Memória dos Brasileiros
Depoimento de Lucia Maria Crispiniano
Entrevistado por Julia Basso e Winny Choe
Piaçabuçu, 05/10/2007
Realização: Museu da Pessoa
MB_HV057
Transcrito por Luisa Fioravanti
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P/1 – Então, Lucia, para começar eu queria que você dissesse seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Lucia Maria Crispiniano, sou conhecida como mãe Lucia de (Oiá?) na minha comunidade, nasci no dia 20 de abril do ano de 46, portanto tenho 61 anos bom vividos (risos).
P/1 – Que ótimo! E o nome do seu pai?
R – Meu pai se chamava Claudionor Crispiniano da Silva, era carpinteiro e tinha uma pequena loja de móveis, trabalhava com móveis de encomenda e tinha móveis para vender. E a minha mãe era uma mulher maravilhosa, de uma força sem tamanho, sem muita cultura porque estudou muito pouco, mas de uma sabedoria inigualável. Chamava-se Maria de Lourdes Crispiniano da Silva.
P/1 – E a cidade que você nasceu?
R – Eu nasci em Recife, em um bairro de periferia chamado (Bar___?)
P/1 – E como foi a sua infância nesse bairro?
R – Fiquei nesse bairro até os meus sete anos, depois mudamos para a Água Fria onde fiquei até a puberdade. Depois Arruda, e já moça feita, trabalhando, vim para Olinda, então de Olinda só saí agora, há 14 anos quando a minha mãe fez a grande viagem dela. Então vendi a casa e fui para outro local!
P/1 – Ainda em Pernambuco?
R – Ainda dentro de Pernambuco! Uma infância normal. Fomos sete filhos, a família média baixa, mas com muita união, sabedoria, aprendizado, convivendo com avôs vivos. Até os meus 25 anos eu tinha meu avô e minha avó, até os meus 45 eu tinha avó, não é? E aprendi um bocado com eles. Por parte da minha mãe, pessoas católicas e, por parte do meu pai, um pessoal com um ___ muito forte africana, todo mundo de candomblé! Então me tornei candomblezeira aos 13 anos, em busca das minhas identidades, da vivência.
P/1 – E como foi essa sua entrada no candomblé, você que quis?
R – Eu sempre quis, e não entrei aos 13 anos porque o meu pai me segurou. Então fiquei como espectadora, mas assim que me formei, que terminei o meu curso de Enfermagem, pela Universidade Federal, eu entrei no candomblé. Tinha 18 ano, e estou até hoje. Só vou sair depois de morta. Se não é que eu vá permanecer lá em espírito!
P/1 – (risos) E você falou que seu pai era católico e sua mãe...
R – Não, minha mãe era católica. Meu pai é que toda a família dele era de candomblé. A minha mãe era filha de Maria e sempre teve muito respeito pela religião de meu pai, porque meu pai era assim, pé dentro, pé fora. Ele não entrou de cabeça e a minha mãe tinha assim, muito, mas muito respeito mesmo! Nós estudamos em colégio de Estado até eu terminar Enfermagem, hoje eu estudo terminando Direito em escola particular. Mas tanto eu como todos os meus irmãos, a gente vem de ensino público, e na época o ensino público era tudo de bom!
P/1 – E na sua casa, quando você era pequena, morava o seu pai, a sua mãe...
R – E todos juntos, e todos os meus irmãos.
P/1 – Tinha mais gente que morava com vocês?
R – Não, depois é que minha mãe... Nós mudamos de Arruda para Olinda e toda a juventude que convivia com a gente foi morar na nossa casa! Então a nossa casa virou um albergue com mais seis homens morando que chamavam a minha mãe de tia e a gente de irmã e as mães acharam maravilhoso se livrar porque eles davam um pouco de trabalho e a minha mãe era a única pessoa que eles atendiam. E toda essa prole, todo mundo é formado. A gente se ama, se gosta e se respeita realmente como irmão. Uns chegaram em casa com 14, outros com 15, outros já com 16, todo mundo já casado. Eu tenho inúmeros filhos e afilhados e afilhados e afilhados dos filhos dos irmãos que eu não chamava irmão de criação, chamava agregados! Porque não chegaram pequenos. Já chegaram...
P/1 – Quando você morava nessa casa com seus irmãos, que são mais seis.
R – Exatamente.
P/1 – Do que vocês brincavam, como que era essa casa?
