Entrevista de Fernanda Stefani
Entrevistada por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 10/09/2021
Projeto Mulheres Empreendedoras - Ernst & Young
Realizado por: Museu da Pessoa
Entrevista nº. PCSH_HV998
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Vamos lá, Fernanda! Primeiro, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, o local e a data de seu nascimento.
R – Meu nome é Fernanda Carvalho Stefani, eu nasci em São Paulo, no dia 29 de junho de 1967.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – O meu pai é o Conrado Carpinelli Stefani e a minha mãe é a Vera Ruth Carvalho Stefani.
P/1 – E o que eles faziam?
R – O meu pai era médico pediatra e a minha mãe era dona de casa, o que já é um trabalho enorme, se a gente pensar que ela cuidou de quatro filhos e ainda de um marido que trabalhava muito (risos).
P/1 – E como você descreveria, tanto seu pai, quanto sua mãe e como eles se conheceram?
R – Meu pai e a minha mãe se conheceram na cidade de Bragança Paulista, interior de São Paulo. A família da minha mãe era de Piracicaba, o meu avô era fiscal da Casa da Lavoura, que muitos anos depois virou o Mapa, Ministério da Agricultura. Ele era engenheiro agrônomo, tinha formação na Esalq e isso na época quando eu era jovem, nova, aliás, porque jovem eu ainda sou, (risos) mas eu não sabia o que era. Hoje faz muito sentido pra mim, dentro do que eu faço, do que eu trabalho. Eles eram pessoas muito bacanas, era uma família batalhadora, o meu avô paterno teve quatro, três filhas e um filho. Já meu avô paterno, aliás, era de origem italiana, então eu também sou de origem italiana e esse italianismo veio muito com a gente, embora minha avó paterna tenha morrido quando meu pai era criança, então eu não a conheci. Mas eles se conheceram na cidade de Bragança e namoraram durante nove anos e casaram, acho que meu pai tinha 30 anos, minha mãe 24, 25. Já não casaram tão...
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Entrevistada por Bruna Oliveira e Luiza Gallo
São Paulo, 10/09/2021
Projeto Mulheres Empreendedoras - Ernst & Young
Realizado por: Museu da Pessoa
Entrevista nº. PCSH_HV998
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Bruna Ghirardello
P/1 – Vamos lá, Fernanda! Primeiro, pra começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, o local e a data de seu nascimento.
R – Meu nome é Fernanda Carvalho Stefani, eu nasci em São Paulo, no dia 29 de junho de 1967.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – O meu pai é o Conrado Carpinelli Stefani e a minha mãe é a Vera Ruth Carvalho Stefani.
P/1 – E o que eles faziam?
R – O meu pai era médico pediatra e a minha mãe era dona de casa, o que já é um trabalho enorme, se a gente pensar que ela cuidou de quatro filhos e ainda de um marido que trabalhava muito (risos).
P/1 – E como você descreveria, tanto seu pai, quanto sua mãe e como eles se conheceram?
R – Meu pai e a minha mãe se conheceram na cidade de Bragança Paulista, interior de São Paulo. A família da minha mãe era de Piracicaba, o meu avô era fiscal da Casa da Lavoura, que muitos anos depois virou o Mapa, Ministério da Agricultura. Ele era engenheiro agrônomo, tinha formação na Esalq e isso na época quando eu era jovem, nova, aliás, porque jovem eu ainda sou, (risos) mas eu não sabia o que era. Hoje faz muito sentido pra mim, dentro do que eu faço, do que eu trabalho. Eles eram pessoas muito bacanas, era uma família batalhadora, o meu avô paterno teve quatro, três filhas e um filho. Já meu avô paterno, aliás, era de origem italiana, então eu também sou de origem italiana e esse italianismo veio muito com a gente, embora minha avó paterna tenha morrido quando meu pai era criança, então eu não a conheci. Mas eles se conheceram na cidade de Bragança e namoraram durante nove anos e casaram, acho que meu pai tinha 30 anos, minha mãe 24, 25. Já não casaram tão novos, antigamente as pessoas casavam mais novas. E eu fui a primeira filha deles. E é um casal… foi, porque meu pai já faleceu, mas era um casal exemplar de amor, eu sempre vi muito amor dentro da minha família com os meus pais. Lembro de ter visto acho que uma briga, besta ainda, (risos) por causa de um creme de abacate pro meu irmão, então, nada muito preocupante, mas eu nasci em uma família de amor e eu sou a primeira dos quatro.
P/1 – E como são os nomes dos seus irmãos? E quantos são? Quatro, né? Não, tem três?
R – Eu tenho mais três irmãos. Nós somos mulheres na ponta e meninos no meio. Então, depois de mim, dez meses depois de mim, veio o Conrado. Muitas vezes, o pessoal acha que a gente é gêmeo, pela idade próxima, até por parecer também. Depois de mim, mais quatro anos, nasceu o Alexandre e depois de mim, oito anos depois, nasceu a Renata e aí fecha o ciclo. Então, nós temos uma diferença de oito anos, entre a mais velha e a mais nova.
P/1 – E como era sua relação com eles?
R – A relação com meus pais ou com meus irmãos, ou com todo mundo?
P/1 – Com todo mundo, com a sua família.
R – A gente era muito sapeca, a gente sempre foi muito sapeca e era uma escadinha, então os três primeiros aprontavam muito e eu era aquela menina que ia lá e contava pra mamãe, então eles sempre falaram que eu era a chata: “Mãe, vai lá”. (risos) Eu não sei por que eu fazia isso, mas eu realmente fazia, eu me lembro disso e os meus irmãos bagunçavam muito. Eu, às vezes, bagunçava também, não era que eu não bagunçasse, que era santa, (risos) não era. Mas eu me lembro de coisas muito boas da minha infância e a gente passava muito a infância no interior de São Paulo, na cidade dos meus avós, na casa deles, ali. Era uma casa com quintal enorme, então a gente brincava muito, tinha vários primos também, mais quatro primos, todo mundo da mesma idade, então, era uma diversão ir pra casa dos meus avós. E eu, quando era pequena, fazia uma malinha, tinha uma malinha pequenininha, já na sexta-feira eu arrumava a malinha, punha uma mudinha de roupa e ficava pronta, sexta-feira, sentada em casa, esperando meu avô chegar, pra me buscar. Então, era bem bacana.
P/1 – E você tem lembranças com seus avós, assim? Lembranças marcantes, momentos, assim, que você...
R – Tenho, sim. O meu avô era um homem alto e sisudo, nariz agudo, ele era diácono da igreja, então ele tinha aquele porte de igreja presbiteriana, de diácono, minha mãe falava que ele era muito bravo, quando ele era pai delas. Mas eu nunca vi meu avô ser bravo, (risos) pelo menos não com a gente, talvez com os filhos, mas com os netos, ele já não era mais. E ele adorava chocolate, então ele comprava aquelas caixas inteiras de Laka, chocolate Diamante Negro e ficava dando pra gente, um aqui, outro ali, então, era muito legal. A minha avó era também uma mulher muito distinta, a família toda, tanto meu avô, quanto a minha avó, eram de famílias boas, estudadas, não necessariamente ricas, não é nesse sentido que eu falo, mas era de gente que estudou. Meu bisavô falava dez línguas. Era professor, na época em que os professores eram realmente notados na sociedade, tinham um papel importante, o que infelizmente, hoje a gente não vê tanto, pelo contrário. Mal pagos, mal remunerados, condições ruins de trabalho, mas meu bisavô não, meu bisavô foi, inclusive, diretor de escola pública em Piracicaba. Tem o nome dele quando a gente vai pra Piracicaba. É possível até que eu tenha seguido um pouco esse caminho dele, porque eu adoro também falar línguas. Eu aprendi cinco línguas e nem parei, eu tô sempre aprendendo um pouquinho ali, um pouquinho aqui, porque eu acho que um dos grandes problemas da humanidade é que a gente não se conecta, não se conversa e a quantidade de cultura que tem dentro de cada língua, quando você traduz, não necessariamente está traduzindo todo o sentimento daquela comunicação. Então, meu avô falava dez línguas. Meu bisavô, aliás. O lado do meu pai já é um lado um pouco diferente, porque é uma família imigrante, o avô dele veio pra cá com os dois irmãos, chegou ao Brasil no início do século passado, veio naqueles barcos que vinham, trabalhou no interior, era mascate, foi fazendo fortuna no interior, mas não tem esse estudo todo que teve a família da minha mãe. Então, meu pai, por um lado ele era meio que o playboyzinho da cidade, porque meu avô foi o primeiro a ter carro, meu avô paterno, na cidade de Bragança e o meu pai era playboy na cidade (risos) e minha mãe era uma menina, eles começaram a namorar e ela tinha dezesseis, casou com 25, mas é um casamento que a gente vê que deu muito certo, demorou pra casar, casou e nunca mais se desgrudou. Então, é um casal muito bonito. Eu mesma, olhando as fotos ontem, estava justamente vendo.
P/1 – E você, quando era pequenininha, lembra de costumes, de comidas, sabores, de festas que eram da sua família, assim, que eram marcantes pra você, na sua infância?
R – Olha, sabores, comida, não necessariamente, a minha mãe cozinhava, ela tinha… é que eu tô um pouco emocionada. (choro) Porque o meu pai era uma pessoa… já morreu faz tempo, mas ele era muito importante pra mim. (choro) E falar dele me lembra ele, né? Na verdade, as lembranças de infância que eu tenho não são gastronômicas, não têm o prato que minha mãe fazia, o pudim, não é isso, não. Até porque eu também fui mudando muito o meu paladar porque, hoje o que eu como e o que a gente comia, o que eu me lembro, por exemplo, é que minha mãe nunca servia refrigerante pra gente. (risos) Refrigerante era coisa de uma vez por semana, ou uma vez por mês porque, de março até julho, todo dia 29 tinha alguém fazendo aniversário em casa. Então, todo dia 29 tinha ‘refri’. Mas fora isso ela só servia pra gente suco, mesmo. Mas as lembranças que eu tenho são lembranças de família, de bagunça, de todo mundo junto e, quando eu era ainda criança, eu nunca fui uma criança muito social, sempre fui meio que na minha, mas com dois moleques em volta fazendo assim, fica difícil a gente ficar muito na nossa. Então, as lembranças são muito boas, de família indo pro interior, pra fazenda, subindo no cavalo, descendo do cavalo. Eu tinha medo, mas o meu irmão adorava, tanto que o Conrado até hoje trabalha com cavalos, se mudou pros Estados Unidos e trabalha fazendo adestramento de cavalos, essas coisas todas. E o Alexandre, a gente o chamava de Chico Natureza. Ele era aquela criança que via, pagava a florzinha e guardava a florzinha e sempre gostou de bicho. Até recentemente ainda tem essas coleções todas, eu falo coleções, mas, na verdade, ele gosta desses bichos mais diferentes, ele até tem hoje, só que é artista plástico, não foi pro campo da biologia, nesse sentido de estudar. Ele foi usar a criatividade dele. A Rê, a mais novinha, a Renata, eu já tinha quinze, dezesseis anos e ela tinha oito. Então, tem uma certa diferença. Com 21 anos, eu fui morar na Áustria e eu fiquei oito, nove anos, quase oito anos lá, então eu perdi essa parte dela ainda adolescente, mas tinha uma coisa que eu não gostava, que ela ficava no meu quarto (risos) e eu queria ter um quarto só pra mim. E aí, é óbvio que eu não gostava disso, porque tinha que dividir o quarto com ela. Mas eu fui resgatar a amizade da minha irmã muitos anos depois, só, por causa disso, porque eu tive uma infância feliz, mas eu tive uma adolescência conturbada, com os meus complexos. E não foi deles, não teve nada a ver com eles. Acho que eu levava o mundo nas minhas costas, decidi fazer isso por alguma razão, que eu não sei, ou era assim, então a minha adolescência foi uma adolescência muito conturbada pra mim, eu praticamente não saía de casa, ia só pro colégio. Eu gostava muito de jogar, então eu jogava vôlei, eu era do time, mas não era uma pessoa muito social, não. Eu sempre gostei muito de estudar, adorava, então os livros eram os meus melhores companheiros. Mas esse resgate também, inclusive com meus irmãos, aconteceu anos depois, não foi logo no primeiro momento. Não sei, talvez pelo fato de ser filha mais velha, realmente a gente acaba tomando muito mais responsabilidade, não sei, não sei dizer o que aconteceu. Sei que demorou um pouco pra passar, mas passou.
P/1 – E eu ia te perguntar, ainda sobre seus primeiros anos, como foi a história do seu nascimento e se você sabe por que escolheram Fernanda?
R – Não sei, acho que minha mãe gostava desse nome. (risos) Ninguém nunca me falou, não. Olha, também nunca perguntei. (risos) Vou perguntar pra minha mãe, mas acho que é que ela gostava e, realmente, naquela época, não era muito comum esse nome, hoje é bem mais comum, as meninas abaixo de quarenta você já vê bem mais. Eu tenho 54 e com 54 é mais raro você achar Fernandas por aí. O meu nascimento foi uma festa na família. Os meus avós, a minha mãe não era a mais velha, mas era a mais velha que estava tendo neném, porque a mais velha da parte da minha mãe nunca se casou, então, também nunca teve filhos. E o meu pai era o mais velho da família, então, eu fui, de fato, a primeira neném das duas casas. Tanto da família do meu pai, quanto da minha mãe. Então, eu só tenho foto bacana, todo mundo parece que está sempre super bem arrumado nas fotos que me tem como criança, assim. (risos) Logo depois, nasceu o meu irmão, dez meses depois, a minha mãe foi rapidinha nessa brincadeira, foi um tempo que eles eram bem felizes. Meu pai trabalhava muito, ele era médico, como eu falei, médico pediatra, então ele chegou a ter três trabalhos ao mesmo tempo. Eu, durante boa parte da minha vida, não via meu pai durante a semana, a gente só o via mesmo no final de semana, mas aí ele ficava o tempo todo com a gente. Então, eu nunca senti essa falta do meu pai, primeiro porque era muita gente lá, sempre era muita criança, eram um ‘zumzumzum’ enorme em casa; segundo, minha mãe estava sempre lá; e terceiro, minha mãe falava isso: “Seu pai precisa trabalhar, sustentar vocês”. (risos) Então, eu realmente sempre me senti muito amada por eles.
P/1 – E você lembra da casa que você passou sua infância?
