Depoimento de Josildeth Gomes Consorte
Entrevistada por Lucas Lara e Vera Cardim
São Paulo, 13 de novembro de 2018
Entrevista número PCSH_HV708
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - Josi, prazer ter você aqui com a gente, queria agradecer em nome do Museu sua presença. Para come...Continuar leitura
Depoimento de Josildeth Gomes Consorte
Entrevistada por Lucas Lara e Vera Cardim
São Paulo, 13 de novembro de 2018
Entrevista número PCSH_HV708
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - Josi, prazer ter você aqui com a gente, queria agradecer em nome do Museu sua presença. Para começar, eu queria que você dissesse para a gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R - Antes disso, eu quero dizer que eu estou encantada com o Museu da Pessoa. A Verinha me fez o convite, mas eu não tinha a menor ideia do que seria. A essa altura eu já estou acostumada a dar entrevistas, as pessoas ficam muito curiosas sobre a vida da gente, depois que a gente vive um certo tempo. Eu não fazia ideia, achei lindo o nome Museu da Pessoa, mas o lugar é muito mais do que o nome, é muito bonito e a proposta é maravilhosa. Muito obrigada. Meu nome é Josildeth Gomes Consorte. Esse nome só baiano poderia dar para uma filha, não é? Eu nasci em Salvador, Bahia, em 21 de junho de 1930. Comecei minha existência num momento muito especial da nossa história, a década de 30 até hoje marca um período muito característico, importante da nossa história. No mínimo, o início do governo Vargas. Durante anos eu não conhecia outro presidente senão Getúlio. É muita coisa, 15 anos de um único presidente. Mas aconteceu.
P/1 - E você comentou sobre o seu nome, você sabe a história dele?
R - Eu sei. É um nome bem baiano, e considerando que os baianos gostam de juntar nomes, esse seria o nome ideal para alguém que fosse filho de José e Ildeth. Mas meu pai não era José, nem minha mãe Ildeth. Eu não sabia que eu tinha ainda certa resistência a contar as circunstâncias. Minha avó era parteira das filhas, ela estava lá para eu nascer, era a primeira filha da minha mãe. E eu não nascia, difícil de nascer, aí minha mãe mandou chamar a Mindu, que era uma umbandista muito amiga dela, para ajudar minha avó no parto. Eu nasci através das mãos das mãos da Mindu incorporada num espírito chamado... Era médico, depois eu me lembro o nome. E foi ele quem me deu o nome e disse que eu seria uma pessoa de vida longa e muita sorte, ia viajar muito. E acertou. Realmente eu não posso me queixar, apesar dos contratempos - todos têm - mas eu tive sorte, tenho tido.
P/1 - Fale para mim o nome dos seus pais.
R - Francisco da Silva Gomes.
P/1 - E a sua mãe?
R - Idalina Angélica do Sacramento Gomes.
P/1 - E o que eles faziam? Descreva-os um pouco para mim.
R - Meu pai era mestre de obras. Ele aprendeu, não sei bem como, porque ele perdeu a mãe e também o pai muito cedo. Ele foi criado por uma tia e pelo que eu pude acompanhar depois - isso tudo é interpretação minha - ele foi um menino de recado da casa dessa tia, que era viúva, morava com mais duas irmãs, tias também dele, e era o menino que fazia o “faz tudo” da casa. Eu acho que ele estudou até o terceiro ano primário, porque a escrita dele era de quem não tinha concluído o primário. Ele se criou num ambiente letrado, mas ele mesmo não teve a chance de estudar. Eu acho que ele aprendeu ajudando em obras. A especialidade dele era pintura, só que ele dizia que a pintura não era caiação, a pintura que ele fazia era dos anos 30, as paredes eram decoradas, tinha aqueles frisos. Isso ele fazia muito bem, tinha muito material lá em casa, placas com recortes, umas coisas chamadas “grafitéti”. Eu, como filha mais velha, ficava muito próxima dele, fui gravando algumas coisas. Tinha aqueles rolos de borracha, com o próprio desenho do que ia sair na parede, era tudo muito bonito. Ele tinha muito bom gosto, sempre teve, e um projeto muito grande de ascensão social para a família que ele constituiu. Minha mãe bordava, era de uma família da Ilha de Itaparica, meu avô tinha tido barco, minha avó também bordava. Eu fico pensando... É uma origem interessante, porque era da Ilha de Itaparica, daquele lugar onde está o Jaburu, a Gamboa, o lugar mais povoado da Ilha é na face voltada para Salvador. Ela, minha avó, e as outras irmãs, eram aquelas moças prendadas, minha avó era uma pessoa muito agradável, fazia muita amizade com famílias que vinham veranear na Ilha - que era sempre quem tinha posse. Uma dessas famílias teve até o filho que foi governador, a família Moscoso. Isso foi muito importante para meu futuro porque essas amizades viraram compadrio, que foi um caminho importante, por exemplo, para eu fazer meu curso primário em escola particular. Eu que hoje sou uma pessoa muito interessada em Educação, eu me lembro de que a escola pública era vista como uma coisa bem inferior à escola particular. Era uma escola de tempo integral e me deu uma base de ensino muito sólida para a época. Eu pude fazer exame de admissão para o Ginásio da Bahia, que era da rede federal de ensino, o Magistério. Depois eu me transferi para a Escola Normal, mas eu fiz exame de admissão para o Ginásio, era o máximo que você poderia esperar de alguém que estava saindo do primário. Minha mãe e meu pai, quando se casaram, minha mãe dizia assim: “Eu quero uma casa própria seja onde for, não quero ter que pagar aluguel”. Porque quando ela se mudou com a família para Salvador e ficaram pagando aluguel, foi realmente um sufoco. Ela achava que morar podia ser em qualquer lugar, poderia ser sem calçamento, sem condução na porta, com as carências que a gente conhece. Meu pai, ao contrário... Nós morávamos numa vila que saía da Avenida José Joaquim Seabra, que é uma das avenidas importantes em Salvador, é a continuação da Baixa dos Sapateiros, não podia ser mais urbana, o bonde passando. Esse era meu pai, era outra orientação. Minha mãe não se importava, era só não precisar pagar aluguel. Mas minha mãe sabia ler muito melhor do que meu pai. Eu fui alfabetizada em casa, quando eu fui para a escola já sabia ler e escrever, não me lembro da carta de ABC, me lembro da tabuada. Eu já fui para a escola lendo cartilha - era do Felisberto de Carvalho - o que corresponderia hoje, ou até pouco tempo atrás, a uma cartilha que foi muito usada, Caminho Suave. Essa vila onde nós morávamos foi objeto recentemente de uma reportagem. Um belo dia eu estava em Salvador, comprei um jornal, estava lá. Alguém tinha descoberto alguns recantos em Salvador, que tinham preservado características das suas origens, e estava lá a nossa casa. Está lá até hoje. Aquele lado da cidade não é o lado que se tornou objeto de reportagens, é um lado mais antigo, que vai para Sete Portas, para o bairro de Brotas, Pitangueiras, Quintas, não é a Cidade Alta. Mas é curioso porque a reportagem se interessou por esses locais, entre eles o local onde eu morava, por terem preservado toda aquela atmosfera dos anos 30, que era muito gostosa. Era uma casa bem à linha do bonde, de sorte que eu não vivi essa realidade do bairro pobre. Por exemplo, o bairro da Liberdade era enorme, o Ilê Aiyê é um bloco de lá, hoje tem a expressão que tem, mas não tinha. Tudo isso para dizer que eu fui criada dentro de uma perspectiva de ascensão social. Isso foi introjetado em mim e foi por aí que eu fui.
P/1 - Você conseguiria descrever essa casa onde você cresceu?
R - Sim. Ela parte de um conjunto de quatro casas, do lado esquerdo. A vila está lá, chama-se Avenida Madeira, a nossa casa era número seis. Numa das esquinas tinha o Armazém do Seu Manoel, onde tinha um telefone. Na outra esquina era um açougue. As carnes entravam no açougue pela porta dos fundos, que era já parte da vila. Eles faziam torresmo, aquele cheiro. O outro lado era o Armazém do Seu Manoel, que tinha umas casinhas no fundo, numa das quais morava o empregado do armazém, Alfredinho. Ele tinha de vez em quando umas crises de asma. Eu morei nessa vila até os dez anos. Quando Alfredinho tinha crise de asma, a vila corria para socorrer, porque o Armazém fechava. Tadinho, lembro tanto dele. Do lado do armazém havia outras casas também e, no fundo da Vila, tinha a oficina da tipografia Catilina, a livraria. Era uma tipografia que imprimia muitos livros e a oficina dela era lá. Para nosso deleite, a gente sempre ia na oficina, com os portões fechados, obviamente, para as crianças não entrarem. Tinha os tipos, com as letrinhas, aquilo era uma novidade, e eles jogavam fora aqueles que eles não iam usar mais e nós pegávamos para colecionar. Nessa Vila nós brincávamos muito, porque não tinha carro, não tinha perigo. Brinquei de roda, muita cantiga de roda que ainda sei eu cantava para meus netos, nenhum deles lembra de nada. Acho que o meu filho gravou as cantigas que eu cantei para Cecília, que é a neta que fez 16 anos agora. Eu espero qualquer dia desses que ele me dê o prazer de ouvir a cantoria. A nossa casa era a número seis. Eu fico calculando a metragem. Ela tinha uma sala e a entrada eu acho que não tinha cinco metros de frente - entre três e cinco. Em seguida à sala tinha um quarto, em seguida outro quarto. Tinha um corredor e no fim dele a sala de jantar. Depois a cozinha, um pátio e o banheiro.
P/1 - E você comentou que era a filha mais velha. Quantos irmãos você tem?
R - A mais velha de dois irmãos que se criaram, porque um deles foi gêmeo, mas um deles morreu bem pequenininho. Eu vivi essa coisa de perder o irmão. A Avenida José Joaquim Seabra, ela é uma avenida que vai embora, passa pelas Sete Portas, chega num certo momento aqui ela vai para o Retiro, para Brotas, para a Estrada da Rainha e, mais adiante, para o Cemitério de Quintas. Por conta disso, o número de enterros que passava nesse trecho da avenida era muito grande, e muito grande era o número de enterro de anjinhos. Meu irmão foi um dos anjinhos dessa época, por causa de diarreia. Se perdia muita criança assim. Aos três meses. Depois que eu cresci, fiquei sabendo das coisas, soube que era muito alto o índice de perda de crianças; além desse meu irmão, um priminho também. A diarreia começava e não havia o que fizesse parar, acho que não havia antibiótico nem nada disso. Sorte que essa visão de enterro de criança foi muito frequente na minha infância. Eu mais velha, o do meio e o mais novo, que era gêmeo desse outro que morreu. Eu sempre fui muito boa aluna, sempre fui tratada com muita deferência em casa, o que não acontecia com meus irmãos. Certamente isso foi muito ruim, porque quanto melhor eu ia, pior iam eles. Naquele momento era assim: “Como que você ainda não aprendeu isso? Olha a sua irmã!” Esse exemplo foi muito ruim, eu acredito. Nenhum deles se formou. O do meio fez exame de admissão, passou, entrou no Ginásio, fez o primeiro ano e foi reprovado. Eu é quem ia ver as notas, sempre. Ninguém sabia por que ele tinha sido reprovado, afinal de contas, tinha tudo. Fez o segundo ano e tinha reprovado também. Aí foi que minha mãe descobriu. Ele ia para a escola todo arrumadinho, engomava o uniforme. Eu vinha, ele ia, era Escola Normal, que ficava do lado do Barbalho, eu fazia o turno da manhã, ele da tarde. Só que ele ia para a escola, lá encontrava a turminha que estava a fim de ir para a praia e era lá que eles passavam a tarde. Com as faltas acabou sendo reprovado pela segunda vez, foi jubilado e não podia mais continuar estudando lá na Escola Normal. Nós não tínhamos como pagar um Ginásio particular para ele e aí ele ficou sem estudo e sem profissão, porque quando ele foi reprovado pela segunda vez ele já estava com 13 anos e coincidiu com a doença do meu pai. A doença dele foi um desastre, porque não havia amparo social nenhum. Papai era grande fã de Getúlio Vargas. Para escândalo do meu marido, que foi quase advogado aqui em São Paulo, e para quem Getúlio era um ditador. Para meu pai não, Getúlio consolidou as leis do trabalho, então para meu pai tinha um valor extraordinário. Papai ficou doente, não tinha para quem apelar. Foi um período muito difícil de nossas vidas. Com isso, meu irmão do meio, que chama-se Gildo, a vida foi também muito difícil, porque o papai levava os dois para as obras nas férias e ele chegou a aprender alguma coisa de eletricidade, foi com isso que ele viveu, como eletricista, para o resto da vida. Teve alguns outros empregos, trabalhou na Petrobrás, na plataforma. Tinha carteira assinada, mas eu acho que ele ficou muito desorientado com a morte de papai. Tinha os dois anos mal cursados de ginásio, não tinha uma formação profissional consistente, uma mãe, uma irmã e um irmão menor que ele, foi aos trancos e barrancos. O emprego talvez mais fixo que ele teve foi o da Petrobrás, mas ele levou um tombo na plataforma, caiu de costas, ficou com problema de coluna. Eu estava lá, mas eu estava estudando, me virando para dar conta dessa família e eu acompanhava as coisas. Mas minha mãe mais do que eu. O meu irmão menor fez só o primário, ele tinha uma certa dificuldade, nós já sabíamos que a academia não seria o lugar dele. Nem se falava em academia, mas ele não dava para o estudo. Mas ele deu para o comércio e por sua conta e risco conseguiu uma livraria de boy. Sempre teve muito expediente, o ramo dele foi livros, vendeu muito, nos tempos em que Freud era um grande best-seller, ficava impressionado com o quanto as livrarias ganhavam. Ele começou dentro, como boy, depois ficou rapaz e acabou sendo vendedor de livros, numa época em que ainda dava para se viver disso. Tanto que quando Freud começou, ele tinha uma clientela de engenheiro e de médicos; quando alguém precisava de médico, falava com ele, sempre tinha algum médico que se dispunha a atender. Ele não podia ver ninguém na rua, deitado, ele tinha que resolver o problema daquela pessoa. Muito conhecido lá em Salvador. Odilon. O que morreu foi Odálio. Eu sei que Odilon, quando as vendas de Freud começaram a cair e começou a aparecer o Lacan, ele dizia assim: “Eu não entendo esse povo, antes era Freud, Freud, agora Lacan, Lacan”. Ele não entendia. Mas conseguiu comprar casa, casou-se e tem uma filha que até hoje me dá trabalho. Ela é sobrinha e afilhada e eu me sinto na obrigação de dar uma força para ela, porque é filha dele, perdeu a mãe muito cedo e ele ficou comigo muito tempo. Ele teve... Ninguém sabe o que era afinal, se era bipolar, esquizofrenia, mas ele ficou muito sozinho. Depois que eu terminei o Normal, eu fui para a faculdade, comecei a trabalhar, as oportunidades foram se abrindo e eu acabei vindo para o Sul. Primeiro São Paulo, depois exterior e a família ficou entregue à minha mãe. O que eu ganhava eu mandava para ela, eu me tornei funcionária com um salário fixo e ela pôde segurar a onda desses dois filhos. Nós, com a morte de papai, não tínhamos mais como pagar aluguel, papai ficou doente dois anos, nós fomos vendendo o que tínhamos para poder pagar.
P/1 - O que ele teve?
R - Tuberculose. Era uma doença que tinha um índice muito alto na Bahia, eu tenho me perguntado como essa tuberculose apareceu. Eu, às vezes, acho que ele se alimentava muito mal, ele saía de manhã e só voltava à noite. Papai andava de terno, gravata e chapéu, aquele que se vê nas fotos, os homens de abinha assim, não era de feltro, era de palhinha. Eu nunca vi papai levando marmita. Eu fico imaginando: será que ele almoçava? será que almoçava bem? como passava o dia? E nunca vem essa discussão lá em casa também, eu sei que ele voltava à noite, tomava banho, jantava, lia jornal. Isso foi um detalhe, todos os dias tinha jornal lá em casa. Quando começou a Segunda Guerra, 1939, nós tínhamos um rádio. Ele comprou um rádio Philips, holandês. Na Avenida diziam que nós éramos ricos. Como minha mãe era bordadeira, a casa tinha cortinas, para as festas a casa ficava muito bonita. Do meu lado esquerdo tinha uma família de negros, ninguém tinha dúvida que eles eram, nem eles, nós do lado. Eles não vinham... Dona Floripes não deixava os meninos dela brincarem conosco. Eles ficavam entre eles. Interessante, não é? O pai era bem negro, eu me lembro, era pedreiro. Era uma vila de operários, ele era pedreiro, o da frente era marceneiro, tinha umas casinhas, papai era mestre de obras, o do lado era marceneiro também e a da casa dois era costureira. O outro lado era mais abonado. Depois que eu me casei, eu quis voltar para ver as pessoas. E ainda estava lá dona Floripes, fui na casa dela, foi uma alegria, os meninos já estavam rapazes, dois deles eram tipógrafos. Eu fico arrepiada de falar, porque aquela distância toda era como se nunca tivesse existido. Me deram livros impressos, foi muito bom. Depois disso eu voltei mais uma vez. Agora eu quis voltar lá, mas o Renato, meu filho, não deixou, porque diz que está muito decadente. Agora a vila tem um portão, cada casa tem o seu botão, você chama, não sei se ela ainda mora lá. Quando eu voltei, quem morava na nossa casa era a filha do proprietário, filha de criação. Eu me lembro... Os dez anos que vivi nessa casa - até os 11 anos - eu lembro de papai sempre discutindo com o proprietário por causa de aumento de aluguel. Por fim, quando eu tinha mais ou menos essa idade, o proprietário pediu a casa, porque ia casar a filha, aí não teve jeito. A filha era adotiva, mas ela ia se casar; aí nós tivemos que sair. Bom, era essa pessoa que estava morando na casa quando eu, casada, visitei a casa. Ela me achou tão parecida com meu pai, ela lembrava de mim. Eu tinha entre 11 e 12 anos, ela devia ter seus 17, 18. Quando eu visitei eu tinha 60, alguma coisa assim. Na matéria do jornal ela ainda estava lá, agora já não sei.
