Projeto Memória dos Brasileiros
Entrevistada: Valdete da Silva Cordeiro
Belo Horizonte, 05 de Julho de 2008.
Código: MB_HV038
Revisado por: Carolina Margiotte Grohmann
2º Revisão: Nataniel Torres
P/1 – Dona Valdete, eu queria que a senhora me falasse seu nome completo, o nome dos seus pais, a cidade onde a senhora nasceu.
R – Bom, meu nome é Valdete da Silva Cordeiro. Meu pai se chamava Manoel e minha mãe, Ornelina, né, Manoel e Ornelina da Silva. Eu nasci na cidade da Barra, na Bahia. Quando meus pais morreram, a minha madrinha de crisma me pegou para criar. Ela veio para Minas Gerais, eu vim junto. Vim para cá mais ou menos com a idade de uns cinco, seis anos e fui criada com essa família. Elas eram família, um casal de brancos, de classe média. Eles nunca tiveram filhos, criavam, geralmente, o filho dos outros. E eu fui uma dessas que ela criou. Eu não tive muita oportunidade de estudar, porque eu acho que porque eles nunca tiveram filho, eles não sabiam o que era a responsabilidade de criar uma criança, né? Então eles não me puseram na escola, eu mesma que me matriculei. Eu conheci uma menina que era pedinte e ela estava na escola. E eu perguntei: “Como é que você fez para entrar na escola?”. E ela falou: “A minha avó que me levou e me matriculou”. Só que para entrar na escola você não pode falar que você mora onde você mora. Que eu morava no bairro dos Funcionários. Você tem que falar que mora na favela, mora com a avó e eles te matriculam, fazem sua matrícula. E assim eu fiz. Eu fui à escola, falei que morava na favela do Pau Comeu, e que eu não tinha nem pai, nem mãe e morava com minha avó. A diretora me chamou, fez a matrícula e eu ganhei tudo, material escolar, uniforme. E eu comecei a estudar. Só que eu era muito levada, uma criança muito levada e o castigo que eles me davam era não ir à escola. “Hoje você não vai à escola!”. Era o meu castigo. E eu era uma das melhores alunas, principalmente em matemática, né, que eu era boa em matemática. Então estudei o primeiro e o segundo ano. Quando foi para me passar do segundo para o terceiro, eu não fiz as últimas provas, eu estava de castigo. E andando na rua, encontrei a minha professora, estava no ponto do ônibus e falou comigo assim: “Ô, Valdete, logo você, minha melhor aluna, perdeu a última prova! Você não vai passar esse ano!”. Eu não disse nada. Eu apenas chorei e nunca mais fui à escola. Então eu tenho o segundo ano primário, foi o que eu fiz. E já tentei agora, há dois atrás, a continuar o estudo, mas eu tenho um bloqueio que não consigo continuar. E o meu primeiro trabalho foi empregada doméstica. Comecei a trabalhar em uma casa de família. Dessa casa de família, eu saí no dia em que eu me casei. E aí tive a minha vida de casado. Meu marido era pintor de parede e depois ele jogava em um time de vala, né, como eles falam. Depois ele passou a jogar profissional, lá em Formiga. Uma cidadezinha que chama Formiga, aqui em Minas Gerais. E eu me mudei para lá com ele e tal. E lá ele teve, assim, um fracasso na vida. Passei muita necessidade, eu tive que vir embora para Belo Horizonte de novo para recomeçar a minha vida. E vindo de lá, eu não podia voltar mais para a casa dos meus pais de criação, porque a minha mãe já tinha falecido e meu pai já morava com uma outra pessoa. E eu já tinha quatro filhos. Então era difícil, né? E a minha sogra tinha uma amiga, que morava lá, no Alto Vera Cruz. E foi o caminho que eu achei de me instalar em um lugar, foi lá, nessa favela do Alto Vera Cruz. E lá eu fui vivendo, fui chegando aqui, procurando emprego, voltei a empregada doméstica de novo e assim eu fui criando meus filhos. Morei de aluguel algum tempo. Às vezes era despejada das casas porque não tinha o dinheiro para pagar e assim fui vivendo. Até que um dia a minha irmã, eu tenho uma irmã de criação que já morava nesse local, falou comigo: “Eu te dou um pedaço aqui, você constrói e sai do