R – Eu nasci em São Paulo e meus pais já moravam na Alameda Santos, 2020. É um prédio que fica bem atrás do Conjunto Nacional e a gente tinha um quintal no apartamento, (risos) era um prédio meio diferente, nem sei explicar, mas a gente morava no primeiro andar e o primeiro andar realmente tinha um quintal. Acho que a gente morou ali até os meus nove anos, era um apartamento bem gostoso, grande, mas de dois quartos, com quintal. Algo que a gente não pensa, hoje um apartamento de dois quartos parece um ovo. Aquele era um senhor [apartamento] de dois quartos. Eram dois quartos gigantescos, uma sala gigantesca, uma cozinha gigantesca, uma sala de estar e eu tinha uma sala de jantar e o quintal. Apesar de ser um apartamento, tinha um pouco de sabor de casa. Então, era uma bagunça aquilo lá. A gente gostava demais, a gente saía muito. Eu me lembro da mamãe levar a gente no parque Trianon. Então, a minha infância foi passada ali, nessa região dos Jardins, Avenida Paulista, tinha aqueles casarões incríveis, que a gente via. A minha vida foi muito ali e depois, com um pouquinho mais de idade, a gente se mudou pro prédio do lado, (risos) na Padre João Manoel. (risos) Então, era maior, porque eram quatro filhos, então a gente precisava de um apartamento de três quartos, pelo menos. Meu pai e minha mãe num quarto, essas histórias de quatro quartos, cinco quartos não existiam, nos apartamentos antigos era muito raro você ver algo assim, mas era o suficiente pra gente, então, a gente aprontava muito. Às vezes, meu pai e minha mãe saíam, a gente tirava todos os móveis da sala e fazia quadra de tênis ali. (risos) E a gente já conhecia até o barulho do carro deles, quando eles iam chegar na garagem, já encostavam: “Ah, a mamãe chegou”. Volta, coloca tudo de novo. Então, tinha muito dessas coisas, que a gente fazia uma algazarra e não assistia muita televisão, o que acho que era muito legal, porque o contato com a gente, as brincadeiras sempre foram muito físicas, muita atividade: descer, brincar de pega-pega. Tinha sempre gente suficiente, porque quatro, sempre tem um escondendo e três sumindo, então, funcionava, era bem legal.
P/1 – Eu ia perguntar exatamente isso, sobre as brincadeiras. Quais eram as brincadeiras que você tinha com seus irmãos, quais eram as favoritas?
R – Puxa vida! A gente gostava muito de se esconder, de brincar de esconde-esconde, a gente brincava muito de esconde-esconde. Quando vinha, principalmente na casa da minha avó, os meus primos, aí era um monte de primo, eram dez, doze crianças, aí a gente brincava de casinha. Só que eu sempre queria ser o pai, que ficava sentado e não fazia nada. Era a nossa definição de pai na época. (risos) Eu ficava sentada e não fazia nada. E a mãe, que era minha prima mais velha, que adorava ser mãe, ficava lá na cozinha, volta pra cozinha, volta pra cuidar do filho. A gente replica o que a gente vê. A gente replica, quando criança. E aí tinha os meus primos mais novos, que eram as criancinhas. A gente brincava ali, porque minha avó tinha um porão, então, tinha uma casinha ali, que dava pra brincar de casinha. E tinha o cachorro da minha vó, o Caudilho, que era um cachorro lindo, tenho até uma foto dele aqui, que me mandaram, minha mãe me mandou, eu era bem criança, era um Collie. A gente brincava muito com o Caudilho, eu lembro. Sentavam três em cima dele e a gente ficava. (risos) E no quintal, isso tudo era no quintal da minha vó. Então, a gente tinha bicicletinha, subia e descia, subia e descia. Pega-pega, nessa época, era... nossa! Ah, tinha um que a gente brincava, de polícia e bandido também. (risos) Tinham as polícias e tinham os bandidos também, que aí era um pega-pega geral, não é só um pegando todo mundo, é metade pegando outra metade. O povo gostava mais assim. Eram brincadeiras sempre assim, muito de atividade física. Empinar pipa, eu lembro que algumas vezes a gente foi empinar pipa, meu pai gostava. O meu avô, naquela época, era dono de um estádio de futebol, era. (risos) Depois virou um estádio grande mesmo, que se chama Bragantino hoje. Era o Estádio do Bragantino, que tinha até o nome dele, era o Estádio Marcelo Stefani, o pessoal chamava de Marcelão, era o meu avô. Meu avô paterno também foi prefeito da cidade, em Bragança Paulista, anos atrás, mas eu nunca vi o meu avô, esse era bem paradão, tanto que ele morreu eu tinha doze anos, então, as memórias de infância com meu avô paterno, Marcelo, são limitadas a isso, ver aquele senhor sentado, ali. Falava pouco, era parecido com meu pai, tinha um olho bem azul, bem azul, mas não interagia muito com a gente quanto meu avô Clóvis, que era o pai da minha mãe. Então, são avôs diferentes, mas o meu pai substituía, meu pai era um pai muito presente nesse sentido, sempre estava ali, sempre abraçando a gente, levando a gente pra passear, levava a nossa família, levava os agregados, de vez em quando estava com oito crianças no carro. Eu me lembro uma vez que a gente foi pra São Roque e São Roque tem uma pista de plástico, para fazer esqui. Lembro uma vez que a gente foi lá e tinham uns seis com ele, naquele dia e virou uma senhora e falou: “Nossa, mas que coisa, que bonito, tantos filhos! Isso tudo é seu?” (risos) Aí ele falou: “É, menos aqueles dois japonesinhos ali” (risos). Então, ele era uma pessoa muito bacana, uma pessoa muito fácil, de fácil trato. Todo mundo gostava do meu pai, meu pai era muito bacana. Não falava muito, não era aquelas pessoas que falam muito, não, ele era muito na dele, mas ele tinha um jeito de ser, acho que por isso ele era médico pediatra também, tinha muita paciência com as crianças.
P/1 – Ainda na infância, Fernanda, você pensava no que você queria ser, quando crescesse? Que coisas passavam pela sua cabeça, quando você era bem pequena?
R – Quando eu era pequena, a gente assistia alguns filmes na televisão, coisa pequena: Ultraman, Ultraseven, aquela da bruxa do pirlimpimpim, Jeannie é um Gênio, aquelas coisas que tinham. E nos filmes japoneses que passavam, tinham os cientistas e tinham aqueles que criavam os carros voadores, aqueles carros pretos, que subiam uma anteninha, tinha lá uma hélice e eles saíam voando, eu achava aquilo o máximo. Eu queria ser cientista, (risos) quando eu era pequena, quando eu era criança ainda, apesar de eu nem saber exatamente o que era ser cientista, (risos) mas eu queria inventar coisas diferentes. Nunca fui ligada a essas coisas muito de casa. E, naquela época, na minha infância ainda, até os anos 1970, até 1980, parece que as oportunidades que a gente tinha eram muito resumidas: ou você ia ser comissária da Pan Am, comissária de voo; ou você ia ser dentista, dentista nem tinha tanto; professora; ou você ia ser médica; ou você ia ser engenheira, que era coisa que a gente não sabia direito o que era; ou você ia ser advogada. Não saía muito disso. Secretária nem pensar, (risos) nem existia essa palavra ali, então, o que tinha era um pouco isso. Não sei se essas opções dão, aí. Com sete, oito anos, minha mãe também me comprou um violão, até um pouquinho mais. Tocava um pouco de violão, mas não era enlouquecida por música, a ponto de fazer, da música, uma carreira. Mas eu gostava, gosto demais de música, gosto muito de artes, mas eu sou mais pro lado do apreciador da música, apreciador das artes, do que fazer artes. Então, eu demorei, na verdade, a minha história é um caso até um pouco diferente, porque eu descobri realmente minha missão, praticamente depois dos quarenta. Eu fiz muita coisa. Ah, vou um pouco pra esse lado, legal, faço bem, mas eu me cansava muito das coisas, porque eu fiz muitas coisas, principalmente na época que eu viajei, saí da escola, né, da economia e fui pra Áustria, então, ali a gente vai fazendo um monte de coisas diferentes, experimenta os trabalhos que a gente vai fazendo e no começo é legal, no primeiro ano. Depois, não: “Ah, cansei, não tem outra coisa mais legal?” Então, eu percebi, ao longo dos anos, isso, claro, percebi mais tarde, que eu sou uma pessoa que precisa de muitos estímulos, o tempo todo eu tenho que estar sendo estimulada ou me estimulando a fazer coisas diferentes. Não sou uma pessoa metódica, não conseguiria jamais ser contadora, (risos) que é aquela coisa de método. Não, eu sou uma pessoa um pouco caótica, nesse sentido, estou sempre pensando, inventando, dando um jeito, dá pra ser assim, não dá, dá pra ser assado, não dá. Adoro informação, sou uma consumidora voraz de informação e a informação, de fato, que mudou a minha vida, mudou o que eu sou hoje. Esta apreciação pela informação, em todos os assuntos. Eu sou uma pessoa que sabe muito de muita coisa, não profundamente, mas eu consigo conversar com qualquer pessoa, de qualquer coisa. Agora, não vou tão a fundo, né? Isso me ajudou bastante, mas demorou. Isso realmente demorou pra acontecer. Só demorou com a 100% Amazônia, praticamente. Demorou pra acontecer, só em 2009. Então, os meus primeiros anos foram de busca, talvez, eu diria, mas principalmente de entender quem eu sou nesse mundo porque, o que me serve. A que eu vim? Para que eu vim? Demorou. Mas eu consegui. (risos) Tô conseguindo, né? Porque a jornada da gente nunca encerra.
P/1 – Fernanda, qual é a sua primeira lembrança da escola?
R – Da escola? A primeira lembrança da escola não foi a primeira escola que eu fui. (risos) Eu estudei num colégio muito próximo de casa, ali, que chamava Elvira Brandão. Fiz o Jardim lá, praticamente. Essa escola mudou pro Morumbi e aí a gente foi pro Dante Alighieri. Eu fui pro pré, meu irmão entrou no Jardim e fiz todo meu curso lá. Saí do Dante no final só do terceiro ano, então, é um colégio que acompanha muito a minha trajetória, eu amava, porque é um colégio lindo e era próximo à nossa casa, a gente morava a quatro quadras dele, então eu sabia o horário que tinha que levantar, quantos passos eu ia até lá, que eu precisava, porque teve um período em que eu estudava de manhã e eu odiava levantar de manhã e a aula começava às sete da manhã, então, era complicado, ali, pra gente. Muita vontade de dormir de manhã, mas eu me lembro das professoras, a Tia Marli e era muita brincadeira. A gente tinha um espaço legal para brincar, mas eu não me relaciono muito com esse período do colégio, não me relaciono, não. Era um período onde nós tínhamos... eram meninos e meninas, depois da primeira série não, da quinta a oitava série, naquela época, o Dante separava as meninas de tarde e os meninos de manhã, então era uma classe só de meninas, tinha muita panelinha, eu não gostava dessa história de panelinha. Nunca gostei, então, eu era meio que solta, falava com várias, mas eu gostava muito de estudar, gostava muito de estudar, sempre fui boa aluna. Nesse período da quinta à oitava, eu era bem solitária, nesse sentido, depois é que eu tive uma mudança forte na maneira como eu via o mundo. Eu tive num momento muito meu, então, do primeiro ao terceiro ano, eu mudei muito. Eu parei de ser aquela ‘deprê’, aquela coisa meio ‘deprê’ que eu tinha, eu senti que eu tinha um sentido na vida. Naquele momento, na verdade, o que aconteceu foi que eu tive num acampamento, a minha família é muito da igreja e eu fui num acampamento e decidi dar a minha vida a Jesus, vamos falar assim. Engraçado, pra mim aquilo foi muito revelador, eu mudei, porque de repente eu achei que a minha vida tinha um sentido, que era falar daquela alegria que eu estava sentindo. E realmente deu uma mudança grande pra mim, nesses primeiros três anos do colégio. Eu decidi que queria ser missionária, naquele momento. Aí, pronto, vou ser missionária, então eu ia na igreja e foi um período que eu me lembro que eu tinha muita alegria, eu lia muito, pra conhecer, tudo quanto era livro de estratégia missionária, de o que é ser “missões”. Tinha que falar línguas, então, eu gostava, não era aquela coisa só de igreja, igreja, igreja, igreja, doutrina, não. Tinha uma movimentação ali. E eu via muito isso, só que um dia eu cheguei lá pro pastor da minha igreja, eu ia na igreja chamada Igreja Batista do Morumbi e fui lá conversar com o Renato, um dos pastores, e ele falou: “Você quer ser missionária, ótimo, só que você tem que se formar em alguma coisa”. Eu falei: “Hum, o quê?” (risos) Eu não sabia, eu já estava no primeiro ano, já estava no segundo ano do ensino médio. E na igreja eles falaram: “Você vai ser médica” “Mas eu não quero fazer Medicina, vejo meu pai só trabalhando”. Meu pai não deixou esse legado da Medicina pra gente, nenhum deles estudou, nenhum deles quis saber da Medicina, talvez por isso, pelo pai não estar tão presente, não sei te dizer, mas eu vejo famílias que o pai é médico e os três filhos são médicos, aí abrem aquele consultório. Não é o caso da gente, eu achava aquilo muito legal, mas eu não sabia o que queria fazer, já que o pastor tinha falado que eu teria que me formar em alguma coisa. Demorou muito, eu optei pelo que eu queria fazer, quando chegou lá no terceiro ano, eu falei: “Tá, vou prestar para Engenharia”. (risos) E fui e prestei em dois lugares. Eu já tinha, naquela época, um computador, nessa época era meio da informática e eu comprei um computador, porque eu comecei a trabalhar desde os quatorze anos, então eu tinha meu dinheirinho. Comprei um computador e falei: “Ok, vou prestar pra dois lugares: Engenharia Elétrica na USP e o CTA do ITA, que era o Centro de Computação”. Claro que eu não passei (risos). Porque tudo bem, eu era boa aluna, mas eu não era gênia. E realmente eu fui muito bem na USP, mas não foi o suficiente. A minha prova de Física na USP não foi boa e a Física é importante para Engenharia. Então, por isso que essa minha busca, não foi, porque no ano seguinte eu falei: “Não, mas acho que não é Engenharia”. E prestei pra Economia e eu gostei da Economia, eu sou economista de formação, acho que é superinteressante e aprendi a gostar, porque tem um elemento humano, a gente estuda sociologia também e a minha tia é socióloga, a minha tia mais velha. E é uma pessoa que eu gosto muito (choro). Ela está viva ainda, mas é uma pessoa que eu me espelho, ontem eu estava falando com ela, ela está com 83 anos e falou: “Fernanda, eu tô super ocupada aqui, eu tenho um monte de trabalho pra fazer, eu tenho...”, porque ela trabalha ainda, ela trabalhou no Incra muitos anos, ela é socióloga e ela trabalhou no cadastro, então ela ajuda as pessoas, ela preenche a declaração do ITR, que é o imposto territorial rural e agora tiraram, fizeram uma revisão no salário da aposentadoria dela, tiraram dois mil reais e ela falou: “Não, isso é um absurdo!” E ela é super combativa. Eu até acho que ela devia ter feito Direito, depois, que ela ia dar uma ótima advogada. Então, eu acho que eu me espelho um pouco nela, sabe, porque, quando eu estava nascendo, ela foi pra França, ela estudou Sociologia, também estudou na USP. Naquela época, em 1967, a gente tinha ditadura e a minha tia fez uma pós-graduação na Sorbonne e ela foi de navio, porque meu avô não tinha dinheiro para pagar. Antigamente, você tinha que ser rico, pra pegar um voo, era um acontecimento. Ela conta muitas histórias da França, que ela ficou na França um ano e aquilo eu achava super legal, então eu me espelhei um pouco nela também. Eu fico emocionada muito fácil. (choro) Eu acho que, ao longo da minha vida, teve uma época que eu não me emocionava com nada, eu era dura, as pessoas falavam. De repente, de uns anos pra cá, começou a mudança nos quarenta, eu não sei o que aconteceu, acho que as sinapses fizeram assim, dentro da gente, elas começam a perceber as coisas em volta da gente de outra maneira. Então, aquilo que eu era, eu sou um pouco nerd no meu jeito de ser. As pessoas fazem brincadeira comigo e eu não entendo. (risos) Mas uma coisa que eu comecei a mudar muito com os quarenta anos, foi a capacidade de percepção das situações, do que acontece na minha vida, do que acontece em volta. Não só comigo, mas, em geral, com as pessoas, eu comecei a ficar muito mais sensível. Eu ouço uma música, tem determinadas músicas que eu ouço e eu começo a chorar na hora, porque me dá uma emoção enorme e pessoas que eu me lembro, ou situações que eu me lembro, que eu também choro. Eu acho que isso é bom, porque... agora eu queria poder me controlar, quando eu choro. (risos) Aí a gente já estava num momento ótimo, assim, porque as emoções... é legal a gente saber controlar. É legal. Tem hora pra chorar e hora pra rir e mesmo que o choro seja um choro de riso, um choro alegre, nem todo choro é triste. Aliás, tem muito choro que não é triste, é realmente de você sentir, de empatia, muitas vezes. Então, eu aprendi isso muito depois dos quarenta. Essa idade, pra mim, foi muito significativa na minha vida. Mas vamos voltar lá pra trás, porque a gente estava lá pra trás ainda.
