palmares é que cuida desses casos.” Foi aí que veio a sentença pra trabalhar em cima e começou aquele alvoroço total, onde meus pais, com o número de mais ou menos umas 15, 20 pessoas, foram fazer a barricada lá, sendo resguardados pelo Governo Federal, com todas as autoridades, pra que ficassem na terra pelo menos uns 6 meses, ranchados, pra que não perdessem o direito de voltar pras terras, de ganhar a causa. Eles ficaram 6 meses lá arranchados sem necessidade, porque dizem que pra dar como retomada do território teria que ter alguém lá na terra, firmando lá, passar por esse período. E nós ficamos lá, meu pai ficou com umas 20 pessoas, ficaram remanejando, até o processo correndo em Brasília, correndo aqui no fórum, e resgatando tudo, enquanto eles não fizeram os estudos todinhos, aqui dentro de Paracatu, dentro do fórum que foi prendido os documentos, não abriam a mão pra ninguém olhar os documentos, porque sabiam que iam encontrar as falcatruas, como foram tombadas as terras, nós perdemos as terras, então o fórum não abria a mão de forma nenhuma. Pra ela conseguir abrir a mão teve que entrar intervenção do Governo Federal, mandado do Governo Federal pra que fossem abertos todos os documentos em que estavam registradas as nossas descendências, como que surgiu essa comunidade. Foi aí que eles abriram e foram descobrindo todo o desenrolar - como que perdemos, quem é que estava em cima disso, quem não era dono. Foram pra Bahia, documentos até na Bahia se encontraram, nessas cidades mais antigas, tudo tinha alguma coisa que relatava daqui, porque tudo o que faziam aqui na época ia pra esse lado de lá, pra Bahia, pro Rio de Janeiro. Com tudo isso…(outra pessoa fala, inaudível) Pra você ter noção, foi dinheiro demais que esse governo injetou, gastou demais pra pôr esse povo atrás de tudo isso. Um grande estudo levantado, que até na África eles tiveram que ir pra buscar se nós tínhamos descendência lá desse Amaro, se esse Amaro realmente veio de lá e se tinha descendente dele lá também. Aí foram registrando tudo, catalogando e punham nos documentários. Hoje a gente tem uma pilha de documentos dessa altura, com todo o processo que foi dado e paralisado, aonde ressurgiu tudo como foi lá no passado. Isso aqui que a gente tá contando não é nada, o que é o maior vocês vão estar ouvindo dentro desses primeiros antepassados que contaram - meu pai, que não está mais aqui. Essa mesma fala que a gente tá falando aqui tá lá, tudo no documentário que tá dentro do processo e tudo. Como que eles perderam a terra, o que que aconteceu, qual era o sonho, qual era o desejo. Então tá tudo nisso aí. Como você disse, esse primeiro momento foi esse: a retomada do quilombo da Lagoa de Santo Antônio. Eu tenho até hoje o jornal lá em casa, o jornal “O Movimento”, que registrou o fato, esse dia histórico, que nós tínhamos certeza que agora tínhamos a terra em mãos, mas infelizmente ficou só no sonho. E aí, a Kinross entrou no meio, que ia devolver pra nós ou então ia comprar outra fazenda, do tamanho da propriedade, da parte que eles estão usando, e os fazendeiros se viravam com a parte que eles teriam que devolver, mas infelizmente, quando a gente viu que o processo estava caminhando, que ia acontecer, agora vai acontecer, que a gente chegou até na parte… Nós tivemos várias etapas - identificação, o RTID, reconhecimento do território e tudo isso, a hora que chegou na parte que seria agora já pra titulação, foi embargado. Nós, a comunidade dos Amaros, era a que estava mais adiantada pra receber as terras e o reconhecimento como legítimos donos, então ficou paralisado nesse processo da titulação. Depois que entrou Dilma, no mandato dela, Lula, no meio do mandato dele, do segundo, não fez mais nada; Dilma, no segundo, não fez mais nada e ficou aí. Foi onde que eles acharam o apoio de não dar prosseguimento no processo. Mas ainda hoje, de vez em quando, este ano mesmo, a gente é sempre bombardeado por alguém que chega perguntando como é que ficou o nosso… O Canadá, por exemplo, eles ligam pra gente, perguntando como é que ficou a situação com a Kinross, com o nosso território. Porque onde ela passa pro lado de lá, essa instituição filantrópica, não é governamental, eles lá não permitem que onde ela passe ela acabe com a cultura daquele povo. Se ela entrou, ela tem que devolver ou melhor do que entrou ou não mexe. E se aqui, ela tinha feito alguma negociação com nós e se já tinha finalizado o processo, ou o que eles deram pra gente. O que deram foi isso: arquivo.