aluguel”. Aí eu fui lutar para conseguir construir esse barraco. E fui atrás dos engenheiros, que eles desmanchavam prédio, para eles me darem os tijolos. Eu consegui os tijolos, eu mesmo ajudava a desmanchar as casas, empilhava o tijolo e consegui ganhar os tijolos. E daí por diante eu fui lutando, até conseguir construir dois cômodos. E desses dois cômodos eu me mudei para lá, sem água, sem luz, sem nada. E isso tem 31 anos que eu moro nesse lugar. A minha filha caçula tinha três meses quando mudei para lá. Eu acho que mudei para esse lugar, eu fui para esse lugar, eu não acho que foi coincidência, não. Eu acho que eu tinha que estar lá porque eu cheguei e não tinha água, não tinha luz, não tinha rua. Tinha algumas casas, muito mato. E quando eu comparei o lugar que eu fui criada, o bairro que eu fui criada, que era o bairro dos Funcionários, para onde que eu estava morando, eu falei: “A diferença é muito grande, mas pode ser igual, por que não?”. Aí eu comecei a pensar em como lutar pela melhoria daquele bairro e não sabia como. E você sabe que, assim, favela tem algumas pessoas que fazem visita e conversa, e tal. Tinha uma mulher que estava visitando as mulheres, passando para as mulheres, como é que a gente fala, conscientizando as mulheres dos seus direitos, dos seus deveres. E com isso essa mulher ia na minha casa e eu atendia e ela foi indo umas duas, três vezes, e eu falei: “Eu vou chamar as vizinhas que tem por aqui para juntar aqui em casa, nós vamos ouvindo essa mulher. Quem sabe está aí a solução para a melhoria do bairro”. E assim eu fiz. Chegou a ponto de a gente juntar 50 mulheres na minha casa. E com isso, eu tive a ideia de convidar as mulheres para a gente começar a lutar pela melhoria. Pela água, pela luz, por escola, por creche, que a gente não tinha nada. E como a gente ia conscientizar, ia chamar as pessoas que moravam para estar junto com a gente, a gente não sabia. Então nós tivemos a ideia de fazer teatro. Mas fazer teatro como? Aqui não tem artista, aqui não tem quem escreve peça. Dá um jeito, mas nós vamos fazer teatro. Aí tinha uma das meninas que falou assim: “Eu escrevo a peça!”. Então nós escrevemos uma peça que se chamava “Dona Maria, onde está o feijão?”, que era um marido que levava arroz e chuchu na sua marmita. Um dia ele chegou nervoso em casa, porque estava cansado de comer aquilo e a mulher foi falar com ele: “Você não luta pelos seus direitos, né?”. E nós começamos a conscientizar a comunidade que a gente tinha que lutar pela melhoria do nosso bairro. Aí nós arrumamos um caminhão velho, um lençol, que era as cortinas, e cada fim de semana a gente ia para uma esquina fazer o teatro. E assim nós fomos chegando à comunidade, aproximando a comunidade da gente. Aí nós começamos a lutar primeiro pela água, que veio a água. Depois pela luz, né? E aí começou abertura de rua, escola. A primeira escola, as crianças tinha que levar caixote ou banquinho para sentar, para estudar. E aí começou a luta pela melhoria do nosso bairro, que hoje é maravilhoso. E depois da luta pela melhoria, eu comecei a pensar também nas pessoas que moram no bairro, na qualidade de vida também das pessoas que moram no bairro. E aí foi que surgiu meu trabalho com “Meninas de Sinhá”. Eu passava todo dia para trabalhar, eu passava em frente ao centro de saúde, que hoje eu moro em frente. As mulheres saíam do centro de saúde com sacolas de antidepressivo e eu achava aquilo um horror. Como uma pessoa toma tanto comprimido em um dia? E comecei a observar as mulheres e parar e conversar com elas. “Porque você toma esse remédio?” “Ah, porque eu sinto uma dor aqui dentro. Eu sinto uma angústia. Eu sinto tristeza. Eu tenho vontade de chorar. Se eu não tomar esse remédio, eu não durmo.” Então eu comecei a notar que as mulheres não eram doentes, elas precisavam de uma autoestima. Elas precisavam cuidar mais delas. E voltei para casa, pensando assim: “Gente, o que eu vou fazer com essas mulheres?”