Entrevista de Jaqueline Souza de Andrade
Entrevistadoras: Paula Ribeiro / Tábata Lugão
11/08/2021
Realização: Museu da Pessoa
Projeto: Mulheres da Maré Dignidade Resiliência e Arte
Entrevista MDRA_HV009 (transcrição revisada)
00:01:18
P/1 - Bom dia Jaqueline.
R - Bom dia.
P/1 - Eu gostaria de inicialmente de agradecer a sua presença e o fato de você ter aceitado participar do nosso projeto, fornecendo um depoimento sobre sua trajetória de vida, sobre a sua história de vida pessoal e profissional, então agradeço a sua disponibilidade por compartilhar conosco um pouco da sua história.
R - Obrigada.
P/1 - Obrigada equipe. Queria começar do comecinho pedindo que você nos forneça seu nome completo, o local e data de nascimento, por favor Jaqueline.
R - Meu nome é Jaqueline Souza de Andrade, eu nasci aqui no Rio de Janeiro mais especificamente na Penha no dia 16/03/1986, eu tenho 35 anos no momento, 35 anos agora, chegou. Eu fiquei assim, depois que passou a festa, eu “caramba, 30 anos”, eu achei que eu ia ficar com 20 a vida inteira. Que nunca ia passar dos 20, estou chegando nos 40 já, muito doido.
00:02:47
P/1 - Conhece um pouco a história do seu nome, o nome Jaqueline foi dado mais pela mãe, pelo pai, como é que foi, por favor, a escolha do nome?
R - Essa é até uma história que é engraçada porque quando, não sei se agora ainda é assim, mas antigamente quem ia registrar era os pais, os homens, né? E quando eu nasci, meu pai foi me registrar, minha mãe deu um nome para ele, que era Cecília. Ele chegou lá no cartório e botou Jaqueline, ele achou do nada, ele nunca respondeu porque ele mudou o nome. Só sei que ele mudou o nome, eu achei ótimo porque eu acho que Cecília não ia combinar muito comigo, eu adoro o meu nome, mas ele saiu de casa com um nome e voltou com um outro nome para casa. Eu era para ser Cecília e virei Jaqueline e eu curto bastante é uma ideia que me agrada, me agradou no fim das contas.
00:03:39
P/1 - Você tem apelido? O pessoal te chama de Jaqueline, Jaque, como é que é?
R - É Jaque, normalmente é Jaque, não tem outra coisa não, outro nome, tinha uns apelidos na infância, nós sempre temos umas zoadas. Eu nunca tive muito apelido mesmo não, mas tinha um programa na Globo chamado TV Colosso, e tinha um pessoal chamado Jaca Palladium, aí todo mundo me chamava de Jaca, acho que era a coisa mais zoada assim que tinha de infância, não tinham muitos outros não. Era Jaque e quando queriam me sacanear “a Jaca”. Só assim mesmo.
00:05:27
P/1 - Em relação aos seus avós, você conhece, conheceu, conviveu, poderia nos fornecer o nome deles tanto por lado de pai, quanto pelo lado de mãe, por favor?
R - Da parte da minha mãe eu só tenho uma avó viva no momento, que é a mãe da minha mãe que é Eugênia Maria o nome dela, e o meu avô conheci todos, não, não conheci todos, o meu avô materno já faleceu há algum tempo, o nome era Geraldo Luís; o meu avô paterno eu não conheci, o nome dele era Carlos Norberto, e minha avó paterna eu conheci pouquíssimo, era Maria Lucinda o nome dela, ela morreu quando eu tinha 06 anos de idade. É uma memória muito forte, é muito doida, eu tenho uma memória da morte da minha avó materna que eu era muito pequena, do que a do meu avô que eu já era adulta quando ele faleceu, eu não consigo lembrar qual minha idade nada, mas da minha avó paterna eu lembro muito, acho que é porque aqui dentro da favela sempre tem essa coisa de “vai ter ônibus para levar” e eu lembro do ônibus, eu lembro que eu estava no ônibus para o enterro da minha avó, eu tenho essa lembrança muito forte. Talvez porque tenha sido um ano marcante para mim com ela, porque ela me levou no Sambódromo para ver o desfile das campeãs. Que a Estácio que era a escola de samba dela que também é um pouco a minha ganhou com a ‘Paulicéia Desvairada’ que é um samba lindo e ela me levou para o desfile das campeãs, então acho talvez por isso tenha sido um ano muito marcante, e eu lembro muito quando ela faleceu, apesar de ter convivido muito pouco com ela. De maneira geral , eu morava desde pequena com a minha avó materna no Pinheiro.
00:07:25
P/1 - Você pode contar um pouquinho dessa lembrança do carnaval com a sua avó?
R - O que eu lembro mais forte, da lembrança e eu não sei porque eu lembro, as vezes eu fico pensando se era verdade, passa muito pela minha cabeça, será que isso aconteceu? Eu sempre fico com essa dúvida, né? Eu conto porque aconteceu, mas sempre parece que não, que é uma coisa meio irreal que eu fantasiei, que foi uma criança fantasiando, mas eu lembro da gente assistindo o desfile, e a menina cortou o pé, uma da menina da Estácio, ela cortou o pé e ela desfilou até o final com os pés sangrando e foi muito doido isso, foi muito intenso assim, eu era muito nova e tinha um trem. Tinha um trenzinho, uma alegoria da escola era um trem e fazia piu piu, para mim era muito fofo, e eu lembro dessas coisas que eu fiquei muito feliz e que desde então eu amo o desfile de escola de samba, eu adoro ver, fico super animada, durmo no meio do caminho de todos, mas eu adoro ver, adoro ficar vendo. Eu acho que eu prefiro ficar em casa vendo do que sair para a rua às vezes. Eu gostaria de ficar em casa assistindo o desfile, mas aí o mundo te leva para fora, você vai beber a cerveja, você vai fazer as coisas que as pessoas fazem no carnaval.
00:08:58
P/1 - Sobre a origem dele, você conhece? Eles são de outros estados? Quando vieram pro Rio, o motivo que os trouxe, em relação aos avós?
R - A minha avó materna veio de Minas de Viçosa, ela veio para cá novinha, ela veio para cá com uns 15 anos, veio de trem para trabalhar em casa de família aqui, ela trabalhou durante muito tempo na casa de uma família, acho que era em Jacarepaguá se eu não me engano, esse contexto você sai, ela conheceu meu avô é muito fofo essa história, meu avô é do Norte Fluminense ele é de Volta Redonda, ela conheceu ele no circo na Praça 11, e foi engraçado que ela me conta a história toda orgulhosa, porque estava ela e uma prima dela e tinham 02 outros rapazes do outro lado paquerando elas, e meu avô ele era lindo inclusive, super bonitão e estava olhando para elas. A prima falou “está olhando pra mim”, e minha avó quietinha porque mineiro fica quietinho, ela quietinha lá e os meninos olhando para elas, e a prima estava alvoroçada, “é para mim com certeza depois que ele sair daqui ele vai falar comigo”, como ele saiu e falou com a minha avó e eles começaram a namorar, encarar o namoro, casaram, ele veio de lá para cá de vez de Volta Redonda, casaram e tiveram a minha mãe que é filha mais velha deles, e minha avó continua trabalhando nessa casa de família, e ela foi tendo outros filhos e os mais velhos iam cuidando, um dos mais novos, assim por diante. Meu avô tinha uns probleminhas com álcool de vez em quando, mas também não tenho muita lembrança disso, mas era basicamente isso, eles se conheceram desse jeito no circo, com ela achando que ele não estava a fim dela e ele estava a fim dela. A minha avó, a minha família paterna é um pouco mais complicada, porque eu não conheci, não sei muito a origem do meu avô paterno. Da minha avó materna, eu sei que ela veio junto com os tios dela do Morro do Esqueleto, não posso afirmar também com 100% de certeza. Inclusive, isso é muito comum na história de pessoas negras, a gente tem muita dificuldade de afirmar as nossas origens porque a gente tem muita dificuldade de acessar, então é muito difícil, eu vou falando sem conseguir afirmar muitas coisas porque realmente tudo são memórias muito jogadas muitas vezes, memórias que são atravessadas por outras informações e às vezes nem tem a memória em si. Tem a memória, mas não tem a história lá colocada. Então é muito difícil acessar essas memórias pra gente. Saber quem veio antes da gente. Eu só conheço até os meus avós maternos e paternos. Eu sei o nome de um bisavô, mas fora isso não sei mais nada. Eu posso até perguntar, mas às vezes você fica tão agitado na vida que você nem lembra, porque eu tenho minha avó que eu posso perguntar as coisas e eu esqueço de perguntar sempre, mas com relação aos meus avós paternos é mais difícil, eu sei disso, eles vieram de lá para cá removido, minha avó veio removida para cá, acho que ela já conhecia o meu avô se eu não me engano, não posso afirmar também, e aqui na Nova Holanda era esse espaço, que era um espaço provisório de moradias para as pessoas removidas e acabou virando um lugar permanente, as pessoas foram ocupando o espaço de fato, e aqui é o meu lugar, aqui é o meu lar, é aqui que eu vou ficar e bancar, a Nova Holanda está sendo desse lugar maravilhoso e gente ama. meu pai desde então, desde pequeno eu sei que ele mora aqui, ele, os irmãos mais velhos, os irmãos mais novos moram aqui. O meu avô paterno nunca cheguei conhecer que ele morreu, acho que ele morreu até antes de eu nascer se eu não me engano, mas eu nunca olhei meu avô paterno porque eu sempre sonhei que durante a minha infância eu sonhava com ele, eu tinha sonhos com ele, é o mesmo sonho sempre, a gente estava em uma estrada tipo esses filmes texanos que é uma estrada e tem sempre um trailer do lado, uma coisa vazia, era sempre assim eu e ele de mãos dadas em uma estrada pequena, e a gente chegava até o trailer e acabava o sonho, sempre assim, mas eu não conhecia ele. As pessoas dizem que eu pareço bastante com ele, que eu tenho mais sardas, que ele era todo...que eu pareço muito com ele e com a minha avó paterna, então acho que eles também estão aqui de alguma forma na minha carne, mesmo eu não tendo conhecido muito bem os 02. Conheci bem mais os maternos porque eu morei com eles a vida inteira, né? Conheci bastante
00:14:16
P/1 - Bacana, tem memórias, que bom. Sobre o bisavô que você contou, qual é o nome dele?
R - O nome dele era Francisco. Ele era mineiro, eu tenho pouquíssima informação dele mesmo, mas eu fico chocada porque realmente eu posso ser essa informação, eu poderia acessar, eu não tenho ela porque realmente passa batido, esqueço de perguntar, eu estava com a minha avó no domingo e não pergunto esqueço de perguntar, ela sempre está com as amigas lá da igreja, então é difícil acessar ali os assuntos e às vezes acaba esquecendo, mas era Francisco o nome dele.
00:14:53
P/1 - Mas é assim, a gente gostaria de saber, valoriza a informação e a história da nossa família, mas a gente não faz o movimento, mas todos somos assim, né? Uma pena, mas arruma um tempinho com a sua avó, poder sentar e conversar.
R - Com certeza.
00:15:32
P/1 - Jaqueline, eu gostaria então que você nos contasse um pouco sobre o seu pai e sua mãe, o nome deles, data de nascimento, conta um pouquinho o que você conhece da história deles?
R - O nome do meu pai é Sérgio, ele faleceu esse ano, Sérgio de Andrade, o nome da minha mãe é Marcília Souza de Andrade, eles ficaram juntos a minha idade, não, eu tenho 35, acho que eles ficaram juntas uns 38 anos, até ele falecer esse ano, eles conheceram daqui, eles conheceram aqui na Maré que era como o pessoal chamava né? De Maré que era as palafitas mais para trás. Eles se conheceram aqui bem novos. Minha avó morava aqui, minhas duas avós moravam na mesma rua, no José Caetano e eles começaram a namorar muito cedo, acho que minha mãe me teve com 22 anos, meu pai deveria ter uns 27 quando eu nasci e eles ficaram juntos a vida inteira, casaram no papel há pouco tempo, há uns 12 anos atrás, teve casamento, teve festa, jogou buquê, eu peguei o buquê.
00:17:15
P/1 - Há quase 40 anos. Porquê você acha que eles quiseram formalizar no papel?