P/1 – Eu fiquei pensando: você tem alguma história marcante com sua tia, que você queira compartilhar? Desde pequena você sempre teve uma relação assim, com ela?
R – Não, porque a gente não sabia. A minha tia é a tia mais velha, não teve filhos, ela não casou, por circunstâncias da vida, mesmo. Mas ela é uma pessoa que abraça todos os sobrinhos e ela tem onze sobrinhos. Eu sou a segunda mais velha, tem uma à minha frente, que é a Adriana, minha prima. A gente está muito próxima, mas ela já é um pouquinho mais velha que eu. E a tia Marta sempre foi a tiazona, que compra presente pra todo mundo, que faz um monte de coisa. Ela é a irmã mais velha da minha mãe, hoje elas moram uma do lado da outra, em prédios diferentes, mas estão sempre se envolvendo, mas a minha tia sempre foi muito solta, adorava viajar, adorava fazer várias coisas, mas eu comecei de fato a ter um relacionamento mais forte com ela na faculdade e depois que eu voltei da Áustria. Até porque a gente começa a ter coisas em comum, mais até do que os outros, pelo fato de ter viajado, de ter morado na Europa, ela adora a Europa, adora viajar pra Europa, a coisa toda. Então, eu gosto muito de sentar com ela, pela proximidade, pelo papo, pelas coisas que eu falava, minha mãe sempre foi muito legalista comigo. Teve uma época da minha vida que o relacionamento com ela era bem complicado. Até porque eu nunca fui padrão, nunca segui aquele padrão tradicional de: “Ah, estudou, arranjou marido, casou, teve filho”. Não! Eu achava chato namorar, eu falava: “Ai, ficar um menino no meu pé!” Até uma época que eu descobri que eu gostava mesmo era de mulher. Aí eu tive esse momento de falar: “E, Cacilda, e agora, eu tô na igreja, mas eu olho as meninas e eu as acho bonitinhas”. (risos) Então, teve um momento também, ali, de: “Ai, meu Deus, e agora? Eu sou cristã e lésbica? Ave!” Hoje as pessoas falam com a maior naturalidade, mas nos meus dezoito não era assim. Então, acho que, um momento importante e também que me levou a viajar pro exterior, foi sair um pouco de casa, da presença da minha mãe, da presença da igreja e falar: “Quem sou eu? Vou ver quem eu sou, fora”. Eu fui morar, eu fiquei dois meses na casa de um missionário, que era da nossa igreja, lá na Áustria, logo depois eu saí, fui me virar e foi ótimo e importante pra mim essa separação, pra entender quem eu era, o que eu era, o que eu estava fazendo errado. Era errado, era certo? Como é que era? Isso nos anos 1990. Então, não tinha ainda essa facilidade, a gente era... pelo fato também da gente, eu não tenho problema, não sou trans, não me sinto homem no corpo de mulher. Não, eu sou mulher e gosto de ser mulher, mas existem vários tipos de mulher, não é só aquele x, y, z, toda. Não, eu sempre fui muito assim, de pegar junto, de fazer as coisas junto, que é mais estilo um pouco mais aventureiro, não uso maquiagem, que acho totalmente desnecessário, que tenho meu próprio jeito de vestir, então, hoje eu sou muito segura da minha feminilidade. Mas nesse começo que a gente não sabia e não tinha apoio, era bem complicado. Então, tem um monte de coisas ali, que se conectam e que me levam, inclusive, para fora do Brasil. Claro que não é só isso, isso foi um fator que, claro, contribuiu, mas eu sempre gostei dessas coisas de fora. Isso é importante, eu me lembro algumas coisas importantes que aconteceram, que eu me lembre na minha vida, tinha o JT em São Paulo, na quarta-feira, todas as quartas-feiras saía o JT Turismo e que era o jornal que minha mãe assinava, o Jornal da Tarde e era o encarte de turismo. Nossa, aí eu via aquelas fotos e falava de Paris, de Kathmandu, falava do que for e aquilo me encantava demais, eu colecionava. Então, essa história de sair é independente disso, de conhecer o mundo, de ver outras coisas. Eu já fazia o curso de inglês na época, então, pra mim tudo isso foi muito legal. A primeira vez que eu saí, eu ganhei uma passagem da vovó, (risos) da revista Isto É. Eu tinha 18 anos, eu acho que já tinha feito dezoito anos e concorri a um concurso da revista Isto É, de melhor prato de restaurante. E acabei sendo escolhida e viajei, ganhei duas semanas em Miami e Orlando, na Disney, sozinha. Fui sozinha. Ah, eu adorei, porque me mandaram sozinha, me deram um dinheirinho. (risos) Aí eu cheguei em Miami e falei: “Ah, aqui é chato, não gostei”. Em Orlando, que foi a primeira semana, fiquei lá no hotel, em Kissimmee, ira pra Disney, fazia as coisas sozinha. Ah, adorei. A segunda semana chegou lá no Hyatt, em Miami, eu falei: “Ah, o que eu vou ficar fazendo nessa cidade aqui?” Aí comprei um voo da People’s Republic, sei lá qual era o nome da empresa, fui pra Nova York, fui pra Chicago, nós tínhamos recebido uma menina de intercâmbio, eu tinha dezesseis anos, então eu treinei muito, três meses eu fiquei falando inglês com ela e falei: “Eu vou lá visitá-la”. Então, peguei, fui em Chicago, liguei pra ela, ela morava em Milwaukee, ela falou: “Ah, eu não vou estar aqui, mas eu vou chegar tal dia”. Daí eu fiquei três dias em Chicago, fiquei andando, fui num museu lindo que tinha lá, fiz um monte de coisa que eu achei mais legal, nunca gostei de Miami, hoje só piora e quando ela falou: “Vou voltar”, peguei um ônibus lá de Chicago, fui até Milwaukee, eu tinha 18 anos e estava sozinha (risos) e pra mim foi maravilhoso. Então, imagina, tem gente que fala: “Você é louca, vai viajar sozinha?” Eu fui. E eu tinha acabado de entrar na faculdade, estava no primeiro ano de Economia quando eu fiz isso. Então, depois que eu fiz isso, eu tinha um tio que tinha uma operadora de turismo, então, durante os dois próximos anos ele me chamou pra ser guia na Disney, sempre em junho, julho e dezembro. Então, eu fui, numa tenra idade, ser guia na Disney. E eu lia muito, eu lia da Disney, eu sabia tudo que acontecia na Disney naquela época, que é muito diferente do que é hoje, que eu não tenho a menor vontade. (risos) Também, eu fui umas 25 vezes pra lá, quem vai querer mais? Mas teve uma época que eu achava muito legal. Então, pra mim, viagem é uma coisa que eu sempre tive rodinha no pé e essa história aí de primeiro vir pra cá, aliás, primeiro ir pros Estados Unidos e depois, ok, vou estudar fora de fato, porque isso era muito oportuno, porque eu ainda estudava, fazia Economia. Mas, no final, na verdade, eu tranquei a faculdade, a USP, isso foi em 1990, tranquei a faculdade, já estava praticamente no último ano, mas falei: “Vou passar um ano em Viena”. Escolhi Viena, porque eu já falava um pouco de alemão, mas falei: “Ah, Viena tem história, Alemanha não tem, tem muita...”. Até tem história, claro, mas eu queria aquela história mais bacana, mais comprida, imperial, monárquica, os Habsburgo, grande império, aquela coisa toda, falei: “Vou é pra Viena”. E eu fiquei oito anos lá, acabei até sendo jubilada da USP, por causa disso. (risos) Porque você só pode ficar fora seis e eu acabei ficando oito, então foi ótimo pra mim, eu tive a oportunidade, ao longo de todos esses anos, estudar lá, trabalhar lá. O fato de eu ser jubilada não fez com que eu não pudesse ter uma graduação lá, uma pós, um mestrado. Na verdade, eu tenho mais pós-graduação, não é bem um mestrado, no tipo que a gente conhece aqui no Brasil. É um pouquinho diferente lá. Mas eu tenho, então eu cheguei aqui no Brasil pós-graduada, mas eu não tinha graduação. (risos) Essas coisas acontecem, né, lá. Porque, como eu estava na faculdade aqui no Brasil, quando eu pedi a transferência pra lá, então eu fui aceita lá e finalizei ali a pós e você pode puxar a pós antes da graduação lá. É isso que acontece: você está no último ano e você já puxa e faz os dois juntos. Foi isso que aconteceu. Aí eu finalizei a pós, mas não finalizei a graduação. (risos) Mas, de qualquer maneira, eu acho que, assim, hoje em dia, quando a gente fala, inclusive, em universidade, em grau, existem pessoas que são gênias e que não têm, de fato, uma graduação finalizada, porque a gente está num momento de educação muito forte, muito diferente, até de desconstrução mesmo. Porque a educação que a gente conhece tem uns quinhentos anos. Essa educação universitária, que é uma pessoa falando e um monte só ouvindo, tem muitas mudanças aí, eu acho, no próprio modelo de educação que está vindo. Mas eu sou uma dessas crianças (risos). Então, eu acabei não tendo a graduação, mas depois eu me formei, me formei numa outra faculdade, próxima à casa, que era do Colégio São Luís, era a Faculdade de São Luís, que era do lado de casa e isso porque o meu primeiro emprego, onde eu tinha que falar, inclusive o diretor falou: “Fernanda, faz onde for mais fácil pra você”. Porque voltar pra USP, era do outro lado da cidade, eu estava trabalhando em Campo Limpo Paulista e a USP era no Butantã, não dava. Então, aí a gente acabou fazendo diferente, mas eu jamais - uma coisa que eu falo - naquela época, nos anos 1990, ia imaginar que eu moraria no Amazonas, morar na Amazônia e fazer o que eu faço hoje. Isso jamais me passou na cabeça, mas, de fato, acho que a primeira faísca que eu tive com relação a isso, foi uma vez que eu estava sentada com minha mãe, tinha uns dezesseis anos, ouvindo um Jornal Nacional falando sobre biopirataria, o que era: “Ah, porque veio, não sei o quê”. E eu me lembro, naquele artigo, na verdade não era escrito, era na televisão e eu pensei comigo, falei: “Puxa vida, eles estão falando aí que o pessoal vem de fora pegar ativos botânicos, ativos de alguma coisa dentro da floresta. O que a gente faz, o que a gente está fazendo?” Porque, realmente, o que o brasileiro sabe da Amazônia? Sabe que é aquele ‘tapetão’ verde, que você passa em cima quando você vai de São Paulo para Miami, tem um tapete verde que você passa. Só que eles esquecem, ou eles não sabem que, debaixo desse tapete tem muita vida: vida botânica, vida animal, vida de pessoas. Tem mais de vinte milhões de pessoas que vivem na Amazônia. Então, isso, pra mim, foi se descortinando muito mais tarde, eu também achava que era um tapetão. Por isso que a gente também não fazia nada, o que é que tem lá? E nos anos 1980, 1970, o que o governo falava? Desmatar para integrar. Então, teve gente que eram os verdadeiros pioneiros da Amazônia, que hoje tem muito dinheiro, até porque realmente tiveram plantios, tem plantios muito extensivos, mas que estão com aquela ótica do capitalismo, a ótica das commodities, ótica da monocultura e que hoje é muito diferente. Então, acho que aquela primeira semente para eu vir parar aqui, foi de fato lá nos dezesseis anos, quando eu joguei pro universo: “Mas a gente não faz nada”. (risos) A gente, brasileiro. E aí a vida foi me levando.
P/1 – Fernanda, só pra voltar um pouquinho, que eu fiquei pensando, quando você estava falando, que você falou que você começou a trabalhar com quatorze anos, com o que você trabalhou?
R – Então, eu fiz várias coisas. Aos quatorze anos, na frente da minha casa tinha uma produtora de vídeo, cujo dono era amigo dos meus pais, frequentava a mesma igreja, aquelas histórias. O Itamar. E naquela época tinha o vídeo cassete, tinha aquele trambolhão e foi uma época que começou a ter muito filme institucional, as pessoas, as empresas contratavam essas locadoras, essas produtoras, para fazer os filmes institucionais. Então, o meu primeiro trabalho, lá com quatorze anos, foi minutar esses filmes, porque não era digital, era análogo. Você tinha a fita, então, eles faziam os vídeos e precisava de alguém que minutasse, que falasse: “Olha, daqui a aqui, está esse tipo de cena, daqui a aqui esse tipo, daqui a aqui...”. Então, eu era minutadora, trabalhei minutando e, com aquilo, eu comprei meu primeiro Walkman, um Aiwa, (risos) me lembro, foi cento e setenta dólares, era caro, (risos) aquele Walkman. Nossa, eu adorava aquele Walkman, o meu era top, mega, porque tinha uns enormes, o meu era fininho, sabe? Adorei, foi o meu primeiro presente pra mim, um Walkman da Aiwa. Eu tinha quatorze anos, mesmo.
P/1 – E você lembra, você comentou um pouco que foi uma quebra de expectativa, né? Mas você lembra se os seus pais esperavam que você trabalhasse com alguma coisa que eles tinham expectativa, ou sempre foi livre?
R – Não, meus pais nunca me forçaram a nada. Pelo contrário, era bem iniciativa minha de ter meu dinheiro, em poder fazer minhas coisas. Eu gostava de economizar, até hoje sou um pouco assim. Eu acho que não é o fato de você ter dinheiro, muito ou pouco, o dinheiro tem valor, ele é fruto de um suor, de algo. A minha família não é de posses, nesse sentido, o meu avô tinha muitas posses, mas o meu pai lutou muito, meu pai e minha mãe, principalmente meu pai, sempre trabalhou. Eles tinham as prioridades deles, que era colocar a gente nas escolas. Então, ter quatro filhos no Dante era muito dinheiro. Eu me lembro, quando a gente ia sair, por exemplo, a minha mãe era bem classe média, nesse sentido: “Não vai pedir suco de laranja, (risos) só pode pedir Coca Cola”, porque era mais barato. Ou água, o que fosse. Então, a gente saía depois da igreja e ia comer no domingo, mas não podia pedir suco. E eu não gostava de ‘refri’ e de vez em quando eu olhava pra ela, eu olhava: “Eu quero um suco de laranja”. E ela me olhava com aquela cara, tal. Então, eu sempre percebi muito o valor do dinheiro, sempre dei muito valor. Até hoje, as coisas que a gente gasta, têm que ser bem gastas. Nem que seja por algo simples, mas o dinheiro tem uma função social e a função social de melhorar a vida da gente e a vida da gente ‘nós’, não a vida da gente ‘eu’. E eu percebo que isso foi uma jornada muito legal, da gente perceber que, quando você abre uma empresa, essa empresa passa a ter responsabilidade na comunidade, ela tem uma responsabilidade social ali. E isso jamais me passou, eu nunca tive ideia, antes de abrir a empresa. Quando era uma coisinha minha com outra pessoa, a gente prestava um serviço, era uma maneira diferente, porque a 100% Amazônia não é minha primeira empresa, mas é claro que é a mais significativa, a mais importante, a maior nesse sentido, então, o dinheiro é muito isso. No meu primeiro trabalho era aquele dinheirinho que eu tinha ali, que eu contava, que eu achava legal e aí, claro, se iam aparecendo coisas pra fazer, a gente fala meu primeiro trabalho, mas não foi meu primeiro CLT, meu primeiro CLT foi bem lá na frente, mas ele foi importante porque, de alguma maneira, também me formou, um pouco, na minha percepção sobre ele. Foi, sim.