. E tinha um rapaz que era o presidente da associação, que se chama Paulão, hoje ele é um vereador, comentando com ele, ele falou: “Ah, chama as mulheres para bater papo”. E eu fiquei com aquilo na cabeça: “Chamar essas mulheres para bater papo?”. E assim eu fiz, mas foi difícil. Porque elas falavam: “Eu tenho roupa para lavar, eu tenho casa para cuidar. Eu tenho almoço para fazer. Eu vou sentar para bater papo?” Quer dizer, elas não tinham tempo para isso. Mas eu fui muito insistente. Eu falava com elas: “Mas vamos conversar um pouquinho para melhorar a sua saúde, para tirar um pouquinho a sua angústia, né?”. Aí eu consegui umas duas, depois foi outra e eu fui conseguindo aos pouquinhos. Depois nós começamos a fazer trabalhos manuais. Era aqueles tapetinhos de amarrar, era fuxico. Quem sabia alguma coisa passava para outra. Boneca, essa coisa toda. E eu comecei... Mas eu estava notando que aquilo não estava melhorando muito a vida das mulheres, porque elas continuavam tomando remédios, elas continuavam tristes, né? Aí eu falei: “Gente, eu tenho que fazer mais alguma coisa porque eu estou tirando as mulheres de casa, do trabalho e pondo elas para trabalhar de novo. Isso que elas fazem, nós fizemos desde a infância. Porque na infância a gente aprendeu a bordar. Isso tudo desde pequeno”. Eu falei: “Eu estou trazendo as mulheres para trabalhar de novo”. E sem saber o que fazer. Teve uma festa lá no bairro, na escola Israel Pinheiro, que tinha diversas apresentações, tinha dentista, cabeleireiro... E tinha uma sala que tinha uma mulher que falou: “Olha, aqui na minha sala vai ter expressão corporal para gestante e para idoso”. Eu falei: “Então é aqui que eu vou entrar”. Aí fiz a expressão corporal com ela. Falei: “Meu Deus do céu, é isto que eu preciso para o meu grupo. É isso que as mulheres precisam, trabalhar com o corpo e com a mente!” Aí cheguei perto da professora, falei com ela assim: “Olha, eu tenho um grupo”, expliquei para ela a situação, como é que estava e tal e que eu precisava disso para o meu grupo. Ela falou: “Ó, eu sou contratada aí da prefeitura, se eles me mandarem, eu vou com muito prazer para você”. Aí rapidamente eu fui à prefeitura, conversei no departamento de cultura, expliquei para o rapaz a minha situação, falei que eles tinham que me ajudar para ajudar essas mulheres. Ele deixou ela comigo seis meses. E eu ali aprendendo com ela, porque ela ia embora e eu tinha que ficar. E eu notei que as mulheres começaram a melhorar com a expressão corporal. E a expressão corporal era três vezes por semana: segunda, quarta e sexta. Então sexta-feira eu comecei a deixar a expressão corporal e comecei a brincar com elas. E qual era as brincadeiras? Eram as nossas brincadeiras de infância, era “passa anel”, era “barra manteiga”, que era “chicotinho queimado”. Comecei com aquelas brincadeiras, com elas. E, logo depois, nós tivemos um evento no Alto Vera Cruz que se chamava: Tambor Alto. E tinham diversos grupos que se apresentavam, capoeira, dança afro, banda, hip hop, rap, e nós fomos convidadas para apresentar a expressão corporal. Quando chegamos lá, tinha 2000 pessoas, a maioria jovem. E as meninas lá em baixo olhavam para cima, aquelas meninas de dança afro, né, com aquelas roupinhas e tal, elas falaram: “Valdete, nós não vamos ali em cima, porque nós vamos ser vaiada. Olha lá que coisa linda aquelas meninas, agora sobe esse monte de velha. Não vou!”