R - Eu não sei, acho que tem muita coisa. Eles viveram, meu pai e minha mãe tiveram uma relação durante muito tempo turbulenta, de muito atrito os dois, acho que em algum momento quando meu pai começou a ficar mais...ele adoeceu né? A gente sempre frisou, “quando adoece, quando o calo aperta, tu fica aí, aí tu valoriza a mulher que tu tem do lado”, aí que eu acho como ele foi ficando um pouco mais doentinho, ele tinha problema do coração, ele era diabético desde sempre e ele tem problema do coração, acho que eles foram assentando a relação deles de alguma forma e eles resolveram um dia, que ela acha que era o sonho da minha mãe também né? Acho que ela não conseguia verbalizar para ele por conta dos atritos que eles tinham durante ao longo da vida deles de casado, e quando ela consegue finalmente ele, “ah, vamos casar minha filha”. Eles casaram, fizeram uma festa, foi tudo aqui, a festa foi aqui, foi super, a festa como eles gostariam que fosse, teve churrasco, teve tudo, foi bacana. Casaram no cartório lá em Pilares foi bem bonito, e está difícil falar porque tem muito pouco tempo que ele faleceu, a gente ainda está muito triste. Ela está ainda tristinha, ainda tentando entender um pouco do que...como, né? Meu pai era novo, e ele queria tanto viver sabe? E aí ele se foi assim muito rápido, não foi de Covid, ele não estava bem doente, mas ele tinha comorbidades que quando chega, dá aquela porrada, e aí ele foi para o hospital um dia, teve aquela melhora que as pessoas falam, aquela melhora, ela falou comigo, ligou animada e no dia, na hora enquanto ela estava ligando falando comigo ele já tinha falecido, a gente não sabia, estava falando “ah ele está bem, eu fui lá, ele almoçou hoje”, e ela estava me ligando já tinha até morrido na hora que ela me ligou, e a gente só foi saber de noite enfim, mas desde que eles viveram uma boa vida juntas sabe? Eles viveram uma vida bonita juntos. Acho que é por isso que também ela está bem, mas tem horas que ela lembra é difícil ficar lá. Ela e meu irmão, moravam os 03 juntos, então se para mim que não moro há anos com meus pais é difícil chegar lá, às vezes eu esqueço, vou no quarto para falar com ele e ele não está mais lá, se para mim é duro, imagino que para ela é o dobro da dureza né? É o dobro da dificuldade, mas é isso...
00:21:16
P/1 - Jaqueline, você contou que seus pais se casaram, você pegou o buquê e então eu queria que você contasse um pouquinho sobre a sua infância, quais são suas memórias de infância e esse viver aqui na Maré, onde vocês moraram, um pouco da vizinhança e costumes mantidos em casa, já que seus pais vem de lugares diferentes, como é que era uma comida, como é que era religiosidade por favor?
R - Então eu passei uma boa parte da minha infância morando com a minha avó materna lá no Pinheiro, e lá é muito de frente a Nova Holanda, lá as ruas são abertonas, quando eu morava lá passava ônibus, é na época que circulava ônibus aqui dentro, tinha um fluxo de carro que não dava, não tinha muita criança brincando na rua, lá só nas travessas, lá tem muitas travessas, mas eu morava longe das travessas, então o meu lugar de brincar era na escola e aqui quando vinha para cá aos fins de semana ficar com a minha mãe, eu vinha para cá.
00:22:17
P/1- Porque você morava com a avó?
R - Porque meu pai e minha mãe trabalhavam e não tinha com quem eu ficar, então ficava com a minha avó. No fim de semana eu vinha para cá, eu vinha ficar com eles.
00:22:27
P/1 - Eles trabalhavam em que na sua infância?
R - Minha mãe nessa época ela trabalhava no Mundial de caixa, e meu pai trabalhava no... acho que Itabuna Sadia durante um tempo, depois eles trocaram também no meio da minha infância, e a mãe foi trabalhar no SBT, e meu pai trabalhou no Banco Boa Vista, que é um banco que eu acho que nem existe mais, eles trabalharam, e eu ficava lá com a minha avó pra eles poderem ficar mais tranquilos.
00:23:04
P/1 - Você tem irmãos?
R - Eu tenho um irmão mais novo, o nome dele é Carlos Fernando, ele fez agora em julho 27 anos, meu caçulinha, e depois de um tempo quando ele nasceu, ficava eu e ele com a minha avó, eu só vim morar aqui quando eu fiquei um pouco mais velha, mas durante todo o tempo eu estudei lá no Gustavo Capanema, o primário que chamavam de primário eu fiz todo no Gustavo Capanema, depois o ginásio eu fui para o Teotônio Vilela que é uma escola aqui no Conjunto Esperança e depois que eu vim estudar aqui no CP, no César Perneta, que é aqui no Parque União, mas antes eu passei toda a minha infância lá. Eu vinha para cá e eu tinha minhas amigas que era quando eu podia brincar, que era o lugar da brincadeira, da diversão, então eu vinha para cá para Nova Holanda. Todo mundo ficava aqui, se jogava, era um momento pra eu descabelar aqui, que era quando eu realmente ficava livre, porque lá eu tinha que ficar presa de alguma forma, porque não tinha muito... poucas vezes eu saía para alguma casa de alguma amiguinha na escola para brincar né? Então era bem difícil, minha mãe ia me buscar depois de um tempo
00:24:48
P/1 - A casa da avó como é que era? O que ela cozinhava? Como é que era o ambiente da casa?
R - Eu morava com a minha avó, com meu avô e com meus dois tios. Meu tio que é o irmão mais novo da minha mãe e um outro tio, o meu tio Keké, a gente tem uns apelidos engraçados, e meu tio Inho morava com os dois, mais a minha avó e o meu avô. Era minha avó, minha avó cozinha muito bem, tudo que eu gosto de comer, ela moldou meu paladar, porque eu gosto de comer a comida do tipo que ela faz, então eu tento fazer igual a ela as comidas que eu cozinho, que ela moldou muito o meu paladar, e ela fazia de tudo que tinha, mas ela gostava muito de fazer angu, e eu odiava, eu lembro que eu odiava. Angu era a única comida que eu amo, mas eu odiava, aí eu falava (“Meu Deus, por que tenho que comer isso?”), às vezes ficava ruim, às vezes é difícil o lance. Porque meu avô ficou sem trabalho por um tempo, às vezes o que minha mãe dava não era o suficiente para o sustento da família inteira, que não era só eu, que não era só para mim, era para minha avó, para o meu avô, para os meus tios também. Então às vezes não dava, então às vezes tinha uns momentos mais tensos com relação a comida, mas nunca faltou nada assim, nunca faltou nada, minha avó nunca deixou faltar nada pra gente ali, nem minha mãe, nem meu pai, estão sempre fazendo todo o esforço do mundo para que a gente se sentisse bem, quando não tinha, “ah hoje não tem, mas amanhã...hoje não tem uma carne, mas amanhã a gente vai dar um jeito”, a comida no prato não faltava, nunca faltou, isso é muito importante para mim, eu valorizo muito, eu valorizo muito a comida no prato, porque nem todo mundo teve, pode ter, nem todo mundo tem. Então eu mesmo com dificuldade na minha infância eu nunca precisei, eu nunca passei por uma necessidade de estar a ponto de não ter o que comer, nunca aconteceu isso, isso tem muito a ver com outras mulheres, a minha avó, com a minha mãe, tem muito mais a ver com elas na verdade do que com coisas externas. Elas são muito importantes, elas são muito fortes, eu me moldo por elas mesmo, sem elas eu não seria essa pessoa que eu sou, essa mulher que eu sou, eu não tenho a menor dúvida, e é isso, na infância toda com a minha avó, a Gaia com a minha mãe, a minha relação com a minha mãe se construiu a partir da adolescência, que foi quando eu vim morar aqui. Durante a infância ela era minha mãe, não tinha a menor dúvida disso, sabia identificar minha mãe e minha avó, minha avó não era minha mãe.
P/1 - E elas deixavam isso claro também.
R - Ela deixava, sempre foi clara. Eu sei quem é minha mãe. Eu sei quem é minha avó, mas é claro que a relação com a minha avó era mais intensa porque eu vivia o tempo inteiro com ela, então era mais intenso também por conta disso.
00:28:22
P/1 - E sobre religiosidade, sua avó era ligada a alguma religião?
R - A minha avó catolicíssima, caos, eu tive que fazer primeira comunhão, ela queria me enfiar em todas as coisas na igreja, eu falei (“ai meu Deus do céu, só vou falar isso aqui porque eu estou sendo obrigada, eu tenho 11 anos de idade), eu fiz a primeira comunhão lá na na Vila do Pinheiro também, eu fiz todo o catecismo lá na José Operário, que é a igreja de lá perto da Vila do João, e a minha primeira comunhão foi na Catedral do Rio de Janeiro, lá no centro da cidade com o [ arcebispo] Sales rezando a missa. Um negócio surreal. Minha avó tem orgulho disso. Eu também tenho. Não vou mentir não. Eu também tenho um pouquinho de orgulho disso. E eu sempre falo porque bateu uma experimental. Então várias comunidades, favelas do Rio de Janeiro tiveram uma turma que teve a primeira feita, a primeira comunhão lá na Catedral, e a minha turma foi escolhida da igreja, da paróquia. Era legal, mas era sábado de manhã, tinha 11 anos de idade, eu não queria estar na igreja, e aí eu ia, fazia, porque antes eu vinha para cá para Nova Holanda sexta-feira de noite. Então eu acordava de manhã já brincando, quando eu comecei a fazer a primeira comunhão passei a vir sábado de tarde, então eu perdi metade do meu dia de diversão por causa da catequese, e eu não aprendi nada, não lembro de nada gente, eu passava mais tempo fazendo sei lá o que naquela igreja, que olha...eu não lembro de nada, eu não lembro de um versículo, não lembro de um verso da Bíblia, e com o tempo eu fui realmente me distanciando, minha avó tentou me colocar em uma...tinha um negócio depois da primeira comunhão que eu esqueci o nome agora. Esqueci mesmo o nome. E eu frequentei a igreja durante um bom tempo ainda aqui. Eu vinha para a Sagrada Família, né? Minha minha avó e minha mãe tentaram me colocar na crisma, para fazer crisma aí eu me recusei, falei – “não, eu não vou fazer, eu posso ir na missa de vez em quando, mas não vou fazer crisma, eu não quero”, eu não acho que essa religião aqui é para mim, eu não senti, e depois disso eu me desconectei um pouco de religiões de maneira geral assim, me desconectei completamente, não frequentei mais igreja, não ia para lugar nenhum, né? Então eu fiz a primeira comunhão muito mais por uma obrigação de uma família católica, do que por um desejo, né? Até porque nessa idade a gente não tem muito desejo, não tem muita escolha não, ainda mais antigamente, desejo tem, mas escolha fica difícil, né? Tive bons momentos, era divertido, né? Tiveram momentos muito tristes também, porque minha catequista morreu no meio do processo, né? Ela teve câncer de mama e aí ela acabou falecendo no meio, foi bem triste pra gente, todo mundo amava ela, mas foi uma experiência legal, mas eu não transmitiria para frente, se eu for ter algum filho, uma filha eu não faria isso, não é uma coisa que eu faria, a não ser que a criança quisesse, a criança descobriu que existe e quer fazer e aí acho que teria um diálogo para que isso acontecesse, mas eu de fato não colocaria, mas era bacana a gente fazia passeios, tinha passeios para lugares, igreja tem muita comida, então era ótimo também, de sempre estar comendo muito nos lugares, o tempo inteiro eu adorava isso também.
00:32:09
P/1 - A que passeios vocês iam?
R - Tinha uns passeios bobos, no Campo de Santana, ou passear pelo Pinheiro mesmo, saía todo mundo ia no campinho, no campo do Toca fazer o que não sei. Às vezes ia na casa do padre que morava ali perto, ele tinha uma horta, a gente ia para ver a horta do padre, variava muito assim, esse padre era muito legal, né? A minha avó fala dele até hoje, padre Alberto, ele está agora em uma outra paróquia no Rio, nossa, ela amava ele. Todo mundo amava esse padre, ele era ótimo mesmo, os sermões dele era superlegais, era rápido também, não era demorado, era rápido, mas era bacana, ele era legal, era uma experiência legal assim de ter vivido, mas também era meio chato, não era tudo, era um pouco de tudo.
00:33:13
P/1 - Jaqueline, conta um pouco agora da casa dos seus pais aqui na Nova Holanda.
Como era a casa, um pouco o ambiente, essa relação dos pais, um pouco se havia uma diferença entre educação de menina e educação do menino. E esse viver um pouquinho na infância e a ida para a escola.