R – A casa era uma casa muito simples, e apesar de ter muita gente tinha apenas dois quartos e a gente dividia os quartos só para as mulheres e os homens botavam beliche em um corredor longo que tinha. E nós brincávamos de tudo! Inclusive de subir nas árvores e levar uma porção de lapadas da mãe da gente porque a gente ia para as árvores e quando ela nos procurava estava todo mundo feito macaco nas galhas mais altos a se balançar. E quando descia o pau cantava (risos), porque não era para subir e a gente fazia exatamente o contrário. No nosso tempo já tinha algumas restrições quanto a ser mulher. Então a gente não podia correr de bicicleta porque era mulher, não podia empinar pipa porque era mulher, não podia jogar bola de gude porque era mulher e não podia jogar peão, e nós fazíamos tudo isso só com a família da gente. Eu que sou a mais velha junto com meus irmãos. Então a gente fazia de tudo, tudo que era proibido lá fora. Dentro da nossa casa, nós fazíamos. E uma das nossas grandes odisseias da meninice foi uma vez que nós inventamos em subir em uma macaibeira!
P/1 – Qual é a macaibeira?
R – A macaibeira são os coquinhos pequenos, mas o pé, depois de grande, fica até um bom coqueiro. Ela faz umas barrigas enormes e se enche de espinho e nós botávamos umas escadas de madeira e subíamos lá para tirar as macaíbas de um sabor maravilhoso. Só que um dia nós estávamos nesta odisseia mesmo, nesta aventura e vai descendo uma lagartixa enorme (risos) e eu esqueci da escada e desci e fiquei cheia de espinho nas pernas, no dorso dos braços. Quando eu cheguei em casa, levei uma _____ de cipó! Toda pepinada! Apanhou eu e quem não subiu porque estava junto comigo! Lá em casa era assim, quando entrava um, entrava todo mundo (risos). Ainda fui do tempo que se usava palmatória nas escolas e eu acredito que por isso nós nos tornamos muito estudiosos, para não ter que apanhar na frente dos colegas. Então nós nunca repetimos de ano, nem eu, nem meus irmãos. A minha mãe nunca teve problema em relação a estudo conosco. Tinha pela a ________ porque a gente realmente aprontava. Hoje meus filhos são maravilhosos, porque se eles tivessem feito metade do que fiz, eu estava lascada. Porque eu aprontei! Eu fugia para tomar banho de rio, para tomar banho no ________, voltava toda molhada e dizia que cai dentro d’água. E adorava subir em árvore, adora empinar pipa, uma porção de coisas que na época era proibido para mulher, e tudo isso nós fazíamos juntos, eu e meus irmãos, então os meus filhos são maravilhosos, são umas bênçãos, porque não praticam nada do que eu pratiquei para pagar a minha língua e pagar as minhas coisas que eu fiz para a minha mãe! Eles são maravilhosos, só teve o mais velho que um deu um pouquinho mais de trabalho, mas é bem diferente de mim, bem diferente!
P/2 – Você se lembra do que brincava na escola?
R – Nós brincávamos muito de sabatina: “Vamos ser professor!” Então porque eu adorava bater, quando eu perguntava e não sabia o pau cantava (risos). Eu batia mesmo, sempre me preparei no intervalo, na hora do lanche, a gente colocava um grupo assim, um grupo fazia uma plenária pequena, um em frente do outro e começava a perguntar, se você não respondesse você apanhava! Então eu, sempre fui boa de Matemática, eu só queria brincar de Matemática porque era o que eu sabia. História, Geografia eu já ia apanhar, então eu só brincava de Matemática! Matemática e Religião eu era fera, minha filha! Então eu nunca levei um peteleco, mas os outros bem que apanharam, viu? E muito!
P/2 – E as comidas?
R – Olha, eu sempre gostei muito de comida africana, que o pessoal hoje chama de comida baiana. Então na nossa casa a gente sempre teve um alpendre muito grande onde reunia os mais velhos e a gente sentava do lado. O que a minha mãe fazia? Tapioca ensopada para o lanche, cuscuz com muito coco e depois jogava leite por cima, arroz doce, _________, angu de (xerem?) com carninha picada, menina, todo mundo uma bolinha lá em casa! (risos) E esse era o lanche da gente, de manha a gente, hoje ninguém faz mais. Mas a minha mãe fazia o seguinte, ela, no café da manhã, sempre deu raiz para a gente, macaxeira, inhame, batata-doce e quando não tinha isso, quando a vaca estava muito magrinha, nós criávamos galinha, então o que a minha mãe fazia? Pegava ovos, batia na mão, até tirar o cheiro, ficar em ponto de neve a clara, acrescentava gema, batia, batia, batia, acrescentava açúcar e canela e dava um prato para cada um! Cru! E todos nós comíamos, era uma maravilha, tudo de bom! Isso quando a vaca estava magrinha, eu até preferia que a vaca emagrecesse para eu comer o ovo batido, porque eu achava mais gostoso do que comer macaxeira, inhame, batata-doce, comer cará, eu preferia o ovo, era bem melhor. Bolo só entrava na minha casa quando a minha mãe fazia! Sabe? Tinha uma história de bolo de fubá, que era tudo de bom, que eu faço, mas não faço tão bem, já a minha filha de 19 anos dá um show, a gente chama a receita de mãezinha, porque todo mundo chamava a minha mãe. Quando ela faz alguma coisa que eu não gosto, ela faz um bolo porque sabe que vai me cativar! (risos) Ela chega e diz: “Olha, tem uma receita de mãezinha aí para você!” Mas eu tive uma infância normal. Feliz, feliz, sem o medo da droga que existe hoje, sem o medo de perder os irmãos. Eu tenho quatro irmãos mais duas irmãs, nós viemos aprender a beber já tínhamos uns 25 anos! E tem dois que nem bebe, nem fuma e brinca carnaval, e dança, e dança forró e dança tudo e não toca álcool, nem cigarro!