P/1 – Eu ia te perguntar sobre Viena, né? Você contou um pouco sobre a USP, como foi pra você. E como foi mudar para Viena, o que você sentiu quando chegou lá pela primeira vez? O que você pensou, quando chegou lá?
R – Ai, nossa, é tão legal. Porque, foi preparado, foi estudado, a gente chegou lá... eu fui com dinheiro que eu tinha economizado com os meus trabalhos. Meus pais só pagaram a passagem de ida e falaram: “Quando acabar o dinheiro, você volta” O dinheiro durou oito anos. Mas é isso: eu cheguei ali, logo no começo tinha o amparo dessa família de missionários que morava lá, morava num bairro um pouco distante, então, a primeira coisa que eu fiz foi: “Ok, vou estudar alemão, vou achar um curso”, que eu também tinha contatado pela internet. Oh, pela internet, nem existia internet nessa época. Por e-mail… escrita mesmo, escrevi. Recebi o catálogo e falei: “Vou estudar aqui”. Era o mais barato que tinha, era bem no centro de Viena, um lugar lindo, que dava de frente pra Ópera. Eu fui muito feliz em Viena, porque a cada segundo eu tinha um regozijo. (risos) Eu olhava e falava: “Nossa, que arquitetura linda desse lugar”. Aí pegava o bonde e falava: “Nossa, que bonde lindo!” Até o ar era diferente. A gente falando, nem sempre era fácil, porque a gente acha que sabe falar e aí, chega no lugar, eles começam a falar em dialeto com você e você não entende nada, mas eu fiquei um mês lá nessa casa e logo, lá, quando eu fui fazer minha inscrição na escola de idiomas, eles falaram: “Olha, tem uma moça aqui, que está oferecendo um quarto na casa dela e você tem que cuidar, três vezes por semana, de tarde, do menino, ficar com o filho dela”. E eu topei, falei: “Ah, beleza, vou poder falar alemão, inclusive, treinar”, mas a moça falava inglês comigo, não adiantou. (risos) Mas o quarto era num apartamento magnífico, meu quarto era gigantesco, era do tamanho dessa sala, quase uns quarenta metros quadrados, num bairro, no dois, que é o Distrito 2 de Viena e eu atravessava o Distrito 1 inteiro pra ir e voltar. Então, era muito legal, eu estava me sentindo a conquistadora da Europa, aprendendo muito, viajando muito, já trabalhei, nesse período comecei a trabalhar. Trabalhei com chapelaria, então era um período que eu estudava de manhã, o dia, a manhã toda. À tarde, eu ficava com ele e de noite eu ia pra uma chapelaria, trabalhar num bar bem famoso, que tinha lá no Centro. Foi bem legal.
P/1 – Fernanda, me conta quais foram os outros trabalhos que você fez, até chegar na 100% Amazônia. Você contou que não foi sua primeira empresa. Como foi toda essa trajetória, até chegar na 100% Amazônia?
R – Então, eu fiz um monte de coisa. Mas, em Viena, a gente, como estudante, trabalha de garçonete, eu fui até ‘mulata’ lá, (risos) uma vez me deram um biquíni e falaram: “Dança aí” e eu, né? Muito engraçado, pior é que é verdade. Mas eu fui acompanhar uma amiga minha, eu dirigia pra ela e ela fazia as apresentações, ela era uma ‘mulata’ bonitona, que dançava, mas ela precisava de um par, para um determinado evento. Então, ela me deu e falou: “Vai, é você mesmo”. Mas o que eu fazia, assim, muitas coisas que eu fiz, eu trabalhei em trading, em Viena e eu sempre arranjava algumas coisas pra fazer, que eu achava interessantes, que me ajudavam, inclusive, a me manter. Então, trabalhei de várias maneiras, trabalhei como garçonete, como guia turístico também em Viena, para receptivo. Quando eu voltei pro Brasil eu já tinha trinta anos e, pelo fato de eu falar inglês fluente, pelo fato de eu falar alemão fluente, eu acabei indo trabalhar com empresas alemãs. Então, meu primeiro emprego foi na Krupp, meu tio, inclusive, me ajudou muito a conseguir essa vaga, porque a Krupp é uma metalúrgica, hoje é ThyssenKrupp, ela sofreu a fusão bem no período que eu estava lá e eu tinha um tio que era diretor de compras da Fiat, então, ele meio que me ajudou ali dentro e falou: “Olha, tem a minha sobrinha, está lá”. E a Krupp estava num momento de mudança, estava contratando pessoas e contratou. Foi muito legal, adorava, só que era longe, longe, longe, longe. Demorava, tinha que pegar um ônibus, tinha que acordar às cinco e meia da manhã, (risos) pra chegar lá às oito e aí saía, então, foi muito bacana no primeiro ano. (risos) Porque aí começa aquela coisa e logo em seguida acabei saindo de lá, fui pra BASF, trabalhar num projeto muito bacana na BASF, mas eu também não me sentia, assim… eu me sentia: “Ah, eu tô aqui, eu sou mais um número, o que está mudando pra mim?” Não tinha aquela história que a gente ouve falar hoje, das pessoas: “Ah, mas eu tô aqui, qual o sentido de eu estar aqui?” Mas eu já tinha isso, né? Então, também não fiquei muito tempo lá, fiquei um pouco mais de um ano, acabei saindo, uma amiga minha me chamou pra empreender, ela tinha um projeto de planetários móveis que ela trouxe dos Estados Unidos, então a gente chegou a ter três planetários, a gente fez sessões de planetários, então a gente viajava, eu fui pra vários lugares no Brasil com esse planetário, eu que fazia as sessões, eu me divertia, montava, dava a sessão, conversava, às vezes, ficava em escolas o dia todo, fazendo sessões para segunda classe, terceira classe. Aí a gente tinha uma sessão específica para o ensino médio, que era sobre o buraco negro, o pessoal gostava. Era muito legal, eu gostava muito, então esse foi o meu primeiro... inclusive, eu estava fazendo um treinamento para planetaristas novos que estavam entrando na nossa empresa, quando as Torres Gêmeas caíram. (risos) A minha mãe me ligou, falou: “Olha, olha lá, sai correndo”. Então, eu estava bem naquele momento fazendo isso, mas aí, sabe quando você percebe que está bacana, está legal, mas onde isso vai me levar? Eu aprendi tanta coisa, saí muito da minha área, queria voltar a fazer essa parte de comércio internacional, que eu tive. Aí eu voltei, fui trabalhar numa empresa. Demorou, porque eu fiquei alguns anos fora, então pra eu conseguir de novo um trabalho não foi simples. Eu fui trabalhar numa comercial exportadora, que o moço falou assim: “Olha, eu posso te pagar um salário-mínimo”. Tinha saído da BASF, só pra ter uma ideia, o salário-mínimo naquela época era trezentos reais e eu ganhava quatro mil na BASF. Então, era o quê? Um pouco mais de doze, treze salários, eu já ganhava ali e eu voltei pra ganhar um salário-mínimo, mas ele falou assim: “Você tem o salário e você traz os negócios e a gente divide”. Eu topei na hora, falei: “Claro!” Não tinha tido essa experiência ainda de comissionamento, mas eu topei. Eu pensei: “Não, eu vou, é isso que eu quero”. Então, foi muito legal, no começo ele viu muitas coisas, eu precisava ganhar um pouquinho mais, porque eu tinha comprado apartamento, então, só de mensalidade eu pagava setecentos reais e eu ganhava trezentos. (risos) Então, minha mãe me ajudou, fui morar com ela, lá, mas logo nos primeiros seis, sete meses, o dono dessa empresa viu o meu empenho e eu também fui puxando outros... aí eu falei: “Ah, eu posso fazer o site da empresa?” Aí eu estudei o Dreamweaver e falei: “Eu vou fazer o site”. Fiz lá, ganhei uma graninha. Ele percebeu e então aumentou um pouco, ele pagou mil e duzentos: “Não, vou te aumentar, vou te dar uma ajuda de custo de mil e duzentos”. Eu fiquei feliz, né? E aí eu comecei a trazer muitos clientes e projetos para eles. Eu virei gerente de um consórcio de exportação na área de sorveteria e foi lá, inclusive, que eu tive o meu primeiro contato com açaí. Foi justamente nessa empresa. Eu trabalhava em São Paulo, estava muito bem ali, não ganhava rios, não ganhava, tinha meses que eu ganhava bem, tinha meses que não era tão bom, porque era muito baseado nos negócios que a gente trazia. Mas, por outro lado, eu tinha a vida que eu pedi: eu entrava a hora que eu queria, eu saía a hora que eu queria, eu tinha a minha sala, eu ficava enlouquecida, lá dentro, trabalhando, trabalhando e então eu pude desenvolver minha vida de uma maneira que eu gostava. Às vezes, eu chegava às onze da manhã pra trabalhar, mas eu ficava até oito, nove. Então, eu já comecei a falar: “Puxa, pra mim é por aí” E, nessas conversas de ida e volta, lá, eu recebi um e-mail de uma empresa canadense, que queria comprar um suco de açaí. Eu olhei e falei: “O que é suco de açaí?” Não sabia o que era açaí. Isso foi em 2003, por aí. E foi ali, de fato, que começou essa minha trajetória mais próxima da Amazônia, de entender o que é o açaí, saber que o açaí vem da Amazônia, entender como é que o açaí se insere dentro desse contexto. Essa empresa, que é a Açaí Canadá, hoje não existe mais, mas foi ela, praticamente, que me colocou na rota do açaí. Sabe quando alguém tem a ideia, mas essa ideia é muito cedo? Esses breakthroughs que acontecem têm um contexto certo pra acontecer e pra explodir. A Açaí Canadá foi a primeira a resolver levar açaí, numa época em que existia pouquíssima demanda. Então, eles acabaram insistindo num momento em que eles tiveram um esforço muito grande, que não virou tanto quanto virou quem veio depois e quem está por aí agora. Mas, pra mim, foi importantíssimo, me dava muito bem com eles, eu fui lá e ficava na casa deles, eram um casal, que era a Claudia Zucarini e o marido dela e eu fui aprendendo com eles, eles queriam primeiro um suco e então eu fui pra área de Tetra Pak, aprendi também muito sobre Tetra Pak, aí a gente saiu, não queria mais Tetra Pak, porque aqui tinha muitos problemas das empresas que eles trabalhavam. O que é, de fato, verdade. Aqui na Amazônia é muito difícil trabalhar com empresas, as pessoas não têm essa seriedade que, às vezes, é necessária dentro do mundo dos negócios, é tudo muito oportunístico, muito de oportunidade, mas no sentido pejorativo da palavra: "Aí, eu tenho uma oportunidade aqui, mas não interessa mais, ponto”. Vai embora e deixa o outro na mão. É bastante comum isso. E a gente vinha aqui, comecei a trabalhar, quando eu percebi essa história do açaí, comecei a me tornar especialista em açaí. E, dentro desse contexto, de conhecer esse mercado, eu tive um evento que foi realmente um dos cavalos encilhados na minha vida, que foi o fato de eu pegar um voo de Belém pra São Paulo, tinha parada em Brasília, entraram dois gringos nesse voo, enormes, eu lá sentada no meu canto, estudando um livrinho de açaí, que eu tinha comprado da Embrapa, eles sentaram do meu lado e começaram a conversar comigo, literalmente puxaram papo comigo. Aí, eles perguntaram o que eu fazia e eu falei: “I trade açaí”. Eles: “Ãhn?” (risos) Eles se apresentaram, era um dos donos da MonaVie, o outro era o vice-presidente de Desenvolvimento de Produtos, aí quando eles falaram que eram da MonaVie, eu falei: “Ah, eu conheço vocês!” Aí eles abriram o olho desse tamanho: “Como assim? A gente não está aqui no Brasil”. E eu falei: “Mas eu faço Inteligência Comercial, eu sei quem faz o quê. Aliás, o projeto de vocês é muito bacana, aquela garrafa X, Y, Z”. Bom, conclusão: nas próximas cinco horas eu fiquei dando um panorama do mercado do açaí pra eles, quem era quem, quem fazia o que e eles me perguntaram: “Nossa, se a gente comprar do Brasil”, porque eles compravam de uma empresa que produzia em Fortaleza o açaí, que mandava pra um cara em Nova York, que por sua vez mandava para eles, em Utah. Eu falei: “Se vocês comprarem direto, me dá um número aí...” “Ah, vamos comprar quatrocentas toneladas”. Aí eu fiz as contas lá e falei: “Quanto é que vocês pagam hoje? Tanto? Tá”. Eu fiz as contas e falei: “Se vocês comprarem direto, vocês vão economizar trezentos mil dólares”. Um mês depois, eles já tinham pagado minha passagem, eu já tinha ido lá pros Estados Unidos, eles já tinham me feito uma proposta pra vir aqui e abrir uma empresa pra eles, que eu teria sociedade, pra gente comprar açaí pra MonaVie. E pra mim a proposta era fantástica, porque eu ia ganhar um zero a mais no que eu ganhava antes (risos). E eu ainda ia ter sociedade, eu ia ter uma pequena participação ali. Então, eu peguei minhas coisas e em primeiro de agosto de 2006 eu me mudei para Belém, aqui próximo, inclusive. E nunca mais saí. Desenvolvi os próximos três anos como compradora para essa empresa, a MonaVie, a gente abriu uma empresa chamada Earth Fruits, Frutos da Terra e eu saía pela Amazônia toda achando quem processava açaí e outras frutas, pra MonaVie. Eu era responsável pelas compras, por fazer esse relacionamento com os produtores locais. Muitas vezes, eu tinha que virar gerente de exportação, para que fosse possível comprar, porque a dificuldade deles era enorme pra poder vender, faziam os cálculos errados, faziam o custo todo errado. Funcionou bem, porque existia uma confiança entre a gente. Então, os três primeiros anos foram anos muito bacanas, de muito trabalho, porque a gente saiu de zero de exportação para seis mil toneladas de exportação de açaí puro, a turma falava que eu era a rainha do açaí na época, porque a gente embarcava container de açaí assim, como você vai na padaria e compra pãozinho. “Vamos embora, vamos embora”. Três, quatro containers de uma vez, pra poder embarcar, durante a safra. Estava eu, tinha uma outra menina que me ajudava na época, no começo, depois ela saiu. E isso durou até o período em que nós tivemos aí, em 2008, uma crise forte, com os ______ closures lá, teve uma crise na Bolsa, uma crise dos Bancos. E nós tínhamos, a MonaVie tinha comprado uma quantidade gigantesca de açaí, porque até então ela crescia 20% ao mês e, com isso, as bases de venda deles, porque é uma empresa de marketing multinível, acabaram muito desgastadas, que eram os dois piores estados, os estados que foram mais afetados, que foram a Califórnia e a Flórida. Então, aquilo desmontou e eles ficaram com uma quantidade de açaí gigantesca ali e, de repente, meu serviço aqui não precisava mais, porque nos anos seguintes eles estavam com muita quantidade de açaí. Então, foi quando eu acabei me desligando, eles me demitiram e eles fecharam a empresa, tudo isso aconteceu. E foi, de fato, com essa rescisão, que a gente começou a 100% Amazônia. Ao