. Aí eu falei com elas: “Não. Nós vamos sim. Nós vamos subir, apresentar. Vai ser muito bonito. Nós vamos ser aplaudidas”. Agora, dentro de mim mesmo, eu estava com medo. Só não podia demonstrar para elas. Aí quando chegou na hora da gente apresentar, eu passei para o rapaz do som uma fita que tinha a nossa música e foi no tempo da copa. Então nós enfeitamos pauzinho de vassoura de verde e amarelo, a nossa blusinha era amarela. Então subimos no palco. Quando nós subimos, que nós pusemos o bastão no chão e começar a fazer a ginástica, foi um silêncio. Que eu olhava e só escutava o barulho dos carros. Aí eu falei: “Meu Deus, depois desse silêncio o que virá? Se vier uma vaia, o que eu trabalhei com essas mulheres, até hoje, vai tudo por água abaixo”. Então quando nós terminamos, pegamos o bastão, fizemos a ginástica direitinho, tudo bonitinho. Quando nós terminamos, nós fomos muito aplaudidas. Tinha gente chorando, gente assobiando, mas foi assim aquela maravilha mesmo. Quando nós descemos uma delas olhou para mim, pôs a mão nas cadeiras, falou assim: “Viu, minha filha, nós somos artistas”. E daí por diante nós começamos a apresentar expressão corporal em todas as festas que tinha de prefeitura, seminário, congresso, essa coisa toda nós apresentamos expressão corporal. Na sexta-feira, quando a gente terminava as brincadeiras, geralmente, uma falava assim: “Vamos brincar de roda?”. E toda sexta-feira elas pediam para brincar de roda. Então eu notei que a roda estava muito presente na vida delas. Que a maioria delas vieram da cidade do interior, né? Aí me veio a ideia de formar um grupo e da gente sair brincando de roda nas escolas, nas creches, nas praças, né? Aí eu convidei, fiz reunião e convidei. Elas: “Vamos sim, nós vamos fazer. Vamos formar esse grupo”. E tinha um rapaz, que se chama Roquinho, ele era da Secretaria de Cultura, ele estava sempre comigo, por ali. Ele falou: “Valdete, eu vou te ajudar a formar esse grupo”. Então qual que era o para casa delas? Toda sexta-feira elas traziam para mim um canto que elas lembravam da infância. E ele trouxe o gravador e ia gravando as músicas, os versos e, assim, levaram um tempo, fazendo esse exercício de lembrar das cantigas de roda. E aí elas começaram também a fazer pesquisa. Tinha senhoras que já estavam de bastante idade, que já não andavam muito e elas iam lá, conversavam com elas, elas cantavam e gravavam a música daquelas senhoras, né? E assim, nós formamos o grupo e elas falaram assim: “Olha Valdete, nós temos que ter uma roupa. Como é que nós vamos fazer? Apresentar um grupo com uma roupa comum, igual a nossa? Nós temos que mudar. E temos que mudar o nome do nosso grupo”. Porque nosso grupo chamava “Lar Feliz”, era o primeiro nome. Aí eu falei: “Mudar por quê?” “Ah, nós já estamos muito assanhadas para o grupo chamar Grupo Lar Feliz”. Eu falei: “Então vocês vão fazer pesquisa também do nome do grupo”. Estão lá, elas fazendo pesquisa, nós lembramos que tinha um grupo que os meus filhos quando eram pequenos participaram, que era de dança de maculelê, que se chamava “Meninos de Sinhá”. Então nós pegamos o nome “Meninas de Sinhá”. E aí formou o grupo. Então nós fomos convidadas para apresentar na inauguração do Centro Cultural do Alto Vera Cruz e nós falamos assim: “Agora com que roupa nós vamos apresentar?”. Aí esse rapaz que estava comigo, o Roquinho, conseguiu na Secretaria de Cultura o tecido e um figurinista, que fez o nosso figurino. Então era uma saia estampada, uma blusinha branca de manguinha fofa. Essa foi a primeira apresentação nossa. No dia dessa apresentação, nós inauguramos o Centro Cultural, o Centro Profissionalizante. Foi tudo inaugurado no mesmo dia. E, desse dia em diante, se você me perguntar, como nós chegamos até aqui, que já rodamos Minas Gerais quase toda, o Vale do Jequitinhonha, Rio, São Paulo, Salvador e gravamos um CD, eu não sei te dizer como nós chegamos lá. A única coisa que eu sei te dizer é o seguinte: tudo que se faz com amor, cresce, né? E eu acho que foi isso que fez crescer o nosso grupo, esse amor. Foi a família que eu não tive e que eu achei, junto com essas mulheres. Eu cresci, aprendi com elas muita coisa e eu acho que é isso. E hoje eu sou uma mulher feliz. Elas são felizes, não tem mais remédio para depressão. E elas não têm mais tristeza e é só alegria. Então é isso o grupo “Meninas de Sinhá”.