P/1 – E a figura dos seus avôs para você na sua infância?
R – Ah, era tudo de bom. Meu avô João, por parte de mãe, era um negro enorme, bonito, do olho claro, que eu chamava ele do “Meu avô do olho de gato” ____________________ seus (risos) e a minha avó era uma cabocla que morreu aos 82 anos, ainda bordava e costurava sem óculos! Então a referência que eu tenho dela é uma referencia de mesa muito farta, com todo mundo em volta, com diversos tipos de comida, de irmos para a feira e não podermos trazer de tanta coisa que ela comprava. Eu achava que era para passar meses. Da fartura que era a casa dos meus avós maternos. E do paterno eu me lembro muito da minha avó e madrinha Bernadina, que era uma negra que costurava e só usava roupa branca, e era tão branca que doía na vista. E ela era altamente vaidosa, as roupas dela era ______ de renda, tinha que engomar e botar parafina para dar brilho. Só usava salto, e ela não sabia ler muito bem. Mas ela sentava a gente, ela ficava na cadeira de balanço, a cadeira (Gerdau?) e sentava a gente do lado e nós íamos ler para ela. E foi daí que veio o meu interesse pela matriz africana, porque o que ela nos dava para ler eram as histórias da África, dos orixás, das comidas, das rezas, das curas. Tudo através da palavra, tudo através da palavra. Então tanto eu, quanto meus irmãos, primos, nós aprendemos muito, mas muito mesmo. E a história do respeito, não precisava ninguém falar, se a gente estivesse fazendo alguma coisa que ela olhasse, a gente já sabia que o bicho estava pegado e saía assim, todo mundo feito cachorro magro com o rabinho entre as pernas e zarpava do lugar, e depois podia esperar a bronca, sabe? Mas apenas com o olhar, apenas com o olhar a gente sabia que a coisa não estava bem!
P/1 – Você se lembra de alguma história que você leu para ela, alguma que te marcou?
R – Lembro, lembro de uma ladainha que até hoje...
P/1 – Você pode contar para a gente?
R – Só um pedaço porque é muito forte. E ela sempre dizia que aquela reza livrava a gente das quizilas da terra, e eu não entendia o que era quizila. Que quizila era essa. Num belo dia, como bastava um olhar para a gente se calar e sair, num belo dia só estávamos nós duas e eu disse: “Me diga o que é quizila?” “Quizilas são as maldades do povo! As cosas ruins!” e era uma prece para Maria. Vou só lhe dizer um pedacinho porque a gente reza em horas de muita necessidade. E começa assim: “Que mulher é esta que todo o exército se queda aos seus pés...”, e por aí vai...
P/1 – Forte!
R – Muito forte! Então é uma coisa que marcou. E essa é uma oração que na nossa casa, na nossa família foi passando de um para o outro, então os meus irmãos, meus primos, todo mundo da nossa família tem. E ela é assim tão forte. Tem um conteúdo muito pesado que a gente sabe entre a gente quando alguém está rezando, no outro dia a gente liga: “Fulano, você fez aquela oração?” “Fiz!” “Por quê?”,“Porque eu passei por isso, isso e isso!”
P/2 – Reza ela para a gente!
R – (risos) Não, só um pedacinho!
P/1 – E a sua adolescência, comecinho da puberdade, quando você disse que entrou para o candomblé?