invés de eu pegar minha malinha e voltar para São Paulo, porque essa demissão ocorreu no início de janeiro de 2009, eu fiquei baqueada, porque eu me sentia, de certa maneira, dona ali, também, mas eu entendo hoje também, o processo. Eles tentaram me aproveitar em São Paulo, estavam abrindo empresa lá, mas marketing multinível não é muito minha praia. Quando eu tô na área do Supply Chain, na cadeia de fornecimento é uma coisa, mas trabalhar vendendo em rede não é muito minha praia, mas, assim, foi um período fantástico pra mim, me trouxe pra cá, me colocou no mapa da Amazônia, me deu oportunidades incríveis de fazer o que eu faço. Hoje a MonaVie tem um papel crucial dentro da Amazônia, porque eu aprendi como fazer e como não fazer. A gente aprende com os erros dos outros também e com os nossos erros. É bom, isso. O melhor e mais barato é aprender com o erro dos outros. Nossos erros saem mais caro. Então, ela abriu muitas portas para eu me conhecer, inclusive, como profissional. Quem é a Fernanda profissional e quem é a Fernanda pessoal? Não existe. Se alguém falar pra vocês: “Olha, não, você na empresa é um jeito; na sua casa é outra, separa”, é mentira, (risos) não existe, você leva as coisas ou senão você vive duas vidas e isso, a longo prazo, não é bom pra ninguém e você tende a cancelar uma, quando você tem uma outra. Então, qual você acaba cancelando? É importante a gente entender que a gente tem que buscar fazer algo que a gente ame e que aceite a gente do jeito que a gente é, na potencialidade que a gente tem. Esse é o meu maior desafio hoje, de como empreendedora, entender o RH. Não é fácil pra mim, eu não sou uma pessoa de pessoas, de falar: “Ai, eu amo gente!” Não é verdade. Eu amo meus gatos, adoro, tenho onze aqui, (risos) mas pessoas são, pra mim, um desafio enorme, porque as coisas são muito claras pra mim, dentro da minha capacidade lógica de entender A, B ou C, mas as pessoas são sujeitas à vontades, à culturas, porque pra gente pode ser, se eu falo A aí pra vocês e vocês falam: “Ah, isso é muito legal”, eu posso falar esse A pra alguém na África e ela achar que eu tô xingando. Então, a cultura e você aprender línguas ajuda demais isso, a gente entender que não há verdade, que você tem que estudar também as pessoas, você tem que se conectar com as pessoas, antes de mais nada. E a humildade de saber que você sabe bastante, mas que você está longe ainda no seu conhecimento, você tem muito mais que aprender. Então, isso, pra mim, é muito importante, dentro da 100% Amazônia. E, na MonaVie, as coisas que eu vi que aconteciam, que eu falava: “Não, eu acho que dá pra fazer diferente”. Eu acabei trazendo, seis meses depois, quando a gente abriu a 100% Amazônia em São Paulo... aqui em Belém. Que é que a gente não é 100% Açaí, a gente é 100% Amazônia. O açaí é uma fruta importante da pauta de exportações, da pauta do PIB (Produto Interno Bruto) paraense, porque você tem o número um, que é a mineração, inconteste, até você tem volumes muito superiores, você tem empresas gigantes explorando o Pará, explorando a Amazônia, o solo, mineral, mas que não trazem diretamente bem viver. Elas acabam trazendo, porque elas são obrigadas, elas têm as contrapartidas delas. Então, claro, isso ajuda? Ajuda, mas isso é indireto, não é algo que elas façam, isso faz parte do jogo, vamos falar assim, pra que elas possam, de fato, estar aqui. Já o açaí cresceu, acho que é a segunda maior pauta e ele tem uma quantidade de gente que trabalha nessa cadeia, imensa. É uma cadeia produtiva bastante extensa: você tem desde o peconheiro, o dono da terra, o transportador, às vezes um segundo transportador. Você tem a fábrica e você tem um cliente final, ou ainda vai pra outro, que vai reprocessar. Então, todo mundo dentro dessa cadeia, que se insere de uma maneira mais ou menos bacana porque, às vezes, aquele que está lá no mato, que está de fato cuidando, é o que menos ganha. Em compensação, a última milha ganha muito dinheiro. Então, a gente falou: “Não, vamos fazer diferente, vamos manter o açaí, mas vamos começar a abrir outras oportunidades”. E, ao longo dessa jornada, os primeiros cinco anos da 100% Amazônia, foram anos de entender a logística. Tanto que a gente tinha um logo, que era: “Trazendo a Amazônia para sua casa” ou “Trazendo a Amazônia até sua porta”. Era entender a logística. Aí chegou num ponto, que a gente: “Açaí já estão exportando aí pra sessenta países”. Na época eram 45. E aí eu falei: “Não, calma lá, a gente veio pra cá, não foi pra ficar só mandando, isso foi uma maneira da gente começar a crescer volume”. Porque, na nossa estratégia, não é fazer uma manteiga de cupuaçu para ser vendida no Japão, que a pessoa não sabe nem o que é. É um retail, é um varejo muito difícil. A gente precisa fazer com que mais pessoas entendam que a Amazônia tem uma produção, então a gente precisa tirar essa produção e isso envolve gente. Então, nossa estratégia sempre foi de escalar rápido, de escalar volume. E aí foi quando nós, de fato, começamos a entender, a tentar montar um programa, a montar um programa que hoje nós temos, chamado Aryiamuru e a gente, nos primeiros cinco, seis anos, entendeu a logística e, a partir daí, a gente falou: “Como é que a gente insere agora um elemento que é muito importante, que foi de fato o gerador da 100% Amazônia, que é manter a floresta em pé, que é evitar o desmatamento, como é que a gente consegue?” Então, não tem uma resposta pronta, a gente teve que buscar. Como é que você tem uma empresa que trabalha... gente, tô falando isso em 2008, 2009, ninguém falava em ESG, ninguém falava em sustentabilidade, ninguém sequer falava em empresas de impacto socioambiental. Tinha um pouco ali da Yunus, mas aí é a empresa puramente de negócios sociais, que também era muito distante aqui. Porque a gente, na Amazônia, existe um atraso do resto do mundo, a gente tem um passo diferente. Então, não é que o atraso seja ruim, mas as coisas acontecem em tempos diferentes aqui. Nós temos, então, uma cultura muito diferenciada, um modo de viver, um estilo de vida muito diferente, tanto da capital, quanto do interior, quando você fala de comunidades tradicionais, comunidades indígenas, são tempos muito diferentes. Tempos em termos do que é moderno e do que não é. Então, a gente já começou a trazer um pouco essas demandas, antes disso. Então, quando vem hoje um pessoal e fala: “Ah, a ESG, sustentável” “Há 12 anos que a gente fala de floresta em pé. Olha a nossa logo”. Então, só que a gente sempre teve muita dificuldade em fazer, porque a maneira como a gente tinha os colaboradores, como nós tínhamos também criado esse portfólio, a gente precisava de empresas que pudessem produzir pra gente nosso portfólio. Essas empresas tinham um grau, uma dificuldade na questão de transparência, em alguns momentos você precisa de transparência. E aí a gente foi estabelecendo outro modo de trabalho, que é indo mais nas comunidades, fazendo um trabalho mais forte com elas, para que elas pudessem produzir elementos, principalmente os recursos que a gente usa, para produção. Até chegar o momento que a gente tem hoje, onde a gente substitui esses terceirizadores, que não acompanham a nossa pegada de sustentabilidade, por uma própria agroindústria, que é o que a gente está inaugurando agora em dezembro. A gente chama de Fábrica da Floresta. A Fábrica da Floresta é uma fábrica que tem módulos, é uma fábrica modular e cada módulo vai produzir coisas diferentes da Amazônia. E eu falo que ela é uma Fábrica da Floresta, porque eu não a criei pra mim, eu a criei pra Amazônia. Então, ela olha esse imenso pedaço de terra chamado Amazônia, claro, no geral a gente acaba ficando num raio aí de alguns quilômetros, não poucos, muitos, porque tem coisa saindo de Lábrea (risos) que vem pra cá, mas ela atende a demanda que a gente entende, de mostrar que a floresta tem valor se ela for mantida de pé. E que essa produção da floresta pode ser utilizada em vários tipos de indústria, de alimentação, bebidas, cosméticos, principalmente, só que com um valor justo. Não é tratando os produtos da floresta como produtos de nicho, porque o produto de nicho, o que acontece? É que a fábrica que trabalha o nicho, ou o distribuidor de produtos de nicho, eles vendem pouquinho, mas quando eles vendem, eles têm um valor de margem enorme, aí, eles sempre vão vender pouquinho. A gente precisa distribuir melhor essa margem, ao longo da cadeia, para que haja diferença de fato na vida das pessoas, no início da cadeia, onde elas entendam que aquilo tem um valor que elas precisam preservar e, ao mesmo tempo, o consumidor final entenda que não precisa ser tão caro assim. Que tem um valor justo, isso é importante. O caro e o barato, vamos tirar um pouco isso. Vamos pensar num valor justo, para que todo mundo tenha, para que o capitalismo traga o que falta nele atualmente, que é o valor compartilhado. Hoje nós temos um capitalismo de acionistas, ou seja, isso a gente viu agora recentemente, o que aconteceu atualmente com a Danone. Você tinha o Faber, um CEO fantástico, falando em valor compartilhado, aí chega uma turminha aí, do Conselho e o tira, porque não está interessando esse papo: “Ah, o valor vai cair, da ação” e é o contrário: a gente está numa mudança de paradigma de mundo, a gente vê, eu vejo isso nos meus olhos acontecerem. Então, a gente se insere dentro desse novo capitalismo, que é um capitalismo onde a gente está aqui pra fazer as coisas acontecerem. Mas eu não estou em São Paulo, não estou no Rio de Janeiro, não estou em Nova York, não estou em Paris, falando: “Ah, vamos salvar a Amazônia”. A gente está aqui, fazendo acontecer e precisa. A gente não pode tratar a Amazônia como um quintal dos outros, a gente tem que morar nesse quintal, porque quem cuida, quem mora lá, cuida do quintal, é o que eu acho.
P/1 – Eu ia te perguntar exatamente isso: como foi… você já tinha ido pra Belém, mas, nessa época, como foi se mudar para Belém e como foi, também, visitar as comunidades locais aí? Como foi todo esse processo de viver a Amazônia mesmo, em Belém, enfim…
R – É sempre uma vivência interessante, o fato de a gente ter uma comercial exportadora faz com que eu viaje muito. Hoje nós devemos ter mais ou menos 22, 23 colaboradores, então, não é uma empresa grande, no sentido de ter muita gente. Mas houve um tempo, muitas vezes eu mesma que fazia, eu ia lá pra fora pra vender, mas eu ia também lá nas comunidades, para comprar. Então, eu estou sentindo muita falta. Porque eu estou há um ano e meio sem sair de casa, em função da pandemia. Nem que eu quisesse eu poderia ir, porque muitas comunidades sofreram barreiras sanitárias, então, você não passa. Nós tivemos agricultores que morreram, nós tivemos safras que não chegaram na quantidade que foram acordadas, porque as pessoas faleceram. Então, é uma experiência muito bacana você chegar, você conhecer, você comer da comida deles, você dormir ali. Nem sempre é o melhor lugar do mundo, em geral é muito simples, às vezes, tem muito bicho. Mas é interessante, porque eles estão compartilhando da vida deles com você, quando a gente vai lá. E, às vezes, a gente chega e o povo tem uma certa desconfiança porque, quando você vem de fora, de um ambiente completamente diferente, a gente ainda mais, que é paulista, a gente acha que a gente sabe o que é melhor pros outros. A gente tem isso, né? “Ah, porque isso...”. E, na verdade, a gente esquece de perguntar, (risos) muitas vezes, o que eles querem. E isso é uma bobagem, mas que faz total sentido e que a gente coloca dentro do nosso programa, que é utilizar o protocolo 69 da Organização Internacional de Trabalho, que fala que você precisa ter um consentimento livre, prévio e informado, quando você vai fazer negócios ou visitar as comunidades. Que elas têm direito à terra, que a terra é delas. Que elas produzem aquilo que for melhor pra elas e elas têm soberania sobre isso. A gente esquece disso. Então, quando, às vezes, você vai num lugar e fala: “Nossa, que campão, bem que vocês podiam produzir x, y, z”. Mas, eles querem? Você está dando uma coisa… “Ah, eles não querem, então eles são tontos”. Então, existe um pouco dessa busca ainda e eu tive, eu cheguei aqui e amei isso. E fui aprendendo com o tempo, que a gente tem que respeitar a vida e o estilo de vida das pessoas, das comunidades, principalmente. E o que nós podemos fazer, o que a gente tenta, é a parte de troca de saberes. Falar: “Olha, já que vocês produzem isso, dá pra fazer isso, dá pra fazer aquilo. O que vocês acham?” “Ah, a gente se interessou, o que a gente precisa?” Então, isso é uma troca, você não está chegando com tudo, com betoneira, com caminhão. Eu falo, concretando tudo e fazendo do seu jeito. Não, você inclui. Então, tudo isso que a gente tem buscado construir, ao longo dos últimos anos, está muito em linha com esses novos tempos que a gente tem aí, de inclusão de gênero. A 100% Amazônia é uma empresa de mulheres, tem 80% de mulheres ali dentro, acho que agora um pouquinho menos, mas ela sempre foi uma empresa muito feminina. Os homens que trabalham lá têm esse olhar. Eles precisam ter, senão eles não ficam. Essa é a verdade. E a Amazônia, pra gente, é feminina. A Amazônia que funciona, a Amazônia que tem condições de seguir adiante, é uma Amazônia onde você tem mulheres colaborando. As mulheres têm cuidado com as pessoas e cuidado com o meio ambiente também. Onde tem só muito homem, o que a gente percebe, que é muito predador. É uma característica. Então, quando a gente mistura, acaba sendo um ambiente que funciona, na nossa opinião. Agora, não é muito simples, porque as mulheres são tradicionalmente deixadas de lado, principalmente no mato. Mas a gente conhece muita extrativista que sobe na árvore de açaí. Essas senhorinhas botam o facão e sobem lá em cima, vinte metros de altura, pegam o açaí e gostam. Então, acho que é isso.
P/1 – Eu ia te perguntar se você lembra alguma história marcante, com alguma comunidade, que você lembre assim, de cara.