P/1 - Você estava falando da experiência de ter um rádio em casa, você lembra desse dia em que esse rádio chegou?
R - Lembro. O dia exatamente não, mas eu lembro do dia que começou a Segunda Guerra. Eu tinha nove anos e estava brincando na rua quando a sirene... Os programas de rádio, quando tinha uma notícia muito importante, tinham uma sirene. Eu corri para ver, era o início da Segunda Guerra. Eu lembro do que o locutor falou: “A Alemanha tinha acabado de invadir a Polônia pelo Corredor de Dantzig”. Eu tinha nove anos. É possível? Tinha alguma coisa mais de atenção. Eu pude acompanhar a Guerra pelo jornal e pelo rádio. O rádio era uma beleza, ele tinha um olho mágico que fechava totalmente quando a sintonia era perfeita. A BBC de Londres fazia um programa para nós, para o Brasil, tinha um jargão que dizia assim: “Estação de Londres, da BBC”. O nome dele... Tinha uma voz tão bonita... Não consigo lembrar o nome dele agora. A filha dele foi aluna da PUC, muitos anos atrás. Ele não era bonito, mas tinha voz, era moreno, cabelo liso, passou a Guerra toda lá na Europa. Esse rádio era novidade. Nos deu um caldo de cultura. O marceneiro tinha uma filha, mais ou menos da minha idade, que ia para a escola pública. É vizinha à casa do Jorge Amado, no terreiro, na ladeira do Pelourinho. Lá tem dois sobrados enormes em cima - um é a casa do Jorge Amado, outro era a Escola Azevedo Fernandes, que era uma escola pública primária onde essa moça ia. Mas não dava nem para comparar o repertório dela com o meu. Eu me meti em tanta coisa, agora que eu estou lembrando. Depois que eles se mudaram, mudaram para lá uns vizinhos e um rapaz tinha máquina de escrever, eu inventei de aprender. Hoje eu tenho uma resistência à eletrônica, que você não faz ideia. Mas nos meus nove anos eu fazia lição todos os dias, A S D F G, C L K J H, é isso, não é? Essas teclazinhas. Isso me valeu quando eu entrei no mercado de trabalho. Eu aprendi a fazer xerox. Era xerox? Mimeógrafo. Hoje eu sou uma toupeira. Ontem, para digitar um texto lá na PUC, foi uma novidade. Tenho uma resistência que você não faz ideia. Eu ainda não tenho smartphone, me valho dos que me cercam e acho que não vou comprar nenhum. Acho sensacional, uma coisa prodigiosa, mas é demais, não vou dar conta. Mas era assim. Minha mãe lia, ela leu um romance - não tinha abajur para botar do lado da cadeira para ler, não - eu lembro dela sentada na mesa, depois do jantar. Nós estávamos indo para dormir e ela sentada para ler A Cidadela. Ela gostava, escrevia cartas, tinha uma letra muito bonita. Lá no Mar Grande ela teve mestra. Eu não sei exatamente o que a mestra, dentro do sistema de ensino, era; mas a letra era uma beleza. Para filho de pobre... Eu fico curiosa para saber como era a educação, a escola; agora não vou ter muita chance de saber. Mas pela letra dela, minha tia, a madrinha, irmã dela, você pode ver que tinha uma escola de bom nível. Ela falava minha mestra, é a pessoa de quem ela aprendeu muita coisa. Eu tinha essa mãe que sabia ler, escrever, que lia romance, e um pai que estimulava, queria que eu fosse médica. Você percebe que ambição... Eu tive uma discussão feia com ele, porque ele estava forçando muito e eu tinha pavor de sangue, qualquer ferimentozinho... Mas era o que ele queria que eu fosse. Ainda bem que eu não aderi, porque quando ele faleceu eu tinha acabado de fazer o Normal, que foi a nossa salvação. Eu comecei no Ginásio da Bahia, depois me transferi para a Escola Normal, sem saber exatamente as consequências disso em termos de estudo. Nós não sabíamos, a tradição da família não era... Naquela época, não tinha esse discernimento. Nossa mesa de jantar tinha uma gaveta e nela papai punha as canetas, as coisas que eu precisava, e tinha um livro que eu tive a curiosidade de ver o que era. Era um dicionário de francês. De onde ele veio eu não sei, não sei se alguém deu a ele. Como mestre de obras, ele tinha amizades. Meu pai trabalhou para o Emílio Odebrecht, era um dos empreiteiros de Salvador. Era ele e havia um outro, em Salvador, que se chamava Franz Schenk. Papai trabalhou para os dois e ele tinha muito respeito pelo seu Emílio. O Franz sempre ficava devendo, sempre tinha uns acertos para fazer; seu Emílio, não. Ele tinha esse filho, o Norberto, que estava estudando Engenharia. E eu, nos meus 14 anos, fazendo o meu ginásio. Papai sempre se queixava que esses engenheiros novos eram muito... Ele não falava chatos, não lembro qual expressão ele usava, mas eles chegavam nas obras enchendo a paciência dos mestres. E o Norberto era um deles. Ele se dava muito bem com o seu Emílio, mas com o Norberto... Ele só atormentava. Enfim, papai tinha essas relações. E esse projeto de ascensão social. Ele era muito amigo, também, de um juiz, cuja mulher fez uma assinatura de um jornal franciscano, ela era muito religiosa, e eu fiquei recebendo esse jornal durante muito tempo. Fui à casa deles, eu era a filha boa de mostrar para o povo, o cartão de visitas, sempre que eles podiam eles me levavam para conhecer as pessoas. As pessoas eram muito receptivas, essa menina que gosta tanto de estudar e coisas assim.
P/1 - E como você se sentia com isso?
R - Você pode imaginar. Eu me sentia na crista da onda. Coitados dos meus irmãos, nem eram levados para ninguém conhecer. Agora eu volto um pouco para a escola primária. Eu fui para uma escola particular, pelas vias do compadrio. Os compadres que minha avó tomou na Ilha, quando meu avô tinha o Saveiro e fazia o transporte dessas pessoas. Ela era muito agradável, todo mundo tinha muita confiança no seu Roberto, então as famílias usavam muito o barco de vovô para o transporte. Com isso, ficava aquela amizade. Ele tanto trazia como levava de volta. Uma dessas famílias era a família Ramos, tinha muitas professoras. Minha avó tomou uma delas, a irmã do pai da família, para comadre e minha mãe tomou dona Dulce para madrinha de Gildo, e a outra tia tomou dona Guiomar para madrinha. Quando eu cheguei na idade de ir para a escola, vai para onde? Para a escola da família Ramos. Enquanto meu pai pôde pagar, pagou. Fomos nós três para essa escola. Eu terminei o primário, fui para o Ginásio, aí que nós mudamos de bairro. Eu terminei, os meus irmãos continuaram, mas quando mudamos de bairro ficou muito longe para o Ginásio da Bahia, que era no Nazaré, e fui para o Normal, que era no Barbário. A Escola Normal tinha o Getúlio Vargas, que era o setor primário, então eu fazia o Normal e os meninos, o primário. Nós morávamos na Soledade, eu ia a pé. Uns diziam: “Não transfira sua filha do Ginásio”, mas ninguém sabia o porquê. A razão maior era a distância. No tempo da Guerra as condições eram muito ruins. Tinha dia que tinha ginástica sete horas da manhã, eu morando na Soledade era um sacrifício. Muito depois é que eu fiquei sabendo que o Ginásio era de administração federal, era um outro regime, outro padrão. Para fazer o Colegial, você tinha que ter feito o Ginásio. Se você fizesse o Normal, você não poderia. A Escola Normal só dava acesso ao Magistério. Mas imagina se eu tivesse feito o Ginásio e depois o Colegial para entrar na Faculdade de Medicina. Com a morte de papai, eu teria ficado como filho de santo: sem profissão, sem qualificação para o mercado de trabalho. Mas eu fui fazer o Normal, o Magistério, acabei gostando e comecei minha vida profissional como normalista. Eu terminei o Normal em 1947, fiz concurso em 1948, estou trabalhando até hoje.
P/1 - Quantos anos você tinha na época?
R - Terminei com 17. Eu faço no meio do ano, em 1948 eu fiz 18, quando fiz o concurso. Tem um detalhe interessante. Desesperada para trabalhar, papai mal, ele morreu em 1948. Eu terminei o Normal em dezembro, ele estava bem ruim já, e eu dava aula em casas, fazia banca, mamãe bordando. E papai cobrando de quem tinha ficado devendo a ele, coisa mais difícil. Tudo faz parte da nossa história de brasileiros. Papai fez muitas boas relações, mas era crédulo. Ele conheceu um senhor, chamado seu Torres, que era um espírita, um rapaz bem falante. Ele, quando começou com problema renal, ele vinha, dava injeções, aquelas vermelhas para reumatismo, rins, coisas assim. Foi uma luta a vida inteira. Mamãe queria que papai fizesse uma casa, aquele projeto de não pagar aluguel. Depois de muito tempo, ele conseguiu comprar um terreno no Jacaré, um bairro que ficava atrás da Escola Normal, um bairro classe média baixa, pessoas que tinham certa condição. Eu me lembro que ele comprou terreno, nós fomos ver, eram esses terrenos que eles chamavam “esconchos”, você tem o nível da rua e o terreno faz assim. Aí tem que levantar tudo isso para trazer para o nível da rua. O que vai de dinheiro nisso... Bom, ele comprou e conseguiu fazer a casa, cobrir, e aí adoeceu. Acabou vendendo a casa. Eu me lembro que eram cinco mil, não sei o quê. Contos de réis? Era o dinheiro que ele tinha, que teria sido muito importante para a nossa sobrevivência. Esse homem, esse tal de seu Torres, estava sempre lá em casa, ele pediu emprestado para o papai. Ele ia receber uma herança de uma tia, papai emprestou o dinheiro. Essa herança ele nunca recebeu e ficou pagando esse dinheiro, tinha que ir na casa dele ficar cobrando. Também faz parte da história toda. Eu sei que nós ficamos, com a morte de papai, sem ter onde morar e fomos passar temporadas em casa de parentes, que aí eu já estava entrando na faculdade. Os dois meninos adolescentes, sem rumo, o menor tinha achado o caminho dele como boy da livraria, mas o do meio ficou perdido. Casa de parentes. A primeira casa era de uma afilhada da mamãe que estava relativamente bem, mas um transtorno... Entram quatro pessoas na sua casa, como que acomoda? Ficamos uma certa temporada, o marido dela um argentino que tinha vindo de Buenos Aires na época em que o jogo estava no auge no Brasil, eles estavam muito bem. Mas aí entrou o governo Dutra, fechou os cassinos. Durou pouco essa nossa permanência lá, porque um dia ela disse: “Olha, minha madrinha, nós vamos ter que sair de Salvador, procurar outro lugar, porque não está dando aqui”. Aí fomos nós na casa de um tio. Esse sim, já morava num bairro bem popular, onde doutor Anísio construiu a Escola Parque, tanto que meus primos frequentaram a escola, que era um grande projeto. Nesse meio tempo, eu fiz concurso para professora, para ingresso no Magistério, e entrei, fiquei aguardando a nomeação. Quando veio a nomeação, eu fui fazer exame de saúde e não passei. Porque tinha aparecido uma mancha no pulmão. Em 1948, mancha no pulmão, 19 anos. Foi uma mordicéia, ainda pela casa dos outros... Eu me tratei no posto de saúde, tem detalhes que eu não vou entrar, porque senão... Não tinha nada além do posto de saúde. Mas estou aqui. Nesse meio tempo, ficamos três meses sem acreditar no resultado do exame, vai para cá, para lá, tudo, consulta com médico de pobre, que é espírito. Ainda bem que tem, é onde você tem certa força. Ficou em aberto a minha nomeação, tinha que ter uma solução. Fui fazer novos exames e estava pior. Na primeira radiografia o laudo era diminuição de transparência. A ignorância era total, depois que eu fui saber que era mancha escura, se o pulmão está normal é translúcido. Já tinha uma caverna, um buraco. As coisas que acontecem na minha vida devem acontecer na vida de muita gente, mas eu fico admirada porque é a minha vida, minha experiência. A essa altura, eu tinha feito vestibular, entrado na faculdade, porque eu tinha uma amiga-irmã, era a mais nova de seis irmãs e eu não tinha irmã, então eu virei um pouco a irmã caçula que ela não tinha, e ela a minha irmã mais velha. Eu terminei o Normal e era consenso que eu tinha que fazer faculdade, eu não ia parar como professora do primário. Onde já se viu, uma menina com tanto talento! E fizemos. Terminamos o Normal, ela e eu procurando trabalho, fui professora para uma inspetora que resolveu abrir uma escola, eu fui a primeira professora lá. Em 1948 foi isso que eu fiz. Fiz o concurso, entrei, aconteceu isso e fiz com Raimunda o vestibular para a faculdade. Fazer o quê? A gente só podia fazer Humanas, porque tinha vindo do Normal. Não podia fazer Ciências Sociais, Biológicas, Matemática, Filosofia. Só poderia fazer Pedagogia, Geografia, História ou Línguas. Ela, que era muito prática, disse: “Jojo, nós vamos fazer Geografia e História…”, que eram juntas “porque aí a gente tem trabalho, porque disciplina para elas não faltam”. Ela era bem assim, eu nunca fui. Entramos na faculdade, primeiro ano, doutor Tales, Antropologia. Me encantou. Tinha feito concurso em 1948, entrei em março de 1949, estava tudo ali. Doutor Tales era médico da Secretaria de Educação e Saúde, cujo Secretário era Anísio Teixeira, a pessoa que vai ter importância enorme na minha vida, por causa do meu interesse pela Educação, que se seguiu a tudo isso. Eu sei que quando eu fiz o segundo exame de pulmão, que deu que já tinha uma caverna, o médico do posto andava para lá e para cá para me dar a notícia. Porque enquanto é mancha é uma coisa, quando já tem buraco, naquela época, não tinha nada que... A cura era sanatório, o repouso que curava. Qual sanatório? Era uma coisa impressionante. Eu, sem recurso, sem pai, arrimo de família. O médico: “A senhora conhece alguém que pode lhe ajudar?” Eu lembrei do meu professor Tales, dei o número dele. Ele ligou para o doutor Tales na hora. A Secretaria de Educação e Saúde tinha acabado de receber a primeira partida de estreptomicina. Porque até então tinha hidrazida; papai não chegou a tomar porque era um remédio recente. Mas a estreptomicina era muito mais poderosa. A Secretaria de Saúde tinha recebido sei lá quantos e doutor Anísio disponibilizou. Foram esses 50 vidrinhos que me salvaram. Quem me dava essas injeções era minha mãe.
P/1 - Eram diárias?
R - Diárias. Nós na casa da prima, cujo marido era do jogo do bicho. Foi logo depois da morte de papai. Aí, limpou, não tinha mais a diminuição de transparência, mas a caverna estava lá. Aí eu fui para o pneumotórax, até que fechou, tive derrame de pleura e fiquei boa. A minha nomeação ficou em suspenso para eu poder continuar recebendo. Eu fui locada no gabinete do doutor Anísio, deixei a escola, e aí tinha folha e frequência todo mês. E foi assim que fui. Eu não tinha angústia, não tinha ansiedade, era magrinha. Eu nunca tossi, todos os exames que eu fiz de expectoração, que não tinha também, fazia lavagem para fazer os exames, e nunca o bendito do bacilo de Koch apareceu. Não tem um exame que tenha comprovado, só as imagens. A interpretação espírita foi que eu sempre achava que quando eles falavam isso estavam se referindo a meu pai, que na hora da radiografia ele se interpunha, então aparecia lá, por isso você poderia tratar com espiritismo. Mas foi no Posto de Saúde, Posto Dois, de Salvador, que eu me tratei. Bom, aí começa a minha carreira na Secretaria de Educação. Doutor Anísio estava com aquele projeto que envolvia a Universidade de Colúmbia.