R - Quando eu vim para cá, eu vim porque eu passei, eu vim para o Ensino Médio e antigamente não sei se é assim até hoje, tinha que escolher várias escolas, você colocava lá no site várias escolas e recebia uma carta de confirmação, e eu lembro que eu escolhi várias escolas que não era o GP, e eu fui sendo recusada em todas as escolas, não tinha vaga, não tinha mais vaga, eu acabei parando aqui, eu fiquei arrasada porque todo mundo falava muito mal da escola, eu estava querendo fazer prova para o CEFET, e tentando outras escolas, então não queria, mas coloquei na minha cabeça que aqui era ruim. Então, eu fiquei mal quando eu recebi a carta de confirmação, e fui a última, foi acabando as escolas, e a minha mãe também me deu um limite “da onde você vai, para onde você vai, você não vai para escola na Zona Sul. Porque como é que você vai para lá? Você é muito nova, não vou conseguir dar conta de te levar”, então colocou limites, centro da cidade, Ilha do Governador, Bonsucesso, né? Era escolas que eu podia ir tentando, e aí eu coloquei, obviamente, César Pernetta, até acabei que eu vim para cá. A escola de fato não era boa, mas foi importantíssimo ter vindo para cá, acho que se não tivesse vindo para o CDP, eu seria triste, só assim, porque eu não teria vindo morar aqui com a minha mãe possivelmente, que as escolas que eu queria, era mais fácil eu morar com a minha avó para ir para essas escolas, então eu não teria vivido uma outra parte da minha vida, então foi muito importante, hoje eu enxergo, ter estudado lá, passei por greve, olha essa escola me transformou, era super CDF, virei uma preguiçosa, depois da primeira greve eu me acostumei a ficar em casa, e eu falei ai – “eu não quero mais ir para a escola”, mas eu ia na base as vezes do grito, mas foi importantíssimo eu ter passado para o César Pernetta, porque é isso, eu vim para cá, morar aqui, meu irmão ainda continuou com a minha avó porque também não dava para eu ficar tomando conta dele se eu estudava, ele continuou lá ainda e também estudava, ele estudou até acho que a quarta série, na mesma escola que eu, depois ele veio pra Clotilde [ escola Clotilde Guimarães] , veio para cá, mudou para cá.
00:36:11
P/1 - E como é que era a relação sua com seus pais, com pai, com a mãe era conflituosa?
R - Foi bem difícil no início, a adaptação dos dois lados, bem difícil porque eu sempre fui muito independente, eu fazia as coisas do meu jeito sempre, e quando eu chego aqui meu pai tinha aquela coisa que ele queria, né? Você está aqui vou controlar as coisas, e eu naquela fase de adolescente que eu nem achava que era tão rebelde, mas eu acho que para ele devia ser o auge da rebeldia, e a gente sempre entrava em conflito porque eu não estava acostumada com ele mandando em mim, eu ficava aqui só o fim de semana e era tranquilo, de repente a semana inteira deste homem perturbar o meu juízo, a gente brigava muito, e o meu pai muito no início foi bem difícil de se adaptar um ao outro, porque eu queria fazer minhas coisas e ele não queria deixar: “Ah você não vai sair”, “eu vou”, aí eu saí, ele ficava fulo da vida porque eu nunca deixei, mas também eu nunca deixei ele controlar, porque se eu deixasse eu estava presa em casa até hoje.
00:37:27
P/1 - Mas o que você gostava de fazer mais que ele não queria que você fizesse?
R - O teatro de início ele não ficou feliz. Depois ele virou todo fã, mas de início ele não ficou feliz, quando eu comecei a fazer teatro ele achou...que se perguntar para toda a [Cia] Marginal o que os pais falaram é basicamente o mesmo texto. “É uma perda de tempo. Você quer ser ator para que? Não vai levar a lugar nenhum”, basicamente era isso que a gente ouvia, mas assim, você vai batendo a cabeça, você vai martelando com eles até você colocar e eu tentava fazer isso, e não era só isso, como eu era adolescente as vezes eu queria ir no parque conversar com meus amigos, não podia, aí eu ia assim mesmo, quando eu voltava o pau quebrava em casa, ele ficava louco da vida, fulo, reclamava à beça, “Ah está vendo? Sua filha não me respeita”, aí eu virava a filha da minha mãe só, não era mais a filha dele, era a filha da minha mãe. “Não me respeita!”, mas a gente foi conseguindo aos poucos consolidar a nossa relação, foi difícil, não foi fácil para nenhum dos dois, tenho certeza de que para ele também deve ter sido bem difícil aturar os meus abusos, aturar as minhas, né? Os meus bate pés. É que eu batia muito o pé. e eu fazia só o que eu queria mesmo, eu estava muito acostumada a fazer as coisas do meu jeito, então eu não conseguia me desacostumar.
00:38:52
P/1 - E como a sua mãe se portava na hora desses embates?
R - Ela variava, às vezes ela tentava fazer a mediadora, mostrar os dois lados, as vezes ela apoiava ele, as vezes ela me apoiava, então ela era uma mediadora mesmo, minha mãe quase nunca brigou comigo por essas coisas, às vezes quando eu exagerava, ela não falava nada na frente do meu pai, mas depois ela me chamava no canto. “Olha, não pode isso, aí já é demais. Ó, você fez isso/aquilo. Não é legal, ele ainda é o seu pai”, mas nada muito sério, porque não eram também nossas brigas horrorosas, às vezes era um quebra pau, uma gritaria, mas no geral a gente se dava bem, a gente conseguia dialogar, né? Teve momentos muito tenso de briga com meu pai que foram difíceis, que a gente brigou feio mesmo, de eu não querer mais olhar na cara dele, de sair de casa, não vou voltar, eu estava fazendo aula aqui no pré-vestibular eu falei, minha mãe me ligando, eu falei – “eu não vou voltar pra casa”, eu não quero falar com ele, vou dormir em outro lugar. Ela veio praticamente aqui na porta para me arrastar para casa, mas era isso, eu tive muitos conflitos com meu pai especialmente, a gente demorou para ajustar a nossa relação, para conseguir ajustá-la.
00:40:21
P/1 - Ele tinha essa relação de controle com o irmão também?
R - Com meu irmão ele tinha, ele sempre também ficava nessa coisa de não querer que Carlinhos saísse muito, mas era de um outro jeito também, que ele era muito mais novo do que eu, na adolescência ele era criança, quando eu era adolescente ele era criança, então os conflitos ficavam muito mais em cima de mim do que em cima dele. O que mais era complicado, era a relação do cuidado da casa, uma época o pai ficou desempregado e minha mãe trabalhava, minha mãe nunca ficou desempregada basicamente, e aí o cuidado todo da casa era meu, e isso para mim era um problema, porque eu não estava sujando tudo sozinha, eu não estava nada de daquilo, a pia da louça não era eu que fazia sozinha, não comia três pratos de comida sabe? E não era eu, eu não usava, eu não uso cueca. Então por que que eu tinha que dar conta do uso da cueca, que não era minha, da comida, do prato na pia. Então, isso eu questionava muito com ele, e ele ficava também fulo da vida, porque o outro costume. Ele achava que eu tinha que botar a comida para ele, falei - não vou colocar comida para você, não vou colocar pai! Depois de um tempo a gente foi se adequando ali, ele já entendeu que não adiantava me pedir para colocar porque eu não ia fazer, né? Eu falei - Carlinho tem que arrumar a cama, a cama é dele, tem que arrumar, não vou arrumar a cama de Carlinho! A minha mãe chega de noite e ela ainda tem que trabalhar em casa para todo mundo que fica em casa o dia inteiro, não dá! No caso só quem tinha essa consciência ali era eu. Minha mãe trabalhava o dia inteiro com faxina, ainda vai chegar em casa vai fazer uma faxina, mas também no caso muitas vezes sobrava para mim, se alguma coisa estava fora do lugar, era eu que escutava, não era meu pai nem meu irmão, porque eu era a mulher que estava na casa, então eu tinha que dar conta dessas coisas, e era isso que eu questionava – não, eu não fiz tudo sozinha, “Ah mas ele é seu pai”, sim, mas ainda assim eu não fiz sozinha, eu não fiz nada sozinha, não posso dar conta de arrumar uma casa inteira todo dia com todo mundo fazendo bagunça, se não quer não faça bagunça então, não faça bagunça”e Carlinhos tem que começar a fazer as coisa “Ah ele é pequeno”, pequeno nada, eu era pequena fazia. Então vai fazer também.
00:42:52
P/1 - Atribuição do papel da menina e da mulher em casa, e essa não cobrança com o irmão, né?
R - Vai fazer também, tudo bem que ele realmente era um pouco menor que eu, ele era pequeno, mas dá para arrumar a cama e já sabe.
00:43:58
P/1 - Então Jaqueline, você falou do ambiente da sua casa, e como é que era um pouco a relação entre os seus pais? Sua mãe era um pouco mais submissa, como é que era um pouco a relação entre os pais? Esse papel, essa divisão entre mulher e homem?
R - Essa divisão eu acho que ainda era muito forte. O trabalho todo da casa, pelo menos na minha adolescência, era um pouco mais forte. O trabalho da casa fica por conta da mulher. O homem fica mais solto, não é nem provendo a casa de fato, porque na verdade não tinha essa divisão, tinha uma divisão na verdade. Prover vinha dos dois, só que uma pessoa tinha que prover, ainda tinha que trabalhar em casa, a dupla jornada, enquanto outra pessoa ficava mais tranquila que era meu pai, chegava, relaxava, depois comia a comida dele, tomava um banhozinho e ia dormir. Minha mãe tinha ainda que fazer comida porque eu não cozinhava, às vezes ela tinha que cozinhar, então eu preparava, deixava a cozinha preparada para ela cozinhar e tudo mais, mas também foi se diluindo porque meu pai começou se interessar por fazer curso de culinária, então ele fez, meu pai participou da primeira turma do Maré de Sabores quando não era mista, para se ter ideia, era na Lona, ele participou do Maré de Sabores e adorava, ele pegou gosto para tomar contar da cozinha, ele fez curso de panificação, ele foi entrando em um outro rolê, que foi diluindo um pouco essas coisas em casa, ainda tinha bagunça que ela reclamava. “Ah, está fazendo bagunça hein, tem que arrumar”, mas já era mais discutido isso. “Ah porque o Carlinho faz igual a você, então vão os dois arrumar”. Aí eles tinham lá que se virar também, que às vezes eu também ficava virada e não queria fazer e não fazia. Isso foi diluindo com o tempo, mas durante muito tempo tinha essa divisão de papéis, da mulher e do homem. Papéis masculinos e femininos dentro da casa, que bom foi passando assim. Claro que ainda antes de meu pai falecer, ainda era minha mãe que fazia toda a parte do cuidado da casa ainda ficava sobre ela, mas como ele ficou muito doente, então ficou muito difícil. Ele fazia hemodiálise, então ele chegava muito debilitado em casa, às vezes ele demorava horas para subir a escada, tinha todo um processo, quando chegava deitava e depois comia alguma coisa, depois de muito tempo, ele foi ficando...a hemodiálise sugava muito ele, deixava ele muito debilitado, mas enquanto dele estava sem fazer hemodiálise eles conseguiram ajustar isso daí dentro da relação deles, mas é claro que ela ainda reclamava, que ele ainda fazia bagunça, tudo isso não acontecia, só que bem menos do que quando eu era adolescente, mas também sinto uma percepção minha, da Jaqueline que não morava mais naquela casa, eu não morava mais lá, eu saí de casa acho que eu tinha sei lá uns 28, sei lá, 29. Então já tem um bom tempo que eu não moro com eles, então também é uma percepção minha de quase uma visitante naquela casa, é o que eu consegui enxergar, que eu vi que isso diluiu bastante, mas ainda assim, a parte principal era com ela.
00:47:21
P/1 - Bom Jaqueline queria então que você contasse pra gente como é que despertou em você o interesse pelo teatro, pelas atividades artísticas, e o que te motivou a se vincular à Companhia Marginal, a vocês criarem, um grupo de amigos, criarem a companhia de teatro?
R - Foi muito doida porque eu passei para escola, eu vim estudar aqui no GP e eu estudava de manhã, e à tarde não estava fazendo nada, ficava em casa, ficava lá eu e meu pai olhando para cara do outro, a gente não se conhecia bem porque eu passei a vida inteira com minha avó, eu vinha pra casa fim de semana, eu estava sempre brincando e eles estavam lá fazendo com os amigos dele, então eu não conhecia bem meu pai, então era esquisito ficar em casa. Aí eu procurei um curso aqui na Redes [da Maré] de hip hop, não de teatro, e tinha uma questão porque só podia fazer os cursos pessoas que não estavam na escola, tinha uma coisa desse tipo, era muito esquisito. A ‘não, tinha que estar na escola’, mas você não podia fazer mais de um curso, só podia fazer um curso aí eu comecei fazendo hip hop que é na quadra do Gato, eu falei - “Ah eu vou fazer hip hop”, que era de noite e aí abriu o curso de teatro, eu falei – “poxa, aqui na Redes”, não era Redes ainda, mas foi aqui na sede que era lá.
P/1 - Lá onde?
R - Aqui mesmo na rua Sargento Silva Nunes, só que mais perto da igreja ali, mais para trás da rua, mais perto da minha casa e foi a primeira sede daqui. E aí eu vi que abriu o curso de teatro e eu era muito tímida, muito, muito, muito, muito, muito tímida e na minha cabeça teatro ia tirar minha timidez funcionou pouco, não 100%, ainda tem uns momentos assim, mas eu era muito muito tímida, eu vivia em uma concha mesmo. Eu tinha amigos, eu tive amigos, mas eu era muito fechada, e eu entrei nessa onda de que o teatro ia me fazer ficar mais solta, mais à vontade, só que eu não podia fazer teatro porque eu já estava fazendo hip hop, e eu saí da sede meio decepcionada que eu não podia entrar.