R – Uma comunidade que me marcou muito foi uma época em que eu visitei, que eu fui pro Rio Paru, que fica na Calha Norte, eu voei até Monte Alegre, de Monte Alegre eu peguei… foi organizada uma visita em Almeirim e em Almeirim, eu visitei três comunidades, porque a gente foi verificar, inclusive, o trabalho com eles de um turismo de base familiar, comunitária. E numa delas, que era o rio Lago Branco - os nomes aqui com as cores são assim, o lago não era branco, mas chamava Lago Branco - tinha uma comunidade quilombola, tradicional, ali, então, você andava uma hora e meia pra dentro, assim, tinha um negocinho fininho e chegava numa lagoa enorme e tinha uma comunidade lá. E essa comunidade me recebeu maravilhosamente bem, foi o melhor suco de caju que eu já tomei na vida, a gente fez um passeio lá pra dentro, eu identifiquei um açaizal nativo, não manejado, os açaizais nativos, não manejados, têm muitos perfilhos, você tem um sistema de raiz com vinte, trinta perfilhos de açaí. De arvorezinha mesmo. E muita, muita raiz saindo assim, por cima, quase como se fosse um mangue. Naquela época tinha tido uma demanda para comprar raiz de açaí. E raiz de açaí não é um produto tradicional para quem vende açaí, que eles falam: “Não, se cortar a raiz, vai cair a árvore”, aquela coisa, mas ali não, ali tinha raiz de sobra. Então, a gente teve uma ajuda do pessoal do IFT, que é uma ONG muito bacana, Instituto Floresta Tropical, que trabalhava mais a parte de madeira, mas ali trabalhou com a gente, num extensionista rural, a gente conseguiu, com eles lá, fazer uma cadeia de extrair as raízes do açaizeiro e fizemos três exportações pro Havaí. Aliás, duas exportações de três, porque uma não deu certo, então, mas tem que contar como, também. E fizemos essa cadeia, eles ganharam dinheiro e compraram máquinas para bater o açaí, novas. E hoje eles batem pra quem passa por ali, eles vendem em Almeirim, pras balsas. Porque as balsas que saem de Manaus para Belém e vice e versa, param ali, é um dos pontos de parada, então eles produzem açaí para quem está dentro da balsa. Então, é muito bacana, onde você percebe de fato que um lixo, aquilo não era um lixo que estava lá, era pura matéria orgânica, que ia ser decomposta, mais cedo ou mais tarde. Aquilo vira renda pra comunidade. Então, eu me lembro muito bem das meninas que eu via lá, eu fui convidada pras escolas, eu vi meninas maravilhosas, você percebe aquela beleza nativa, da gente achar que só tem gente bonita nas capitais, esquece, imagina. A beleza está em todos os lugares, a gente precisa ver. Então, são momentos que eu tenho também de felicidade verdadeira, de saber que eu tô num lugar onde nosso trabalho pode e é bem-visto, é recepcionado. Não quero invadir o lugar de ninguém, não, a gente quer é contribuir para que a Amazônia se mantenha de pé, evitando o desmatamento. A gente precisa crescer um pouco mais a 100% Amazônia, pra gente chegar em mais mundos, dentro da Amazônia. Mas a proposta da 100% é, de fato, toda essa produção da sócio biodiversidade, que hoje está mais voltada a produzir produtos a partir de frutas, de sementes, de casca, tem outras coisas que você pode pegar da Amazônia. Folhas, que são renováveis, mas que pelo contrário. Você manter a floresta em pé, porque o lenho é muito difícil de retornar, a árvore lenhosa, ela demora. Os projetos de madeira, você tem talhões de dezoito anos, então você aproveita um talhão aqui, você tira madeira que só vai voltar daqui a dezoito anos. Olha a diferença! Tô falando de produtos que todo ano voltam, ano que vem tem mais folhas de novo, tem mais sementes, porque todo ano as árvores jogam aquela quantidade de sementes. Então, você tem que saber tirar, claro, uma quantidade certa, você não tira tudo. Você tira aquilo que a natureza nos dá, mas que a gente ainda precisa medir tudo isso, mas a gente ainda está longe de chegar num momento de exaustão desse modelo, porque ele nem foi implementado ainda. Hoje a madeira ainda vale mais, a soja ainda vale mais. E porque existem de fato outros modelos, que a gente precisa trabalhar e mostrar. O mais importante é isso: você tem uma evangelização de décadas, falando que a soja dá dinheiro. Você vai pro caboclinho que tem dinheiro, anda de Hilux lá no interiorzão, ele vai colocar aquilo que ele ganha dinheiro, que ele conhece. Então, se chega aquela empresa grande, que vai ganhar dinheiro se ele colocar o rebanho, porque vai vender os insumos, é claro que ela vai falar. Então, a gente tem acho que um papel duplo aqui, a gente vai ter cada vez mais um papel de educação, educação para sustentabilidade, que às vezes é um nome muito lindo, que as pessoas falam: “É, legal. Não sei nem o que é isso”. Tem que mudar o nome, a gente tem que trabalhar uma comunicação que a pessoa se engaje, não só ache que é legal, sustentabilidade é pros outros, não é pra mim, né? Sustentabilidade começa em casa e não é só a história de jogar o papel no lugar certo. Não, é o engajamento a nível de comunidade mesmo. Só que, se eu tenho um produto, se eu tenho uma proposta de valor, onde você está consumindo e, com a sua compra, você está, de fato, fomentando esse tipo de projeto, como o da 100% Amazônia, que é a floresta em pé, então já está valendo, né? Então, eu falo que, nesses doze anos de empresa, a minha jornada de empreendedora se tornou uma jornada missionária. Virou minha missão, daquilo que eu tinha nos meus dezoito anos, que eu queria ser missionária, hoje eu sou missionária e eu não tinha nem me dado conta. Foi uma menina que me falou, uma colaboradora nossa, super querida, que já está com a gente há oito anos, falou: “Dona Fernanda, a senhora percebeu que a senhora é missionária da Amazônia? (risos) Pois é, não é? Porque, de fato, saiu a Fernanda pessoa e entrou a mulher com uma missão. E é essa a missão. Então, você ser bem-sucedida é, basicamente, uma consequência. Ganhar dinheiro, aliás, é uma consequência de você fazer um trabalho bem-feito, de você cumprir a sua missão, você buscar cumprir sua missão e entender que essa missão nunca termina. Ela só precisa ter cada vez mais engajamento da sociedade e eu até falo: “Copiem a gente, façam em outras regiões”. Ali e aqui, porque a gente também só tem um espaço de trabalho que é limitado hoje, dentro da nossa estrutura. Vamos crescer? Vamos! Se o Jeff Bezos resolver investir na Amazônia de verdade, não só a Amazônia no varejo, mas naquela Amazônia da qual ele roubou o nome. Na boa, assim, claro, não deixa de ser um roubo, né? Um roubo que não envolve dinheiro, mas ele se aproveitou da reputação da Amazônia de verdade, para gerar tráfico para a empresa dele. Talvez a gente chame isso de roubo ou não, mas ele está perdoado. Agora, só precisa investir nos lugares certos. E, de fato, gente, não existe certo ou errado aqui, porque o que era certo nos anos 1980, hoje está completamente errado. E pode ser que, daqui a vinte anos, esse modelo que a gente acredita que seja o melhor, talvez não seja. Talvez exista outro modelo, mas a gente busca aquilo que é bom pro planeta, porque a gente sabe que o que for bom pro planeta, vai ser bom pro ser humano. E não o contrário. Essa é a minha ideia: a gente primeiro precisa cuidar do planeta, para depois cuidar do ser humano e não só do ser humano, porque são as duas coisas que trabalham também e precisam. Então, quando eu falo impacto socioambiental, eu deveria falar sobre impacto ambiental e social. Mas essa é, basicamente, minha visão hoje de mundo e de fato me tornei uma missionária da Amazônia, neste sentido. E transformando, de certa maneira, as comunidades que estão e que moram na Amazônia, em guardiões dela. Não simplesmente vivendo dela, mas entendendo que, se elas vivem na Amazônia, elas cuidam da Amazônia. Então, qual é a melhor maneira de cuidar? E disso, a gente não tem receita pronta. A gente tem necessidades e a gente tem realidades muito diferentes, em cada comunidade que a gente vê. Inclusive em Belém. E esse casarão aqui que vocês viram um pouco, se conecta nisso, porque ele traz um pouco dessa deslumbrância que a gente tem aqui, pra dentro da cidade, que hoje é muito concreto. Belém é quente pelo concreto, aqui no Centro não tem árvores, porque as ruas também são muito próximas uma da outra. Então, é muito isso.
P/1 – Fernanda, e como funciona a 100% Amazônia, hoje? E quais produtos vocês exportam?
R – Nossa, hoje a gente tem um portfólio de cinquenta produtos, de 25 espécies amazônicas. Então, começa com açaí, claro, que ainda é o mais conhecido. A gente tem produtos de cupuaçu, as manteigas, das sementes, a polpa da semente, a gente busca trabalhar também dentro dessa ótica de economia circular, de aproveitamento máximo: você tem uma fruta você faz alguma coisa da casca, você faz alguma coisa da polpa, você faz alguma coisa da semente. Muitas vezes você tem, inclusive, da própria árvore, no caso do açaí, que a gente estava falando, você tem partes de casca que você pode usar pra fazer pó de Marapuama. Você tem aqui, o que a gente tem mandado também, o Cumaru, que a gente conhece como Fava Tonka, que é o cheirinho baunilha da Amazônia. A gente exporta também, para algumas empresas já exportamos, para empresas de cosméticos grandes, já exportamos para vários lugares, meio que não tradicionais, já exportamos para Madagascar, óleo de Andiroba. Na Amazônia a gente trabalha com um portfólio grande de óleos de sementes. Então, Andiroba, óleo de Pracaxi, óleo de Patauá, manteiga de Murumuru, tudo isso a partir de sementes. A gente tira óleos e manteigas também das frutas, óleos do açaí, também, como eu falei, a manteiga do Cupuaçu. Você tem o Tucumã, você pode tirar a manteiga da semente. A manteiga é um óleo duro, mas é um óleo e a gente tem também o óleo do Tucumã, que é da polpa, então, são diferentes. Tem ucuuba, que é fantástico, o ucuuba, que é a Virola, que a gente conhece, a madeira era extraída pra fazer cabo de vassoura. Você tem uma base vegetal com a semente de ucuuba, que é fantástica, o povo tira pra fazer cabo de vassoura. Então, acho que o maior problema que nós temos na Amazônia, é a ignorância das pessoas. Elas não sabem como ela é rica, se mantida de pé. Então, parte um pouco, também, do nosso trabalho aqui é, daqui a pouco, abrir a Escola da Floresta. Achar uma maneira, esse é meu sonho, a gente não tem ainda, porque a gente ainda é pequeno, mas de entender e colocar pras pessoas, principalmente no campo, desse potencial que a floresta em pé tem. Não é só açaí, pelo contrário. Se você pensar só em açaí, você vai ter uma monocultura, daqui a pouco. Vamos pensar o açaí, que a gente vê muito, o Inajá, ou o Murumuru no meio, ali. Murumuru, pessoal que não conhece quer tirar, porque é espinhudo. Eles falam: “Ah, atrapalha o pé, não é bom”. Não, precisa dele.
P/1 – Fernanda, nesses mais de dez anos, você consegue pensar qual foram alguns dos momentos mais marcantes e também os aprendizados e desafios de ser uma mulher empreendedora, na Amazônia?
R – Dois momentos muito marcantes foram o dia que a gente abriu a 100% Amazônia, porque ela só aconteceu, de fato, porque eu tinha uma companheira e sócia que falou: “Não, a gente consegue, abre”. Eu tinha um pouco de dúvidas. A 100% Amazônia é 50/50. Eu tenho 50% e a Jô tem 50%. E é uma parceria de vida e profissional que deu, está dando, deu super certo. Porque a gente fala que ela é a ordem e eu sou o progresso. O progresso é a caótica: “Vamos fazer, vamos ver”. Lembra que eu te falei? Eu sou muito da ideia, de coisas. Aí, quando a gente abre um campo novo, algo novo, ela vem arrumando, pavimentando, uma beleza. Agora a gente já tem o processo completo, então, funciona muito, porque cada uma vai pra um lado, existe muito, não só amor, mas muita parceria mesmo, porque não é simples. A gente chegou aqui, duas estrangeiras, nessa terra amazônica e, às vezes, as pessoas não levam a gente a sério. Então, foi muito importante, esse foi um dia muito importante. Outro dia importante: nós sofremos, ao longo do ano, em 2017, uma série de ações que a gente chama de by-passes. Nós tínhamos alguns fornecedores e a gente, como comerciais exportadoras, a gente acaba sendo intermediárias, a gente integra, mas dentro da cadeia, a gente está ali no meio. Nós tivemos duas ações contra os nossos clientes, que são duas empresas que nós trabalhamos há mais de oito anos, foram lá e fizeram propostas e nós perdemos 70% do nosso negócio em novembro. E a gente estava num projeto que estava crescendo bastante, mas a gente estava indo muito só pro lado do açaí. Então, eu estava um pouco incomodada e aí vieram essas duas empresas e fizeram uma tomada muito forte, tiraram da gente e foi um elemento catalizador muito importante, pra gente dar um passo que está sendo essencial para o que a gente está montando, que é o fato da gente falar: “Não, vamos agora ver quem é que vai trabalhar com a gente e vamos fazer uma empresa, vamos fazer uma indústria”. Porque até então a gente ficava: “Ai, meu Deus, não!” Mas a gente percebeu que a movimentação buscava isso, não conseguia transparência, a gente não conseguia estar no mercado como gostaria, aí acabamos fazendo dessa maneira: colocamos um projeto em 2018, pra pegar dinheiro e financiamento e demorou pra sair. Nos primeiros seis meses, nós tivemos um probleminha de legalização dentro do terreno. Em 2019 saiu a aprovação, foi super importante pra gente, mas a gente começou a construir mesmo, com dinheiro na mão, em 2020. Então, um dia muito importante foi o dia em que a gente foi colocar a placa de 100% Amazônia, no terreno. Inaugurando, de fato, o terreno, como sendo o terreno de construção do nosso projeto. Foi um dia que a gente chorou, a gente riu, a gente pulou. Então, um dia muito importante e, claro, o dia de abertura da empresa também vai ser. São momentos muito importantes aí, da nossa vida. E a gente está num processo tão importante, porque a gente vê também a questão de pessoas que entendem, que se conectam com o que a gente está fazendo, das mentorias. Então, a própria EY, acho que foi um momento muito importante também. Na verdade, quando eu me inscrevi no programa, eu não imaginei o impacto que ele poderia causar, ele foi um programa, está sendo ainda, porque por mim ele não acaba nunca. E a amizade que a gente faz não tem data de validade, é o que eu falo, a amizade não tem data de validade. Então, as pessoas se conectam não porque é a Jô e a Fernanda, mas porque é uma causa que vale a pena ser lutada. Então, pra gente, esse tipo de mentoria que a gente recebe de pessoas que olham nosso negócio e veem com os olhos do Business as Usual, mais para o bem, vamos falar assim e eu falo para o bem comum. A gente fala para o bem comum, não devia nem existir outro tipo de bem, o bem comum, o bem da comunidade, o bem da natureza, fortalece muito a gente, porque aqui na Amazônia, às vezes, a gente se sente só, porque pouca gente faz o que a gente faz, então, acaba sendo meio que um patinho feio. Daqui a pouco a gente vai virar cisne, mas hoje já estamos nesse processo de sair do patinho feio. Mas durante um bom tempo as pessoas olhavam: “O que? Como assim?” Então, a gente ficou muitos anos também só nesses processos com empresas de fora e agora, com a abertura da fábrica, com essa nossa exposição na mídia, essa visibilidade maior que a gente tem ganhado ao longo do tempo, inclusive dentro, com a EY, é muito legal. Então, eu tenho muito a agradecer, acho que é uma troca legal, sabe? E eu falo troca mesmo, porque eu tenho certeza que a gente trouxe pra EY também um novo olhar, que ela precisava, em relação a isso. Eu me vejo muito como uma empresária ativista, ou uma ativista que virou empresária. As duas coisas. Na verdade, eu sou mais uma empresária que virou ativista na minha trajetória, se a gente entender, é muito isso. E o ativismo vem por causa desse inconformismo que a gente tem, de achar que está tudo bem, de achar que a gente pode ser rico num país de pobres. A gente não pode ser rico num país de pobres. Uma vez eu vi uma frase que me chamou demais atenção, em algum lugar, que era assim: um país rico, um país desenvolvido, é aquele em que os ricos andam de transporte público. E aquilo me tocou demais e não é a realidade do Brasil. A realidade do Brasil é de separação, de segregação, é de colonialismo às avessas e a gente tem que mudar isso e a gente pode mudar. E essa turma que vem no futuro tem um olhar diferenciado. Então, por um lado, eu tenho um pessimismo de às vezes achar que a gente está perdendo... sou, faço parte, também sou membro da Aliança para Restauração da Amazônia e a gente, às vezes, acha que a gente está perdendo. Hoje a gente está num momento meio que de perdendo, mesmo. Mas será que a gente consegue mudar? A gente consegue mudar com engajamento, a gente consegue mudar com educação, talvez com um governo que não seja esse que tem agora, que entende que você consegue ser rico preservando a natureza. Pelo contrário. O que aconteceu antes não é, os que vieram antes não são, pra gente, esse capitalismo que veio antes não é e nem deve ser um reflexo do que a gente vai fazer pela frente. Deveria ser, sim, lições aprendidas, como a gente vai fazer daqui pra frente. Então, a 100% Amazônia não é ONG, tem gente que acha que é, mas o lucro que ela dá ela reverte dentro dessas ações e ela existe pra deixar um legado.