P/1 - Antes, fale para mim: você comentou de um professor da faculdade de que te cativou. Fale um pouco sobre ele, como foi esse contato.
R - Eu era uma excelente aluna, porque a Antropologia me deslumbrou. Ele era uma pessoa muito séria, a essa altura tinha oito filhos, era médico, professor. Eu me encantei com a disciplina dele. De sorte que quando eu dei o telefone dele, que o médico telefonou, ele não teve dúvida. Ele nunca me cobrou isso, mas por ser a aluna que eu era, tão envolvida, um dia ele me chamou, isso já em 1949, eu estava em tratamento. Eu fiz trabalho de campo em tratamento, lá no interior na Bahia. Eu viajei de aviãozinho, de estrada, voltava para fazer a insuflação. Porque quando eu fui para o campo, já estava fazendo com espaçamento de 20 dias. No começo é terrível, porque eles fecham a lesão pressionando o órgão. Eles injetam ar na pleura e ela comprime o pulmão, ele fica praticamente inativo durante todo o tempo do tratamento. A respiração fica desse tamaninho. Só que era só isso, não sentia mais nada, tocava o barco, trabalhava, viajava, estudava, escrevi dois artigos para o Congresso de História. Parece história da carochinha. Eu sei que doutor Tales nunca me poupou, eu lembro de um dia em aula ele falando incidência da tuberculose em Salvador, Raimunda era minha colega, ela olhou para... Depois comentou comigo - só ela, eu e ele sabíamos da minha situação. Quando o projeto saiu, em 1949, ele disse: “Daqui a um ano os estudantes da Universidade de Colúmbia, o professor (Welley?) __________ (01:13:56) com quatro estudantes que vinham fazer suas teses de doutorado, numa pesquisa no Brasil com três comunidades, depois mais uma”. Eu preparei a infraestrutura dessa pesquisa levantando dados. Onde foi possível, eu ia com os pedidos. Foi quando saíram os dados do primeiro Censo. Eu fui me enfronhando. Eu desenvolvi minha habilidade de datilógrafa, levei um pito do doutor Tales porque ele pensou que eu soubesse mais. “A senhora…”, fui ‘a senhora’ a vida toda para ele, “escreve à máquina?” “Sim.” Mandou eu escrever, eu fiquei catando milho. Ele: “Eu pensei que a senhora soubesse escrever”. “Estou sem prática.” Aprendi a bater stencil, tirar cópia, atender telefone. Você já viu o registro da pesquisa? Saiu a verba da pesquisa, ele comprou um caderninho de capa mole, era econômico, você não acredita. Eu e ele fizemos o registro de todas as despesas que foram feitas, ele preenchia os cheques e eu lançava. Eu vou te mostrar o caderno, é uma preciosidade, está escondido lá em casa.
P/2 - O projeto era pela universidade?
R - O projeto contava com uma verba da Secretaria de Educação. O professor e os alunos da Universidade de Colúmbia, verba do governo estadual, quando nós retornamos à vida democrática. O projeto foi de 1949. Em 1947 o doutor Anísio passou a ser Secretário, em 1945 nós tivemos a queda do Getúlio. Depois ele volta, em 1950. Estou confusa em matéria de data, mas eu vim para São Paulo em 1952 e o projeto já tinha sido feito. Em 1949, o doutor Anísio fechou o projeto, nós começamos a trabalhar, um ano depois vieram os rapazes. Em 1951 veio o Metrô, com o projeto de estudos das relações raciais na Bahia, aquele projeto que, em 51, Pierre Verger estava na Bahia. Aí eu fui entrando nesse mundo.
P/1 - E como foi a recepção desses pesquisadores? Você lembra do dia em que eles chegaram?
R - Lembro. Eram três jovens americanos, aguardadíssimos. Eram três solteiros, o mais novo era o mais alto e era considerado o mais inteligente, Marvin Harris. Ele tinha 23 anos, um pouco mais velho do que eu. O segundo era o Harry Huntchinson e o terceiro era o Ben Zimmerman. Você pode imaginar, na Bahia, um programa de pesquisa sociais entre o estado da Bahia e a Universidade de Colúmbia? Aprendi Inglês feito gente grande, porque eles me puseram em curso particular. Era uma alegria só. O fato de estar fazendo tratamento não tinha a menor importância, eu não sentia nada. Eu estava ganhando meu salário, minha mãe estava podendo se manter, os meninos estavam crescendo, Gildo casou, Odilon casou depois. E aí se colocou a vinda para São Paulo. Eu terminei a faculdade, antes de ir para São Paulo começou a pintar o projeto de eu fazer doutorado na Universidade de Colúmbia, foi essa a razão da ida para lá. Eu participava muito, vai ver que eu ajudava mesmo. Apesar de tudo, eu sempre fui tímida, embora não pareça ser, mas eu era pau para toda a obra. Fazia anotação, registro, o que eles precisassem.
P/1 - E o que eles vieram pesquisar aqui?
R - Eles vieram fazer um estudo de comunidades. Era a maior novidade na Antropologia, naquele momento. Tinha começado na Sociologia nos Estados Unidos, depois a Antropologia incorporou e eles vinham fazer três estudos de comunidade para estudar a relação entre escola e a comunidade. Em três regiões do interior: a Chapada Diamantina, Recôncavo e Sertão. Chapada foi para Rio de Contas, para onde eu fui, Raimunda também foi. Recôncavo foi na região de cana. Eles escolheram as regiões econômicas mais importantes da Bahia. Rio de Contas por causa da mineração, Recôncavo por causa do açúcar e Monte Santo, gado. Para cada uma foi um deles e os auxiliares de campo. Eu fui para Rio de Contas com Maria Raimunda; Nilda foi para Monte Santo, que era irmã da Raimunda; e no Recôncavo foi a Carmelita. Cada um ficava com os auxiliares por um ano, mas teve vários auxiliares, porque nós estudávamos. Ficamos três meses em Rio de Contas, eu acabei por fazer a tradução do Cidade Campo no Brasil, que é a tese do Marvin. Ficou aquela coisa de eu vir para São Paulo para fazer o meu quarto ano. Porque para fazer a pós-graduação lá tinha que ter quatro anos de faculdade. Aí eu vim para São Paulo, para a Escola de Sociologia e Política, que tinha essa possibilidade. Porque, depois dos três, veio mais um fazer a Zona do Cacau, eu fui ajudar também, porque aí eu era a preferida para ir para o campo. Depois, no segundo semestre, eu vim para São Paulo. Fiquei agosto de 1953 em São Paulo, em setembro de 1953 fui para os Estados Unidos, para Colúmbia.
P/1 - Antes de ir para São Paulo. Fale para a gente como era ser uma mulher pesquisadora na década de 50.
R - Eu era uma jovem inexperiente em matéria de viagens e contatos, mas muito estudiosa. É o que eu sinto ainda hoje quando eu sento para ler um livro, quando eu tenho que preparar uma aula. É um estímulo, um gosto. Tem uma coisa interessante em relação à sua pergunta. Eu tinha 18, 19 anos quando pintou a ida para Rio de Contas, era eu quem ia. Mas como é que vai para o interior, com um americano, em 1950? Se o pai fosse vivo não iria. Esse era o comentário. Então mamãe ia comigo, onde já se viu? Aí, Maria Raimunda tinha terminado um namoro, que deixou ela muito mal, ela disse, “Jojô, eu vou com você”. Aí resolveu todos os problemas. Ela era um pouco mais velha que eu - três anos. Isso responde um pouco. Ninguém sabia o que era Antropologia, pesquisa de campo era uma novidade muito grande. E para nós também. Você imagina chegar numa cidade no interior... Se você soubesse depois o que eu ouvi em relação a essa nossa chegada. O Marvin já estava lá desde junho, julho e nós fomos no fim do ano. Antes já tinham ido os meninos do Rio, mas agora eram duas moças. Eu me lembro que eu visitei um senhor muitos anos depois, ele falou: “Ué, doutor Marvin ...” (risos) Ele não sabia que estava falando com uma delas. Seu Clarindo ficou muito amigo do Marvin, era coletor na cidade, nós ficamos na pensão - não, na casa do Marvin - porque a base da pesquisa era a casa dele, que tinha todo o conforto. Nós ficamos em pensão, mas nós fazíamos muita reunião na casa dele. O que elas fazem lá? Agora, tinha um aguadeiro que servia a casa, esse sabia tudo. Se tivesse alguma coisa acontecendo, a cidade inteira ficaria sabendo na hora. Mas, felizmente, ninguém se apaixonou por ninguém. Ficamos lá três meses, depois voltamos para Salvador. No trabalho dele tem trechos que são transcrições de entrevistas que nós fizemos. No campo eu fiquei com a parte das crianças, porque eu era mais jovem. Nós fomos para dar conta da parte da pesquisa sobre mulher e criança, porque o Marvin não se sentia à vontade para entrevistar, ainda mais porque eles chegaram sem falar português, aprenderam com o tempo. E aí Raimunda, que era mais velha, cuidou da parte de casamento, parto, puerpério. Eu fiquei com a parte das crianças, entrevistava a mãe sobre educação dos filhos. Ficávamos muito amigas. Agora, treinamento para campo, essa coisa do antropólogo que vai para o campo querendo saber como se vive lá... Olha, nós participamos intensamente da vida de Rio de Contas, passamos até o Natal e o Carnaval lá. Carnaval era o auge, pessoal se preparava, ensaiava, tinha dois clubes. Em Rio de Contas havia um preconceito muito grande contra os negros, dois clubes, um de negros, um de brancos. Para nós foi... Tanto que essa questão do negro se transformou numa questão coletiva, ninguém esperava uma coisa dessas - a Bahia era a região onde mais se estudava relações raciais. O trabalho do Pierson, Brancos e Pretos na Bahia, tinha sido um best-seller, foi o primeiro que veio dos Estados Unidos para estudar a questão racial na Bahia. Na década de 40. Segundo ele, as relações raciais na Bahia eram cordiais. Ficou essa imagem. E, de repente, Rio de Contas tinha segregação. Preto não andava na calçada. Não é mais assim, eu continuei frequentando lá. Depois Marvin voltou para nova pesquisa, nos anos 80, eu fui também. Mas era tudo muita novidade naquela época, para nós e para os residentes. Chegam pessoas com muitas cartas para todas as autoridades. Se tudo fosse com homem, era uma coisa, mas mulher? No início dos anos 50 não havia feminismo, nem coisa parecida. Mas foi muito legal, não saímos de lá difamadas, não.
P/1 - Por falar em novidade, Josi, como foi sua chegada em São Paulo? Você lembra do dia? O que você achou da cidade?
R - Lembro, sim. Foi a primeira vez que eu viajei de avião para fora da Bahia. O avião pousou no Rio, no fim da tarde. O Rio de Janeiro, aquela coisa. E aí seguiu viagem para São Paulo. Quando chegamos, era um lençol de luzes, a noite clara. 31 de julho de 1952. As aulas iam começar no dia seguinte, tudo novidade. O aeroporto de Congonhas estava sendo reformado para o centenário, em 1954. Estavam lá me esperando o secretário da escola e o Fernando Altenfelder, professor que ia ser o meu orientador. Segundo eles, eles esperavam uma senhora, porque para ser antropóloga àquela altura só podia ser uma senhora. Talvez assim como a Gioconda Mussolini, que era professora de Antropologia e tal. De repente, vem aquela menina, segundo eles. Foi aquela coisa. Eu enjoei tanto... Primeiro tive que ir ao banheiro, no aeroporto, enjoava em viagem de avião, não tinha essa pressurização. A viagem era longa. De lá, eles me levaram para o Hotel Grão Pará, no Anhangabaú. Tinha o Hotel São Paulo, do lado do Grão Pará. Lá de cima um olhava... Nunca tinha ficado em hotel, quanto mais em São Paulo. Eu me lembro que havia um teatro, não lembro o nome, mas lembro bem dele. Durante muito tempo ele existiu lá, não era como se fosse uma escola de lata, mas era uma estrutura que poderia ser transportada de um lugar para o outro. Era no tempo da Cacilda Becker, do teatro TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), os ônibus saíam do Anhangabaú. A primeira coisa que as pessoas queriam te mostrar em São Paulo, como novidade, era a represa. O túnel da Nove de Julho era uma grande novidade, Santo Amaro era longe à beça. Agora, aquele centro de São Paulo, tudo era... A Escola de Sociologia funcionava no sótão da Álvares de Penteado, no Largo São Francisco, a Faculdade de Direito, a Praça Patriarca. O viaduto. Eles me puseram ali porque era só subir a ladeira, estava no Largo São Francisco. Depois eu arrumei uma pensão na rua Frederico Abrantes, atrás da Igreja Santa Cecília. Dali eu ia a pé, me deslumbrando, até a escola, olhando a população. Pela primeira vez eu vi que os paulistas eram bem mais altos que os baianos e brancos. E toca procurar os negros, onde é que estão? Tem um detalhe muito importante, São Paulo também entrou no esquema da ida para Colúmbia, para eu poder me acostumar, conhecer um contexto de relações raciais diferentes da Bahia. Eles tinham receio... Eu dizia: “Se tiver discriminação, eu não vou. Se Nova Iorque tiver, eu não vou porque eu não sei conviver com isso”. Tinha medo. A população negra ainda era segregada, não, não é assim em todo lugar. Em Nova Iorque não é, e realmente não foi. Eu me senti em Nova Iorque como Cinderela, foi uma experiência maravilhosa, dois anos realmente maravilhosos. A bolsa era 150 dólares. Era tão grande que eu fui para lá em setembro e novembro eu ainda não tinha conseguido comprar um mantô e não dava para esperar mais, porque o frio era muito forte. Foi aí que a Carmelita, que tinha ido também, me emprestou cinco dólares, para juntar com o que eu tinha e comprar o mantô. Comprei um mantô vermelho, de nylon, e ficou tão bonito. As botas foi a mulher do Marvin quem me emprestou. Mas São Paulo era isso. Eu procurava onde estava a população negra e não via. Até o dia que em eu tive aula à noite. Eu vim pela São Bento, depois a Praça Patriarca, atravessei o viaduto, e no lugar de entrar na Barão, eu resolvi entrar na 24 de maio. Estavam todos lá, de ponta a ponta. Eu não sei se ainda existe em São Paulo, mas a população negra jovem de São Paulo estava lá. Eu fui ouvindo galanteio dali até a Praça da República. A rapaziada saía do comércio e ia para lá, era o local de encontro. Eu vim saber mais sobre isso depois. Até hoje a 24 de Maio tem.
P/1 - E o que você fazia para se divertir?
R - A Josi não tinha dinheiro. Meu salário ficou com a mamãe, que eu continuei recebendo. Eu tirei uma licença para estudo, eu sei que viajei e mamãe ficou com meu salário. Era uma licença com vencimentos e eu tinha bolsa para viver fora. Tive bolsa para viver em São Paulo. Foi quando surgiu a Capes e é criação do doutor Anísio. Chama-se Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Nós não tínhamos pós-graduação ainda, então por isso campanha para aperfeiçoamento. Tinha muito pouco dinheiro, ficava namorando as coisas, mas dinheiro para comprar não tinha, só dava para pagar pensão e me alimentar. Eu me divertia com amigos, que sempre me proporcionaram... São Paulo era muito caseiro na ocasião. A gente passava a semana estudando e final de semana o pessoal jogava muito em casa, domingo à tarde, buraco. Eu não sabia jogar, mas aprendi, me convidavam. Eu fui tão acarinhada... Eu fazia aulas à noite, esse pessoal era mais adulto. Também fui muito acolhida pelo pessoal da minha idade, que era de dia, fiquei muito amiga da (Tekla?) __________ (01:43:06), que era filha de alemães. Dormi na casa dela algumas vezes, na cama da avó dela, que nunca tinha dormido numa cama tão gostosa na minha vida. Os pais da (Tekla?), a mãe era nascida no Brasil, mas o pai era da Alemanha. Era uma gente tão legal, moravam no Jardim Paulista. Também fui muito acolhida na casa da Neide, ela cantava, tinha uma voz muito bonita, morava na Mooca. Eu fui para a casa uma noite, ou um fim de semana, fiquei ouvindo o trem a noite toda, não estava acostumada. Ela foi muito legal comigo também. A Maria tinha... Lembro-me de um domingo na casa dela, logo no começo, quando ela disse assim: “Você vai comer pizza”. Eu fiquei esperando, jogamos a tarde inteira, fim da tarde a pizza. Quando ela chegou, nunca tinha visto, não sabia o gosto, cortaram a pizza, eu, o primeiro pedaço, engoli porque não tinha jeito. Que coisa horrível, que gosto horrível. Era o orégano. Para mim, tinha sabor de óleo de rícino. Que decepção. E fazer cara de quem está gostando quando você mal aguenta comer. Eu passei depois a gostar muito. Com eles também nós fomos num fim de semana, no começo de novembro, que naquele tempo tinha feriado do comerciário, do funcionário público, dia primeiro de todos os santos, dia 2, finados. Eu sei que quando juntava com sábado e domingo dava para você... Aí eles queriam muito me mostrar a praia de São Paulo, o mar. Eu baiana, eles tinham uma dó de mim. Depois eles me disseram que esperavam que chegasse uma pessoa cheia de colares e eu nunca fui de colares. Tão engraçado. Aí descemos para o litoral, eu maravilhada com as estradas. Eu lembro que nós fomos pela Praia Grande, que dava para andar com o carro na areia. Eu sei que nós fomos para Peruíbe, uma turma grande, aquela coisa de chegar num lugar num grupo grande, moças, rapazes, namoricos e coisas assim. No dia seguinte, praia. Antes da praia, frescobol. Tudo para mim era novidade. Aí descobri que a água era tão gelada que das duas uma: ou você jogava muito e tomava caipirinha, ou não entrava. Isso não acontece na Bahia. Eu sei que foi muito divertido. Eu olhava e dizia: “Que coisa estranha essa praia, areia escura, dura, o mar meio cinza”. E o pior de tudo: não tinha coqueiro. Foi aí que eu conheci um rapaz que eu vim a namorar, aí ficou mais divertido ainda.