R – Minha adolescência, eu sei que aos 13 anos eu descobri a beleza que é a matriz africana, a beleza e a grandeza de um culto perseguido. E comecei a estudar: por que perseguem tanto? Então descobri primeiro porque é coisa de negro, primeiro que é coisa que veio da África, então o conceito que o coronel tinha era que o negro era ruim, mas o negro era muito forte! Então vamos começar cortar-lhe as pernas, o conhecimento, ceifar a palavra! Então candomblé, até a década de 50 foi perseguido por lei! Eu sou de 46, então tinha muita coisa que a minha avó falava, de culto que tinha que ir para dentro da mata para poder realizar, não é? E isso me deixava meio louca e eu dizia para mim mesma: “Eu vou crescer, vou abrir um candomblé para mim. Eu vou colocar dentro desse candomblé, a maioria toda militar!” Que era a minha vingança contra eles, contra o sistema, e na realidade hoje eu tenho um candomblé, sou _____________ e a maioria dos meus filhos são militares, Exército da Marinha, Aeronáutica, Polícia Civil e Militar (risos). Vou chegando, chegando, se agregando e entrou, não é? E eu estou lá me vingando do sistema, todo mundo lá recebendo santo, é a minha vingança, minha vingança! Pronto, estudei, terminei o meu segundo grau, terminei o primeiro numa escola que eu ia pela manhã e saía à tarde, passava o dia, chamava Escola Industrial Feminina. Pela manhã nós aprendíamos arte, pintura em porcelana, bordados finos, rendas, renascenças, renda de _________ e outras cositas mais e pela tarde nós fazíamos o primeiro grau. Almoçávamos lá e largávamos às cinco da tarde. Terminei, fui estudar à noite fazendo o colegial, que hoje não existe mais, porque hoje só é científico e pedagógico e _____, e na minha época tinham três cursos no segundo grau que eram o Curso Colegial que abrangia muito leis e línguas, o Científico, que gera divisão para quem vai fazer a área de saúde e o Pedagógico para quem ia fazer Pedagogia, para quem queria ser pedagogo. Terminei fazendo também o curso de Enfermagem pela Universidade Federal. Foi o terceiro curso, o quarto houve, mas terminaram. Depois fiz o técnico, depois eu fiz instrumentação cirúrgica, fiz obstetrícia e me tornei circulante de bloco cirúrgico como cirurgia especifica de coração, de cabeça, neurologia e cirurgiã plástica!
P/1 – Rico, hein? E no ginásio ainda você disse que faziam porcelana?
R – Eh, pintávamos porcelana e bordados finos, renda de ____________, coisas assim para as altas rodas. Que só era de cria que tinha muito din, din.
P/1 – Seu colégio era de meninas?
R – Só feminino. Escola Industrial do Recife, na Rua Barão de São Borges, no bairro de Boa Vista, em Recife. E tinha a Escola Industrial Masculina que era no bairro da Encruzilhada. Era só homens, a gente não tinha acesso à entrada.
P/1 – E como era a relação entre as duas escolas?
R – A relação era boa porque a gente só se encontrava quando a gente terminava o curso. Fazíamos festa conjunta, a masculina e o feminino, certo? Mas durante os quatro anos, as bedéis eram muito severas! Então menino nem na frente do colégio para ficar esperando do outro lado não era permitido, viu, minha filha! O negócio era seríssimo!
P/1 – E como que aconteceu os namoricos, então?
R – Melhor coisa do mundo a gente descobrir que pode namorar, não é, não? Eu achava uma delícia. E fugi muito tempo do colégio para ir ao cinema poder encontra o namorado e poder namorar. Fiz isso várias e várias vezes. Fugia na parte da tarde, porque o meu pai também marcava em cima, quando dava cisma ele ia me buscar lá na escola! Então eu tinha que ir namorar de uma hora até às três e voltar para a escola para quando ele chegasse e eu sair bonitinha para ele ficar de longe me apreciando!
P/1 – Naquele tempo de infância, do colegial, como eram as ruas de Recife?
R – Belas, hoje já desapareceram muitas porque também nós chegamos a morar no centro da cidade. Além do pátio de São Pedro, na Rua das Águas Verdes, que ainda existe, a Igreja fica aqui e aqui é a Rua das Águas Verdes. Nós moramos lá, moramos num prédio em frente à igreja e moramos na Rua de Hortas que já não existe mais porque a Avenida Dantas Barreto engoliu esta rua.
P/2 – E as casas eram como?
R – Casas antigos, antiquíssimos, de quartos enormes, a sala, o corredor _________, três quartos grandes, outra sala, cozinha, área, quintal e árvore. Tudo isso dentro do centro da cidade!
P/2 – Ainda o pessoal brincava muito na rua?
R – Brincava, muito mesmo. Na minha puberdade, lá no Pátio de São Pedro, tinha um bar que se chamava Arueira, de um amigo nosso, então a gente ia para lá para namorar, tomar refrigerante e beliscar e Seu Arureira saía e dizia para o meu pai que a gente estava indo lá para paquerar. E a gente ia saindo vendendo azeite as _________, ia para a Igreja do Carmo porque da Igreja ninguém sabe se está namorando ou não. Na igreja ninguém fala!
P/2 – E as festas, tinham muito?
R – Tinha, principalmente festa profana dos santos, a Festa de Santo Antônio, no Bairro de Santo José, a Festa de São José. Festa de Santo Antônio no Bairro de Santo Antônio lá na Guararapes, Festa do Carmo que existe até hoje porque hoje existe a Praça do Carmo, não era uma praça ali, era um lugar bem apertado com árvores enormes que a procissão para sair era um problema. Hoje não, hoje está tudo aberto, tudo à vontade.