P/1 – Fernanda, e como é seu dia a dia e o que você faz, nas suas horas de lazer?
R – Como é meu dia a dia? Meu dia a dia cada vez muda, mas, assim, tem o dia a dia pré pandemia e o pós pandemia, qual você quer? (risos) Eu, durante muitos anos, trabalhava incessantemente, doze, quatorze horas por dia, porque eu tinha pressa, tinha muita coisa pra fazer e a pandemia, pra mim, foi um marco muito grande, porque ela mudou minha vida radicalmente, talvez mais do que todo mundo, porque eu viajava, todo mês eu estava viajando, estava em algum lugar, estava fazendo alguma coisa e, no período de pandemia, a gente, inclusive, se mudou pra essa casa, então eu hoje faço muita reunião virtual, dei um tempo agora, até uns dois meses pra cá, porque eu entrei num processo de esgotamento forte e comecei a ter crises de pânico... pânico não, ansiedade, mais que pânico, quando tinha que trabalhar, eu falava: “Não é possível, porque eu tô sentindo isso, eu amo o trabalho que eu faço”. E é incrível como a saúde mental era coisa que eu falava: “Imagina!” Até que me pegou em cheio. Então, eu tô nesse processo ainda de cura, de entender que preciso me cuidar e ainda sou meio sloppy, ainda sou meio tosca com isso, mas agora já tô fazendo yoga, então a gente fala muito com o cliente, a gente se organiza muito. Eu entendo, assim, hoje: eu nunca falei que eu era CEO, porque eu acho que esse negócio de CEO, que palavra mais besta essa, alguns adoram, a Forbes adora, né? A turma aí. Mas é uma palavra emprestada, de um mundo que não me pertence e do qual eu não quero fazer parte, mas se a gente não usar, às vezes, a gente perde, as pessoas não sabem direito o que a gente faz, então, o ser humano precisa categorizar tudo. Então, o que é aqui, a Casa Amazônia, é hotel? Sim e não. Não é hotel. É galeria? Tem galeria também, mas não é galeria. O que é, né? É um espaço de conexões, mas como assim? O que é espaço de conexão? Então, é muito interessante. E isso acontece também quando a gente leva isso pro nosso trabalho. Então, durante um bom tempo eu falava, ainda falo que eu sou diretora comercial, porque o Comercial é mais ligado, faz um pouquinho mais de sentido pra mim, mas eu percebi, justamente de uns dois anos pra cá, que eu tenho uma função estratégica muito forte, sou eu que defino a estratégia da empresa, pra que lado ela vai, eu que busco os novos projetos e eu tenho feito mais articulações. Então, eu saí do campo comercial, ainda sou, ainda faço muito, hoje eu passo mais pras meninas fazerem e tenho ido mais pra parte de articulação, de mostrar a 100%, de quem ela é, como ela é, a que ela veio, sou porta-voz. Então, como porta-voz e como aquela pessoa que carrega a tocha, que eu já carreguei, porque a Nissan, na época, me convidou pra carregar a tocha. Tem até um vídeo bem legal, a Nissan fez, na época das Olimpíadas. Muita gente carregou a tocha e a Nissan, como era uma das patrocinadoras, me convidou pra carregar a tocha, então ganhei uma tocha aqui, carreguei a tocha e eles fizeram um filme sobre a minha vida, das pessoas ousadas. É um filminho muito legal, tem no Youtube e ele fala muito isso, nesse vídeo. Que eu vim aqui, saí de São Paulo e vim pra cá, porque eu sou ousada, que eu quero fazer diferente, sempre quis fazer diferente. Mas, voltando ao CEO, a minha vida muda muito, meu dia a dia. Tem dias que eu trabalho até bem tarde, eu trabalho muito bem sozinha, porque eu preciso pensar, então acabo estendendo meu horário, de manhã não acordo tão cedo. E, às vezes, eu tenho clientes visitando, não agora, muitos clientes que a gente leva pro mato, a gente leva pra ver as comunidades, a gente se reúne bastante também com comunidades, dentro do programa e hoje eu tô mais ligada em trabalhar métricas. Porque a gente precisa de entendimento, nós estamos crescendo, a gente está contratando, mas a gente precisa saber qual o impacto que a gente causa, que a gente tem. Então, eu estou muito nessa pegada hoje, como CEO, de levar, de puxar a pauta da 100% Amazônia e de ser a porta-voz dela. Então, não estudei para ser CEO, não fiz MBA, não. Então, eu acho, de fato, que essas pessoas que estão adiante, a gente quando é fundador, no caso cofundadora, a gente é CEO, mas a gente tem que aprender e a gente aprende no dia a dia. Eu só comecei a usar esse título CEO, quando eu entendi que ele fazia sentido pro que eu estava falando hoje, o que eu tô fazendo hoje, me apresentando num lugar, mas eu me sinto ainda aquela menina que quer salvar a floresta, sabe? Neste sentido não me conecto muito com o C-Level, que o pessoal fala tanto. Gente, são só categorizações, ninguém é, de fato. Eu sou a Fernanda, como o Steve Jobs é o Steve, o Bill é o Bill, né? Claro, tem ali os trabalhos que eles fizeram e tudo que eles alcançaram, que é formidável por um lado, os outros a gente não conhece tudo que eles fizeram. O Bill Gates está por aí, não é uma pessoa, digamos, perfeita, teve processo, inclusive de separação, pesado. São pessoas, somos todos pessoas, todo mundo nasceu de um ventre e todo mundo vai pro pó, então, não tem ninguém melhor que o outro, não tem. A gente começa do mesmo jeito e termina do mesmo jeito, não tem ninguém que vai pro céu, sem morrer. (risos) Não é? Você tem que passar pelo inferno, pelo inferno quero dizer, você tem que passar pela terra, pelo pó, você tem que morrer. Então, eu acho que o que eu aprendo com a 100% Amazônia é que eu posso deixar meu legado. Essa, talvez, é a grande diferença dessas pessoas que são diferentes: elas querem deixar algo que elas começaram, pra posteridade. O Henry Mesquier, acho que não sabia que ia fazer o que ele ia fazer, Não sabia. E essas grandes empresas estão hoje num momento bem complicado, porque elas perderam essa conexão da ancestralidade delas, elas perderam. Então, antes de qualquer coisa, de ser uma empresa de acionistas de negócios - a Loreal a mesma coisa - quem são, quem é? Quem é essa empresa, quem está por trás dessa empresa? E eu acho que a gente está num momento do mundo em que as pessoas estão olhando mais para outras coisas. Nem todo mundo, claro. Tem um grande mentor, tem uma pessoa que eu amo muito, que é o Antônio Napoli. O Napoli é meu mentor, ao mesmo tempo que ele é uma pessoa que eu sei que eu mudei a vida dele, assim como ele mudou a minha. Ele é vice-presidente de uma empresa de uma consultoria muito famosa de estratégia chamada Kaiser e há muitos anos, quando eu o conheci, foi num projeto, inclusive, também de uma mentoria, que a gente ganhou da Endeavor. A gente se encontrou e a gente se conectou na hora e ele veio pra mim e falou: “Fernanda, se você quiser, eu te faço um plano estratégico. Se fosse pra Petrobrás, eu cobrava duzentos e cinquenta mil, mas pra você eu faço de graça”. (risos) E eu falei: “O que? Sério? Claro!” E realmente foi uma data que foi incrível pra gente, que foi quando a gente fez nosso primeiro plano estratégico, em 2016, foi quando eu comecei a ouvir todas essas coisas de ancestralidade, de se conectar à história, de entender qual é o nosso papel e, quando ele saiu daqui, isso palavras dele, ele falando, ele voltou pra empresa dele, ele olhou, das dez maiores contas que ele tinha, nove estavam na Lava Jato. E ele olhou e falou assim: “Não é possível que eu estou usando meu talento para fortalecer empresas que têm esses processos internos”. Ele fez uma devassa, as pessoas foram saindo, ele deixou a empresa, ele foi buscar a essência dele, trabalhou numa fundação, foi fazer um monte de projeto, se esgotou e começou a montar a Kaiser de outra maneira, completamente diferente. Aquelas pessoas, antigamente, que ganhavam, tinham moleques recém-formados que estavam lá ganhando 25 mil e ele falava: “Eles não se conectam naquilo que precisa, é só dinheiro, é só dinheiro”. Então, essas pessoas foram saindo naturalmente, porque a empresa estava… e é tão bacana a gente poder olhar essas grandes mentes e ele é uma das grandes mentes da estratégia do Brasil e saber que, de alguma maneira, ele olhou pra mim e viu o que a gente fazia e investiu na gente. Ele até fala, isso eu acho muito engraçado, que quando a EY escolheu a gente, ele falou: “Mas a EY demorou, eu já estava com vocês em 2016”. (risos). Então, é claro, é uma troca, a gente está aqui muito pra trocar, para fazer as coisas diferentes e cada um dá o que tem e recebe o que pode e é, nossa, fenomenal isso. Se a gente entende que a gente está aqui pra aprender e que todas as pessoas, sem exceção, que passam na sua vida, vão impactar sua vida, às vezes, de maneira surpreendente, muito mais fortes que outras, claro, mas que você chega, talvez, no fim da sua vida e fala: “Uau, que vida legal que eu tive!” (choro) É isso que eu busco, é isso que eu busco, eu busco, de fato, acho que deixar esse mundo um pouquinho melhor. E se as pessoas podem se inspirar no que eu fiz - aí eu tô olhando pra trás - e no que eu busquei e seguirem adiante, (choro) já está valendo. Ave Maria, de novo. (risos)
P/1 – Tudo bem! (risos) Eu ia te perguntar como você conheceu a Jô, como vocês se conheceram, como vocês se encontraram, como foi?
R – Ai, a Jô apareceu na minha vida em Viena. Apareceu em Viena, 2015... aliás, 1995 e ela tinha um outro relacionamento lá e a gente se conheceu, a gente era amiga, a gente ficou amiga, todo mundo era amigo. E ela acabou se apaixonando por mim naquele período, onde era ainda uma estudante, a gente tentou ficar junto, não funcionou. Sabe quando parece que você está num momento que não é pra ser? A gente tentou, veio pro Brasil, ficou um ano e ela acabou voltando pra lá. Ela ainda tinha esse relacionamento. E a gente se separou por dez anos, eu vim pra cá em 1997, praticamente, pra cá pro Brasil. Ela ficou lá até 2003, 2004, até um pouquinho mais e voltou pra cá e, depois que esse relacionamento dela terminou, um tempo depois, eu meio que me conectei com ela. Isso eu já estava morando em Belém, eu vim pra cá em 2006, 2007 eu acho, no final de 2007. A gente se conectou, eu a procurei, fui olhar lá, o pai dela tinha uma empresa de aluguel de imóveis, uma locadora, empresa imobiliária. E aí eu vi, eu entrei não sei por que, eu estava viajando nos Estados Unidos e entrei, falei: “Como é que anda a menina?” E entrei lá na imobiliária e estava a foto dela. Aí, de lá mesmo, eu estava em Los Angeles, liguei pra ela, a gente ficou batendo um papo, o papo foi o dia todo de papo e a gente se reconectou, ela estava muito machucada do final do relacionamento que durou dezesseis anos, entre esses vais e vens, teve esse affair comigo, mas que realmente não era pra ser naquele momento. Eu a convidei pra vir pra cá, eu já trabalhava na MonaVie nessa época, aí ela se preparou, ela veio passar um tempo aqui, ela falou: “Vou vir pra cá, vou ver como é que é, se eu gostar, eu vou”. Então, ela veio, passou mais ou menos um mês e falou: “Gostei, vou morar contigo”. E ela voltou pra Flori, ela é de Florianópolis, voltou, arrumou as coisas lá e falou com pai dela: “Pai, eu vou vier minha vida agora”. E veio pra cá. Foi quando começou tudo. Eu ainda trabalhava na MonaVie, quando ela veio. E ela ficou aqui comigo, me ajudava em algumas coisas que eu tinha que fazer e aí, quando de fato, em 2009, porque eu acho que ela veio mesmo em 2008, ela veio em maio, se não me engano. Aí, em 2009 eu fui demitida e: “Puxa, o que vamos fazer?” Então, ela participou muito desse meio e eu sozinha não teria aberto a 100% Amazônia. Então, a gente, ao longo desses anos, foi mudando também. Então, eu a conheço há muitos anos, mas, de fato, a gente casou ano passado. Fizemos a primeira cerimônia de casamento aqui, foi uma cerimônia linda. Eu só chorava, gente, porque vocês estão vendo a manteiga derretida que eu sou. Eu falei: “Imagina, não sei o quê”. A gente preparou o casamento em três dias, foi shiftttttttttt, assim. Foi um negócio de louco, casamento instantâneo. Tem gente que prepara meses. A gente conseguiu um buffet. A sorte, também, com o Covid estava todo mundo meio parado, da parte de casamentos. Então, conseguimos um buffet maravilhoso, tinha umas vinte pessoas, a gente aqui tem uma área ali embaixo, que é tipo um auditório. Então, a gente fez aqui. A gente já ia casar no cartório, só que um amigo meu falou: “Vocês estão loucas? Vão casar no cartório? E a Casa? Traz o juiz de paz, pra casar aqui”. E foi isso que aconteceu: meus irmãos já vinham e os meus sobrinhos também vinham, de qualquer maneira, passar um tempo aqui. Então, a gente acabou se casando, foi super bonito. Só tinha amigos. A gente não tinha música, nada. Então, quando a gente entrou, eles começaram a cantar pra gente: “Eu sei que vou te amar...”. Foi lindo, lindo e aí pronto, que eu desatei no choro, aí que eu não conseguia parar.