P/1 - E como é que foi essa continuidade na Fesp? Você fez esse ano que faltava e aí foi para os Estados Unidos?
R - Fiz esse ano que faltava e fui admitida na pós graduação, e fui.
P/2 - E sua mãe, como foi para ela?
R - Ficou. Bem lembrado. Eu tive meus momentos de indecisão. Não era fácil, eu tinha essa coragem toda, sei lá o que que era, essa motivação toda para ir em frente, mas meu Deus do céu, não tinha mais pai, tinha minha mãe, dois irmãos e os amigos que eu ia conhecendo. Eu vim para São Paulo e quando eu voltei de férias o irmão do meio estava doente, tinha contraído tuberculose também. Só que era outro momento, dependia muito dele o tratamento, mas eu fiquei... Eu achava que mamãe não ia dar conta, porque ele era muito irresponsável, ele não ia seguir as instruções, fazer o que fosse preciso. E eu não queria mais voltar para São Paulo. Aí a mamãe falou: “Não, minha filha, seu lugar não é aqui”. Minha mãe. Sabe que meu filho não entende isso? Como é que uma mãe, que tem só uma filha, tem coragem de dizer isso para ela: “Seu futuro não está aqui”. Eu tive uma indecisão, lembro que fui conversar com a doutora Carmem, irmã do doutor Anísio, eu tive uma crise. Porque voltar para São Paulo significa isso: ficar na Bahia. Isso. E aí? Não dá para fazer as duas coisas, eu lembro da doutora Carmem me dizendo isso - dois produtos no mesmo prato, no mesmo copo, não... Só faltava a cabeça estourar. Quando minha mãe me disse isso, eu achei que era para voltar e voltei. Mas foi muito difícil, ela que me ajudou a voltar. E ela tinha razão, eu acho. Não sei como seria depois, como eu viveria essa volta para a Bahia, para recomeçar. E aí eu fui para Nova Iorque. Foram dois anos. O que eu cresci, o que eu aprendi, foi muita coisa. A universidade, colegas de todo lugar, o domínio do Inglês, ser capaz de acompanhar. Fiz todos os exames, passei em todos, fiz os exames finais. No primeiro ano você faz uma disciplina e, no final do primeiro ano, você faz uma disciplina, um tipo de qualificação para o mestrado. Aí você faz um exame que cobra tudo o que você viu, que lhe qualifica para ir para o mestrado. Eles me qualificaram para ir para o doutorado, porque dependendo do seu desempenho você podia ir para o doutorado. Eu não sei se foi bom ou ruim, eu fui para o doutorado. No mestrado você faz dez disciplinas, de três créditos cada uma. No doutorado você faz 20. São 60 pontos. Faz a qualificação para o mestrado e faz o que eles chamam de compreensivo para o doutorado. É um desespero. E daí é que você faz um projeto para a tese. Quando eu cheguei no segundo ano, que eu fiz tudo isso, a política mudou aqui. Em 1955 entra o Juscelino, doutor Anísio deixa o Ministério, eu fico sem bolsa, não foi renovada, tive que voltar, muito frustrada, mas na esperança de poder retornar, porque ia fazer meu projeto, a pesquisa. Mas não deu.
P/1 - Você estava contando sobre a sua ida para os Estados Unidos. Como é que foi esse encontro com outras culturas também?
R - Começa por aqui. A presença de imigrantes na Bahia é muito restrita, acho que o único imigrante que a gente vê lá, mas que já se confunde com os baianos, é o chinês da lavanderia. Os portugueses nos armazéns. E durante a guerra, presença americana porque Salvador teve base. Mas não tinha essa experiência com estrangeiro. A experiência começa em São Paulo, já de olhar para a população. A Bahia é muito negra, São Paulo era branca, talvez hoje já não seja tanto. Mas quando eu fui era, apesar da presença japonesa, que também é uma presença que já chama atenção. Que ela era branca eu já sabia, com a presença dos italianos, alemães, não foi novidade. Mas foi novidade a presença japonesa. Sobretudo porque eu via os jovens com uniforme do Exército, isso chamou muito a minha atenção, porque japonês para mim era aquele dos filmes de guerra, nunca vi gente mais feia. Os filmes de guerra que mostravam japoneses mostravam gente tão feia, mas cheguei aqui e os meninos japoneses eram rapazes altos, bonitos, ainda mais de uniformes do Exército. Era um contraste tão grande que me chamou a atenção. Lá em Nova Iorque você vai conhecendo colegas de outros países. Nunca tinha conhecido um africano e tive colegas africanos lá. Você fica curiosa para saber como é, como não é. Tinha uma colega que era de descendência indígena americana. De outros lugares não me chamavam tanto a atenção não, era população branca, talvez parecida com a de São Paulo. A língua, o fato de você ouvir a língua o tempo todo, todos os anúncios, os costumes, a comida, os hábitos alimentares. O american way of life. Talvez seja interessante falar da minha chegada. Eu fui num avião da Aerovias Brasil, que era a única companhia aérea que ia até os Estados Unidos, parece que era do Ademar de Barros, alguma coisa assim. Ela nos deixava em Miami. Era uma viagem longa. Nós saímos daqui para Belém, eram sete horas, que foi o primeiro lugar em que nós paramos. Depois Trinidad, depois Venezuela, para depois cruzar o Golfo para chegar em Miami. Eu lembro que passamos sobre Cuba. Eu sei que saímos num dia, chegamos no outro às duas da tarde. E meu avião para Nova Iorque ia sair depois das seis, porque o voo era mais barato. Eu fiquei umas quatro horas em Miami e aí sim vi a segregação. Já no aeroporto você tinha banheiro para brancos e negros. Andamos pela cidade, nos ônibus os negros sentavam no fundo, os brancos na frente. Tudo isso já dava para ver em Miami. O Anthony Leeds, que era um dos americanos que veio fazer a pesquisa, eu também ajudei no campo, ele veio estudar Ilhéus, ele ficou de me esperar no aeroporto em Nova Iorque. Só que cheguei lá e ele não estava esperando. E era madrugada já, saímos seis, sete horas de Miami, fui chegar depois da meia noite em Nova Iorque. Espera, espera e nada. O pessoal do aeroporto: “Você é estudante? Vai para a Casa Internacional”. Eu fui. Imagine você, madrugada, para a Casa Internacional. Peguei o ônibus a essa altura já bem vazio, quem chegou comigo já tinha ido enquanto eu esperava o Thony. O ônibus, daqueles Greyhound, aí você vai vendo a cultura americana, poder, a qualidade de tudo, aquele ônibus voava. O aeroporto era em New Jersey, Colúmbia fica em Nova York, você passa por um canal subterrâneo. Eles me disseram o seguinte: “Você vai chegar na rua 40, enfim, na estação rodoviária, em Manhattan. Então você pega o táxi atrás do ônibus e vai para a cidade universitária, a Casa Internacional”. Isso eu fiz. Quando eu penso nessas coisas, veja você, madrugada, pouquíssima gente, o ônibus voava. Para mim era ‘eu já cheguei’, aqueles anúncios, aquela qualidade de estrada. Aí chegamos em Nova Iorque. Na estação, eu peguei o táxi de trás. A International House fica do outro lado, porque é uma ilha. A parada do ônibus era desse lado, direito, e a Casa Internacional do lado esquerdo, na margem do rio. Você tem que atravessar o Central Park à noite. Você sabe que eu ouvi as histórias, depois, do que acontecia à noite no Central Park. aquilo foi uma temeridade. À noite, de táxi, aquela jovem muito modesta indo de madrugada. Não aconteceu nada, mas você atravessar o parque à noite, tinha muita pouca luz. Cheguei lá o porteiro me recebeu com a maior naturalidade, me identifiquei e ele pôs lá no duplo quarto e depois dessas horas todas de viagem é que fui deitar. Mas a cabeça zunia. A gente, quando é jovem, aguenta tudo. Sete horas da manhã acordei com aquele som. Era o Thony, que quando ele chegou lá eu já tinha vindo, mas o pessoal do balcão disse a ele o que tinha acontecido e ele foi então me encontrar. Hoje eu estranho meu hábito de fazer as coisas sozinha, eu nunca penso em chamar alguém. Agora falando, ficou mais forte; de muito cedo comecei a andar sozinha, acho que isso marca muito a gente. Você ganha uma independência natural. Andar sozinha, sim, mas morar sozinha não. Hoje moro, mas não é minha praia. Cheguei lá e aí começou a vida, o Thony veio, fazia um ano que não nos víamos, tomei café no refeitório. Mudei da Casa Internacional para (Whitehall?), que era a casa onde ficavam os estudantes do __________ (02:06:20), os estudantes da área de Educação, que era um pessoal mais velho. Depois que eu fui para a Johnson Hall, que era onde ficava a meninada, mas um ano depois é que eu fui para lá. No dia seguinte não lembro o que eu fiz, acho que fiquei por lá mesmo; em seguida, fui providenciar a mudança para o (Whitehall?). Fiquei num andar mais alto, ficava olhando tudo, a universidade, me localizando. Começamos as aulas. Tudo muito novo, mas ao mesmo tempo o fato de eu já ter tido contato com o Marvin, o Thony, o __________ (02:07:28) professor __________ (02:07:31) era o chefe de departamento, então eu não era uma estranha, já era do conhecimento do Departamento, que vinha a estudante brasileira. O Departamento não era muito grande, ficava no mesmo prédio onde ficava __________ (02:07:59), da Biologia. Só tinha nome importante por lá. Fui conhecer o campus, tem umas fotos. Carmelita também estava lá, tinha ido um ano antes de mim, sempre me dava uma força. Uma das coisas que enfrentei logo era o que fazer com o cabelo, em que cabeleireiro ir. Meu cabelo não era liso, mas também não era o cabelo crespo com que os cabeleireiros americanos estavam familiarizados. Eu não queria ir em salão, não queria aceitar essa discriminação. Carmelita ficou responsável pelo meu cabelo, ela quem cortava. Passei dois anos lá com um corte de cabelo que quando eu voltei era novidade, passei a cortar o cabelo dois dedos. Foi uma novidade quando voltei, Rio de Janeiro, 1955. Eu vivi os anos 50 no Rio e foi mesmo. Casei em 1959. O Rio dos anos 50 não era qualquer coisa, tive muita sorte. Com aquele cabelinho diferente. A curiosidade era de onde ela é. Eu tinha colegas de São Paulo que estavam no Rio, que me apresentaram aos amigos. Os grupos no Rio não eram tão grandes assim. Meu grupo tinha estudante de Filosofia, arquiteto, ator, era um grupo variado. O primeiro evento maior que eu fui, foi numa vernissage, exposição de pintura do Aldair __________ (02:10:57), em Ipanema. Eu tinha um vestido verde esmeralda, meu vestido chique de Nova York era aquele, tinha um decote, não tinha nada. Com aquele cabelo, só podia chamar a atenção, não tinha nada a ver com o que as pessoas estavam usando. Província parecia, foi muito engraçado. Foi assim que começou minha vida no Rio, onde morei 11 anos.
P/1 - Então foi suspensa sua bolsa, você retornou dos Estados Unidos e veio morar no Rio, é isso?
R - Vim morar no Rio porque a Capes era no Rio e tinha que dar satisfação para a Capes. E tinha que ver onde eu ia trabalhar, como ficaria minha situação funcional. Doutor Anísio estava criando o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, o CBPE, eu fui trabalhar lá. Mas antes disso, tive uma conversa com ele, foi muito sofrida. Porque a minha expectativa era que ele entendesse que meu projeto, minha perspectiva, era voltar para fazer doutorado, fazer minha pesquisa no Brasil e voltar para o doutorado. Ele absolutamente não fechava com isso. Eu acho que houve engano de parte a parte. Porque quando eu fui, a ideia era que eu fosse para fazer doutorado, mas na cabeça dele não era. Nem minha bolsa da Capes falava isso, mas eu nem prestei atenção. A bolsa era renovada a cada seis meses e era para realizar estudos pós-graduados na Universidade de Colúmbia. E foi sendo renovada. Por orientação deles lá, e minha, esse tempo devia ser usado para fazer doutorado. Tanto que essa de fazer dez cursos primeiro, depois mais dez, era fruto disso, para completar os créditos para o doutorado, fazer os exames e tudo. Minha decepção foi imensa e a contrariedade dele maior ainda. Ele chegou a dizer que eu estava mais preocupada com meus títulos acadêmicos do que com os problemas do Brasil. Que era a Educação, no caso dele. E eu que tinha ido para engrossar o caldo de pessoas capazes de pesquisar Educação estava pensando era no meu título. Não era bem assim, mas eu esperava obter essa qualificação. Nunca mais nossa relação foi a mesma. Doutor Anísio era um homem com grandes qualidades, mas ele tinha uma relação um tanto distante com as mulheres. O segundo time dele era todo de mulheres, mas a entourage era só de homens. Você só encontrava ele conversando com aqueles interlocutores que ele respeitava, que ele considerava que tinha o mesmo nível intelectual, a experiência dele. As mulheres executavam. Interessante isso. Uma vez eu conversei sobre isso com o Marvin, ele foi muito reticente mas concordou comigo. E como ele era um homem extraordinário, de um valor tão grande, ninguém se atrevia a fazer qualquer comentário. Mas o mundo dele era muito formado por intelectuais homens. E ele tinha excelentes auxiliares. E foi assim que me encaixei. Eu fui para o CBPE, fui a primeira pesquisadora contratada, onde mais tarde o Darcy Ribeiro foi trabalhar. Quando eu o conheci, era indigenista, tinha passado dez anos na Amazônia estudando um grupo, era diretor do Museu do Índio. Depois ele não queria saber de Educação não, era muito chato. E dizia, sem cerimônia. Alguns colegas que eu tive também achavam muito chato essa coisa de Pedagogia. Mas depois eles se aproximaram, se entenderam, se amaram, de uma forma... Ele e o doutor Anísio, que o Darcy se converteu à Educação e se tornou o grande educador que ele foi, diretor do CIEPs (Centros Integrados de Educação Pública) no Rio, fundador da Universidade de Brasília, com o doutor Anísio, e tal. Foi lá que eu fui trabalhar.
P/1 - Você chegou a conviver com ele?
R - Com o Darcy? Muito. Quando eu vim para o Rio, antes do Darcy entrar para a área da Educação, ele morava na Boca do Mato, um bairro de subúrbio, logo depois do Méier, era diretor do Museu do Índio, casado com a Berta. O Museu ficava na Zona Norte, então ele não tinha nada a ver com a Zona Sul. O Darcy que eu conheci foram duas pessoas - esse Darcy e depois o Darcy que se muda para a Zona Sul, que vai trabalhar na área da Educação com o doutor Anísio. São pessoas muito diferentes. Darcy do Museu do Índio era um homem comprometido com a causa indígena, com a qual doutor Anísio não tinha afinidade nenhuma. Eram dois intelectuais que existiam. Eu acho que a aproximação entre eles começou a acontecer quando o Darcy criou o curso de formação de pesquisadores no Museu do Índio. Ele teve um problema na área, problemas políticos ligados à área, e não voltou mais para o campo. Então ele bolou esse curso de formação de pesquisadores, que foi o primeiro ou o segundo - por causa da Escola de Sociologia que começou primeiro - e ele criou esse curso, que era uma pós-graduação. Só não tinha o título, mas era só para quem já tinha feito a faculdade. Ele teve duas turmas no Museu do Índio excelentes, que deram alguns professores até na Universidade de Brasília, que foram formados lá. Ele formou duas turmas lá e uma ele trouxe para o CBPE. Quando ele precisou de verba para criar o curso, quem tinha era o Anísio, com a Capes. Ele pede a verba, o Anísio dá, e por aí começam os contatos. O Darcy contava uma história muito interessante, que era uma Conferência que ele fez, a que doutor Anísio foi assistir. Ele dava a Conferência de olho no doutor Anísio para ver a reação dele. É tão legal, é assim mesmo que funciona. Ele falando dos índios, que era sobre isso que ele sabia falar, e doutor Anísio ouvindo, porque a essa altura já eram... Ele disse que lá pelas tantas, doutor Anísio falava, resmungava, comentava, e ele querendo ouvir. Aí ele conseguiu ouvir doutor Anísio dizer: “São uns gregos”. Doutor Anísio descobriu que os índios são uns gregos e a partir daí se encantou com os índios. Os índios nunca tinham passado pela vida dele, a história do doutor Anísio é a história de alguém que ia ser jesuíta e acaba na Educação, não passa pelo mundo indígena. E aí viraram amigos e uma dupla muito importante.