P/2 – Qual era a festa que você mais gostava?
R – A Festa do Carmo e a Festa da Mocidade, porque a gente podia ir para lá e namorar até cair para trás. Na Festa da Mocidade principalmente, porque o pessoal deixava a gente um pouco à vontade.
P/1 – E como era essa Festa do Carmo?
R – A procissão e depois a festa profana com parque de diversão enorme que a gente se perdia nele e nós tínhamos o direito de ficar até às dez horas da noite. Olha, para quem tinha que estar às sete horas dentro de casa era realmente uma festa. Era uma festa!
P/1 – E você escolheu fazer o científico?
R – Não, eu escolhi fazer colegial porque eu fui fazer Enfermagem, já que era um sonho da minha mãe, não me arrependi, sabe? Trabalhei 32 anos da minha vida como técnica de enfermagem, mas na realidade eu queria fazer Direito. Chegou uma época que eu fiz vestibular, me encantei com a Enfermagem, a Medicina, tentei Medicina várias vezes, mas para fazer anestesia. Eu tinha uma fissura por um anestesista, meu amigo e compadre porque nas cirurgias de cérebro ele botava o paciente em apneia, ficava tudo no respirador e depois ele ressuscitava, isso para mim era tudo, tudo, tudo, tudo. Então eu resolvi fazer medicina, e fiz três vezes, e passava para Enfermagem, Nutrição, passava para Odontologia, só não passava para Medicina, não é, mulher? Eu resolvi parar, depois eu fiz Direito. Comecei a estudar, mas depois a minha mãe teve um derrame cerebral, me requisitava muito mais. Eu fechei a minha faculdade e retornei porque fui numa faculdade particular e não me jubilaram. Agora eu retornei para terminar.
P/2 – Só voltando um pouquinho, você ia muito à praia?
R – Muito, mas não para o banho só para correr, jogar bola, empinar pipa que eu acho belíssimo!
P/2 – Com a família?
R – Com a família. A minha mãe não era muito de praia, não. Mas meu pai nos levava. Era um dia de lazer, porque nós só saíamos de lá quando o sol estava indo embora e nós víamos juntos, nós chegávamos a demorar umas sete, seis e meia, por aí. Uma das coisas boas da nossa infância é que nós saíamos às seis da manhã com uns canequinhos de alumínio, que a minha mãe fazia questão de limpar tanto, que a gente se via como se fosse espelho e ela passava manteiga e canela. E nós íamos para _________ tomar leite da vaca, botava manteiga e canela para não espumar, para ficar na borda, para não perder nem um pouquinho (risos). Então era muito das coisas boas que nós passamos e a gente lembra disso tudo com muita saudade, com muito respeito, carinho, mas sabendo que a vida é um ciclo, que começa e chega aqui e termina, não é verdade? O que é que você quer saber mais?
P/1 – Você disse que você também é parteira, certo? E que foi na área de obstetrícia no estudo, e que você falasse como é que você juntou essas coisas?
R – Olha, eu fui ser parteira porque quando a gente fez esse curso, era quase que uma competição do curso com o curso acadêmico, com o terceiro grau. E eu tinha uma professora chamada Joaninha, uma mulher porreta que nos dava obstetrícia e ela dizia: “A boa parteira, obstetra não corta mulher, não faz ________ e nem permite que ela se rompa!” E o meu primeiro parto foi de uma _________ estressadíssima, mãe solteira e que o pai não queria assumir o filho. Isso exatamente há 30 anos, eu já tinha 12 anos de formada, então quando eu cheguei, eu praticava parto na Maternidade da Encruzilhada. A minha professora ainda estava lá, ela disse: “Olha, essa mulher sua não pode se romper, não pode cortar e você tem que trazer esse bebê para o mundo reduzindo o estresse dela. Foi a minha prova de fogo. Daí em diante topei tudo.
P/1 – Foi dela que você tomou esse ensinamento?
R – Foi!
P/1 – Ela era professora?
R – Era professora na minha Universidade Federal, na Escola de Enfermagem da Universidade Federal.
P/1 – Na sua família tem mais alguém que é parteira?
R – Não, a louca só sou eu, mesmo! (risos) Dois são militares, acho que são um pouquinho mais loucos do que eu, dois se tornaram comerciantes como o meu pai. Até hoje trabalhando no ramo de madeira, uma das minhas irmãs fez Economia e a outra é pedagoga, louca só tem eu mesmo.
P/1 – E a música?