P/1 – Dona Valdete, mas quantas meninas são?
R – Olhe, são 35. Mas não fica só nas 35, 35 são as que cantam, que dançam. Tem as outras que fazem só expressão corporal, por elas serem evangélicas e não poderem usar essas roupas que nós usamos, usar colar. Então é só lá dentro mesmo. Elas brincam com a gente, elas fazem a expressão corporal. Então se contar todos, tem mais de 50.
P/1 – E vocês estão se encontrando semanalmente?
R – Do mesmo jeito: segunda, quarta e sexta, de sete às oito da manhã.
P/1 – E você lembra as primeiras músicas que vocês tocaram nessa apresentação?
R – Olha, a primeira, que essa aqui fica gravada, porque eu que recordei, quando era menina eu cantava muito, é: (canta) “Ó, que noite tão...”, eu estou meio rouca, “... bonita, ó que céu tão estrelado! Quem me dera ver agora o meu lindo namorado”. Eu estou rouca porque eu cantei muito ontem no show. Estou um pouca rouca.
P/1 – E o que mudou para você, assim, agora assim, sendo artista, como você falou. Como é que está o seu dia a dia?
R – Olha, o dia a dia é ocupadíssimo, né? Porque eu ainda trabalho. Não sou ainda aposentada. Eu trabalho no centro que trabalha crianças e adolescentes. O meu trabalho é com meninas de sete a doze anos, que são as “Netinhas de Sinhá”. Elas também estão aprendendo os "cantigos" de roda. Elas vão nas creches, apresentam e brincam com as crianças. Então é o seguimento de Meninas de Sinhá, são as Netinhas de Sinhá. E geralmente as pessoas me chamam para dar palestras. Fora as apresentações. Tem vezes que nós temos duas apresentações no dia. E é isso aí a minha vida.
P/1 – E onde você aprendeu a cantar?
R – Acho que eu já nasci cantando. (risos)
P/1 – Quando você chegou lá na comunidade, assim, você começou a construir seu cômodo, como é que foi seu começo de relacionamento com a comunidade?
R – Olha, primeiro foi, a minha irmã era vizinha. Tinha uma senhora velhinha que era do lado, era minha vizinha. Eu necessitava de água, eu tinha que ir na casa do pessoal que tinha cisterna para me ceder água. Eu tomei assim, para mim foi difícil, você sair de onde você saía, de você morar onde você morava. Porque lá em Formiga, eu morava em um lugar muito bom. Mudamos para Campo Belo, eu também morei em lugar bom. Para você entrar em uma favela, onde você não tem um banheiro, você tem uma fossa, onde você não tem água... Para mim foi, assim, um susto muito grande. Mas eu recebi aquilo ali como se natural, como se fosse uma nova vida, é um novo começo de uma vida difícil, mas não era impossível, né? Aí, para mim, eu fui me habituando. Hoje eu amo o bairro onde eu moro. Amo a minha comunidade.
P/1 – Esse trabalho que você começou, assim, com expressão corporal tem quantos anos?
R – Tem 17.
P/1 – As Meninas de Sinhá?
R – É Lar Feliz, se for contar desde o Lar Feliz é 17. Mas, Meninas de Sinhá, nove.
P/1 – E, me fala uma coisa: você falou agora que vocês estão trabalhando com as netinhas e tem um trabalho social muito bacana, que você acha importante? Qual a importância de estar transmitindo esses conhecimentos?
R – Olha, acho que esse exemplo principalmente da pessoa da terceira idade, como é que diz, reviver, porque é o que elas falaram, tem umas que falam assim: “Olha, eu, agora que chegou a minha infância. É agora que eu estou brincando, porque nunca brinquei, trabalhava na roça. É agora que estou vivendo”. Então o que a gente quer passar é que nunca é tarde para viver, nunca é tarde para amar, nunca é tarde para brincar. Eu acho que para brincadeiras não tem idade, né? O importante é ser feliz. Eu acho que o amor, a solidariedade, eu falo assim: “O que é uma roda que nós brincamos? Uma roda são todos de mãos dadas, andando para o mesmo lado e cantando a mesma canção”. Já pensou se os nossos governantes fossem assim? Dessem as mãos, pensassem igual e trabalhassem igual? Seria bom, né? Eu acho que é isso que está precisando no nosso país. Essa união de olho a olho. Porque enquanto você está na roda, todos estão te vendo. Você está brincando de roda, todos estão cantando. Está um olhando para o outro e de mãozinhas dadas. Eu acho que é isso que está faltando. Esse amor, esse, como é que a gente fala, pegar mesmo, esse contato humano, está faltando muito no nosso país.