P/1 - Acho melhor dar uma paradinha agora, para vocês não perderem o horário, a gente continua outro dia.
[02:22:18]
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Projeto Conte Sua História
Depoimento de Josildeth Gomes Consorte
Entrevistada por Lucas Lara e Vera Cardim
São Paulo, 14/02/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV708_parte2
Transcrito por Liliane Custódio
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Josi, a gente terminou a primeira parte da entrevista e você estava comentando a sua chegada ao Rio de Janeiro, no começo da década de 50, a relação entre o doutor Anísio e o Darcy Ribeiro. Eu queria que você começasse falando para a gente como era esse Rio de Janeiro da década de 50.
R – Ah, Lucas, o Rio de Janeiro era tudo que você gostaria de conhecer naquela ocasião. O Rio sempre foi muito bonito, faz tempo que eu não vou lá, as notícias que vêm de lá são terríveis. Mas eu acredito que ele vá sobreviver. O Rio era muito bonito, a natureza é muito bonita. Ainda era a capital, eu voltei em 1955, e o Rio estava começando a viver a efervescência da eleição do Juscelino,1955, não é? De 1955 a 1960 foi Juscelino, a inauguração de Brasília foi em 1961. Olha que momento! Nós estávamos vivendo essa efervescência. Em 1955, o doutor Anísio havia criado o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Eu não sei se eu contei para vocês o incidente que gerou um... Não foi um ruído, não, foi muito pior do que um ruído na nossa comunicação, na nossa relação - minha com o doutor Anísio - porque quando eu fui para Colúmbia, tudo que me levou a Colúmbia, as pessoas que estavam perto de mim, que achavam que eu levava jeito para ser antropóloga, achavam que eu ia fazer um doutorado, e todos tinham doutorado. Então, para mim, eu ia fazer o doutorado. Mas na cabeça do doutor Anísio não estava isso e ele não tinha me falado isso. Na verdade, ele não conversava assim tanto com a gente, ele era a pessoa que tinha as condições de proporcionar essa ida. E eu fui. E na volta, depois de dois anos, a volta coincidiu com a crise política que se instaurou aqui, com o suicídio do Getúlio, então eu acho ele deve ter deixado o Inep, enfim, de qualquer modo, a minha bolsa foi interrompida. E eu voltei, inclusive porque com toda essa mudança, toda aquela mudança, eu tinha essa possibilidade de me ausentar do país porque eu era funcionária pública - olha aí a Reforma da Previdência - eu era funcionária pública, era professora primária dos quadros do professorado da Bahia. Então eu fui posta à disposição. Tem uma figura dessas, não é? Para ter essa possibilidade de viajar, de ficar fora dois anos, eu tinha que ter essa cobertura. Eu fui, devo ter sido por aí colocada à disposição do gabinete para poder ter a frequência mensal, etc. Quando tudo isso ficou afetado pela morte do Getúlio, doutor Thales escreveu dizendo: “Olha, a senhora vai ter que voltar, senão vai perder seu emprego”. E esse detalhe teria sido muito difícil para mim, porque eu era arrimo de família, tinha irmãos que dependiam de mim, perder o emprego era assim catastrófico. E eu já tinha feito, por outro lado, todos os créditos para o doutorado. Todos. Que naquela ocasião eram vinte disciplinas. Em quatro semestres. Eu fiz cinco por semestre. Vinte disciplinas de três créditos, o que dava 60 créditos. Os exames, aqui nós chamamos de qualificação, eu tinha feito... Aqui nós fazemos qualificação para os dois, para mestrado e doutorado. Eu fui direto do mestrado para o doutorado. Eu fui considerada capaz de... Eu não tinha que parar para fazer o mestrado, para depois fazer o doutorado. Eu estudava muito. Então eu fiz o que eles chamavam comprehensive, é o exame que apavorava todo mundo, eram dois dias sobre o campo da Antropologia. E lá na Universidade de Colúmbia, eu acho que em todas as universidades americanas, a Antropologia é uma área de quatro campos. Não é como na Inglaterra, ou na França. Você para fazer Antropologia também faz Arqueologia, Linguística, Evolução, Antropologia Biológica e Etnologia, o que lhe dá uma formação muito ampla. Então, esses exames compreensivos eram de dois dias e apavoravam todo mundo, porque ou você passava e ia... Aí sim, aí você ia para o campo fazer sua pesquisa, ou você ficava mais um tempo e tal. E eu passei. Vinham, assim, nuvens. Só não tinha o projeto de pesquisa. Ainda estava muito incipiente, não tinha dado tempo. O que você vai pesquisar no Brasil para transformar em tese? Eu queria família, eu queria um pouco... O interesse maior estava na migração, pela experiência que eu tinha vivido no Brasil. E o que eu queria estudar na migração? Eu queria saber, queria estudar o Brasil que estava se formando no norte do Paraná com as migrações do nordeste para lá, sendo o norte do Paraná uma área já densamente povoada por estrangeiros. Então a ideia era essa. Mas não estava nada assim teoricamente pensado e o trabalho de campo também pensava em fazer em Londrina, que era na ocasião, enfim. Londrina tinha uma terra vermelha, que você saía de lá cuspindo vermelho. Eu cheguei a ir a Londrina e tal. Bom, eu voltei para o Rio, marquei a hora e fui lá conversar com o doutor Anísio. Foi a pior coisa que eu fiz, porque a conversa foi muito desastrosa. Ele me recebeu muito bem, ele tinha certo apreço por mim, mas tudo isso acho que acabou naquele dia, porque toda a minha conversa com ele foi no sentido de voltar para fazer o doutorado, e ele me disse que ele ficava muito decepcionado, ele usou as palavras dele para me dizer que eu estava mais para... Ele lamentava, porque eu estava mais preocupada com os meus títulos acadêmicos do que com os problemas do Brasil. Esse é o doutor Anísio. Você pode imaginar? Eu não sabia o que... Chora... Eu chorei muito naquela Esplanada do Castelo, lá no Rio.
P/2 – Você tinha uns 25 anos. Você tinha quantos anos?
R – Vinte e cinco. Eu não tinha feito, eu estava para fazer vinte e cinco anos. Depois de todo aquele gás, de tudo que eu... Na minha expectativa e daquilo, por que eu não ia contribuir para os problemas depois do doutorado? Tem muitas interpretações. Muitas, muitas, muitas. Eu não vou entrar nos detalhes, porque eu continuo gostando muito dele, tem certas coisas que eu acho que faziam parte da nossa história, da nossa atitude. Afinal, eu era uma jovem, mulher, não é? Ele disse: “Olha, se a senhora quiser trabalhar conosco, comigo, enfim, eu estou criando o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais e a senhora está convidada a trabalhar no centro. Bom, saí de lá aos prantos. A alternativa era voltar para a Bahia e dar aula lá na Escola Santos Titara, no Rio Vermelho. Não é possível. Eu fui para Salvador, tinha que ver a família, conversei com o doutor Thales. Olha só. É importante colocar as coisas assim. Doutor Thales foi a pessoa que me mostrou a Antropologia e eu tenho um apreço enorme a ele por causa disso, tudo que ele me ensinou, os caminhos que ele abriu. Mas tinha o outro lado. Eu cheguei a Salvador, estava acontecendo a Segunda Reunião Brasileira de Antropologia, onde se criou a Associação. Então eu tenho meu nome vinculado à criação da Associação Brasileira de Antropologia, que está aí até hoje, e isso já foi motivo de palestra, de homenagem e tudo mais. Você vai ficar ficando mais velha, vai ficando testemunha ocular da história. E ele me disse o seguinte... Ele tinha uma filha um pouco mais nova do que eu, que resolveu também fazer Ciências Sociais, aí você já viu, não é? Então, certamente, não havia muito espaço em Salvador para... (risos).
P/2 – Duas.
R – Para duas. E ela estava fazendo faculdade. E ele disse assim: “Olha, dona Josildeth, a senhora, se quiser ficar, fazer sua livre docência, tudo bem”. Mas ele me disse com todas as letras que o lugar de assistente dele, ele ia reservar para a filha. Entendeu? Eu não tive dúvida, voltei para o Rio. Com toda essa nuvem, enfim, tudo que aconteceu na minha relação com o doutor Anísio, nunca mais foi a mesma, ao ponto de ele duvidar que... (risos). Bom, que fique para a história, faz parte. Eu fui para CBPE, eu fui a primeira pesquisadora do CBPE, os outros eram... Primeira pesquisadora contratada para o CBPE. Os outros todos eram pessoas que já tinham os seus... E foram então... Bom, começamos ali na rua México, ao lado da Livraria Ler, que se tornou assim um lugar que eu frequentava muito, e era muito legal ali aquela área do Rio, na década de 50, em 1955. Darcy ainda não tinha se interessado por Educação a essa altura. Minto, Darcy tinha começado a se interessar pela formação de pesquisadores. E foi esse interesse que o aproximou do doutor Anísio. Os dois... Eu não sei se eu já contei essa história.
P/1 – Pode falar de novo, não tem problema.
R – Os dois eram grandes intelectuais, mas cada um na sua área. O doutor Anísio era o grande educador, Darcy era o grande etnólogo. Essas duas coisas não têm nada a ver uma com a outra. O Darcy achava Educação uma coisa muito chata, e o doutor Anísio não via nenhuma graça em estudar índio. Mas o Darcy perdeu a posição dele na.., Era Ministério da Agricultura. A questão indígena era cuidada pelo Ministério da Agricultura. Ele tinha ficado dez anos na Amazônia estudando o grupo pelo qual ele se interessou tanto, e publicou. E tinha voltado, estava dirigindo o Museu do Índio, que era uma criação recente. Perto do Maracanã ficava o Museu. Era um prazer enorme o museu, porque ele e a Berta, mulher dele, tinham organizado aquilo de uma forma muito interessante, um material muito rico. E ele, diante da dificuldade de prosseguir com os estudos indigenistas, ele tinha pensado então na criação desse curso, que também era muito necessário - eu era uma prova disso, eu tinha ido fazer pós-graduação fora, não havia pós-graduação aqui. Então ele pensou no curso de formação de pesquisadores. E teve uma procura enorme. E quem ia financiar esse curso? A Capes, recém-criada. A Capes foi criada como Campanha de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Nós não tínhamos pós-graduação em nosso sistema de ensino, mas um curso como esse era totalmente viável e qualificava tanto quanto uma pós-graduação. Klas Fortmann foi um dos alunos desse curso, e tantos outros. Não era um curso com muitos alunos, mas era com um grupo seleto, de vários lugares do Brasil. E foi ao doutor Anísio que ele pediu... Foi ao Ministério da Educação... Na verdade, ao Inep, que era a instituição, departamento, do Ministério, que o doutor Anísio dirigia - Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, Inep. Então, toda a parte de educação, de formação etc., era com ele. E aí se aproximaram. E o episódio, que é muito interessante, está contado num dos livros do Darcy. É o dia em que o Darcy fez uma conferência e o doutor Anísio foi assistir, agora já estavam... E o Darcy conta nesse livro, e contou várias vezes para nós, que ele “olho no padre, olho na missa”, estava fazendo a Conferência, falando... Darcy era encantador. Sabe o que é alguém ter o dom da palavra e o charme para encantar? Esse era o Darcy. E ele falava... Falou, falou lá dos índios dele, e o doutor Anísio na plateia. E o Darcy disse que o olho olhava... E lá pelas tantas o doutor Anísio começa a falar, comentar e o Darcy querendo saber do que ele estava falando. E, de repente, lá pelas tantas, não sei em que momento, ele ouviu doutor Anísio dizendo: “São uns gregos. São uns gregos”. Isso é tão exemplar. O mundo do doutor Anísio era esse, não era índio. Era a cultura clássica. Toda a formação dele tinha sido por aí. Ele tinha desejado ser jesuíta. Foi a duras penas que o pai dissuadiu e ele obedeceu. As cartas dele para o pai traduzem bem o que era a relação com o pai, como o que ele tinha. O pai dele era coronel. Coronel dono de terras. E, só para dar um dado a mais, se casou três vezes. Ele é filho da última mulher. E as três mulheres dele foram irmãs. Ele era de Caetité, no sul da Bahia... Sul... Centro-oeste. E essas moças eram da família Spínola e eram de Lençóis. Então ele foi, saiu de Caetité, não sei por quê, foi lá para Lençóis, se casou com a primeira, trouxe para cá, teve não sei quantos filhos, ela morreu. Ele voltou lá, se casou com a segunda, trouxe, teve outros filhos...
P/1 – E como passou a ser a sua atuação como pesquisadora?
R – Aí?
P/1 – Isso.
R – Já, já eu te conto, deixe-me terminar só essa história.
P/1 – Está bom.
R – Que ela diz tanto de nós mesmos. Aí ele foi e se casou com a terceira, que é a mãe do doutor Anísio e da dona Carmem. Bom, tudo isso para falar um pouco do que era doutor Anísio. Aliás, eu estou escrevendo um artigo comparando o trabalho do doutor Anísio com o do Paulo Freire. Espero poder trabalhar, desenvolver bem esse trabalho. Porque o Paulo Freire é conhecido mundialmente, o Anísio não. E por que não é? Eu me propus a fazer isso, como parte do meu trabalho na PUC. Exatamente isso. Por quê? Eu tenho uma filha que está na Inglaterra, é bióloga e trabalha numa universidade em que existe esse interesse pelo Anísio, pela educação no Brasil, e ela conversando com os colegas, eles disseram: “Mas existe outro educador com o nome tão importante quanto o Paulo Freire?”. Ela disse: “Sim. Doutor Anísio...”. E contou um pouco da história e eles ficaram muito interessados. Eu até fiquei de ir fazer uma fala sobre o doutor Anísio lá para eles, ainda não aconteceu, mas foi aí que começou. E eu comecei então a me perguntar... Afinal eu conhecia muito pouco o trabalho do Paulo Freire. O essencial para saber... Aliás, linhas gerais do trabalho dele, mas não como eu conhecia o trabalho do doutor Anísio. E o que eu percebo hoje no... Ah, detalhe, o doutor Anísio só conversava com os pares dele. Entendeu? Tinha assim um entourage masculino, qualificado, que o acompanhava para onde quer que ele fosse. Entendeu? Ele ia visitar o CBPE, quando ele vinha de dentro do elevador, vinha todo mundo. E assim era. Fumava feito um desesperado. Ele era baixinho, magrinho, o tempo todo assim pensando, cabelo liso assim, impressões delicadas, míope, bastante, usava óculos o tempo todo, e a cabeça pensante. Mas o entourage é masculino. As mulheres surgem como segundo escalão, aquele que vai pôr em prática o que ele pensa. Então, todas as diretoras de programas, enfim, o segundo escalão, é todo feminino. De gente que tinha uma dedicação muito grande a ele. E uma dessas pessoas foi, afinal, a irmã. Que foi quem acabou dirigindo a Escola Parque, que foi a grande realização dele. Bom, deixe-me ver onde eu retomo. Como era doutor Anísio, a linha de pesquisa, então por aí. Bom, o centro foi criado com duas áreas: uma área de pesquisas sociais, uma área de pesquisas educacionais. E o Darcy foi convidado para a área de pesquisas sociais e o Jaime Abreu para a área de pesquisas educacionais. Eu diria que... O que era o nosso problema? Quais eram os problemas educacionais naquele momento, anos 50, no Brasil? Eu acho que eram tantos... Mas o problema da escola primária, da escola pública primária, sempre foi um grande desafio para ele. Tanto que o Manifesto dos Pioneiros, que é o primeiro grande manifesto de intelectuais em relação à Educação, eu não sei, ele assina já o primeiro, se não me engano. Esse Manifesto, o primeiro, acho que é de 30, dos anos 30. Depois há um segundo, que é intitulado Mais Uma Vez Convocados, que acho que é dos anos 50, provavelmente. Dos anos 50. Bom, qual a tônica desse Manifesto? É a importância da escola primária. É uma escola primária para todos. E agora que eu estou fazendo este trabalho, ficou muito claro para mim por que essa escola primária para todos era carro-chefe. Eu acho que era exatamente porque nós tínhamos acabado de sair da escravidão. Entendeu? A escravidão abolida em 1888, a República em 1889... Abolida a República (risos)... Proclamada a República. E a República, ela é exatamente... Enfim, a proposta da República é formar cidadãos, homens livres, com direitos - deveres e direitos - com acesso, a possibilidade de acesso às oportunidades, enfim, formar cidadãos, pessoas com... Bom, quando você vai olhar na Constituição, a Constituição de 1889 a 1892, a primeira?