R – A música entra na gente desde a hora que a gente entra co candomblé! A música, a dança, o contato com a natureza, a ação _____ hoje não é nada novo para mim. Pelo contrário, eu acho que levou muito tempo para aparecer com esse ______. Porque se você um dia tiver a oportunidade de entrar numa casa de candomblé, como ________ _____________, Maria Stella, como a Casa Branca do Engenho Velho, como Sítio de _____________, aqui em Pernambuco, você vai ver que a oralidade de _____, do santo já vem há décadas, a gente nem era nascida, nem eu muito menos vocês que são brotinhos. Eu já estou começando a amadurecer, vocês ainda estão verdes. Então essa oralidade é trazida pelo povo do santo, acho que desde que o africano botou o pé nesta terra, sabe? Eu repasso a sabedoria através da oralidade. O que eu sei eu vou deixar para a minha filha, que vai deixar para o filho dela, que é meu neto, que vai deixar para o filho dele que vai ser meu bisneto e por aí vai.
P/2 – _______________mais profundamente na questão da oralidade, queria que você descrevesse para mim como que você ter feito o primeiro parto?
R – Minha filha, se eu lhe dissesse que eu não tremi, eu estaria mentindo. Porque era uma senhora de responsabilidade de uma mãe nova, morrendo de medo, morrendo de vergonha porque era mãe solteira e hoje a gente pare e é uma festa. Tem a primeira transa é outra festa. Fica ligando para as colegas: “Olha, aconteceu!” Não é assim? Mas na nossa época não. Você ser mãe solteira era um problema. Você ter uma transa solteira era o maior escândalo, a maior vergonha que você podia fazer para a sua família! Então, convenci essa mãe a não dar esse bebê, fazia ela relaxar para poder parir, para que ela também me ajudasse, foi a minha prova de fogo também, e depois eu tremia, parecia um coqueiro na beira da praia, quando o vento ele é muito forte, ele não balança e depois tremelica? Você já observou isso? Observe! Olhe o coqueiro. O vento dá-lhe um supapa. Ele vai e volta. Quando ele volta, ele treme todinho. Eu fiquei igualzinha, mas depois do parto e depois eu tive outro parto louco, eu estou em casa tomando café para trabalhar, chega o vizinho na rua: “Dona Lucia, dona Lucia, por favor vamos lá em casa!” Aliás: “Lucinha, vamos lá para casa!” Cheguei lá, está a mulher em posição de parir, num sofá, passa gato, cachorro, eu disse: “Leva ela ______, o bebê vai nascer!___” E quando eu olho o bebê já vinha coroando mesmo, então tive que pegar. Fui lavar, ___________ de cortar o umbigo no cordão para não cortar nada ____ com medo que infectasse, um bebezão enorme, linda de viver, placenta __________, tudo. Depois peguei o nenê e fui num posto mais perto dizer que eu tinha feito o parto, para o pediatra dar uma olhada, e o nenê estava bem, não precisou aspirar porque ________________________, depois que eu tirei da barriga botei de cabeça para baixo para ela limpar, por tudo para fora, se por um acaso tivesse engolido alguma coisa e daí desembestei, ___: “Bem, se eu fiz um lá, não rasguei a mulher, fiz outro cá passando papagaio, cachorro e periquito, eu posso fazer todos!” Fui praticar mesmo. Uns dias atrás eu tive a grata surpresa de estar numa ONG onde eu trabalho como Arte Educadora, dando um curso para cuidadores de idosos, que é outra paixão da minha vida e chega uma senhora e diz: “Oi, minha Lú, eu vou buscar uma pessoa para você conhecer!” Vem aquela menina bonita, ela disse: “___________ a mãe Lú!” E eu: “Deus te abençoe! Quem é?” “ A menina que você fez o parto!” Com 16 anos, eu disse: “Ai meu Deus, já estou ficando velha mesmo.” E a outra vez foi no banco, entra um jovem e eu conversando, o menino: “Porque Lucia Crispiniano, porque Lucia Crispiniano!” Ele saiu de lá e “Bom dia?” “Bom dia!” “A senhora se chama Lucia Crispiniano?” “Sou!” “Eu sou o rapaz que a senhora fez o parto na encruzilhada há 30 anos atrás!” Eu disse: “Quem lhe contou essa história?” Eu disse: “A minha mãe que está ali!” E na realidade, naquela época mais jovem, eu não tinha uma cabeça toda branca, eu só tinha um sinal branco aqui enorme...
P/1 – Lucia, a gente estava voltando a conversar, eu gostaria de saber, atualmente você é casada?
R – Deus me livre, homem dá um trabalho da peste! Eu hein...
P/1 – Mas você já foi casada?
R – Fui casada durante 12 anos com um moço chamado __________.
P/1 – Ele é brasileiro?
R – Não, alemão.
P/1 – E desse casamento vocês tiveram filhos?
R – Apenas um, Taiguara.
P/1 – Quanto anos a Taiguara tem?