P/1 - E deixa eu perguntar, nesse processo todo que você tá me contando, como ficou a comunidade? O povo ainda tá aqui, não tá aqui… Porque vocês vieram pra cá, pro bairro, formaram o bairro, como você tava me contando, aí tá nesse processo todo de retomada, que começa e depois volta, e nesse momento tá parado pra tentar resgatar. E agora, como está o bairro? As pessoas ainda tão aqui?
R - Nós somos em torno, uma média… Se você for contar os membros dessa comunidade, entre adultos e crianças, a gente deve estar chegando na casa das mil pessoas. Mas tão tudo esparramados em tudo quanto é parte do Brasil.
P/1 - Ah, nem só de Paracatu. Tem gente que não tá no bairro, tá em outros lugares de Paracatu, mas também tem gente em outros lugares...
R - É, que já moram pra lá. Então, tá dividido.
P/1 - Tem alguma coisa que eu não perguntei que você gostaria de contar, que você está lembrando? Ou da cultura, ou dessa questão política...
R - Ah, da cultura. No meu caso, por exemplo, em mim despertei a minha cultura - dando prosseguimento, que isso não veio de lá, mas eu faço, como eu tava mostrando ali, eu sou artesão. Meu pai era artesão das gamelas, das bateias, do jacar, tudo isso. O meu pai e o meu tio que tinham essa cultura de arte. Eu não sei se eles relataram também. O meu tio, quando começou a desenvolver essa mentalidade de fazer essas coisas, ele não tinha, não veio com ele de lá. Meu tio só conheceu isso depois que ele chegou aqui, que teve sete derramamentos de sangue pra morrer. Quando ele ia morrendo, voltava, e os médicos falaram: “Se você reviver, sair dessa, você vai ser um grande homem.” Depois que ele teve sete derramamentos de sangue, já veio com tudo isso na cabeça. As artes tão aqui, ele é um artista. Ele foi um grande artista, só não soube ter pessoas que valorizassem as artes, e o negócio dele também era ficar quieto na casa. Eu, por exemplo, fui e tive a oportunidade, por meio do financiamento do finado Dario, ficar uma semana em Belo Horizonte, acompanhando as artes dele na exposição. E hoje, eu também faço arte, só que eu trabalho com reciclagem. Quando eu mostrei, não sei se a menina vai jogar pra você as fotos, eu pinto do meu estilo, aquele estilo que vem da cultura mesmo da pessoa, né? Pode ver que todos os traços vêm realmente da cultura africana. Então eu faço, eu reciclo em quadros e hoje, como o meu pai tinha o trabalho de fazer jacar, balaio, eu reciclo cestos, fruteiras, reciclando material do meio ambiente. Eu não sei… Você não é daqui, não ficou sabendo, eu fiz uma exposição virtual com mais de 30 peças minhas variadas. A parte de quadros e a parte de material e moveizinhos, tudo reciclado. Eu fiz para ser exposto presencial na Casa da Cultura; já estava marcado, seria em junho. Veio a pandemia, aí não pude expor. Como eu não pude, eu fiz ela virtual no ano passado. Ela rodou uma boa parte do Brasil. O povo me parabenizando, mas o interesse do artesão é vender. Quando fala em vender, o povo acha difícil, mas achar beleza é lindo, maravilhoso, agora o artesão quer o dinheiro. Como então não consegui vender, vendi pouco aqui em casa e tô lá na minha casa com as expostas. Meu museu, eu vou expor aqui, minhas peças tão aqui. Foi as que eu tirei as fotos, algumas; umas eu já doei, já vendi e temos umas outras em casa. Eu tenho essa facilidade, graças a Deus. Você perguntou do estudo. Apesar do meu estudo ser pouco, eu só fiz até o 2º grau, já depois de velho, eu tenho a facilidade de escrever também. Se você disser pra mim “faça pra mim um cerimonial para um político, um cerimonial para uma festa de 15 anos, um casamento, uma homenagem para alguém”; está aqui. Apesar de eu ser quilombola, de eu ser negro, eu não me sinto diferenciado de ninguém, porque Deus deu a perfeição pra cada um e usa cada um da sua forma, do seu jeito. Ninguém é igual a ninguém, cada um é diferente, mas essa diferença é que faz a mudança acontecer. Dentro desse meu povo, agora que surgiu o primeiro político, dessa descendência, porque até então não tinha. Mas já tinha eu, que levo no sangue a política. 