00:49:55
P/2 - Qual a idade que você tinha nessa época?
R - Quando eu comecei o teatro, eu tinha uns 16.
00:50:04
P/2 - Você pode voltar a frase que você estava, aí eu saí…
R - Eu estava aqui dentro da sede, da Redes e eu saí bem decepcionada, meio frustrada achando um absurdo não poder fazer mais de um curso, não tinha ninguém fazendo a aula, eu descobri que não tinha ninguém inscrito, falei “gente não tem sentido isso.” Aí o coordenador me viu saindo, me chamou, falou “olha vou abrir uma exceção, vou te botar, vou te inscrever na aula”, eu me inscrevi, começou a chegar outras pessoas, e eu descobri que as professoras de teatro que eram a Joana e a Isabel, já tinham trabalhado aqui antes com outro grupo de alunos, e essas pessoas estavam se inscrevendo para aula de novo. Aí eu me inscrevi e comecei a fazer teatro, mas nada sério, era só realmente o contraturno, né? Era o meu contraturno, de manhã eu ia pra escola e de tarde era como se fosse um contraturno mesmo, eu fazia alguma coisa, alguma atividade.
00:51:06
P/1 - Na escola tinha teatro também, alguma atividade artística?
R - Não, não tinha, a gente tinha aula de Filosofia que às vezes virava um grande teatro. O professor levou a gente para o pátio para dar umas aulas gigantescas para várias turmas de uma vez só, mas não tinha não, e aí eu comecei a fazer com pessoas, e abriu um outro curso, um projeto na verdade que era o Adolescentro, e eu me inscrevi para o Adolescentro, e eu passei na seleção. O Adolescentro tinha atividade de teatro que era com as mesmas professoras, e aí a turma aumentou porque tinha uma divisão. Fulano que se você não quiser fazer isso tem que fazer teatro, se quiser fazer teatro tem que fazer Educação Física, eu escolhi continuar no teatro que eu estava acostumada, tinha os amigos ali, e aí conhecia as pessoas do Adolescentro, que viraram meus amigos que faziam teatro, e era uma turma gigantesca, e todo mundo vinha porque ninguém queria fazer as outras atividade do projeto, ninguém queria fazer (“Ah, não quero ter que ir em uma escola”) aí fica no teatro, você se livrava de ir para a escola da oficina, e era assim, que ia só quando nós éramos promotores de saúde, era para um projeto de formação de promotores, jovens promotores de saúde. Então a gente ia fazer escolas para falar sobre as IST e sexualidade, não sei o que, tínhamos vários grupos formados e tinha um grupo de teatro
00:52:44
P/1 - E você tímida, isso já foi mudando, para falar sobre esses assuntos como sexualidade?
R - Eu estava mais tranquila. Eu era tímida, era muito mais, porque depois de um tempo você vai percebendo que enquanto uma mulher negra, uma menina negra, você tem que entender o que é timidez e o que é racismo, sabe? O que é timidez e o que é imposto pelo racismo. E muitas coisas que eu achava que era timidez, era só imposição do racismo sobre a minha pessoa. Era só o racismo me assolando, me deixando com vergonha de me colocar no mundo. Que de fato eu tinha minha timidez sim, que eu tinha vergonha de falar em público, porque eu tenho umas gagas de fala que eu tenho até hoje. Quando eu fico nervosa eu falo muito rápido e é difícil me entender. Então isso me deixava constrangida para falar, mas quando eu estou tranquila a vontade, eu estou tranquila e a vontade, e eu fui percebendo isso no teatro porque não tinha uma timidez que era tão absurda assim, eu era uma conchinha por outras questões que eu também só percebi agora mais velha, não percebi naquele momento. Eu estava achando que a timidez estava passando, né? Eu estava entendendo que a minha timidez estava passando, mas na verdade agora uma adulta eu consigo perceber essas situações todas. Fiquei lá, a gente falava nesses grupos, a gente fazia esquetes, e a ideia da Joana e da Isabel enquanto professora de teatro, não era fazer esquete sobre a saúde, fazer uma camisinha conversando com a pepequinha, não era isso a ideia, sabe? A ideia era falar de saúde de forma abrangente, que fazer arte também é falar sobre saúde. Então como é que a saúde está sendo dita, está sendo falada, mas não da maneira como todo mundo quer ver. Como quer falar sobre a violência na favela, também falar sobre saúde mental, falar sobre saúde de maneira geral. Elas foram aplicando essas temáticas com a gente também, além dos outros grupos que tinham, elas também, e eu conversando com ele sobre isso, a gente foi criando um grupo coeso. Essa oficina de teatro que a gente fazia, foi virando um grupo coeso com as pessoas que realmente estavam se interessando pelo teatro e pelos debates que o teatro estava trazendo foram ficando, quem não estava foi saindo, e não indo para outras coisas. Essa oficina de teatro, na verdade, é uma oficina constituída por 02 projetos, “Quero Viver com Arte” e o Adolescentro, é um os professores que estavam gerindo essa oficina, era uma só, era as mesmas professoras que davam oficina, era tudo o mesmo dia, então virou uma oficina só. Aí esse grupo foi ficando mais coeso, a Joana em algum momento não pode mais estar como professora, o Adolescentro acabou, Viver com Arte acabou, a gente continuou, o Adolescentro acabou, encerrou o tempo, a gente continuou fazendo teatro, e vendo esse grupo ficando mais afunilado e em algum momento a gente sentou, a gente está entendendo aqui que tem um núcleo duro, que são as pessoas que estão sempre participando da oficina, que se a gente fechar essa oficina, não enquanto grupo de teatro,
fechar para fazer um trabalho com mais continuidade. Aí a Isabel propôs isso pra gente, a gente topou fechar a oficina. Fechamos a oficina, não entrava mais ninguém de diferente, e a gente começou a fazer um trabalho mais continuado. A gente apresentou coisas com um pouco mais de consistência, aí fizemos um circuito.
00:59:14
P/1 - Antes de você continuar contando um pouco dessa formação a fundação da companhia de vocês, eu queria que você pudesse fazer uma reflexão sobre o seu comentário, sobre a questão um pouco da violência, do estigma, do preconceito em relação às questões raciais na sua juventude. De que forma você hoje percebe se havia manifestação por exemplo preconceituosa em relação à questão da negritude, racial ou fato de ser mulher? Como é que foi um pouquinho isso na sua juventude? Algum episódio que tenha te marcado especialmente?
R - Tem uma coisa para mim que eu sempre, desde pequenininha eu sabia que eu era preta. Nunca tive dúvidas sobre isso, confusão sobre isso. Ninguém nunca deixou esquecer isso, inclusive na escola. Você perguntou, “tinha apelido?” Porque aquilo eu considerava um apelido, o resto era xingamento. Você fala, “tinha um xingamento?” Tinha, me chamado de ‘vassoura’, de ‘cabelo de bombril’, né? Que eram coisas que me magoavam muito quando eu era criança, e a escola é um espaço de sustentabilidade violenta pra gente, para crianças negras é muito mais, acho que se você perguntar para qualquer menina negra se tem algum trauma de escola com relação, a gente vai falar de um trauma específico, festa junina, a gente nunca era escolhida para ser nada de ninguém na festa junina, e mesmo quando você ensaiava. Eu passei por isso na escola, eu ensaiei todo um processo com o menino quando chegou no dia ele não quis se apresentar comigo, e eu lembro que depois eu bati nele na escola porque eu fiquei bem fula da vida, e aí um outro menino dançou comigo, e ele não quis dançar, simplesmente ele se negou, ele ensaiou comigo o tempo inteiro, no dia da apresentação ele se negou a dançar comigo, e isso é uma marca na minha história, e marca de muitas meninas, se buscar relatos na internet você vai achar várias meninas falando de relato de festa junina na escola, que a gente nunca é escolhida, e quando é sempre dá algum problema, nas partes de muita violência, tinha essa questão começa muito cedo. E é a coisa do cabelo, o cabelo pra gente, né? Enquanto as mulheres especialmente, os meninos têm esse rolê, raspa o cabelo e parece que resolve o problema. A gente não, a gente tem que lidar com nossos cabelos o tempo inteiro. Uma pressão estética muito forte para que o cabelo fosse alisado o tempo inteiro. Eu tenho marcas, eu tenho uma marca aqui de pente quente que é um pente de aço que você botava no fogão e passava no cabelo. Depois de passar algum tipo de química no cabelo você puxava para o cabelo ficar liso. Tipo o que é a escova hoje em dia, só que era um pente de ferro, e uma vez grudou aqui na minha nuca que tirou um pedaço de carne que eu tenho uma cicatriz, tem uma marca física de como que o racismo é.
01:04:38
P/1 - E quem alisava seu cabelo?
R - Era o meu tio, ele que fazia e às vezes ele passava guanidina, esses produtos químicos são muito fortes, ele que fazia isso, eu queria também porque todo mundo me chamava de ‘cabelo duro’ na escola, eu não queria ficar ouvindo isso, né? Então eu pedia para ele fazer, era uma coisa muito comum, muito corriqueira para minha idade, eu tinha amigas que usava também, cabelos menores que o meu, mais crespos que o meu, que usavam o pente também, que usava muita guanidina, e aí a gente ficava com um cheiro, nossa, forte, e a gente era zoada pelo cheiro do produto. Então sempre tinha um motivo pra gente estar ali sendo muito estigmatizada. E na adolescência não muda muito, muda algumas percepções, você passa a ser hipersexualizada, muito nova ganhando cantada de homens muito adultos que você não consegue nem acreditar que aquilo está acontecendo, seu corpo se desenvolve em 02 segundos, aparece uns 30 caras em cima de você. Isso com meninas negras é muito, muito, muito comum né? Como se a gente estivesse pronta para isso. Nós somos mulheres que nasceram para servir os homens, os corpos de outras pessoas, então com 12 anos eu não podia usar, eu usava short curto, mas é isso eu já tinha que lidar com uma série... eu era magrinha, mas eu era toda magrinha, mas eu tinha peito eu tinha a bunda então eu tinha que lidar com diversos tipos de assédio de homens mais velhos, e que você fica encantada dependendo do homem que é, isso é uma questão que pode te levar para um caminho que pode dar problema, pode dar problemas muito sérios assim.
01:06:55
P/1 - Como é que você se relacionava? Como é que foi na sua juventude, um pouco da tua vida amorosa?