P/2 – 1891, 1892.
R – 1892, não é?
P/2 – É.
R – Ela ainda não é uma Constituição que garante o direito de todos. As mulheres não podem votar, há uma série de restrições. Ela ainda é bem restritiva. Se você tomar a área da Educação, que é a área dele, e olhar para a nossa população - quem era a nossa população naquele momento - pensando em termos do que foi a escravidão, da quantidade de escravos que entraram... Quatro milhões, que dizem... Contra o quê? Quantos milhões de portugueses? Quer dizer, a quantidade de escravos e de escravizados e descendentes era muito grande. E eles eram proibidos de estudar. Então, era uma grande população de analfabetos. E a proposta de acesso à escola era fundamental. Isso o doutor Anísio, essa perspectiva de direito de todos, isso ele sempre teve, uma escola para todos, e da melhor qualidade. E que a educação era uma coisa cara, porque uma boa educação implicava formação de bons professores. E que a formação era cara e que a escola em si, uma escola como precisava ser, era muito cara. Começava pelo prédio, pelos equipamentos. Esse é o Anísio. Isso é o Anísio até o fim da vida. A educação primária, ele tem... Eu fui aluna. Depois de tudo isso, quando eu fiz a faculdade, eu fiz só o bacharelado, então eu não tinha feito ainda a licenciatura, e a ideia era... Como eu não estava preocupada com o ensino, quando surgiu a oportunidade de ir para Colúmbia, eu precisava de um quarto ano. Porque você, para ingressar na pós-graduação, precisa de quatro anos. Eu vim fazer em São Paulo, na Escola de Sociologia e Política, foi onde eu passei um ano fazendo disciplinas, porque eles tinham uma estrutura que possibilitava isso. Ao contrário da USP, que começa em março e vai, eles tinham dois períodos. Então eu vim no segundo período, e que foi muito bom, coincidiu. Eu vim em julho de 1952 e terminei em julho de 1953, e fui para Colúmbia em setembro. Deu certinho.
P/1 – Como você passa a atuar dentro desse projeto? Você é a primeira pesquisadora contratada...
R – Morrendo de medo, porque a expectativa era enorme. Eu tive do meu lado... Eu tinha uma sala... Bom, eu tinha um salário como eu nunca tinha visto na minha vida (risos). Vamos pensar assim, a professora primária ganhava três mil, eu fui ganhar dez. Os amigos diziam assim: “Compra um carro. Compra um apartamento”. Dez mil reais no Rio de Janeiro, solteira, jovem, em 1955. Excelente partido.
P/2 – Ótimo partido.
R – Partidão, não é? Mas um partido que assustava, porque... (risos).
P/2 – Mulher (risos).
R – Não tinha rapaz que ganhava... E os rapazes se sentiam muito mal diante de uma...
P/2 – De um partido desses (risos).
R – Olha que não foi fácil, viu? (risos).
P/1 – (risos) Mas você comentou com a gente, na primeira parte, que você se casou um pouco depois.
R – É. Em 1959. Olha, hoje quando eu penso, eu digo: “Mas não foi tanto tempo depois”. Em 1955, eu me casei em 1959, quatro anos. Hoje eu entendo bem melhor o meu casamento do que...
P/1 – E como você conheceu o seu marido?
R – O Renato? Ah, pois é, num grupo muito seleto e variado de profissionais. Tinha filósofo, tinha artista plástico, tinha arquiteto. O que mais tinha? Tinha gente interessada em Educação. E o Rio era muito pequeno. O Rio era... E as pessoas se conheciam. Quando eu cheguei ao Rio, é engraçado, era como: “Olhe, tem gente nova na...”. Um pouco por aí. Eu sei que eu fui a uma exposição, exposição do Aldary Toledo, que era pintor, foi em Ipanema. Eu já contei do vestido verde?
P/1 – Contou (risos).
R – (risos) Pois é. Eu fui para a exposição do Aldary e, por Deus do céu, eu não lembro, eu me lembro das pessoas que eram mais próximas a mim. E o Renato não me perdoava, dizia: “Mas como você não... Falei com você”. Ele ator, com aquela voz: “Como?” Bom, o fato é que... E o medo? Aí foi, foi, foi. Isso é depoimento para a história, não tem importância, é história mesmo. Eu estava com vinte e cinco anos e os meus amigos casadoiros, que eram os alunos do curso do Darcy (risos), alguns ainda eram alunos, e eu já vinha da Colúmbia com toda essa... Com a pós-graduação pronta, só faltava a tese, a tese ficou para as calendas, mas e o ‘status’? Dois anos em Nova Iorque, o que é isso? Eu sei que foi um problema. E tinha os candidatos, mas era tudo muito difícil, porque todo mundo ganhava muito menos que eu e ninguém queria ser marido da professora. Até que eu conheci o Renato e, interessante, eu não tinha ninguém que dissesse assim: “Que legal, você vai se casar com ele?”. Ninguém. (breve interrupção). Eu não tinha a menor ideia do que fosse a vida de artista. Achava tudo muito bonito, ia ver filmagem, conhecia aquele pessoal todo. Ainda ontem morreu a Bibi, não é? Bom, eu conheci essa gente toda, e achei um mundo maravilhoso, só que tudo começava muito tarde nesse mundo. Esse foi um dos grandes problemas, tudo começava muito tarde e eu trabalhava, entrava às nove no CBPE. Mas fomos levando. Eu acho que tinha que ser o Renato. Tinha que ser uma pessoa como o Renato mesmo, polivalente. O Renato, olha, o Renato deu uma entrevista para o Jô Soares, famosa. Se você quiser se divertir, são duas entrevistas, você vai entender. Ele fazia Direito, ele não chegou a terminar o curso de Direito porque não dava. Ator, como que estuda? Ele se valeu de tudo que ele pôde para fazer o curso, chegou até o quinto ano, inclusive de cola. Uma das colas caiu no chão (risos), com o professor de Direito Trabalhista, que era preto, negro, isso aí então foi... O professor já tinha... Vou lembrar o nome dele. Inclusive, ele era pai de um... Foi pai de um psicanalista muito famoso no Rio... Não, aqui em São Paulo. Cesarino Júnior. Cesarino Filho, um grande analista. E o outro filho dele era boêmio, porque era amigo do Renato, então... (risos). O Renato conta história da faculdade, que só mesmo ele para contar. Dos anos... Ele entrou na faculdade nos anos 40 - 1947, 1948 - e foi levando como deu. Foi colega da Lygia Fagundes Telles, aliás, que como calouro ele teve que fazer uma declaração de amor, e ele, ao fazer a declaração de amor, já queria sair com a Lygia.
P/2 – Levou a sério.
R – Pois é. Esse programa dele com o Jô é muito engra... São duas. Vale a pena ver. Mas ninguém queria o casamento. Não tive apoio de ninguém: nem da família, nem dos amigos. E realmente tinha tudo para dar errado, porque... Ainda ontem eu contava para... Em casa, por conta de não sei o quê. Ah, da morte da Bibi. Conversa daqui, conversa dali, e a Bibi, aquela exuberância, você vê que a Bibi falava muito pouco da vida pessoal dela. E eu me lembrei de um detalhe, não sei exatamente por quê, mas ilustra bem o que eu estou dizendo. Quando eu conheci o Renato, ele estava fazendo uma peça do Millôr, mas muito amigo do Millôr. Você imagina... Onde eu ia conhecer o Millôr, o Vinícius? É um enriquecimento. O Tom Jobim, o João Gilberto. Fala, onde eu ia conhecer? Depois eu volto. Esse grupo, onde eu conheci o Renato, se encontrava muito, e Renato era um pouco assim, o arroz da festa, porque ele tocava violão. Além de tudo, ele ainda tocava violão. E nós íamos lá para a casa do Lauro Paraíso jogar conversa fora, fim de semana, e esperar o Renato chegar para tocar violão e cantar. E eu sabia as letras, tinha uma boa voz, ah, não deu outra, deu em casamento. Eu não tinha a menor ideia do que fosse a vida de artista.
P/2 – Uma vez eu vi um depoimento do Renato que dizia que ele se casou com uma antropóloga e que ela fazia dele o objeto de estudo. Era isso?
R – Ele era muito engraçado. Era isso que ele dizia, que eu me casei com ele... (risos).
P/1 – E você se lembra do dia do casamento? (breve interrupção). Você se lembra do dia do seu casamento?
R – Acabou de fazer 60 anos. Nós ficamos casados cinquenta anos. Casamento com véu e grinalda e tudo. Igreja, tudo. Tem esse detalhe também, imagine. Havia um porquê de tudo isso. Bom, do meu lado, eu era muito independente, já não tinha pai há tanto tempo, arrimo de família. Minha mãe, a expectativa dela é que eu me casasse direitinho, no padre e no civil. Agora, do lado de Renato, você sabe o que é uma família italiana? Pois é. O Renato era filho caçula de uma família italiana, mas mesmo. E essa foi uma das coisas que pesou muito na minha decisão de me casar com ele. A importância que a família tinha para ele. E para mim. Eu queria me casar porque eu queria ter uma família. Isso era muito claro. E o respeito que ele tinha, o valor que a família tinha, para mim foi tão... Isso as pessoas não sabiam. Então eu acho que foi isso. Acho não, foi isso que sustentou a nossa relação cinquenta anos. Não é brincadeira, não.
P/1 – E vocês foram morar onde lá no Rio? Como foi?
R – Foi. No Rio. Eu estou com um neto agora que não sabe se casa ou se compra uma bicicleta (risos).
P/1 – (risos).
R – É neto dele, do Renato. Eu fico... Isso é muito engraçado, tem um momento em que pessoa casa (risos). Quando eu comecei a sair com o Renato, uma noite... Imagina, eu sempre morei com uma família, eu nunca quis morar sozinha, eu tinha muito medo de morar sozinha, porque você já imaginou morar sozinha? Você arruma um namorado, ele vai te levar em casa, ele vai dizer... Não. Não quero. Eu vou morar sempre com uma família, que vai chegar à porta... (risos).
P/2 – (risos).
R – Hoje não se usa mais disso, está tudo diferente. O Pedro está lá sem saber o que faz. Eu estava deslumbrada, porque era uma gente tão inteligente, tão interessante. Ele um dia falou para mim, entre outras coisas, tinha várias razões pelas quais eu tinha me casado com ele, a outra era porque intelectual é muito chato. O Darcy era muito chato. Por isso que eu tinha me casado com ele (risos).
P/1 – (risos).
R – (risos) Nós fomos lá, ele estava fazendo um filme, que era do texto do Millôr, se chamava Do Tamanho de Um Defunto - foi peça e foi filme. Já pensou você conheceu o Millôr? O Paulo Francis? É bom demais. Fernanda Montenegro, minha comadre. Viu? Bom, aí: “Vamos à casa da Ludy?” “Vamos. Vamos à casa da Ludy, vamos tomar um café com a Ludy”. Ludy Veloso era atriz do filme. Era uma gente tão legal, tão simpática, tão interessante. Dercy Gonçalves. Eu não sou uma felizarda? Dercy Gonçalves. Bom, fomos para a casa da Ludy. Fim de semana, que dava para sair. E devia ter sido uma sexta-feira à noite, eu estava na casa da Ludy. Então jantamos, tomamos café, conversa vai, conversa vem: “Vamos jogar não sei o quê?” Eu não jogo nada. Eu conheço baralho. Quando eu era criança, eu jogava burro em pé e essas coisas, bisca. Lá em casa, meu pai tinha horror a jogo de qualquer espécie. Eu fiquei lá, eles dois jogando. Sabe que horas nós saímos de lá? De madrugada. Ele dizia assim: “Eu tenho que me casar com ela” – (risos) – “Tenho que casar”.
P/2 – E como foi essa vida profissional depois do casamento? Mudou alguma coisa?
R – Mudou. Mudou sim. Eu descobri coisas... Nunca descobri mulher na rua. Assim... Casos, nunca. Meu filho diz assim: “Você é muito crédula”. Eu digo: “Olha, você fica quieto”. Nunca soube, vou querer... Mas a dificuldade... Foi o seguinte, quando nós namorávamos, ele saía do teatro às onze horas, onze e meia ele passava para me ver, a gente saía, tomava um café, dava uma volta, ele me deixava em casa e ia embora. Olha só que romântico. E eu achava que ele ia embora encontrar com os amigos, jantar, tal, porque não tinha para onde voltar. Mas isso foi eu que achava. Não era nada disso. A vida do ator é assim, enquanto eles não fazem o espetáculo, não conte com eles para nada, porque a... Mesmo depois que a peça estreia, não tem importância, a peça é sagrada, você não pode errar, você não pode deixar de dar a deixa para o colega. Então é muita tensão. Eles não jantam antes do espetáculo. Então aquilo tudo dura enquanto dura o espetáculo, que acaba às onze, aí vão tomar banho, trocar de... Aí sim. Aí é que... É como a gente quando termina de dar aula. Vai, pronto, até o dia seguinte. Não importa, pode ir para casa de manhã, que só vai fazer o espetáculo... E isso foi um grande problema, porque para ele conciliar um hora decente de voltar para casa e eu aceitar essa hora como hora decente, demorou. Porque você fica na expectativa: onze horas, acabou o teatro agora, deu meia-noite, às vezes sim, às vezes não, dependia de muita coisa. E isso foi a vida toda. Entendeu? Isso foi muito estressante. E os horários. Não tinha horários. Eu tive toda a liberdade para fazer as pesquisas que eu quis, os estudos que eu quis, eu viajei muito, eu conheci São Paulo, o interior de São Paulo, quando eu... Bom, minha carreira foi, por causa desse mal-estar com o doutor Anísio, a nossa insegurança no CBPE, porque nós não éramos concursados, os pesquisadores, eram verba três. E desprestigiada pelo doutor Anísio, e insegura quanto ao emprego, isso são os anos 1956, 1957. Juscelino é de 1955 a 1960, não é? Construção de Brasília. Vai todo mundo para
Brasília, não vai. Eu disse: “O primeiro concurso que surgir, eu faço”. Foi quando eu fiz o concurso para o Instituto Nacional de Imigração e Colonização, que imigração sempre me interessou muito também. E todo mundo dizia: “Pô, mas esse concurso, o que...”. Nos anos 50, quase 60, imigração, mas era um concurso público federal. Eu fiz e passei, e o concurso era aberto a várias profissões: sociólogos, antropólogos, geógrafos, assistentes sociais, então quem tivesse curso superior, quisesse fazer, fazia. E passei, passei bem e entrei em outra repartição, deixei o CBPE. Todo mundo achando que eu tinha feito uma grande coisa, porque eu agora estava segura, enquanto eles eram verba três. Depois eles ficaram muito melhores do que eu, porque depois definiram a profissão de pesquisador, enfim, de um jeito muito... Prestigiaram muito. E houve um grande revertério na outra área, aí nós ficamos sabendo. Porque o concurso tinha sido feito para efetivar os amigos do... Entendeu? Que não foram, porque nós que fizemos o concurso, passamos, ocupamos os lugares. Então quando veio o golpe, em 1964, antes de 1964, já no governo... Já quando se começou a discutir a reforma agrária, eles extinguiram o Inic, Imigração e Colonização, e criaram já o... Inda e Ibra são depois. Foi quando eu conheci o Vanderlei. A superintendência de reforma agrária. Aquele foi o momento quente da reforma agrária. E é interessante, pensando em termos de trabalho, comparando o Anísio com o Paulo Freire, aí que eu acho que está a diferença. Anísio é um homem que está preocupado com a educação daquela gente que foi libertada, que não tinha... Com essa população que tinha que ser incluída, a educação desses milhões que nunca tinham tido escola. Paulo Freire vem cinquenta anos depois, quarenta anos depois, no bojo da discussão sobre acesso à terra. Ligas Camponesas, reforma agrária. Você vê como é diferente. A preocupação é a inclusão, mas a discussão é uma discussão política muito mais profunda. Bom, então você tem a Revolução Cubana em 1959, as Ligas Camponesas, toda a discussão da reforma agrária, é esse o contexto em que se cria a Superintendência de Reforma Agrária. E o Vanderlei... Eu conheço o Vanderlei aí, ele vinha de outra... Ele vinha já pela igreja. Ele participou, não sei se da diretoria, do que foi. Quando veio a revolução, a revolução golpe, eles extinguiram a Supra e criaram o Ibra e o Inda - Instituto Brasileiro de Reforma Agrária e Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário. O Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, que era para fazer a reforma agrária. Inclusive, tem o projeto de reforma agrária dessa ocasião que foi muito trabalhado pelo Ibra. E o Inda era Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário, que devia cuidados dos outros órgãos que existiam na estrutura de serviços voltados para o campo. Eu fiquei no Inda. E o pessoal da revolução, o pessoal ficou no Ibra. Está todo mundo no Inic. Inic? Não, Inic foi lá atrás. Eu sou aposentada do Incra, Colonização e Reforma Agrária, que está aí na berlinda agora, que vai cuidar dos grupos indígenas. Você viu? O Incra. Eu na Educação e na... Bom, aí eu saio da Educação e vou para o Agrário, fiz muita coisa, viajei muito. Não tinha muito o que fazer, porque eu fiquei no Inda. Quando eu vim para São Paulo, não tinha nem onde ficar. E eu vim para São Paulo por causa do acidente que o Renato sofreu. Você sabe que ontem falaram nesse acidente? Foi interessante. Eu estava ouvindo rádio e no fim do dia a Cultura, ela tem um... Chama-se assim: Lembrando São Paulo. Lembranças de São Paulo. Olha, ontem, Lembranças de São Paulo... Cada dia eles falam uma coisa. Houve uma época em que eles faziam crônicas do Bomfim, Paulo Bomfim. E agora eles alternam - tem dias que tem crônicas do Paulo Bomfim, dias Lembranças de São Paulo. Não sei por que ontem, nem era data de nada, fevereiro, então eles relataram o dia em que o avião caiu em São Paulo, onde o Renato estava, três de maio de 1963. Eles ontem então... Eu digo: “Poxa vida”. “Entre os sobreviventes estava o ator Renato Consorte”. Isso foi uma coisa muito importante em nossas vidas, foi responsável pela vinda do Rio para São Paulo. Em São Paulo, eu volto à Educação, indo para a PUC.