P/1 – E você falou para mim, também, que além de vocês cantarem as cantigas, vocês trabalham com outros sons, outros grupos, como que isso começou?
R – Olha menina, a primeira gravação que nós fizemos, de um CD, foi com um grupo de rap, né, o NUC, Negros da Unidade Consciente. Foram meninos que foram ali e trabalhou comigo na comunidade, cresceu junto comigo, ali, trabalhando junto, reivindicando junto com a gente. Eles cresceram e formaram um grupo de rap e nos convidaram para cantar com eles no cd. No início nós ficamos assim: “Pô, mas cantar com jovens, a gente de idade, como é que vai ser isso?”. Mas quando a gente começou junto, que começou a trabalhar as dinâmicas, os tambores, a coisa toda, foi uma coisa maravilhosa. Eu falei que foi um pirãozinho gostoso, né, os meninos junto com a gente. Foi muito bom.
P/2 – As outras meninas, elas cantavam já, ou não?
R – As meninas? Não. Ninguém cantava. Não. Era só mesmo quando criança na brincadeira de roda.
P/2 – Mas na sua casa, por exemplo, sua mãe, ou então as pessoas em volta...
R – Não. A minha mãe eu não conheci, né? O meu pai, que eles faleceram eu era pequena.
P/2 – Mas as pessoas em volta, a comunidade?
R – Não. Eu gostava muito de cantar quando eu era menina. Quando eu era jovem eu tinha vontade de ser cantora, né? Mas nunca tive oportunidade. Eu queria ser artista, eu queria ir para os Estados Unidos, né? Que antigamente tinha uma pessoa que levava as negras para os Estados Unidos, eu queria ser uma delas. Mas eu não tinha idade, não consegui. Depois eu pensei que eu tinha que ser assistente social, quando era menina. Eu não sabia o que era assistente social, mas eu queria ser aquelas donas que ajudavam as pessoas. Quer dizer, eu tinha muito sonho na minha infância, na minha juventude. E eu acho que eu acabei, depois de uma certa idade, realizando isso tudo. Eu sou artista, eu sou cantora, eu sou assistente social. Eu sou tudo o que eu queria ser. Eu acho que Deus me deu isso.
P/2 – Mas não teve nenhum momento que a senhora olhou para elas, falou: “Ih, será que vai dar certo, será que vai conseguir cantar, se apresentar?”, teve algum momento de dúvida assim?
R – A dúvida nós tivemos na nossa primeira apresentação para o público, né? Que a gente teve medo de vaias, essas outras coisas. Mas como Meninas de Sinhá, não. Nós não tivemos dúvida. A gente sabia que a gente ia agradar, principalmente as crianças, né? Que a gente pensava em agradar as crianças, e acabou a gente agradando o público em geral.
P/2 – E a senhora acha que agrada tanto, chama tanta atenção?
R – Eu acho que é o seguinte: as crianças porque gostam da roda. Os adultos porque lembram a sua infância. Porque eles falam comigo: “Lembrei da minha avó”, “Ai, lembrei da minha mãe!”, “Lembrei da minha infância”. E muitas vezes as pessoas choram mesmo. Teve um senhor que chegou perto de mim e falou assim: “Olha, eu não tive vergonha de chorar, mas eu chorei!”. Então, quer dizer, é bom a pessoa chorar de alegria. E, normalmente, quando a gente vai, eles choram. Isso é muito bom. É gratificante.
P/2 – Teve coisas interessantes que aconteceram no palco, já? Diferentes?
R – É. A gente de vez em quando tem uma trombada que todo mundo ri. Às vezes uma erra, uma olha para outra e começa a rir porque aquela errou. Existe realmente essas coisas mesmo no palco, né?
P/2 – Qual a diferença de cantar no palco e cantar em casa?