R – Ah, a Taiguara já tem 32 anos!
P/1 – E o que você faz atualmente, com que você trabalha?
R – Olha, mulher, no momento eu trabalho com projetos sociais. Após a aprovação de um projeto com a filha de ________________, no núcleo de memória ________ pingado, do qual eu sou _________, nós também conseguimos aprovar um projeto dentro do terreiro de candomblé que é chamado de Escola de Ensinamento Mãe Preta, onde a gente trabalha com o fortalecimento das mulheres do santo, que têm acima de 50 anos. Para que elas descubram dentro de si o tamanho da força que elas carregam por segurar um __________, uma casa, vocês, detentoras da cultura do meu estado, todo o bloco, maracatu e afoxé, toda a batucada vem do terreiro de Pernambuco, então nós começamos a trabalhar isso para fortalecer as mulheres que não sabem da força que elas carregam e que às vezes precisam de alguém para ditar o que fazer, sem falsa modéstia eu sou meio revolucionária, não é? Porque eu abri uma casa de Axé e eu jamais fui chamar o _________ para aprontar as minhas coisas, para fazer, para encaminhar. Se precisasse disso, a gente não era parido, ficava sempre dentro do saquinho comendo, bebendo, sem precisar caminhar, nem trabalhar, esta é a visão que eu tenho. Então eu sou Arte Educadora, no momento sou estudante de Direito e trabalho através da oralidade com mais ou menos 70 jovens de 16 a 24 anos, trabalho com 30 mulheres acima de 50 anos. A minha mais sapeca tem 88, ainda dança maracatu, bebe, fuma, grita miséria e a gente tenta, não é resgatar, a gente tenta mostrar a grandiosidade de uma religião que até a década de 80 era proibida por lei e até hoje eu não entendo isso porque eu não concebo que uma religião, que reverencia todos os elementos da natureza, todos, sem tirar um zi foi tão perseguida. E levei um tempo para descobrir, simplesmente porque era coisa de negro. Eu não sei qual foi o filho de uma senhora direita que instituiu que tudo que viesse do negro era ruim, pejorativo, para o mau, era negativo, e até hoje dentro das escolas formais, dentro da faculdade, ver uma mulher de 61 anos fazendo Direito como eu, é um assombro! Não é assombro porque é uma mulher negra, é um assombro porque você é um __________ e a maioria das ______ que eu conheço no monto são todas fortalecidas através do estudo acadêmico. Como Lucia dos Prazeres que é pedagoga, como Wanda também que é _________, também é pedagoga e historiadora. Muitas médicas e muitas enfermeiras, e por aí vai. E a história do racismo velado é o que incomoda, porque as pessoas não têm coragem de se abrirem, se botarem para fora, desse descortinar, de abrir a cortina do preconceito, do racismo. Então fica com a coisa muito velada que não é boa. Eu levei um tempo para fortalecer a minha filha porque ela tem um nome estranho: Dinguizinga, que quer dizer rainha de todo o poder e as crianças tiravam muita onda com o nome, porque eu era de matriz africana e por isso ela foi ser capoeirista. E ela é capoeirista regional desde os 15 anos. E para convencer ela que não era este o caminho, levei um tempo. Mas hoje já é outra história, já está se preparando para entrar na faculdade, tem outra relação com essa coisa ruim que é a falta de conhecimento das pessoas, porque na realidade são altamente, altamente ignorantes. Falam de candomblé sem saber do que estão falando, ele discrimina pela cor da pele, às vezes a pessoa tem um know how imenso, cabide de conhecimento fora de série, mas é discriminado porque o outro não sabe, porque era preciso rotular a _______ da gente. Eu sei ler, eu tenho o curso superior para poder ser visto e respeitado. E mesmo no momento em que a gente vive com um governo “popular”, não tão popular como eu gostaria que fosse, porque é muito fácil a gente falar não estando no lugar do outro. Quando você passa no lugar do outro, para o lugar que você discriminou, falou, você começa a sentir na pele que a história não vai por aí, que a história é bem outra.
P/1 – Você, falando da sambada, de onde vieram essas mulheres que estão hoje na sambada?
R – Vieram de uma aldeia chamada Paratibe e esta sambada começou com a família e quando os homens que faziam essa sambada pereceram, essa sambada calou-se durante 40 anos. Então eu tenho uma filha de santo chamada ___________ que é uma _____________ em pessoa. Ela resolveu reativar com o marido, com os filhos, com as cunhadas e não foi fácil porque a própria família não queria mais e eu adentrei, estou nesta história há dez anos e se vocês viram as imagens de ontem, aquilo foi uma pequena amostra da sambada,
P/1 – Como o ponto de cultura chegou na tua vida, antes ou depois da sambada?