P/1 – Pra você, o que é ser uma mulher empreendedora?
R – Pra mim, eu acho que, no meu caso, não é qualquer empreendimento. Ele tem um impacto ali, então, são duas coisas importantes. Pra mim são duas coisas que são bastante importantes, no nosso caso, no meu caso, o empreendimento não é só pra ganhar dinheiro. Senão você bota o negócio no Youtube e fica naquela renda passiva. Acho que você tem que ser um elemento catalizador, tem que promover mudança. Então, pra mim, os elementos importantes são de inconformismo com o que está acontecendo e que você sabe que você pode fazer alguma coisa e você parte para um plano de ação, não fica só reclamando da vida. E outra coisa é aproveitar as oportunidades que vem à sua frente. Então é: vigiai, estar sempre vigilante. Você tem que ter um pouco dessa ideia de que você pode ser um elemento de mudança, se você prestar a atenção no que está acontecendo em volta de você. É meio isso. São elementos importantes. O meu estilo, não sei se é o caso de ser mulher ou não, mas eu tenho um elemento de ânima, que em geral é muito conectado com características masculinas, então eu tenho esse ânima muito forte comigo, de fazer acontecer. Muito do que eu já trabalhei na minha vida sempre foi em volta de homens, eu trabalhando em outros lugares. Na Krupp eu era a única mulher num grupo de setenta pessoas de vendas integradas. E a Basf já era menos, mas aqui no mercado do açaí, só homem. Eu era uma das poucas, então, eu acabei sempre escolhendo esses trabalhos onde tinham mais homens, sei lá por quê. Mas eu fui me conectando com esse lado animus, nem sei agora se é o animus ou anima, já troquei, mas tem um que é de homem e tem um que é de mulher. Acho que o animus é masculino, né? Ou é feminino? Não sei, olha aí, depois você me fala. Tem o animus e tem o anima, acho que o anima é de mulher, não sei. Bom, interessa isso que eu estava falando: sempre fui mais das características masculinas e se conectar com a minha mulher foi mais recente. Não porque eu me veja como homem, eu não me vejo, eu me vejo como ser humano, mas esse projeto, por exemplo, da sororidade das mulheres, claro, tem coisa que eu acho muito legal, que a gente se ajuda muito. As mulheres têm características muito diferentes, não pode botar todo mundo na mesma caixinha, porque não é. Você tem mulheres que vão mais pro lado da família e o meu lado sempre foi mais de lutadora, sabe? De falar: “Não, não dá pra ser assim, vamos fazer diferente”. Mais de inconformismo, mesmo. Sair do que a gente conhece hoje e integrar mais as pessoas, aceitar as pessoas como elas são, sabe, de incluir, mas gente, tudo isso sempre é uma jornada. Por isso eu acho tão legal. Olha, você vai ver: a mulher, quando faz quarenta anos, é outra pessoa, ela cria uma capacidade de enxergar o mundo de outra maneira. E isso me ajudou demais, inclusive a tomar decisões para onde a gente queria ir e como a gente deveria ir. Importantíssimo quarenta anos. Pra mim, se você falou em datas, fazer quarenta anos mudou radicalmente a minha vida, mudou a Fernanda. A Fernanda que eu era com trinta é completamente diferente da Fernanda que eu sou hoje.
P/1 – Fernanda, e o que a 100% Amazônia representa, na sua história?
R – Vixe, eu não falei já? (risos)
P/1 – Falou bastante, mas pode falar mais, se quiser. (risos)
R – Claro, a 100% Amazônia é o jeito de eu impactar o mundo. É o jeito da gente fazer negócios, de usar tudo aquilo que eu aprendi no campo da universidade, no campo de vida, mas mais na universidade mesmo, no meu conhecimento e na aplicabilidade dele, né? A economia, aliada aos projetos internacionais, porque a minha formação na Áustria é de… a gente chama de Ciências Comerciais, Wirtschafts Forscher. Espera aí, ixi, Cacilda, agora esqueci, agora me sumiu o nome em alemão, mas é Ciências Comerciais, Wirtschaftswissenschaften. Pronto, agora. E o que eu acho muito legal na 100% Amazônia é que realmente me completa no que eu faço, sabe? É muito legal, porque aqui na Amazônia eu consegui me reconectar em coisas que são importantes da minha vida, da minha ancestralidade. Eu era uma menina muito urbana, ainda sou urbana, não sou daquelas que, apesar de gostar de viajar e de ver, conhecer as outras pessoas, mas eu me conectei muito com essa minha ancestralidade dos meus avós, do meu avô, que era engenheiro agrônomo, dos meus tios todos, da parte do meu pai, que são engenheiros agrônomos, que cresceram… então, dos meus avós, dos meus tios, que são engenheiros agrônomos, dessa parte rural, vamos falar assim, da família, porque eles tinham, todos eles, fazenda. Era São Benedito, era Caeté, era Dona Carolina e eu ia lá, meio que me conectava. Então, meu tio tinha produção de café lá e eu ia no cafezal. Gente, hoje eu acho fantástico isso, então eu resgatei um pouco desse meu trabalho, sabe? De entender que a gente está num mundo que, se não tiver comida, acabou tudo, se não tiver alguém plantando, esquece. Não tem mundo, não tem nada, então é olhar para aquilo que de fato interessa. Que é lá no começo, o que interessa é o começo da cadeia. Uma vez eu vi, coisa doida, na Monsanto, uma propaganda da Monsanto, eu num hotel nos Estados Unidos, aquela coisa linda, o fazendeiro na Monsanto: “A gente gosta tanto de você”. E eu olhando aquele anúncio lá, muito bonito por sinal, na verdade o fazendeiro é o cliente da Monsanto, mas eu comecei a perceber, trazendo isso pra realidade nossa, brasileira, que a vida começa no campo. A vida, no planeta Terra, começa no campo. Só que o campo é o lugar mais desprezado que tem. Você vai lá pro campo do fazendeiro, você vai comprar o quilo da banana, eu vou comprar uma banana na Alemanha, vou comprar um quilo – eu já comprei, por isso que eu sei - em Tóquio, vou lá, entro numa feira, numa lojinha de conveniência Seven Eleven, que tem lá, peço uma banana, custa dez reais uma banana. Vai comprar o quilo da banana lá, dez reais você leva uma caixa desse tamanho, cinquenta quilos, olha a diferença! Onde é que fica todo esse dinheiro? Linha produtiva, cada um vai tirando cada vez mais, mais, mais, mais. Então, me conecta, 100% Amazônia me conecta com aquilo que é importante, com aquilo que é essencial pra vida da gente. Esquece o resto. Então, eu me tornei menos consumidora, como pessoa consumidora. Você não compra tanto. Nossa, nessa pandemia eu estou há um ano e meio sem comprar roupa. Estou sentindo falta? Não. Eu consumo mais coisas que me conectam com as pessoas. Isso sim, nesse sentido. Eu consumo menos coisas tangíveis, que geram, inclusive, resíduo e o meu consumo é com mais experiências com arte, com música, com leituras. A 100% Amazônia, de alguma maneira, me proporciona isso, é um novo olhar sobre o que é o mundo, ela me faz pensar. Ela me conecta com pessoas bacanas, gente que se importa. Essa casa, a Casa Amazônia, que não deixa de ser um empreendimento nesse sentido, me conecta com gente que se importa, que não vive por prazer apenas, vive para, né? A gente é muito antropocêntrico, é algo que faz bem pro ser humano. Eu aprendi, por exemplo, que o ser humano é uma praga nessa terra. (risos) A gente pode não ser praga, mas hoje a gente se comporta como uma praga. Nosso comportamento de consumo desenfreado, de senescência programada. Você tem um computador que pode durar vinte anos, mas eles botam tanto software, tanto upgrade, que daqui a dois anos você já não consegue usar. Então, essa senescência programada, me ajuda a acreditar no ser humano de volta. Isso eu acho que é o elemento principal (risos) do que é a 100% Amazônia pra mim. Ela consegue me reconectar naquele ser humano que realmente é importante pro planeta. Naqueles processos que são importantes pro planeta. Naquilo que vale a pena ser vivido. E ela é uma empresa que trabalha os dois lados. Ao mesmo tempo que ela está muito próxima do campo, ela também está muito próxima do consumidor final. E ela integra esses dois, ela mostra a necessidade deste aqui, pra este aqui. E a gente aqui no meio, como integradora. Então, isso é muito bacana. É até legal a gente fazer essa entrevista, porque é sempre bom a gente estar lembrando de novo porque a gente existe, pra que a gente existe, quem somos e a quem servimos. Isso é muito legal.
P/1 – Fernanda, a gente está chegando agora no fim, tenho só mais duas perguntas, a primeira delas é se você queria acrescentar alguma coisa que eu não tenha instigado, se eu deixei passar alguma coisa que você queria falar e também se você queria deixar uma mensagem.
R – Nossa, você falou um monte de pergunta agora. Várias coisas, mas eu vou lembrar. Não, eu acho que eu sou uma coleção de experiências que muitas pessoas acabaram me proporcionando, né, por causa dessas conexões que a gente fez e a Fernanda não é nada sem toda essa história, essa trajetória de vida que ela tem, das pessoas que entraram, algumas que estão e algumas que já saíram da vida da gente. As pessoas da 100% Amazônia que começaram, desde aquela pessoinha lá, a primeira pessoa que trabalhou com a gente, que foi a Edvânia, que era uma menina que veio de coletar peixe. Linha de produção de peixe, filetagem, que a gente conseguiu dar um encaminhamento. O sonho dela era trabalhar no comércio, ela conseguiu, ela se formou, seguiu a trajetória dela, né? Das pessoas que ainda estão com a gente, a gente tem mulheres incríveis que são nossa mão direita, mão esquerda, pé direito, pé esquerdo. A Milene, a Raquel, a Carina, que estão com a gente já há um bom tempo, a Daniela, pessoas tão importantes, nas quais a 100% Amazônia permeia a vida delas e elas permeiam também a trajetória da 100% Amazônia, são importantes. E outras que estão chegando mais novinhas, a Vitória, as meninas do Vendas hoje, a Jennifer, a Suelen, que começou estagiária. A Carina começou estagiária, com a gente. Estava até no acidente, a gente teve um acidente em 2012, nós tínhamos oito pessoas aqui dentro. Teve uma foto do dia do acidente, (risos) inclusive. Em 2012 eu tinha ido viajar, eu estava em Cuiabá, a gente estava fazendo um curso de PNL, eram três dias, eu estava nos dois primeiros, no terceiro dia eu fui viajar. Então, o pessoal estava voltando desse curso, era até tarde da noite, já, porque era um curso noturno, então a gente estava voltando pro escritório. Naquele época o escritório era um home office, então estava voltando pra casa também e a Jô sofreu um acidente muito forte, a cinco quadras do escritório e, desse acidente, das oito pessoas que estavam, que trabalhavam com a gente, incluindo a gente, três foram parar no hospital e duas foram cuidar das pessoas. Então, sobrou três pra ficar trabalhando. Então, foi um período, assim, muito complicado, porque era final de ano, eu estava em Cuiabá, não conseguia voltar, não sabia o que estava acontecendo. Então, a Carina era uma dessas pessoas que estavam no acidente. Então, olha, 2012, então, ela ficou aqui. Ela saiu por um tempo, porque ela ficou quase quatro meses de cama, porque ela sofreu uma fratura... como é que chama? Na bacia, você não pode levantar, tem que ficar deitada. E ela saiu, foi trabalhar em outros lugares e a gente a trouxe de volta. Então, são pessoas que estão sempre permeando, é tão importante a gente entender as trajetórias das vidas que se cruzam ao longo da vida. Meu pai e minha mãe, que sempre me apoiaram demais, sempre foram ali, presentes. A minha mãe que, hoje, uma coisa só que eu acho assim, eu não vou chorar, (risos) mas meu pai não viu esse meu sucesso, ele morreu, eu tinha 33 anos. Então, acho que ele está lá em cima olhando, mas teria sido legal. Mas é legal a gente ver a mãe da gente orgulhosa, né, da gente fazer algo que vale a pena. Então, é bem bacana a minha família toda, é uma família, como eu falei já no começo, de muito amor e continua sendo. Tenho um irmão que mora nos Estados Unidos, que é o Conrado, já há muitos anos, acabou fazendo a vida dele lá, mas são pessoas muito importantes. A 100% Amazônia reúne um pouco disso tudo. Então, acho que isso. Agradecer vocês, claro, a EY, que está propiciando a gente deixar um pouco dessa história, que é uma história bacana. Eu acho uma história bacana. Se eu tivesse, talvez, ouvido histórias como essa, mais nova, eu acho que eu teria sido empresária mais nova também. Então, faz parte também da nossa trajetória abrir os olhos das gerações que vêm depois da gente. Então, o trabalho de vocês é um trabalho muito importante. Obrigada também.
P/1 – Eu ia perguntar exatamente isso, sobre o que você achou, essa é a última pergunta: o que você achou de ter participado, de ter contado um recorte da sua história de vida, da sua trajetória? O que você achou de ter compartilhado isso com a gente?
R – Acho que me anima a escrever minha biografia. (risos) Porque eu acho que vai ser um processo bem intenso. Porque você revisitou, é claro, é bem um recorte mesmo, se pegar ano a ano tudo que eu fiz, tudo que eu pensei, tem muita, muita, muita coisa. Os períodos de Viena são períodos com muitas coisas acontecendo, muitas experiências, muitas resoluções, também. Então, é interessante, porque você está se conectando de novo com a sua história. E é importante, a gente não pode esquecer nossa história. Um grande problema do nosso país é que é um país sem memória e não se fala nos grandes, no que se deixou de legado. Quem conhece o legado de Juscelino Kubitschek, quem conhece o legado do Barão de Mauá, do Barão de Itararé. Pessoas, claro, a gente tem que entender o contexto delas, alguns foram escravagistas, né? Mas isso não tira o mérito do que eles trouxeram de bom. Então, é importante a gente ver, não só eles também. Entender, sei lá, um Dom Pedro II, que tinha um amor profundo por essa terra Brasil. O que é o amor, o patriotismo? Hoje o patriotismo está muito mal representado, (risos) na boca das pessoas. O que é isso? Então, tudo isso faz parte, a história é essencial na vida da gente. Eu até queria ser historiadora, no começo, antes, sei lá, primeira vez que eu fui buscar, a gente nem falou nisso. Mas meu sonho era ser arqueóloga, eu queria ser arqueóloga, isso eu quejria. Isso eu fui lá na USP, falei com arqueólogo, aí eles me falaram tão mal: “Ah, porque ______”. Aí eu acabei perdendo, mas eu queria ser arqueóloga. Então, a história é algo que permeia muito a minha vida. As histórias, as culturas das outras nações, me interesso muito na formação das nações soberanas, quem era o que. Como se escrevia, porque, a gente aprendeu História do Brasil. Mas essa história que a gente aprendeu no colégio, será que é a História do Brasil, mesmo? Ou ela tem um quê contado por um patriarcado, ou não? Se a gente pegar a História do Brasil contada pelos negros, era diferente. Todas elas existiram? Sim. Que é o acidente da encruzilhada, cada um, cada ponto vê uma coisa diferente, mas todos eles aconteceram. Legal a gente saber disso. Então, o processo é bem bacana, por isso que a gente está aqui até esse horário.
[Fim da Entrevista]
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