P/2 – E você já tinha filhos nessa época?
R – Hein?
P/2 – Quando veio para São Paulo, já tinha filhos?
R – Já. Tinha o mais velho. A Adriana veio depois.
P/1 – Qual o nome do mais velho?
R – Renato. Ele não gosta, não, porque, já viu, não é? Ele é Renato Luiz, porque o avô era Luiz. Avô italiano. Você sabe que eu fui até... Qual o nome da cidade? Chieti, Lanciano, fui conhecer lá. Fiz curso de italiano. Aprendi italiano. Falava melhor que a família. Baiana metida, viu? Nossa, eu dei trabalho para aquela família também.
P/1 – E como foi a experiência de ser mãe? Essa experiência de ser mãe pela primeira vez?
R – Você não faz nem ideia. Bom, nós dois, você imagina que preparo. O Renato, ator, filho caçula, paparicado de tudo quanto era lado pelas irmãs, não tinha menor noção de nada, e eu... Bom, estava esperando o Rena para janeiro. Em dezembro, perto do Natal... Isso nós estávamos morando no Rio, apartamento gostoso, no Leblon, em frente ao mar, você vê. Aí começo a perder água, falo: “O que é isso?” Não deu outra coisa: prematuro. E o Renato fazia uma peça com a Fernanda, onde ele ganhou o prêmio de melhor ator naquele ano e tal. Só que o fato de ter sido prematuro... Minha mãe ainda não tinha vindo, porque ele ia nascer em janeiro, ela ia deixar passar o Natal para vir. Ele nasceu no dia 22 de dezembro. Ah, vocês não fazem ideia do que foi aquilo. Eu sei que... Inclusive, o pediatra que ia cuidar dele tinha viajado de férias, então quem nos atendeu foi o pediatra do hospital, que não tinha experiência. Bom, quase morre, resumindo. Veio para casa e eu cuidei como sabia, como podia. E ele teve uma diarreia, eu não sabia nada. Então eu liguei para o médico, ele mandou dar carvão. Eu dava carvão, não acontecia nada. Não tinha telefone. Telefone no Rio era muito raro. O que salvou o Renatinho foi o pessoal do teatro, porque eles iam lá para casa. No lugar de o Renato ir jantar com eles, ele os levava lá para casa. Saía do teatro ia lá para casa. A Sílvia... É outra Sílvia, mulher do... Ai, meus Deus... Maurício Barroso. Não sei se vocês ainda se lembram do Maurício. Estava tomando uísque, eu no quarto, ela veio ver, ele era um moço… Tinha a sua altura, um pouco mais. Era uma coisa tão pequenininha, ela disse assim: “Olha, Josi, está tudo bem, mas se ele começar a vomitar você corre para o hospital”. Não deu outra, amanheceu o dia ele... Foi o que o salvou. Eu o olhava no táxi, nós não tínhamos carro ainda, sabe uma caveirinha? Um bebê de oito meses, desidratado. Levei. Levei para o hospital onde ele tinha nascido e ele ficou lá. E eu entrei em pânico. Entrei, assim, em pânico. Fiquei mal, muito mal, me deram medicação. Eu achei que ele ia morrer, não achei que ele ia viver, não. Voltei para casa, tomei a medicação, dormi bastante, no dia seguinte começou aquela maratona de ir para o hospital, ir para o hospital, ele ficou na mesma sala, com a enfermagem, atendido o tempo todo, e isso o salvou. Para você ver, a minha mãe quando chegou, ele já estava mais aprumadinho. Mas foi muito difícil. E não veio ninguém de São Paulo. Não foi ninguém. Porque Natal. Você já imaginou, família italiana, Natal, nessa família? O Natal se prolongava até o Ano Novo, se reuniam muito. Quem podia ter vindo? Na verdade, pensando bem, todas elas tinham filhos, minha sogra idosa, eu sei que foi assim. Essa experiência de ser mãe do Rena não foi brincadeira, não. Mas depois minha mãe veio, vinha de vez em quando. O duro foi quando o avião caiu, porque uma das questões importantes era: onde nós vamos morar, afinal? Você sabe que paulista não mora no Rio, paulista gosta de morar em São Paulo. E eu já tinha convencido o Renato a morar no Rio, afinal, ele estava bem, estava na TV Rio, com bons programas, e muito querido, gostava da praia, morava no Leblon. Então tinha demorado, mas ele tinha concordado. O que ele veio
fazer em São Paulo? De vez em quando ele vinha para ver a mãe dele. Mas dessa vez ele veio e ficou... Porque a história da faculdade, ele não conseguia abrir mão da faculdade, achava que um dia ainda terminava, porque as irmãs queriam muito que ele fosse juiz. Ninguém queria que ele fosse ator. Ator foi um acidente, porque ele era muito engraçado, tinha uma verve muito grande, o Paulo Autran era aluno da Faculdade de Direito, tinha a caravana artística... Quando ele entrou, ele foi logo reconhecido como alguém que era bom que participasse da caravana artística. Aí ficou ele nessa da caravana artística, de Direito. Resultado: mas quando ele terminar o curso de Direito, ele vai ser procurador, juiz, que eram as profissões de prestígio. Uma delas morava no interior, em Birigui, e a elite local era toda formada por procuradores e juízes, tal. Então ficou essa história - tem que terminar esse curso. Ele veio para São Paulo, ia fazer uma última tentativa de transferência da Faculdade de Direito para a de Niterói, que é onde eram resolvidos esses casos difíceis. Ele veio para São Paulo, me ligou e disse assim: “Filha, não deu para resolver. Último dia de abril, amanhã primeiro de maio, a faculdade não abre. Então eu vou ficar dia dois, eu vou dia dois à tarde, quando terminar de resolver o problema da transferência e tal”. “Está bom”. Só que ele não veio dia dois, deixou para o dia três, e daí eu o estou esperando. O Renatinho tinha três anos, em frente à televisão, vendo o noticiário do horário, quando veio a notícia de que tinha acabado de cair, em São Paulo um avião da ponte aérea que se destinava ao Rio. Acabou. Era muita... A probabilidade de ele estar nesse avião era total, era grande, ele estava. Foi um ano e um mês de hospital, com muita queimadura, quase vai embora. Ele ficou muito... Mas tinha uma garra. Ele nunca se abateu. Eu tenho em casa todos os... O Renato... Olha só, um ator, e organizadíssimo. Tem o registro de todas as pessoas que foram ao hospital visitá-lo, e cartas, bilhetes. E viemos para cá. E aqui ficamos. Ficou resolvido o problema de morar no Rio ou em São Paulo. Até tentamos voltar, porque o primeiro convite para trabalhar que ele teve depois do acidente foi do Rio. Foi um emissário do... Agora eu não vou lembrar o nome dele, mas era um grande patrocinador que queria que ele fizesse um programa. E a pessoa foi lá a São Paulo e nós voltamos, viemos para cá. Ele chegou a entrar na Globo, um dos orgulhos, e ele estava bem, queria voltar para São Paulo. Nesse meio tempo, a mãe dele faleceu. Tinha uma irmã mais velha que tinha cegado, tinha tido um problema muito sério de visão. O Rio... Não fazia sentido mais o Rio. Então nós voltamos para São Paulo, viemos para São Paulo, e aí foi que eu... A Carmem tinha sido convidada para assumir a Antropologia na PUC e um amigo meu, que conhecia a Carmem, disse: “Olha, a Josi está vindo para São Paulo”. E estou eu aqui.
P/1 – E a sua segunda filha nasce quando exatamente? Quanto tempo depois do Renato?
R – Depois do hospital, viu? Nós ficamos um ano e um mês no hospital. Um ano e um mês. Nos primeiros dias, a incerteza era muito grande, porque queimadura tem isso, quando você sofre queimaduras, tem um problema de líquido do organismo. O governador do Rio, era governador, era candidato, era um cara muito querido, ele caiu, sofreu um acidente de avião, estava se recuperando, e de repente... Quando eu cheguei ao hospital, e eu quis muito saber como estavam os feridos, e eu perguntei, havia dois feridos no Hospital São Paulo, porque o acidente foi aqui, foi perto do Hospital São Paulo, foi logo depois que o avião levantou voo, deu problema e voltou. Então os feridos foram logo lá para o Hospital São Paulo, Hospital Anchieta. Morreu muita gente. Muita gente. Ficaram dois lá no Hospital São Paulo. Eu cheguei e perguntei como estavam. A moça perguntou: “De quem a senhora quer saber?”. Eu falei, ela falou: “Ele está mal”. Porque ele não urinava. O problema era fazer os rins funcionarem. Conseguiram. Vinte e quatro horas depois, uma festa lá na UTI por causa dos rins. Daí para frente ele não teve mais problema nenhum, teve problema em relação a... Quer dizer, não teve. Ele teve muitas queimaduras do lado direito, porque quando o avião bateu e voltou, esse lado encostou na fuselagem, e a cadeira da frente quebrou a perna, aí a fratura foi exposta. Isso eu nunca entendi. No afã de cuidar dele, a perna ficou de lado. Falei: “Mas por que não cuidaram logo dessa perna?”. Quando foram cuidar, tinha até capim dentro do... E deu infecção. E houve uma queda de braço muito grande entre o médico do hospital que estava cuidando dele e o médico da Cruzeiro do Sul, que estava achando que estava ficando muito caro. Foi a única coisa que eles cobriram, foi o hospital. Não recebeu nenhuma indenização, nada, nada, nada. Não sei por que nós não entramos com uma ação, por que ninguém orientou, não sei. Eu sei que então não fechava. E começou a ter um cheiro insuportável aquilo. Mas o doutor Waldemar Carvalho Pinto, que era o chefe da equipe, não desistiu. Mas o médico da Cruzeiro do Sul queria cortar, porque estava demorando demais e que aquilo não ia fechar. Sabe essa queda de braço assim entre duas... Felizmente fechou. Mais tarde ele teve problema, teve que fazer um enxerto. Mas, com tudo isso, o Renato não perdeu o humor. E você vai assistir ao programa do Jô Soares, vocês vão assistir, vocês vão se divertir muito.
P/1 – Você estava voltando, você comentou da sua entrada na PUC. Como foi?
R – A entrada na PUC? A entrada na PUC foi assim: eu continuava sem o doutorado, porque não dá para fazer doutorado assim. Eu vim fazer aqui e fiz na PUC. E não era o doutorado que eu gostaria de ter feito, que eu queria mesmo fazer lá no... Com a questão Quem Somos Nós? Que Brasil é esse que está se formando lá... Eu acabei fazendo com material do Incra, de trabalhador rural. Eu fui muito cobrada porque não era uma monografia. Mas não é mesmo. Eu quis fazer sobre a criação do bicho-da-seda, que era uma das atividades do Inda, que era desenvolvimento agrário, formação, cursos. E eu fiquei encantada com a criação do bicho-da-seda. Que as outras atividades em que eles treinavam eram muito rápidas: horticultura, silvicultura, não dava para... E bicho-da-seda é uma atividade de famílias. Tem uma parte que quem cria é a mulher, na cozinha, depois que vai para o campo. É muito interessante. É uma atividade... O próprio desenvolvimento da lagarta é fascinante. Os criadores recebem os ovos, são pequenininhos, e a dona da casa que fica com eles na cozinha, até a segunda idade. Quando eles vão entrar na terceira idade é que eles vão para o campo, porque eles comem desesperadamente folha de... E agora? Tem que lembrar. Então que você tem que ter uma plantação... Como eu vou esquecer? Bom, enfim, uma plantação... Amoreira? É. Amoreira. Uma plantação muito grande de amoreira, que quanto mais eles crescem, mais eles comem. Eles crescem e dormem, da terceira para a quarta idade. Não, quando eles são levados para o rancho, para os ranchos, eles dormem, da segunda para a terceira idade. Quando eles acordam, já na terceira idade, eles também comem muito para crescerem para a quarta idade, e também comem muito para a quinta idade. Na quinta idade, eles começam a fazer o casulo. É uma beleza, fazem de fora para dentro, é lindo. Eu tenho lá em casa um quadro que tem a evolução deles. Eu então fiz, foi onde eu consegui colher mais dados etnográficos, foi com a criação do bicho-da-seda. Mas não é realmente a minha menina dos olhos, não. Foi muito bem recebida, tive uma banca respeitável e tal, e tem gravada a defesa. O Renato... E essas coisas ele fazia muito bem. Ele foi lá para a cabine e conseguiu gravar. Tem o Procópio na banca, o Milton Santos, é uma banca respeitável. Você vê? Cada coisa.
P/1 – E como foi essa sensação do doutorado finalmente completado?
R – Sempre assim, um pouco... Podia ter sido em Colúmbia. Foi muito frustrante ficar sem o doutorado da Colúmbia. Houve um momento em que eu fiquei sabendo, depois que eu voltei, eu tinha sete anos para fazer. Ninguém tinha me avisado nada disso. Eu não sabia nada sobre esse mundo acadêmico, de doutorado e tal. Mas você sabe, com família, filho pequeno, acidente, não deu mesmo. Mas ficou, como se diz, o compromisso. E eu acho que eu realmente não gostaria de ter feito outra coisa a não ser Antropologia. Eu tenho uma satisfação muito grande por tudo que eu consegui, por tudo que eu cresci, pela contribuição que, de uma forma ou de outra, eu tenho dado para a formação de outros, e coisas assim. Do ponto de vista da carreira, a PUC não é o melhor lugar para você fazer uma carreira, porque a PUC é particular. E você... Hoje ficou muito mais difícil você... Você o quê? Você desenvolver a sua atividade com todas as exigências que o ensino superior tem, sobretudo essas de avaliação por produção acadêmica, que eu acho importante, mas não do jeito que está sendo feita. Na PUC, você... A PUC é uma empresa privada e depende do número de alunos. Quanto mais cara ele fica, menos alunos ela recebe. E todos esses fatores conjugados acabam criando uma situação muito... A PUC não paga hora de pesquisa. Por exemplo, você tem o seu salário, remunera as aulas que você dá e as orientações de tese: mestrado e doutorado. Pesquisa não, você tem que conseguir o recurso fora, você tem que encontrar tempo: fim de semana, feriado, férias. E a PUC tem tido, apesar de todas essas dificuldades, conseguido formar e manter um quadro muito bom. Mas meu filho diz que a PUC está sendo muito injusta. Que eu costumo falar da PUC, sem falar dos problemas da PUC. Não é isso, você tem que colocar a coisa como é. Se a igreja quisesse investir mais na PUC, tivesse outro olhar sobre a educação superior, certamente as coisas seriam diferentes. Mas eu não me arrependo de ter ingressado na PUC, de não ter feito concurso para a USP. Eu me lembro bem, eu vim para a PUC em 1966. É, 1966. Eu comecei na graduação, depois, quando veio a reforma, eu participei do ciclo básico, fui coordenadora de uma das áreas do ciclo básico, depois eu fui para a pós-graduação. A PUC não tinha pós-graduação. Aliás, não havia pós-graduação, por isso que eu fiz fora. A pós-graduação é de 1968, se eu não me engano, é quando a pós-graduação se organiza não só nas escolas particulares, nas universidades particulares, como nas públicas, mas com uma diferença muito grande entre públicas e particulares: você tem uma aposentadoria nas públicas que lhe dá direito a... Bom, primeiro tem limite de idade e você recebe o que você... Continua recebendo aquilo que você recebia no momento. Na PUC não, você tem uma aposentadoria ganhando INSS e é aquela, o resto é com você e a PUC e quem está administrando a PUC no momento, enfim. Mas uma experiência vital para mim, sobretudo em termos da relação com os alunos. A coisa que eu mais... O bem maior para mim foi essa relação, o que eu consegui construir por aí, tanto que está difícil, viu, deixar. Mas é isso. É isso aí.
P/1 – E eu queria te fazer uma pergunta mais histórica nesse ponto. Como era lecionar durante o período da ditadura, por exemplo?