R - Eu era muito tranquila com relação a isso. Eu não tinha muitas pressas, então acho que quando eu beijei pela primeira vez, devia ter uns 11 anos, mas não foi uma coisa que aconteceu de novo, depois eu beijei alguns anos depois, sei lá com quantos anos depois eu fui beijar alguém de novo, demorou muito, porque também é isso, porque ao mesmo tempo que tem esse interesse em torno não tem interesse real, identificar o que é interesse real em você, na pessoa que você é, e interesse no que você aparenta, na sua imagem, no seu corpo é difícil e tinha isso pra mim, eu tinha que ir identificando, tinha que ir tentando identificar o que era um menino que gostava de mim de verdade, um menino que talvez não gostasse tanto de mim assim, mas que podia querer alguma coisa comigo, então eu tentava identificar, e como eu não conseguia eu fui travando um pouco dessa parte da minha vida, eu demorei muito para ficar com outro menino de novo e eu nem gosto de homem, eu sou lésbica. Mas assim, era a imposição também eu tinha que ficar com meninos ou então eu não ficava com ninguém, então eu preferia não ficar com ninguém porque eu não queria de fato falar com meninos, e eu descobri isso muito rápido e muito naturalmente, o primeiro beijo que eu dei na boca foi de um menino, mas todo o resto da minha vida foi com mulheres, então eu depois que eu senti eu sabia que eu nem ia conseguir ficar com uma menina com facilidade, com a mesma facilidade que eu ficaria com o menino, acho que as pessoas não iam aceitar bem, então eu preferi travar um pouco da minha vida nesse sentido amorosa e só fazer a escolha depois de muito mais velha, acho que eu beijei pela primeira vez com 11 anos, depois eu fiquei com outro menino quando eu tinha uns 13, e depois disso acho que eu nunca mais, eu nunca mais...não, mentira Jaqueline, agora que eu estou lembrando, a média mentira, porque às vezes fica confuso na nossa cabeça. E aí eu fiquei com outro menino depois de um tempo, eu ficava com uns meninos aqui, ficava com o menino ali, mas tudo muito pontual que eu não conseguia dar investimento para isso por questões minhas, pessoais, porque eu não sentia que era para ser, que era para ir para frente com aquelas pessoas, e ao mesmo tempo não me sentia à vontade de estar ali vivendo aquelas situações, então eu fui travando um pouco, eu travei bastante, eu não fiquei com tanto de gente, até os 18 anos eu fiquei com pouquíssimas pessoas assim, mas todo mundo sabia com que eu ficava, não era escondido, o que seria se fosse com uma menina, eu precisaria esconder. Então, eu fiz escolhas muito conscientes, nesse sentido. Eu escolhi com 18 anos eu ia abrir meu número para mulher, porque eu sabia que eu queria ficar com mulher, eu tinha certeza absoluta, não precisava fazer para saber e eu falei – “Com 18 anos eu vou.” Que a gente acha isso, eu vou estar adulta dona da minha cabeça, dona da minha vida e eu vou beijar na boca de mulheres, vou pegar mulheres, eu fiz mesmo, de fato aconteceu isso, não era tão dona da minha vida assim, mas eu fiz isso muito consciente, uma escolha que eu tomei, eu vou ficar com um garoto ainda, mas com mulher não vou ficar escolhendo, e depois quando eu fizer 18 anos que ninguém vai poder mandar em mim, eu vou pegar a mulher que eu quiser por aí pelo mundo, eu fiz isso e foi ótimo porque foi muito assim, eu Jaqueline sabendo o que eu estava fazendo não tinha pilha de ninguém, não tinha peso porque estou tensa, preocupada, nervosa, estava porque era a primeira experiência, mas fora isso, foi muito bom e foi muito bom saber que algumas coisas que eu só percebo agora adulta, isso não é uma das coisas, a minha sexualidade sempre foi muito clara para mim, assim como a minha raça nunca, eu não demorei anos para perceber que eu sou preta, que eu sou sapatão, eu sempre soube, só que eu precisava entender aonde que isso ia. No caso da minha sexualidade onde eu podia chegar com ela, como que eu não afetaria minha vida, porque eu conheço meninas que assumiram e a vida virou um caos muito novas, e foi expulsa de casa porque assumiu com 16 anos, e meninos que são expulsos, eu não queria viver isso, então eu escolhi não assumir isso para ninguém, meus amigos até sabiam que eu tinha vontade, mas depois dos 18 que a coisa fluiu na minha vida, assim.
01:12:03
P/1 - Em relação ao pai e à mãe, como é que foi contar sobre essa experiência, se você puder falar um pouquinho. Como é que foi o primeiro amor da sua vida?
R - Contar para os meus pais foi muito engraçado, porque eu estava namorando já há um tempo uma menina, já estava quase um ano com ela e eu quase não ficava mais em casa. Eu já tinha uns vinte e poucos anos, eu vivia na casa dela. E aí um dia meu pai, minha mãe me ligou, puta. “Você está onde?”. Eu falei – “Estou aqui, sei lá tal...” . Eu falei – “vou para casa porque agora vou ter que falar, porque já estou enrolando a muito tempo.” Cheguei em casa, meu pai estava no quarto, minha mãe estava na sala, falei – “Senta aqui rapidinho”, chamei ela para o quarto e falei – “vou falar com vocês”, eu nunca assumi, eu nunca levei namorado nenhum em casa, eu tinha 23 anos, nunca levei um namorado em casa, namorada eu já levei várias namoradas, tudo minhas amigas, aí falei – “porque eu estou namorando”, meu pai me abriu um sorriso, minha mãe estão abriu um sorrisão, eu ia com uma menina, aí meu pai “eu não te falei?”, e deu uma cutucada nela, “não te falei?”, eu olhei – “Por acaso vocês estavam falando sobre isso?” “Claro que a gente estava falando sobre isso”, aí começaram a me falar que gostava muito dela, falei – “Eu estou contando para vocês porque ela é importante para mim, eu gosto muito dela, ela é especial por isso, depois eu percebi que não era só por isso, porque eu precisava mesmo, que ela é especial para mim, eu estou contando isso para vocês, quero que vocês saibam, que vocês conheçam ela, vocês já conhecem ela, já veio aqui, aí e como é que vocês se sentem com isso”, perguntei para eles. Eles: “a gente te entende, a gente já imaginava, a gente te aceita, a gente te ama” ai falaram coisas básicas: “Claro que eu queria ter um neto”, eu falei – “Mas eu ainda tenho útero, eu ainda posso ter filhos, isso não impede, uma coisa não impede a outra”, aí “não era bem isso que eu queria para você, mas se você está feliz assim está tudo bem, a gente te apoia” não sei o que, foi basicamente isso, eles não criaram grandes...eles não criaram nenhuma barreira, mas foi difícil para eles no início, eu me fiz, aí eu me fingi de pão, eu me fingi de doida que não estava vendo, estava difícil para eles, para mim estava fácil agora, eu tinha contado, eu tinha liberado a tensão, estava vivendo lá e já sabiam quem era, conhecia a Juliana, então está tudo certo, não tinha mais tensão para mim, agora a tensão era com eles e eu deixei realmente eles lidarem com as questões deles, quisessem falar comigo vinham falar, se não quisessem também não vinham, eles nunca desrespeitaram minhas namoradas, nunca foram grosseiros com elas, nenhuma delas. Então eles foram se adaptando a essa realidade de que eles tinham uma filha lésbica em casa, e que eles iam ter que lidar com isso, iam ter perguntas em algum momento e como que eles responderam, não sei, se teve perguntas também não sei, eles foram se adaptando e foram entendendo e sempre me respeitaram nesse sentido de não se colocar enquanto uma barreira para minha vida. Isso é muito importante. Eles não se colocaram assim, claro que tinha essas questões, essa coisa de achar que você vai se transformar em uma outra pessoa porque você gosta de mulher, de “você não vai ter filhos, você vai viver uma vida sozinha”, tem essas coisas que são pensadas, são ditas nas entrelinhas, que não é dito diretamente, mas na entrelinha diz isso. Então essas coisas aconteceram, mas nada que atrapalhasse a construção da minha vinda enquanto uma mulher lésbica, não teve esse interrompimento, não teve essa interrupção, não teve essa barreira. Isso para mim foi muito importante, porque muitos amigos meus que estavam passando pelo mesmo momento, não estavam vivendo o que eu estava vivendo, estavam sendo expulsos de casa, estavam tendo muitos conflitos, estavam apanhando. Então, eu estar vivendo uma situação razoavelmente tranquila com essa revelação da minha sexualidade para os meus pais, era muito importante para mim, ainda mais quando eu vi meus amigos passando por situações muito pesadas, principalmente para apoiar eles também, porque minha casa minha casa virou um lugar também em que eles poderiam ir que era seguro, porque naquela casa tinha uma menina lésbica, uma mulher lésbica, que não era desrespeitada. Então, meus amigos todos gays viviam lá em casa, e meu pai e minha mãe não implicavam, implicavam uma vez ou outra, “está muito tempo aqui em casa”, mas não implicavam com eles, eles se sentiam seguros lá em casa de alguma forma, virou um espaço importante também para os meus amigos, de apoio também de alguma forma, e aí alguns está assumindo, saí de casa e vai para lá, para cá e vai vivendo a vida, vivendo como a gente quer, mas foi uma experiência que eu poderia colocar como tranquila, não foi apenas tranquila, mas eu acho que diante de outras vivências foi muito mais leve, essa coisa do lugar onde você coloca a sua fala, é isso, se um amigo meu...eu não consigo me colocar quando uma pessoa que foi oprimida pelos pais com relação a sexualidade, porque eu vi o que era opressão pelos pais. Eu sofri coisas assim, tinha uma piadinha aqui, tinha umas tensõeszinhas pequenas, mas a opressão em si que os meus amigos sofreram eu não sofri, e isso mexeu comigo também profundamente, ver pessoas que eu também amava vivendo, não tendo o mesmo que eu tive de alguma forma, o que também não foi perfeito o que eu tive, não mesmo, foi longe de perfeito, mas é importante para eu também entender aonde eu posso falar. Quando a gente fala sobre esse lugar, eu não posso chegar e colocar porque eu passei por isso, eu passei por algumas situações, mas não chega perto de muita gente e é importante para mim.
01:21:38
P/1 - No grupo de teatro que vocês formaram, essa é uma temática que aparecia, se era uma questão de debate, a questão sobre a sexualidade, sobre o racismo, sobre o preconceito, sobre as relações familiares, isso era um tema da Companhia Marginal?
R - Sim, acho que a gente sempre prezou por falar de coisas que envolvem esse lugar, esse território, e tudo isso está neste tempo inteiro, e é isso, a gente tem pilares de construção, de projetos que é memória, território, que é com trabalho físico, identidade, e memória é isso, memória é tudo o que a gente vive, memória está colocado em tudo o que a gente vive é a nossa memória…
P/1 - Pode ser expressa no corpo.
R - Exatamente, e aí o nosso trabalho está sempre rodeado por essas situações. Eu enquanto uma mulher negra, eu sofria racismo aqui dentro, então isso vai estar de cara nas peças da Cia Marginal. Eu sou uma mulher LGBT, LBT, e o Wallace é o meu melhor amigo e ele é gay, ele também é da Cia Marginal. A minha diretora é uma mulher que é lésbica. Então, esse universo ali da sexualidade também está perpassando na vida diretamente dos atores, não só enquanto matemática que a gente coloca para ser dita, porque somos um grupo de teatro militante, não, a gente vive as situações. Eu vivo o racismo. Quando eu chego na porta do prédio onde eu moro e a pessoa não me dá bom dia, me dá bom trabalho, porque acha que eu vou trabalhar naquela casa, e não vou morar. Eu sofro lesbofobia quando eu passo pela rua e um cara fala “se gostasse de homem”, essas coisas estão na minha carne, então a gente coloca isso em cena porque a gente vive isso o tempo inteiro, e a gente tem um desejo de sermos artistas que falem sobre a vivência mesmo, fale sobre a vida, sobre o que acontece na vida e especialmente neste lugar na Maré, nesse território, a gente fala de territorialidade, de assentar aqui, de colocar isso aqui, colocar nossos pés no chão, entender que aqui é o nosso lugar e que nesse lugar aqui ele é cheio de problema. A gente vai lidar com várias questões muito tensas, muito difíceis, e a Cia Marginal era um lugar que a gente conseguia falar sobre isso. A gente consegue falar sobre isso, a gente coloca esses temas em voga para gente, discute entre a gente, a gente discutia isso tudo entre a gente. O nosso primeiro espetáculo apesar de não ser, é um espetáculo que preza pela territorialidade mesmo, porque é uma homenagem à Nova Holanda. A gente fala da construção da Nova Holanda, a gente pegou um monte de personagens, de pessoas, moradores que fizeram a história da Nova Holanda, mas que não foram vistos enquanto essas pessoas fizeram história, então a gente contava a história e é isso, tem travesti que vai fazer história sim, que faz a parte fundante desse lugar, para esse lugar ser como ele é. Tem um senhorzinho negro de não sei quantos anos que é a parte fundante, tem uma mulher que ela é fundamental para que isso aconteça. Então como que esse território fala com a gente? Como que ele diz pra gente que elas estão aqui? A travesti está aqui, a mulher preta está aqui, o homem preto está aqui, o nordestino está aqui. Aqui é um lugar completamente cortado por tudo quanto é tipo de gente. Aqui tem muita gente, aqui tem muita vida, a Maré tem muita vida, a gente está o tempo inteiro vivendo essas pessoas mesmo, enquanto pessoas que te atravessam, elas atravessam a gente, e esses temas atravessam junto, muitas vezes porque está na minha memória, muitas vezes pela memória do outro e que eu vou contar essa memória enquanto atriz, eu vou vestir essa personagem e vou contar essa história, como aquela pessoa me contou e às vezes eu só vou contar a minha própria história que muita gente vai achar que é dela. No ‘Qual é a Nossa Cara’, a Priscila conta uma história que milhares de pessoas, quase todo mundo que viu quando ela abriu a caixinha de recordações dela, as pessoas diziam: “caramba, ela está falando de mim”. Nossa, é muito bonito, era muito forte. Era uma cena que ela abria caixas...vinham falar “cara eu achei que era sobre mim essa história que você estava contando” e era tudo sobre a Priscila, eram os sonhos delas, realizações dela, as frustrações dela, que as pessoas se identificavam com isso. Então acho que é isso que me faz amar a Cia Marginal, a possibilidade de contar histórias que também são minhas. É muito importante para mim essa construção da Cia Marginal, a gente está há 16 anos juntos, a gente já passou por muita coisa, e já fez muito teatro. A gente tem 05 espetáculos
que são incríveis, vou ser modesta nesse momento, são espetáculos incríveis que eu sou apaixonada mesmo pelo que a gente conseguiu construir enquanto uma companhia de favela, falando da favela sem estereotipar a favela, sabe? Sem colocar a favela no lugar da marginalidade. A gente lutou inclusive muito contra. A gente tem o nosso quarto espetáculo que fala sobre o tráfico de drogas, mas é o quarto, porque a gente também é o espetáculo encomendado de alguma forma, um texto, foi o primeiro espetáculo que a gente não escreveu, não é autoral, todo nosso espetáculo são.