R – Ah, no palco você canta mais entusiasmada. Você sabe que tem gente lá te olhando. Tem gente te ouvindo. A gente canta em palco, mas nós gostamos mais mesmo é do chão. É de estar junto com o povo, estar ali cantando com o povo, e ali acho que a gente se sente mais segura, ali no chão.
P/2 – A senhora disse que quando acaba o show, a senhora desce para o...
R – Para você ver, quando a gente está lá, eu falo com o povo: “Nós vamos para aí”. E descemos e entramos no meio do povo. Que a gente gosta de ver o povo dançando com a gente. Essa energia, essa coisa boa. É bom demais. Muito bom.
P/2 – E sobre o "FestiVale" [Festival da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha]. A senhora já foi em quantos?
R – Nós fomos o ano passado e fomos esse ano. Maravilha, porque, olha para você ver que interessante: a nossa vontade era de conhecer o Vale do Jequitinhonha, por ouvir falar. E depois nós vimos as Lavadeiras na televisão. Apaixonamos. E assim, a gente tinha aquele desejo de conhecer as Lavadeiras, de conhecer o Vale do Jequitinhonha, por saber de... Não pela miséria que eles falam, mas pela riqueza da cultura que tinha o Vale do Jequitinhonha. E nós conseguimos chegar lá. Nós conseguimos cantar com as Lavadeiras. Elas vieram aqui nos conhecer e nós vamos estar com elas lá. Então foi um casamento maravilhoso. E o Vale do Jequitinhonha, essa última vez que eu estive lá, semana passada, eu falei: “Eu acho que na outra encarnação, eu nasci aqui no Vale”, porque me deu uma emoção tão grande. Na mesma hora me deu tristeza de ver o rio quase seco. Pouquíssima água. E a gente olhava até onde ele ia e onde ele estava, me deu assim uma tristeza tão grande que eu acabei chorando de ver, né? Porque, em menina, eu lembro do rio São Francisco, que a nossa casa dava para o rio. E no tempo da enchente eu ia para a janela, quer dizer, olha a inocência, achava graça de ver os bois passando no rio, aquelas melancias rolando, cadeiras, porque o rio ia levando tudo e eu achava aquilo uma maravilha. E hoje você vê tudo seco. Dá muita tristeza, porque o que Deus nos deu, o homem está destruindo. É muito triste isso.
P/1 – Dona Valdete, a senhora gostou de dar esse bate papo com a gente? Quando a senhora dá palestra, assim, o que você sente assim? Você gosta? Qual a função que você acha que você tem disso? Por exemplo, você está fora da comunidade, né, está em um espaço, assim, mais público de pessoas que estão indo para te ouvir, assim, o que você gosta de passar, assim?
R – Olha, primeiro, para mim, é uma responsabilidade muito grande, né? E segundo, eu acho que passar essa mensagem de amor, de luta, de persistência, né? Eu acho que todo mundo tem que ter.
P/1 – E a senhora gostou de contar um pouco da sua história para gente?
R – Gostei. Vocês são lindos.
P/1 – Obrigada. A gente queria agradecer pelo Museu da Pessoa. E desejar muitos anos para as Meninas de Sinhá e para as Netinhas também.
R – Obrigada.
P/1 – Bisnetas.
R – Obrigada.
P/2 – A senhora podia falar para câmera, olhando, meu nome Valdete, nasci em tal lugar, dia tal? Só isso.
R – Meu nome é Valdete da Silva Cordeiro. Nasci dia 7 de setembro de 1938. Nasci na Bahia, cidade da Barra.
P/2 – Obrigado. É isso.
R – Acho que é isso aí, né?
P2 – Está ótimo. Está lindo!