R – Com a sambada, porque na realidade nós tínhamos um mundo de ideia, só não sabíamos passar para o papel. E tinha também esse anseio da visibilidade, mas uma visibilidade bem maior, uma visibilidade que fosse para o mundo de um trabalho realizado por mulheres e foi com o corpo que colocamos isso no mundo, que colocamos no site do Ministério, que a minha voz caminha por todos os pontos com um DVD que foi filmado no quintal da nossa casa, onde, na realidade, começou o coco, no quintal, com um pouquinho de gente, depois na sala, depois na rua porque não cabia mais, nem na própria rua onde nós começamos a fazer. Então estamos nós como Mestre ________, aquele que detém o poder, mas que passa através da realidade, fortalecendo o pessoal para descaracterizar o preconceito com a matriz africana e para que outras mulheres tenham o orgulho de dizer: “Sou do Santo, e daí?” Não é verdade? A priori foi meio difícil, mas agora está correndo frouxo!
P/1 – E como você sentiu esse encontro aqui da (Sangril?)?
R – Olhe, de tudo que a (Sangril?) fez, hoje foi o melhor dia. Porque todo mundo pode ser quem era, tirar o véu, se despir e não usar a palavra do outro, falar com a sua própria palavra, com seus próprios sentimentos, certo ou errado, da sua maneira, mas falar, não é? Falar, aceitar, ouvir, compreender, porque na realidade o que esse pais precisa é ser ouvido, é ser compreendido para mudar uma porção de paradigmas, para que a gente faça do Brasil a terra que a gente quer, sabe? Possibilitando e oportunizando, principalmente quem está na ponta, porque é muito fácil dar oportunidade para quem está no meio ou quem está em cima. Difícil é você descer e ir para aquele canto buscar quem está lá e dar oportunidade. Mas hoje foi muito positivo, eu disse a ________ e a Lilian que eles estavam de parabéns porque todo mundo se despiu, todo mundo foi só ele, sem procurar palavras rebuscadas, sem ter medo de errar no português e simplesmente falar.
P/2 – E qual é a importância dessa oralidade nessa história toda aí?
R – É do repasse de conhecimentos, não no livro, no convencional, sabe? Não no convencional, então o fato da gente poder fazer o repasse sempre do livro que alguém leu, pesquisou, que alguém montou, mas ele não vai montar com as mesmas palavras e vai montar com a palavra dele e isso a gente não quer mais. A gente não quer uma escola de grade, a gente não quer uma escola que eu tenha que olhar ara as costas dos outros, sabe? Na minha faculdade é interessante porque eu sou a mais velha da turma, eu chego e pego a minha cadeira e encosto para um lado. Eu não gosto que as pessoas fiquem olhando para as minhas costas. Sei lá o que estão pensando e levem isso na __________, mas isso já está começando a pegar. Tem outras pessoas encostando e o meu ficando vago e todo mundo conseguindo se olhar, isso é repasse de conhecimento, gente! Eu espero que eu tenha contribuído para alguma coisa para esse museu de vocês e que vocês também tenham aprendido alguma coisa porque tudo é uma troca.
P/1 – Certo, Lucia, para terminar, tem algum coco que você queira cantar para a gente?
R – Eu cantei um no grupo lá na escola que é um coco de uma colheita e de uma saudade: “Abaixa limoeiro que hoje eu quero apanhar limão, quero lavar as mágoas que eu tenho guardada no coração, se eu soubesse ler ia te escrever aquela cartinha só para saber que a tua saudade é igual a minha!” E na realidade a gente tem saudade de poder fazer, saudade de poder construir e não nos permitirem, porque na realidade as celulares menores que são os aprendizes também têm saudades do conhecimento, que só através da oralidade, só através da ancestralidade pode ser repassado.
P/2 – Lucia, conta para a gente como que vocês colocaram o nome do ______________?
R – Ensinamento de Mãe Preta? Por mim (risos)
P/2 – E o Coco de Umbigada?
R – O Coco de Umbigada já existia e não tinha nome, então o que o povo fazia dava muita umbigada e era o praxe, e a gente colocou Umbigada, porque tem o Coco do pneu, Coco de céu, Coco de ______, o Rala Coco, tem inúmeros cocos lá na área, então nós colocamos este.
P/2 – Só mais uma pergunta, daqui para a frente o que você espera da ________________________?
R – Que ela se fortaleça mais e que cresça em todos os sentidos, não só no agregamento de outros ___, mas também no conhecimento da grandeza da estação. Na realidade para mim é uma colcha de retalhos, e também de dar oportunidade de reconhecer os mestres da sabedoria oral e dar oportunidade para que eles sobrevivam daquilo que eles sabem fazer, que reembolse esses mestres, mas com dignidade, não com esmola.
P/1 – Obrigado Lucia, obrigado mesmo, é um prazer!
R – Obrigado vocês!
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