01:28:27
P/1 - Eu queria que você falasse um pouco, exatamente do processo criativo. Construção coletiva. E vocês são autores? São atores e coautores? São as suas histórias mescladas com as histórias?
R - A gente trabalha em cima de uma pesquisa muito forte, a gente pauta a nossa ideia de iniciar um trabalho sobre alguma temática a partir de pesquisa, o “Qual é a Nossa Cara”, que é o primeiro, a gente pesquisou os moradores da Maré, a gente saiu para entrevistar os moradores da Maré, e a partir dessa entrevista a gente se debruçou sobre os conteúdos, e a gente foi tirando os conteúdos que eram os que mais apareciam, tipo incêndio, aparecia muito, a gente se debruçou sobre esse tema, a cena toda que foi construída a partir de um incêndio, a gente vai, o Jorge Negão que era uma figura muito simbólica daqui, que ele era o principal traficante, o dono da Nova Holanda podemos dizer assim, e era uma figura simbólica porque tantas pessoas lembram dele, então ele aparece de travessa, ele literalmente atravessa o espetáculo, na vida só ele atravessando o espetáculo, e é isso, tudo baseado em pesquisa, e aí improviso em sala, ensaio o tempo inteiro, é ensaio todo dia, construção de diálogos que a gente constrói a partir da entrevista, que a gente ouve e normalmente...nesse espetáculo tinha uma roteirista, que a gente escrevia e ela transformava em cena, e voltava pra gente, a gente ia, trazia, improvisava em cima, tinha muito improviso, mas tudo baseado em uma pesquisa sólida sobre essas pessoas, e todo o nosso espetáculo são, menos O “Tênis Naique”, que é um texto que veio da Márcia Zanelatto, mas os outros todos são batalhas de entrevistas e leituras, e aí vê filme, faz tudo isso e depois olha para esse material todinho e começa a trabalhar sobre ele, destrincha ele todo e começa a improvisar em cima dessas pequenas pílulas que a gente vai tirando, que vão se destacando, e a gente parte para esse improviso, em cima desse material e o improviso vai virando cena, improviso vai ganhando direção, vai ganhando forma, vai ganhando ação, e às vezes a ideia vem lá de trás também, nem sempre é só improviso.
P/1 - São experiências vividas, ou histórias contadas também no ambiente familiar?
R - Sim, porque tem coisas que são tão palpáveis que era reproduzido inteiro. Eram cenas reproduzidas inteiras, de uma entrevista sai uma cena de tão palpável que a coisa era, que a memória era, esse trabalho todo que a gente faz é um trabalho muito rigoroso, a gente tenta ser muito rigoroso com um trabalho musical também,
01:31:51
P/1 - Cenário, roupa, como é que é isso?
R - Normalmente a questão do figurino sempre vem alguém de fora para montar o figurino, a música ficava muito também, no início tinha optou de fora que vinha trabalhar trilha sonora, mas agora por exemplo tem o Rodrigo que é um puta músico, ele é percussionista de primeira categoria e ele é o nosso diretor musical do último espetáculo ele dirigiu junto com o Zola Star que é um cantor angolano, é um músico angolano muito incrível, ele dirigiu junto a trilha toda com o Rodrigo Maré. Tem um figurinista, quando tem cenário, tem um cenógrafo, que vai pensar todo cenário em cima, a gente trabalha muito focadamente na parte da atuação, e a gente que dá, o texto é coletivo, nosso texto é coletivo, ele é construído de muitas mãos, as mãos das pessoas que a gente entrevistou, e as nossas, porque são muito entrevistados, é dos livros que a gente lê, dos filmes que a gente vê, e as nossas mãos também, que trabalham ali naquele texto que vão pensar em como que o texto cabe na boca, porque nem todo texto cabe na boca do ator, a gente acha que qualquer ator pode falar qualquer coisa e não, não é sempre, tem textos que não cabem, a gente precisa transformar o texto em algo que caiba, que seja confortável, que fique valioso ao sair da sua boca, é muito importante. Tem muitas pequenas camadas, de trabalho que acontecem enquanto grupo de teatro, e a gente é um grupo, agora somos 06, éramos 08, saíram duas pessoas, somos 06.
01:34:07
P/1 - Você pode dizer o nome dos atores?
R - Wallace Lino, Geanndra Nobre, Felipe Azevedo, Rodrigo Mara Souza, eu Jaqueline Andrade e Isabel Penoni que é nossa diretora, que dirige os nossos espetáculos, que dirigiu todos os nossos espetáculos, e somos 06 mesmo certinho.
01:34:29
P/1 - São todos moradores daqui da Maré?
R - Eu, Wallace, Geandra e Isabel somos os fundadores da Cia Marginal que estão atualmente no grupo, a Isabel não é daqui, Isabel era a professora que eu te falei lá do ‘Viver com Arte’, do ‘Adolescentro’ que ficou aqui e acabou que a gente virou a Cia Marginal. O PH ele entra depois, o Rodrigo entra um pouco depois, mas o Rodrigo também aqui da Maré, então eu, Rodrigo e Jeandra somos da Maré, e o Wallace, somos da Maré e o Felipe ele é do Caju, e ele vem a partir do ‘Em Trânsito’ que é o nosso terceiro espetáculo, como um ator convidado, e a gente convidou 02 atores para fazer parte do ‘Em Trânsito’, duas pessoas.
01:37:40
P/1 - Jaqueline a gente estava falando do processo criativo da companhia de vocês e eu acho que a Companhia Marginal, ela é aliada de causas sociais. Vocês dão visibilidade, se a gente pode dizer assim, às pautas negras, feministas, ancestralidade, território. Eu queria que você me contasse um pouquinho sobre os 04 espetáculos que vocês fizeram, os títulos atribuídos, e se você pudesse fazer uma reflexão sobre a apresentação aqui na Maré, para moradores da Maré ou não, mas a apresentação aqui no território e apresentações fora em outros teatros da cidade, por favor?
R - Então o primeiro espetáculo é de 2007, é o ‘Qual é a Nossa Cara’, é uma pergunta, mas a gente nunca fala como pergunta pela pergunta, ele é um espetáculo que fala um pouco sobre a construção da Nova Holanda especificamente, enquanto um território de pessoas que moram na Maré, a partir dessa ideia de falar da Nova Holanda, da construção da Nova Holanda, a gente começa a entrevistar moradores antigos que fizeram a diferença para que esse lugar fosse o lugar que ele é hoje, só que não os famosos, os populares que todo mundo sabe o nome, aqueles que estão, que ficaram escondidos meio que nessa história, então a partir desse diálogo com essas pessoas, a gente construiu essa grande homenagem a Nova Holanda, que é o território em que a maioria dos atores nasceram e cresceram, com “A Nossa Cara” é um espetáculo de início, o ponta pé, e que a gente achou que era importante que a gente falasse deste lugar em um contexto de que não fosse apenas das violências desse lugar, de que as favelas estão sempre colocadas nos espaços de violência, de carência, de miséria, a gente quis sair desse lugar, um lugar que tem história, que tem gente fazendo coisas que você não imagina, que tem histórias de amor acontecendo neste lugar, e que é muito bonito de ver, então a gente quis contar essa história por esse olhar, desses moradores que amam esse lugar e por isso construíram ele. O segundo espetáculo é o ‘“ô, lili” que é de 2011, ele é um espetáculo que fala sobre os apuros, dizendo sobre o sistema carcerário, só que não a partir do porquê que essas pessoas foram presas, mas de como essas pessoas vivenciam esse cerceamento da liberdade. Como é para essas pessoas a privacidade, a intimidade, o sexo, a religiosidade Como essas pessoas que estão presas vivem essas curas que naquele contexto não são direitos, privacidade não é direito porque você vive com aquele monte de gente, intimidade não é direito, religiosidade é assolada em você, você tem que ter alguém lá da igreja para você, para falar pra você. Então como essas pessoas que estão presas vivem. Como que elas entendem a liberdade dentro de um processo de cárcere. É sobre isso que o “ô, lili”se trata, e é “ô, lili”porque sempre que uma pessoa ganha a liberdade, os presos batem na grade gritando ô, lili’, ‘ô, lili’, ‘ô, lili, por isso o nome do espetáculo é “ô, lili”, é uma menção a esse momento de liberdade física.
01:41:44
P/1 – O ‘lili’ é de livre, liberdade?
R – ‘Lili’ é de liberdade. Liberdade. Liberdade cantou.
P/1 - Por que vocês trouxeram esse tema?
R - A gente começou uma pesquisa sobre o processo de liberdade, de fato, de pensar a liberdade por outro viés. De como que a liberdade ela também é uma falácia de certa forma. Então a gente foi afinando, se aprofundando e começamos a ler alguns livros, lemos O estrangeiro, depois fomos ler também Colônia penal, e começamos a pensar sobre o que essas histórias traziam para gente de liberdade, de estar livre. Começamos a pensar como nós nos sentimos livres, quais são os momentos de liberdade para cada um de nós. E a partir desse desejo de falar sobre isso, a gente foi construindo esse projeto, que se chamava ‘Outro Lugar’ se eu não me engano, mas porque ele tinha ideia de não, ainda é sobre essa territorialidade, mas não essa aqui, a gente vai para um outro território completamente desconhecido que é o espaço carcerário, e completamente intenso. A gente viveu muitas coisas dentro dos presídios que a gente foi. A gente foi até o presídio, a partir de um, a gente tinha a Unirio, tinha um projeto chamado ‘Teatro na prisão’, de uma professora que agora eu não lembro o nome dela, Natália, mas eu não lembro o sobrenome, e a partir dessa entrada dela nas prisões, a gente conseguiu apresentar um trecho do ‘Qual é a Nossa Cara?’ de espetáculo dentro do presídio como contrapartida, então a gente apresentava como contrapartida, mas a gente apresentava primeiro, depois a gente voltava para fazer as entrevistas, aí eles escolhiam, normalmente eram os presidiários né, os detentos que estavam nas aulas de teatro, então eles que eram meio que escolhidos para ter essa entrevista com a gente, e ela super convidativa, a gente nunca perguntava sobre o porquê a pessoa está presa, qual foi o crime que ela cometeu, todo mundo contou, não teve um que não contou, mas ninguém perguntou, a gente sempre deixa muito claro, a gente não está aqui para saber o crime que você, ou porque que você está aqui, não era nem o crime que você cometeu. A gente não está aqui para saber por quê que você está aqui, a gente quer saber como que você vive aqui. Essas perguntas, é como você está vivendo aqui, não o porquê que você veio parar aqui, mas no meio do caminho ele sempre contava, a gente soube de tudo. Eu falei, “meu Deus”, eu aqui de novo sabendo da vida dos outros, eu não queria saber, e a gente teve essas entrevistas, foram 02 presídios, um em Bangu e o aqui em Benfica, tem o feminino e o masculino. Então tinham personagens femininas e masculinas, e a construção do ‘Ô, Lili’ também passou por esse processo de pesquisa, improvisação, e de curas que aconteciam a partir das entrevistas saiam temas, tinha desfile no presídio feminino, no Talavera Bruce, tinha a miss presídio e o espetáculo começa com um concurso de miss, eu, Wallace, Jeandra e Priscila disputando quem vai ser a miss do presídio, e a votação é real, o público ganha placas e vota na melhor, então cada um vai ter seu momento de desfilar e dançar e o público vota. Posso me gabar, eu sou a maior campeã de todas. A gente um dia definiu, a pessoa que ganhar nesse teatro é a maior campeã. Aí eu ganhei, não importa se depois nunca mais eu ganhei, eu sou a maior campeã de todas.
01:45:57
P/1 - Foi a escolhida pelo público.
R - Tinham as plaquinhas e o público votava.
01:46:00
P/1 - E tinham atores homens que também desfilavam?
R - Então, eram as três atrizes, eu, Priscila e Geandra e Wallace que também desfilavam, mas era tipo, vestido de sambista, era como se fosse uma travesti, depois a gente questionou muito sobre isso, porque tinha 2011, então a gente remontou todo um trabalho sobre a questão do lugar de fala, o Wallace como é que é isso, porque o Wallace é um homem cis, então como é que ele vai fazer uma travesti não é o momento mais disso acontecer, então a gente teve que repensar um pouco essa cena, o Wallace ainda continuou na cena, mas a gente teve que fazer um discurso sobre a importância dele não falar no feminino, ele não era uma mulher, nem uma travesti ali naquele lugar, a gente teve que fazer esse reforço porque é importante. Se eu quero meu lugar de fala enquanto uma mulher preta lésbica, eu também tenho que respeitar o lugar de fala de outras pessoas, que são as trans, eu não sou uma pessoa trans, eu não posso falar por uma pessoa trans.