R – Com um olho no padre, um olho na missa. Na ditadura... A reforma universitária é de 1968. Em 1964 foi o golpe, em 1968 foi quando endureceu mesmo. A vigilância sobre a PUC era muito grande, nós tivemos colegas presos. Quem não foi preso, era investigado. Nós tivemos a invasão da PUC. E nós, numa área como Ciências Sociais, éramos muito mais visados. Quando eu participei do básico, o básico pretendia dar uma formação comum a toda universidade, uma formação em Humanas para todas as áreas. E nós conseguimos isso, nós demos Antropologia até para Medicina, Enfermagem. Isso, por si só, já foi uma coisa muito importante. Agora, nós tínhamos a nosso favor uma coisa extraordinária, que nós não temos hoje: nós tínhamos Dom Arms, não é? Dom Arms, que foi um reitor, como dona Nadir Kfouri. Então nós tínhamos uma confiança tão grande na importância daquilo que nós estávamos fazendo, e no amparo que nós tínhamos, que fomos fazendo, fizemos. Até quando... A coisa foi se desfazendo porque o básico, quando pretendeu dar essa base comum a todos, incomodou muito o profissional. No começo, não devia haver nenhuma disciplina dos cursos profissionais no ciclo básico. Isso foi impossível. Então, o ciclo básico se ocupava de quatro dias na semana: segunda, terça, quarta e quinta. Sexta-feira ficou para as disciplinas de cada um, de cada curso. E elas começaram a fazer uma campanha, que você não faz ideia, contra o básico. Porque o aluno entrava na universidade era para fazer um curso superior, não era para fazer ciclo básico, e foi por aí. Depois de uma disciplina, passamos para duas - eram sexta e sábado - começou a pesar para os alunos também. E essas coisas todas, basicamente... A crítica foi interna, quer dizer, o básico... O nosso demorou bastante tempo. Os outros... A Unicamp teve básico também, a USP teve, nem sei direito como foi. A Unicamp teve um básico mais importante do que a USP. Mas essa expectativa, ou essa... Não é expectativa, é mais do que isso, convicção de que a universidade é para formar profissionais e que os profissionais precisam se profissionalizar e não ter essa formação crítica. Um dos objetivos do básico era formar a consciência crítica da realidade. As próprias áreas não estão interessadas nisso, em formar essa consciência crítica. E estamos lutando contra isso até hoje. Algumas áreas são mais abertas, outras não. Mas foi uma experiência muito boa.
P/1 – E falando dessa luta até hoje, me fale um pouquinho da sua rotina hoje. Como é a vida da Josi hoje? Você acorda, o que você faz? O que você gosta de fazer?
R – A Josi, bom, a Josi está com... Eu acho que o meu metabolismo está um pouco atrapalhado, não sei por que, a Josi nunca foi de acordar cinco, seis horas da manhã, nunca gostou de fazer atividade física. Faço pulso. Mas acordava sete horas, sete e meia. E hoje está difícil acordar cedo. Em compensação, eu durmo mais tarde. E estou aí pagando o preço da... Eu não vou usar envelhecimento, que essa palavra não se usa, mas eu ando com problemas de coluna, às vezes joelho, eu devo fazer uma cirurgia de ombro. Não sei por que, eu acho que o ombro reclama de tanto carregar livro. Mas eu tenho muito boa saúde. Muito boa. Fora esses sinais, eu estou bem. E, assim, apostando, quer dizer, esperando, eu não sei quanto mais, mas muito mais, muitos anos mais. Às vezes não, às vezes eu digo: “Ah, não. Não quero. Não quero mais compromisso nenhum. Chega”. Mas isso é muito passageiro, viu? Eu fico muito feliz em poder continuar. Eu tenho uma memória relativamente boa ainda, visão, audição não tanto, e leitura é uma coisa muito importante. Muito importante para mim. Fala-se em um livro que acabou de sair, porque eu já estou interessada em procurar, em ver. Cada dia abre-se uma nova janela e lá vai livro. Livro, gosto muito. Darcy gostava muito de livro. Nossa, quando ele pegava um livro assim, ele dizia: “Você não acha uma maravilha um livro?”. Ele tinha uma ternura, aliás, era uma palavra que ele usava muito - ternura pelos livros. Tinha uma biblioteca muito boa também. A relação do doutor Anísio com os livros, eu não sei qual era. Ele era um homem que teve uma formação muito boa, uma formação clássica, falava um Inglês vergonhoso. Darcy, eu nunca ouvi... Olha, que interessante. outor Anísio falava um Inglês assim... Realmente não tinha obrigação de falar bem, mas essa questão de... A gente sempre quis falar bem. O Francês eu não sei. Provavelmente ele falava bem melhor o Francês porque ele teve uma formação muito boa. Darcy, eu nunca ouvi falar. Nunca ouvi Darcy falar em língua estrangeira. Darcy tinha uma secretária de primeiríssima ordem, que traduzia as coisas para ele, que datilografava - naquele tempo era datilografia - todos os textos dele. Que dirigia para ele. Um privilegiado, viu? Berta. Berta Ribeiro, a mulher dele, que também era uma cientista, deixou um trabalho muito rico na área de... A Berta está mais interessada na parte material da cultura. Eles têm um livro muito interessante sobre a Arte Plumária. Você conhece? Você tem? Pois é, Arte Plumária dos Índios Kaapor. Que beleza aquilo. Darcy era um sem vergonha. Um dia eu cheguei lá ao museu, ele falou assim: “Josi, filha...” – ele chamava a gente, todo mundo de filha – “Escolhe aí uma...” – sem vergonha – “Escolhe aí uma peça para você”. E eu acreditei. Fiquei lá horas assim procurando, até que eu escolhi. Falou: “Está bom. Então essa peça é sua, mas ela vai ficar aqui procurando...”. Esse era o Darcy. O Darcy era bem sem vergonha.
P/1 – E você comentou do seu artigo, que você está produzindo, comparando o doutor Anísio com o Paulo Freire. Você chegou a conhecer o Paulo Freire?
R – Muito... Olha, socialmente. Conheci na PUC, palestras e tal. Mas olha só as coisas. Uma vez nós fomos para Recife, eu e o Renato, ficamos num hotel ali na Piedade, que era onde ele tinha apartamento. Um dia, nós estávamos na praia, de manhã, chegou o casal. Olhei assim, Paulo Freire e a mulher dele. E eu me dei a conhecer, ficamos conversando e a conversa aconteceu durante vários dias em que nós estávamos por lá, encontrávamos na praia. Você acredita? Esse é o contato mais próximo que nós tivemos. Agora, poxa, que pena. Mas o tempo em que eu poderia ter conhecido Paulo Freire, meu tempo de PUC, ele praticamente estava exilado. Estava exilado. A volta dele foi emocionante. Emocionante a volta de Paulo Freire. Coisa extraordinária, uma pessoa... E você lê o trabalho dele, parece assim tão intuitivo. Tão intuitivo. A mulher dele mora pertinho, ali naquela... Do lado da pizzaria. E eu estou querendo muito me dedicar exatamente a ele, ao trabalho dele, porque eu não conheço, não tive essa experiência direta. Tenho um bom contato com o Mário Sérgio. Mário Sérgio foi da equipe do básico, da equipe de PFTHC - Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo. E o Paulo Freire é o patrono da área. Tenho muito bom contato com o Alípio, que hoje é... Eu não sei que cargo o Alípio tem, é um professor muito antigo da PUC, na área de Educação. Mas é uma pena. É uma pena mesmo. Você o conheceu pessoalmente?
P/1 – A gente tem entrevista dele no acervo.
R – Ah, eu quero ver um dia.
P/1 – E voltando agora mais para a sua vida mesmo, para a sua família. Você comentou do seu marido, dos seus filhos, você comentou que tem um neto. Você tem outros netos? Fale o nome deles para a gente.
R – O neto mais velho é Pedro.
P/1 – Que é filho de quem? O Pedro é filho do Renato?
R – Filho do Renato. O Pedro fez, na PUC, Artes do Corpo. O Pedro é muito ligado a Artes do Corpo. Começou no Barbatuques, depois foi para o... Olha só, passou muito tempo lá na Europa, participou do Stomp. Teve uma passagem muito rápida pelo Cirque du Soleil, muito rápida, foi quando ele já estava voltando. E está muito envolvido com comunicação e toda essa parte corporal. Como se chama? Música do Círculo. Você sabe o que é isso? Ele está muito ligado a esse grupo. E passa no computador o dia todo, tem uma área de influência enorme, fala coisas para as pessoas, dá cursos. Está com trinta anos, trinta e um vai fazer. Verinha o conhece. Esse é o Pedro. Está fazendo o mestrado em Artes do Corpo. Fez um ano o ano passado, esse ano ele deve terminar. E a outra... Eu tenho quatro netos: tenho o Pedro, a Cecília... A Cecília é também filha do meu filho, do segundo casamento, é aluna do Equipe, é muito boa aluna, é muito... Como eu diria? Ela é... Eu defino a Cecília... Você conhece? Bom, no momento, ela tem o cabelo pintado metade de uma cor, a outra metade a cor do cabelo dela (risos). Ela tem uma postura muito de esquerda, muito combativa, e tem um grupo, eles dizem que vão morar juntos, todos (risos). Eu viajei com ela, passamos um mês na Inglaterra, agora no meio do ano, foi muito legal, nós nos damos muito bem. Ela está com dezesseis anos agora, está fazendo o terceiro ano do colegial, está escolhendo o que vai fazer. Tem um lado artístico muito forte, de desenho e de música, toca várias coisas. Muito legal. Bom, a filha mora na Inglaterra, é bióloga, fez a formação dela aqui em São Carlos, a graduação, a pós fez lá. Trabalha com Conservação, a tese foi sobre o lobo-guará. O mestrado, ela fez com material colhido aqui no museu, era reprodução do lobo-guará, o mestrado. O doutorado já foi com... Ainda sobre o lobo-guará, mas são outros aspectos do lobo-guará. E ela estava trabalhando com o lobo na Europa, o lobo-guará. Ela hoje é professora na Christ Church University. E tem dois filhos. O mais velho é cineasta, fez agora o mestrado, tem trabalhado muito com cinema, está namorando uma chinesa de Hong Kong, tem andado muito por lá, tem filmado muito por lá. É interessante, tem uma abertura assim. Interessante ele falar lá daquela região. Volta e meia, ele está por lá. Uma atitude tão gostosa, é tão legal de ver, não tem exotismo, entendeu? E tem o menor, de quem eu gosto muito, e que é esportista. Ele é esportista. Rugby e futebol. Esse tem doze anos, entrou agora para o ginásio e lá... E, você sabe, a Inglaterra é muito formal, está estranhando. Porque entra num outro... Até roupa eles agora... É terno e gravata. Tem doze anos, entendeu? Então estão lá. Eles moram em Canterbury, e por conta disso, eu nunca imaginei que fosse conhecer a história do Arcebispo da Cantuária. Nós temos um texto famoso sobre a suíte de cantuária, nem os contos... Como eles chamam? Tem um nome especial. Porque depois da morte do arcebispo, Canterbury virou... A catedral é muito linda, a catedral onde o bispo foi morto. E tem então... A viagem de Londres para Canterbury se tornou assim uma... Ela virou um santuário, a igreja, o pessoal vai para...
P/1 – Uma peregrinação.
R – Peregrinação. Um centro de peregrinação. Tem os contos, os contos de Canterbury, onde eles narram tudo que acontecia nas viagens, e tal. Eu gosto muito de lá. Eu já fui várias vezes e gosto muito de estar por lá, sobretudo em Canterbury mesmo. E o marido é ator. É família de...
P/1 – E falando desses gostos, de vontades também, indo para umas perguntas mais finais agora, se você tem um grande sonho hoje, o que você gostaria de realizar?
R – Eu gostaria de continuar pesquisando e entendendo melhor a nossa formação, sobretudo. Estou muito esperançosa de realizar um trabalho legal comparando o Anísio com o Paulo Freire, mas estou ficando muito interessada, cada vez mais, na questão do negro. E estava contando para a Verinha, por conta disso, de repente, ficou muito importante saber um pouco mais sobre o islã, porque eu estou oferecendo uma disciplina, uma atividade programada - maio e junho - que se chama O Negro da Ótica do Negro. Mas, no caso, o negro africano. Eu já dei esse curso em relação ao negro brasileiro. O Negro da Ótica do Negro, como o negro brasileiro se vê, pegando historicamente as figuras que escreveram, que pensaram, que se colocaram. E esse autor, ele hoje é um homem, Achille Mbembe, ou Achille, enfim, ele está escrevendo sobre a razão negra, que, no entanto, sei bem o que é a razão negra. Tem a ver com subjetividade, tem a ver com isso, como o negro se percebe tendo em vista o seu histórico. E eu estou muito animada com a novidade, que acho que para mim é novidade. Eu não sabia que a islamização da África tinha sido tão importante. Você tem de um lado a islamização, do outro a cristianização. E tem uma, vamos dizer, não sei se chega a ser uma disputa, mas são duas... Você tem as populações nativas africanas, que são inúmeras, os grupos étnicos que sofreram esse processo, sendo que me parece que só os cristianizados conheceram a escravidão do jeito que foi feita aqui. A diáspora africana do jeito que a gente estuda hoje aqui, esse interesse todo, tudo que nós chamamos diáspora africana tem a ver, pelo que até agora o que eu vinha lendo... Tem a ver com a dispersão dos africanos por conta da cristianização. Mas há muita coisa sobre o islamismo que a gente não sabe. Eu estou muito interessada em ver. Dos escravos que vieram para o Brasil, um pequeno grupo era islâmico, e que se separou muito dos que não eram. E só eles fizeram uma revolução como escravos, os Malês. Estou aí, achando que eu vou viver ainda muitos anos. Mesmo esquecendo um pouco das coisas, mas tentando ampliar. Essa é a ideia, talvez, ampliar a percepção. A gente está num mundo tão difícil. E tem uma coisa: o homo sapiens é uma caixa de surpresa. E, à medida que os anos passam, não sei, ninguém tem muita clareza do que vai acontecer. A ocupação da terra hoje é quase... Não há lugar onde nós não tenhamos chegado enquanto espécie. E é uma espécie que tem uma incompletude, eu acho que isso é... Alguma coisa no sapiens, esse best seller, ele coloca muito bem essa questão. Que está no Morin. No Morin já abre falando no homo demens e dizendo que existe uma brecha, uma incompletude, e é nessa brecha que você tem a expressão artística e a loucura. É ela que permite. Essa coisa da incompletude é muito séria e é o que nós temos. A gente não tem certeza e tem uma ânsia muito grande por certezas. E acho que não tem como ter certezas mesmo.
P/1 – E, Josi, como uma pergunta final, o que você achou de dar sua entrevista aqui para o Museu, de contar um pouco da sua história para
a gente?
R – Interessante. Eu sempre me achei uma pessoa muito tímida. E as pessoas dizem que eu não, mas eu me acho, eu sei que eu sou. E acho que eu estou ficando menos. E no começo eu tinha... Dizia: “Ah, mas como será? Eu vou falar de mim? Falar o quê?”. E eu tenho, ultimamente, sido muito solicitada. Eu acho que a gente vai vivendo, vai vendo muita coisa, e as pessoas acham que a gente tem... Eu estou achando que, para mim mesmo, são oportunidades que eu tenho que refletir sobre as coisas. Eu tenho muita ansiedade. Eu sou uma pessoa muito ansiosa. Essa aparência assim, meu filho diz que é muito enganadora. Mas eu sou muito ansiosa, eu não tenho nem um pouco dessa tranquilidade que eu posso aparentar, porque as perguntas são muitas, as incertezas são muitas. E eu acho que o desejo de eternidade, embora... Já pensou viver eternamente? Maria Helena é uma colega nossa, quero muito bem a ela, Maria Helena Concone. E falando um dia sobre essas coisas, ela disse: “Eu não sei se existe um livro de um autor francês que discute essa questão, a respeito de alguém que, muito incomodado com o fato de ter que morrer, ele queria viver eternamente”. Eu não sei que experiência ele acaba tendo dessa vida, ou é o personagem sobre o qual ele escreve, que chega um momento e diz: “Não. Não dá. É muita coisa”. O viver eternamente, que parece uma coisa assim... Morrer assusta. A mim ainda assusta. Para outras pessoas, não. Mas também não tem muito jeito, viver eternamente deve ser além do pensável. Queria muito agradecer a vocês, a Verinha em especial, porque ela me faz fazer coisas que eu duvido. Entendeu? E a você. Você, poxa vida, é muito... Tem um jeito muito especial de chegar. E eu falei pelos cotovelos.
P/1 – A gente adorou, Josi. Para gente, enfim, é um prazer ter escutado a sua história, um pouquinho da sua história, tem muito mais, eu tenho certeza, mas é um prazer também saber que agora você faz parte desse acervo.
R – Ah, que beleza. Coisa boa.
P/1 – Muito obrigado. Em nome do Museu da Pessoa eu agradeço muito.
R – Obrigada. Obrigada. Muito bom mesmo.
FINAL DA ENTREVISTARecolher