R – A metade da infância, eu contei. Eu vou contar para vocês a história do meu primeiro aniversário, gente, olha. Eu não sabia a data do meu aniversário. Eu só sabia do ano em que eu nasci. Mas não sabia do dia, do mês. E eu perguntava para minha madrinha e ela falava: “Ah, menina, não sei não! Não sei quando você nasceu não!”. E onde eu morava, eu era chamada para ir em diversos aniversários dos vizinhos e tal. E o último aniversário que eu fui, foi do filho de um Secretário de Educação, que foi no palácio da liberdade. Então eles fizeram assim, no jardim, a história de Branca de Neve. Estava lindo, aquele bolo maravilhoso. Eu falei: “Ô, meu Deus, todo mundo faz aniversário, só eu que não faço aniversário, mas eu tenho que fazer aniversário um dia”. Aí eu inventei o dia do meu aniversário, dia 7 de setembro. É inventado meu aniversário. E eu vou fazer uma festa. E antigamente era um tostão que a gente ganhava, né? E eu fazia, mandava para os outros e ganhava um tostão e fui pondo em uma caixinha. Tinha uma vizinha que ela tinha cabelo branco, ela punha um pano preto e eu ia tirando os cabelos branco dela e pondo ali. Cada cabelo branco era um tostão. E eu fui juntando dinheiro para fazer a festa do meu aniversário. Quando foi dia 7 de setembro, eu falei: “É hoje que eu vou fazer!”. Convidei a meninada toda, a granfinada toda e fui no boteco, comprei aqueles doces, pé de moleque, aqueles docinhos que vende no botequim e cortei assim os pedacinhos, pus em um prato. Ali era o dia do aniversário. Depois eu falei: “E o bolo? Eu não tenho bolo”. Arrumei uma caixinha de sapato, comprei as velas, que antigamente não tinha número, você tinha que comprar uma caixinha de vela. Comprei as velas, enfiei assim, na caixa, ali foi meu bolo de aniversário. Fui para o fundo do quintal e fiz aquela festa, viu gente? Foi uma festa maravilhosa. A meninada gostou, porque eles estavam acostumados com festa granfina, foi na minha, adoraram a minha festa. Bolo de caixa de sapato e doce de botequim, né? E eu não tinha registro também. Quando eu fiz 16 anos, eu via que todo mundo tinha registro, carteira assinada. Eu também queria ter um registro, uma carteira, uma coisa. E o vizinho era candidato a vereador. A mulher dele falou assim: “Olha, eu te dou o seu registro, você tem que aumentar dois anos a sua idade, porque você só tem 16, você tem que tirar o registro com 18”. “Pode aumentar até três, eu quero é meu registro!” Na hora de registrar, cadê o sobrenome? Eu sabia meu primeiro nome, o de meu pai e de minha mãe, não tinha sobrenome. Eu inventei na hora. Manoel da Silva. Ornelina da Silva. Valdete da Silva. E me registrei. Como se fosse da Silva. Só sabia o nome de minha cidade. E assim minha vida começou, desde menina eu inventando a minha vida, né, que foi assim. E agora, há três anos atrás, tem uma pessoa que está escrevendo a minha vida, né? Ela está fazendo mestrado e está escrevendo a minha vida. E ela descobriu alguém na Bahia e pediu meu batistério, aí meu batistério veio ano passado. Então meu aniversário é dia 12 de abril, o meu sobrenome é de Jesus. Aí que eu descobri. Mas eu continuo com da Silva mesmo, com 7 de setembro. Não vou mudar a minha vida que eu mesma inventei. E assim é a minha vidinha. Bom, né?
P/1 – E deu tudo certo.
P/2 – É a história do filme?
R – É.
P/2 – Espera aí que vai trocar a fita.
R – Eu estou falando para vocês que depois de velha eu virei artista. Eu participei de um filme, Uma onda no ar, Vida de Menina. E agora eu fiz, o ano passado, que ainda não está em cartaz, Fronteira, que é uma história de religião com profano. É um segredo que tem em uma família que só as escravas que sabem desse segredo, mas não falam, né?
P2 – Mas como é que surgiu essa história do filme?
R – Primeiro eu fui convidada pelos meninos do rap, lá da serra, né, para participar dessa “Uma Onda no Ar”. Nós estamos cantando e é a história da rádio favela. E aí chega a polícia e a na hora que nós estamos cantando, a gente assusta e tal. É só esse pedacinho. E “Vida de Menina”, eu sou a Generosa e a escrava mais antiga da casa, que é avó das outras escravas. E “A Fronteira” também faço parte desse filme, que ainda não está em cartaz. E nesse filme só não falo, só canto na hora da morte da menina. É que eu sussurro ali na hora do canto.
P2 – A senhora gostou de participar?
R – Gostei. E se me chamar, eu estou indo de novo. (risos)
P2 – Então está bom. Muito obrigado.
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