01:47:06
P/1 - Isso era trazido pelo texto? Era falado para o público?
R - Sim, isso foi falado, muito foi isso, foi muito importante, esse discurso está na boca do Wallace. Ele fala sobre isso, que já passou da hora da gente respeitar pessoas trans no nosso processo de trabalho e na vida, e na sociedade e que ali não cabia isso, que ele não era uma mulher trans, e não poderia falar por uma mulher trans, e na nossa remontagem.
01:47:38
P/1 - Wallace mora com você? Quer dizer, é irmão, é brother, amigo, colega!
R - A gente mora junto. Ontem eu roubei o hambúrguer dele inclusive. Roubei o hambúrguer dele. Subi no quarto dele, ele estava assim com o hambúrguer na mão, eu fui lá, peguei e comi. Ele nem percebeu, não descobriu só hoje quando eu contei. Eu falei assim, - sabe o que eu fiz junto com você Wallace? Eu peguei seu hambúrguer. Ele “como assim?” Eu falei - tu estava dormindo. para te acordar para te dar o hambúrguer foi um caos. Quando eu percebi que eu estava com fome ainda.
Esse foi o segundo espetáculo. O terceiro é o ‘Em Trânsito’, que surge de uma ideia da Joana que era a nossa professora também, há um tempo atrás e que depois foi embora morar em São Paulo, trabalhar em São Paulo, aí um dia voltou querendo trabalhar com a gente e ela propôs esse espetáculo, eu não lembro o nome do projeto, mas o espetáculo é ‘Em Trânsito’, é que ela queria falar sobre as odisseias urbanas, essas odisseias urbanas fazendo um link com a Odisseia de Ulisses. Então como que esse trabalhador brasileiro carioca que sai domingo de manhã, vive essa odisseia do transporte público para chegar até o seu trabalho, como ele leva essa casa nas costas porque não dá para voltar, é tão longe e é tão ruim pegar transporte, é tão ruim aquela situação toda que você não pode voltar, então você leva a casa nas costas. Quando e quanto tempo você vive a sua vida em trânsito, e é esse espetáculo trata de falar um pouco sobre essa questão, dessa modernidade, tem uma palavra que a gente fala, né? É, do êxodo também, é mas de como que o transporte público é violento com as pessoas, como que a gente é violentado quando a gente pega um ônibus, porque o ônibus é ruim, porque o trem que deveria ser o maior transporte de massa do Rio de Janeiro, ele é um caos, as pessoas são agredidas dentro do trem, isso tudo fazendo um paralelo com Ulisses, e essa pesquisa foi toda livro, filme, discutindo o Homero, 01 ano discutindo o Homero, 01 ano de pesquisa, mas de discussão sobre a Odisseia, a gente leu a Odisseia inteira, Teve que ler a Odisseia toda de cabo a rabo, e tirar dali a ilha de Circe, como é que a gente foi colocando isso também dentro da peça, e essa peça ela aconteceu na malha ferroviária, então ela começava na Central do Brasil, na estação de trem da Central do Brasil e vinha até Bonsucesso, na estação de trem de Bonsucesso.
01:51:05
P/1 - Dentro do trem?
R - Dentro do trem. Dentro e fora. A gente vai descendo de dentro do trem e fora do trem. Então, a gente começava na Central, vinha para Bonsucesso, parada em Triagem, ia para Manguinhos, depois terminava em São Cristóvão, depois ia para Central de novo para voltar para casa, né? E era muito intenso porque era um espetáculo gigantesco e extremamente cansativo para gente, mas a gente conseguia carregar um público, era muito bacana.
01:51:34
P/1 - Como é que era essa recepção? Porque essa pessoa que estava assistindo vocês também estavam em trânsito. Estava indo para o trabalho, outras preocupações, ou voltando, como é que foi?
R - A gente tinha os atores como guias. Guias por essas ilhas durante a Odisseia do Ulisses, né? Ele passou por várias situações, ele não conseguia voltar para casa, então ele passou pelo dia de sítio, ele passou pela sereia, ele passou por não sei o que, ele passou por não sei o que lá, a gente foi pontuando um pouco essas estações e vagões como se fossem esses momentos, só que com a população ali vivendo isso, a gente tinha um público que era chamado, pagava a passagem de trem para assistir a gente, e tinha um público do trem, do próprio trem que estava vivendo a odisseia dele lá tranquilamente, muitos iam com a gente, isso era muito legal, para as pessoas que acompanhavam, que encontravam a gente na estação de Manguinhos, ao invés de ir para casa, ia voltava para assistir até o final, isso era muito bacana, tinha momentos de tensão que a pessoa não estava afim de ouvir uma peça de teatro do nada, então ficava meio fulo da vida. Teve uma vez que foi muito complicado que estava na Copa, a gente ganhou o edital da Copa de 2014, e a gente foi fazer, a gente fazia uma crítica à Copa obviamente, não tinha como, tudo bem, era o dinheiro da Copa, mas não tinha como, a gente ia fazer essa crítica, claro, não vou desligar o dinheiro, a gente ia fazer essa crítica, a Copa está acontecendo em um Brasil que não deveria estar recebendo um evento daquele porte, e aí a gente tem uma cena que faz uma discussão dentro do trem, e como era na época de Copa, era Romário e Pelé de um lado, e Ronaldinho e não sei quem do outro, e a gente discutia uns com os outros, personificando esses jogadores. Nossa, teve um cara que ficou fulo da vida, queria bater nos meninos, negócio horrível, mas foi um espetáculo muito intenso falando sobre essa questão do transporte público enquanto um fardo, para pessoas que precisam dele, como que é cruel fazer parte disso. Esse é o “Em Trânsito”, 2011. Em 2015 a Marcia Zanelatto convida a gente para encenar “Eles não usam tênis naique”, que é o espetáculo, é uma peça que ela escreveu no início dos anos 2000, e que foi premiada e tudo mais, e ela conseguiu dinheiro para uma ocupação no Glauce Rocha, ali perto do metrô da Carioca, e ela convidou a Cia. Marginal era uma ocupação de espetáculos dos textos dela, então toda semana durante 01 mês, era 01 espetáculo novo de 01 texto dela. Então, a gente era um dos grupos convidados, e esse espetáculo, “Eles não usam tênis naique”, ele é o primeiro espetáculo que toca na questão do tráfico de drogas, e a gente aceitou fazer a montagem, então a gente ia tocando esse tema, depois de 10 anos falando de outros temas que nos interessavam mais, que faziam mais sentido pra gente enquanto atores favelados, a gente se debruçou sobre esse tema finalmente e foi muito bacana, é o nosso espetáculo com maior repercussão foi indicado a prêmios, a gente viajou para fora do Brasil com ele, a gente fez palco giratório, do SESC e tudo mais, e é um espetáculo que trata sobre o encontro entre um pai e uma filha, e esse pai que ele era traficante, ele sai da favela e essa filha está virando traficante, e ele volta como uma espécie de homem que vai resgatar essa mulher desse contexto, e o espetáculo se baseia nesse grande atrito entre o Santo e a Rose. Eles passam todo o espetáculo em atrito, discutindo e debatendo e as temáticas que envolve é gênero, raça, trabalho. Pensar o tráfico enquanto um meio de trabalho para muitas pessoas. Então....
01:56:30
P/1- A personagem é uma filha, mulher.
R- Uma mulher envolvida no tráfico, como que a questão geracional, a diferença de idade entre um e o outro, e é uma atuação de é uma peça com 02 personagens, mas com 04 atores atuando, 05 atores atuando, O Rodrigo fica mais em uma parte musical, mas ele também atua em algum momento, também quanto Rose e Santo, então nós revezamos, os 04 atores revezam esses personagens, Rose e Santo, eu sou a Rose, eu também sou o Santo. Mas é isso, tentando entender quem é a Rose da Jaqueline, não é a Rose da Geandra, nem a Rose do PH, nem a Rose do Wallace, o Santo mesma coisa, então como que esses personagens, como que a gente está mais assumindo discursos, do que assumindo a persona, essa persona homem e mulher, então tem momentos que são cenas muito fortes, de discursos da Rose, mas está na boca do PH, está na boca do Wallace, está na minha boca, na da Geandra, então como que a gente vai assumindo discursos que saem da boca desses 02 personagens, e como esses atritos entre eles geram toda a encenação. Que é uma encenação muito intensa. Apesar de ser um texto, acho que é o espetáculo que tem mais fala, nunca falei tanto na minha vida como nesse espetáculo, a gente fala muito, mas também tem uma encenação muito vigorosa, muito intensa, a gente está ali sempre em embate, sempre se tocando fisicamente, muito forte um com o outro, e foram 03 meses de trabalho muito intenso.
01:58:08
P/1 - Eu queria te perguntar sobre a preparação para essa peça. Como é que era esse envolvimento?
R - Foi super difícil porque a gente, como era um texto montado, a gente tinha que trazer coisas mais de fora, e como era um texto estava bem datado, ele é isso no ano 2000, 98 por aí, que é antes do processo de UPPS, então a gente entende que a gente precisava fazer uma atualização no texto, a gente pediu autorização para autora e ela concedeu, ela “não, mexam onde vocês quiserem”. A gente atualizou o texto para um contexto atual, que era o contexto do exército aqui dentro, a mineralização, do exército aqui dentro, das UPPS já em decadência, então como que a gente atualiza esse debate que é sobre o tráfego que ela trazia no texto dela, para os dias de hoje que era 2015.
01:59:09
P/1 - A vivência de vocês. Território que vocês observavam e viam isso acontecer.
R - Exatamente. Diversas vezes a gente saiu daqui e logo depois começou uma operação policial, ou não conseguiu ir porque tinha uma operação policial acontecendo, então a operação policial estava dentro desse contexto, o debate sobre a redução da maioridade penal, era um debate que estava em voga nessa época, e estava dentro do espetáculo, a hipersexualização da mulher, e a questão do funk enquanto cultura e não cultura, para mim é cultura, então é isso, a gente está falando sobre isso dentro do espetáculo, um espetáculo que tem 03 músicas que são textos que foram musicados, a gente foi ali adequando para virar uma música, então o ator Wallace canta uma música, Geandra canta uma música, PH canta uma música. Eu não canto, isso é bem frustrante.
02:00:21
P/1 - Como foi aceitação do público?
R - Nossa, surreal o espetáculo, o teatro lotou todos os dias durante os 05 dias da semana que a gente fazia, a gente fazia quarta, quinta, sexta, sábado e domingo ele lotava, ele lotava todos os dias, lotava de as pessoas ir embora, isso é uma coisa que eu acho que é importante falar também da Cia Marginal, a gente tem um trabalho de construção de público, sempre que a gente vai fazer um espetáculo, a gente preza para que as pessoas da Maré estejam presentes nesse espetáculo, mesmo se não é a pé, se não é aqui dentro, a gente estreou aqui dentro, a gente estreou na Casa de Cultura onde é o museu agora da Maré, o segundo espetáculo estreou lá, e já prezava pela circulação, a gente queria muitas daqui assistissem lá, e quando a gente vai para o segundo “ô, lili”, ele estreia lá no planetário no Maria [ Clara] Machado, a gente fez todo um processo para conseguir ônibus para as pessoas da Maré irem assistir um espetáculo dentro de um teatro, com uma estrutura de teatro, para muitas pessoas foi o primeiro espetáculo de teatro, primeira vez que entrou em um teatro foi com a Cia Marginal, muitas pessoas vem falar isso pra gente, isso é super importante porque faz parte da nossa missão que é de democratização da arte, entender que a arte é para todo mundo, não só para poucos, que a arte não é um privilégio, ela é um direito, assim como a saúde, assim como a educação, a assistência, a arte é um direito que todo mundo precisa acessar, deve, merece acessar. A nossa ideia enquanto grupo de teatro é isso, que essa arte seja para todos, inclusive como ela é para nós, que também passamos momento que não é para você, então a gente faz todo esse trabalho de criar esses meios para que o público vá assistir, e no Glauce Rocha aqui na Gávea era um dia ingrato, na Gávea o segundo espetáculo “ô, lili”, eram 02 dias horrorosos de pauta, terça e quarta e o teatro lotou todos os dias, ele lotou todos os dias, muito, muito, foi muito lindo, as pessoas iam embora, tinham que voltar, iam lá não conseguia comprar mais ingressos de tão cheio que estava, no Glauce Rocha aconteceu a mesma coisa, não conseguiam tinham que voltar para casa porque o espaço do teatro ficava lotado, tanto é que a gente tinha o direito a bilheteria, a gente ganhou bem com o dinheiro da bilheteria, teve uma super recepção, teatro lotou.
02:03:55
P/1 - O que que significava para vocês isso? Quer dizer, tinha um público de vocês, mas tinha um público de fora? O que vocês achavam? O que vocês sentiam em relação a isso, essa aceitação, esse interesse.