2004 eu ia sair candidato a vereador, fiz minha campanha 2 anos seguidos. Antes da campanha, visitando o pessoal, pra em 2004 fechar a minha candidatura. Faltando um mês pra eu registrar a minha candidatura, Deus falou: “Para. Você vai ganhar, mas não vai adiantar, porque você vai sofrer lá dentro e você vai ter que ceder às barganhar pra você poder fazer alguma coisa. E isso não é pra você. ” Então, com isso, eu não quis sair, mas ficou no sangue. Chega a época das campanhas, eu estou sempre sendo cabo eleitoral de um, de outro, e estou ali, dando minha palhinha e incentivo e querendo ver as coisas acontecerem. Eu ainda puxei esse lado: a arte, a escrita e a política. E sou flamenguista - não sou apaixonado porque sou apaixonado por Jesus e minha família. É só isso que tenho a dizer.
P/1 - Então eu vou fazer uma pergunta pra finalizar. O que você achou de contar a sua história de vida para um museu, o Museu da Pessoa?
R - Uai, essa não é a primeira, né? Inclusive, essa parte da minha escrita que eu acabei de te falar, eu participei de um dos primeiros concursos de poesias, poemas de Natal, feito pelo SESC. Eu consegui… Não sei qual foi a classificação, não foi das primeiras, mas consegui aparecer, ser bem aparecido. E tenho umas 3 que já estão arquivadas no Arquivo Público, que eu arquivei. Se você for lá procurar as escritas do Senhor Ademar, você vai encontrar lá. Foi “Sinos de Natal”, tem “A praia acabou” - teve uma época que essa praia nossa acabou, secou com a água, ninguém via mais; foi quando a Kinross veio e prendeu a água toda lá em cima e nós ficamos todos sem água aqui. A gente achou que não ia chover mais, não ia ter mais água e estava seco, aí eu fui pro lápis. Fiz, registrei, tá lá. Então, falar da minha vida, da minha história é gostoso, é bom. É contribuir praqueles que acham que nós não temos inteligência, não temos sabedoria por sermos negros. Porque ser negro é bom, é ótimo. Se o Brasil tá hoje aí, foram os braços dos negros que foram os primeiro a vir mostrar sua força, as suas garras. E a gente não se envergonha. A gente sente vergonha é das coisas que a gente vê aí pelos nossos políticos, carregando dinheiro na cueca e o povo morrendo de fome, é dessa corrupção danada. Isso é que nos envergonha, mas a nossa pele, a nossa cor, é limpa. Aquele que suja sua pele é aquele que vive essa vida que a gente vê aí, que não é o certo que a gente deve viver. Não é porque eu sou preto que eu sou diferente dos outros. Aquisitivamente posso até ser, mas tudo que nós temos foi com muita luta, suor, amor e gratidão a Deus. Somos iguais a qualquer um. E outra, também pensando, você vê a minha mãe, a mim, e você não fala que nós saímos de uma família que também é italiana. A avó, mãe da minha mãe, é filha de pessoas de ascendência italiana; foi filha de uma escrava com um italiano. Ela é branca, dos olhos verdes, a mãe da minha mãe, e só restou ela de filha. A mãe dela, minha bisavó, trabalhava com esse italiano nas fazendas, e lá ele se engraçou com ela e veio essa filha branca, dos olhos verdes. É descendente dos italianos. E a gente taí, mistura, miscigenação, vamos dizer assim. É isso que a gente tem pra falar e eu agradeço a vocês pelo tempo.
P/1 - Imagina! A gente é que agradece, o Museu da Pessoa e eu mesmo agradeço toda a sua fala, Ademar. Muito obrigado por contar a sua história.
R - De nada.
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