R - Eu acho que é uma valorização do nosso trabalho, porque acontece quando a gente lida, as pessoas lidam com grupos de teatro artístico de favela, sempre acham que vai ser um trabalho feito de qualquer jeito, e a gente realmente preza por um trabalho de muita qualidade, a gente sabe, a gente tenta dar o máximo de qualidade para o nosso trabalho, e ver as pessoas indo e gostando muito...o chato é as pessoas se surpreenderem, né? Isso é chato, porque as pessoas se surpreendem porque elas já estão supondo que não vai ser bom, e quando elas surpreendem é meio constrangedor essa coisa da surpresa, porque eu sei que meu trabalho é bom, eu sei que meu grupo de teatro é bom, eu sei exatamente que eu trabalho assim, eu conheço cada um deles e são monstro pra caramba, eles são atores incríveis que ninguém está vendo que atores, sabe? Então como assim, como as pessoas não enxergam uma Geandra que é um monstro? Como não enxerga o Wallace, o Rodrigo PH que são assim carismáticos, sensacionais, mas como não me enxergam sabe? Então é um momento do tipo vejam aqui esse meu trabalho, é um tapa na sua cara, e é isso, o reconhecimento é importante para o artista, porque a partir do reconhecimento que os trabalhos aparecem, e se a gente não é visto.
02:07:24
P/1 - Acho que tem isso na cidade, também não estar na Maré com o teatro que é da cidade, quer dizer, mostrando para a cidade mais um trabalho produzido na cidade, por habitantes da cidade.
R - Exatamente. Exatamente acho que é isso, a gente é um grupo que é oriundo da favela, mas é de grupo da cidade no Rio de Janeiro, assim como todos os outros grupos, então é importante esse reconhecimento, é importante a casa estar lotada sim, é importante o nosso espetáculo lotar mais do que o espetáculo de outro grupo que ganha sempre qualquer edital, qualquer edital que bota ganha, porque eu vejo grupos, o meu grupo de teatro, outros grupos periféricos não ganhando nada, e quando nossos espetáculos lotam, é provando que nosso trabalho tem qualidade sim. Eu não estou falando do meu só, mas estou falando também de outros grupos, do Bonobano que é um grupo incrível, tem um grupo Código que lá da Baixada, é longe e estão há 15 anos juntos, então é muita gente fazendo um trabalho intenso e de muito tempo já na estrada. Tem o nosso último espetáculo, que é o “Hoje não Saio Daqui”, que é um espetáculo falando sobre refúgio, mas como a Maré é um refúgio para a população angolana, a gente começa a falar dessa questão desse processo migratório, que a Maré é a segunda maior comunidade angolana do Brasil, acho que a primeira é em Minas ou é em São Paulo, nunca lembro, mas é a segunda maior, o maior número de pessoas que vieram de Angola, de angolanos morando aqui, e a gente estava pensando sobre isso, como que a Maré é um espaço de refúgio, porque a Maré é o meu refúgio e eu percebo em um momento que é refúgio também de outras pessoas que vêm de outros países para ficar aqui, e a gente inicia um processo de pesquisa nosso, a gente fala com uma menina que é pesquisadora, ela pesquisa sobre esse processo migratório, a Angola Brasil, e a gente conversa muito com ela, ela seleciona algumas pessoas para gente entrevistar, pessoas que que são angolanas, filhos de angolanas que são brasileiros que nasceram aqui no Brasil, a gente vai entrevistando essas pessoas
02:09:54
P/1 -Que são os que moram na Maré?
R - Que moram na Maré, além de incentivar o filme sobre a revolução, sobre a guerra, a gente foi vendo várias coisas que aconteceram em Angola, a gente foi estudando um pouco sobre a história de Angola, para falar um pouco sobre isso, para falar sobre esse lugar. A gente abriu uma oficina e a gente ia selecionar mais 04, 05 atores para compor o elenco junto com a gente, porque não dava pra gente falar de Angola sem angolanos no elenco, então a gente abriu uma oficina e 05 atores entraram né? O elenco é gigantesco somos 11, é um elenco enorme e a gente encena, faz essa encenação na Mata que é o Parque Ecológico aqui da Maré, que é o espaço onde muito de nós entendíamos como refúgio em algum momento, todo mundo em algum momento já viveu a mata de outras formas, de brincar, de pular, e os meninos de Angola também viviam isso com a mata, a mata era um lugar da infância, era um lugar de tudo, de ficar com os amigos, de namorar, de tudo, e também eles tinham uma referência para que as pessoas que nasceram em Angola, tinha uma referência muito forte com o lugar, a mata lembrava a Angola, e a gente fez uma oficina que era uma seleção, foi uma coisa nossa, a gente chorou para escolher as pessoas, foi lágrima de sangue que era todo o mundo muito incrível, escolhemos 05 atores, Vanusa Rodrigues, Mariah Seco, Ruth Mariana, Eumer Peres e Nizaj, Nizaj e Eumer são irmãos, e a gente escolheu esses 05 atores para compor o elenco, e aí que é o pote do espetáculo, porque quando eles entram aquela história que a gente só estava lendo e vendo nos filmes, está ali na nossa frente, eles estão falando, eu esperava falar sobre o racismo, sobre identidade, sobre territorialidade, sobre ancestralidade, sobre violência, sobre todos os tipos de violência, falar sobre memória, muita memória, é um espetáculo muito bonito, e naquele ar livre lá da mata passa cavalo, cachorro, papagaio, é periquito no meio da cena, é muito intenso.
02:12:37
P/1 - Como é que é trazido um debate sobre racismo e preconceito racial dentro da peça pelos angolanos?
R - A gente teve muitas conversas com eles, e para os angolanos que vieram jovens para cá, vieram para estudar e tudo mais, eles realmente de repente tiveram que lidar com o racismo que eles não conheciam, os que nasceram aqui já sabiam desde pequenos, o que é ser o mais preto da escola, ser chamado de apelidos horrorosos por conta disso. A Vanusa e o Eumer, eles são filhos de angolanos que nasceram aqui no Brasil, e eles davam tapa na nossa cara, a nossa cara que leva tapa essa hora, porque se a gente sofre racismo eles sofrem o dobro, eles são pessoas retintas né? São pessoas retintas, quanto mais preto você é mais a violência te assola, mais a violência te esmaga, e quando vem a menina de Angola para estudar aqui, e de repente ela começa a sofrer um monte de situações que ela nunca sofreu em casa, isso é doloroso, aí não consegue mais estudar, ela veio para estudar e fica difícil, eles traziam o racismo de um lugar muito mais violento pra gente, de ser revistado, estar na Avenida Brasil e de repente está sendo revistado do nada, tudo bem que acontece comigo também, com muitas pessoas pretas, mas com eles a violência é muito maior, não há menor dúvida assim, não há dúvida nenhuma de que quanto mais preto você é menos apreço vão ter por você, e eles traziam isso pra gente, falavam também como que em Angola isso não acontecia, e em contrapartida os meninos que nasceram aqui entendem muito que estão vivendo essa vida inteira de um jeito muito intenso, a vida inteira que eles estão ali sofrendo racismo, (“ah porque você não é bonita, porque você não é bonito, porque ah tizil, ah macaco”), e quando não é assim que é o escancarado é o velado, que é tão ruim quanto, tão ruim quanto!
02:15:11
P/1 - E que existe muito no Brasil.
R - Nossa porque o Brasil não é um país racista né!? Porque ninguém te chama de macaco então não é racista, só que compensação as coisas que acontecem e assim eles traziam esses debates pra gente, sobre como que a gente também precisa se questionar sobre nossos lugares de vantagens sobre eles, de vantagem...porque a minha cor, minha pele é mais clara, então eu tenho uma certa vantagem, eu tenho uma certa passibilidade que outra pessoa mais escura não vai ter. Que se tiver que dar ruim é mais fácil dar ruim para ela que é muito mais preta que eu, pode dar ruim para as duas, mas talvez ela sofra mais violência do que eu, entendeu? Então como que a gente começa a perceber isso, as nuances do racismo, as nuances que estão aqui na nossa pele e que também estão na hora de ser violento. O racismo todo que acontece aqui no Brasil me impede muitas vezes de acessar a minha história, mas eles têm uma noção da história deles, da origem, da onde que vem, da onde que ele vem, quem é a avó, quem é a bisavó, quem é tataravó, longe, longe assim, é lindo de ouvir, é lindo de ouvir, é de chorar, a gente chorava, teve um dia que a gente chorou, a menina contando que a gente caiu no choro.
02:17:03
P/1 - Jaqueline a gente devagarzinho já vai encerrando com tantas reflexões interessantes e importantes que você compartilhou conosco. Eu queria que você falasse um pouco como você é atriz, você tem uma formação em Serviço Social e de que forma essa formação te mantém na Maré, te traz à Maré, você hoje já não mora aqui, né? Qual o trabalho que você está desenvolvendo hoje, por favor?
R - Eu sempre quis fazer faculdade, mas eu não sabia muito o que ia fazer e no ‘Adolescentro’ eu conheci duas assistentes sociais, a Isis e a Eliane que trabalhavam diretamente comigo, com o meu grupo, e eu acho que é a partir da atuação delas que foi muito impactante na minha vida, elas impactaram muito na minha vida, um jeito muito bom, todos os debates, diálogos que a gente tinha, me fez escolher essa profissão para seguir na faculdade, então eu tentei fazer pré-vestibular aqui, eu tentei a UERJ, tentei quase todas de Serviços Social. No primeiro ano eu tentei várias coisas, Psicologia, tentei Letras, tentei Biologia, várias coisas, no segundo ano eu foquei em Serviço Social, tentei em poucos lugares, tentei só UFF e UERJ, aí passei para a UERJ. Há muito tempo atrás, em 2006, para o Serviço Social e fui para a faculdade, e a faculdade é um outro mundo, e olha que era UERJ, a UERJ é a primeira faculdade de implementar cotas, mas também tinha 02 anos só que as cotas existiam, eu sou cotista, eu entrei como cota para negros na UERJ, e tinha só 02 anos de ação afirmativa acontecendo, então daí era muito intenso, ficar lá era muito difícil, eu tive muita dificuldade no início da formação, e paralelo a isso que foi 2006, que eu entrei para UERJ, 2007 a gente estreou o com ‘A Nossa Cara’, então durante um tempo eu abandonei a faculdade, eu tranquei e fiquei só fazendo teatro pra gente fechar esse espetáculo, depois eu voltei e foi difícil, eu me formei devagar
02:19:39
P/1 - Difícil em relação ao quê?
R - A tudo assim, acho que era difícil porque é uma faculdade para pessoas trabalhadoras, Serviço Social é um curso que é isso, são pessoas que trabalham, então na UERJ por exemplo ela é de noite, por conta disso tu trabalhava o dia inteiro para a noite estar na faculdade, mas tu tá exausto, tu tá destruído, você trabalha o dia inteiro, tem que estudar, a aula acabava 22h55, e pegar ônibus para descer aqui é horrível, em um lugar escuro, deserto, então eu fui desanimando de ir, de estar, e aí estou cansada do trabalho, prefiro ir para casa, durante um tempo foi difícil, foi arrastado para mim o curso, mas eu não tinha dúvidas sobre o curso, eu tinha dúvida sobre o processo que estava sendo fazer, sobre o curso não, o curso era exatamente o que eu imaginava, isso foi muito importante, entender que não era para ser a tia boazinha da cesta básica. Não, no curso que pensa política, que fala sobre direito, acesso ao direito, que essa política pública, então a gente não estava ali...não é coisa que uma pessoa sem formação faz, para fazer o que a gente faz precisa ter formação, e chegar ali e ver aquela formação intensa na UERJ, na época que eu fiz era uma das melhores do Brasil isso no curso de Serviço Social, então eu tinha muito orgulho de dizer, a minha faculdade é uma das melhores desse país, eu estou fazendo um curso que é completo, que é de excelência, mas mesmo assim eu estava ali desgastada, porque a vida era desgastante, eu não era uma pessoa que podia ir para faculdade só de noite, porque não tinha nada pra fazer durante o dia, eu entrei, aí tranquei durante um tempo, fiquei lá, e eu via em algum momento o perfil do curso na UERJ mudou, tinham muitas alunas, meninas que tinham dinheiro fazendo Serviço Social, e a gente não entendia muito bem qual era o porquê delas estar escolhendo o Serviço Social, se era nessa ideia que a gente...que é a primeira coisa que dizem pra gente é isso: “aqui a gente não está formando moça boazinha não”, você não é a mocinha boazinha, a menina legal do rolê, não é, então eu não sei se elas estavam com essa imagem também, mas mudou um pouco o perfil na UERJ em algum momento, de meninas muito novas, normalmente era um curso, quando eu entrei era um curso de mulheres mais velhas, eu era uma das mais novas, entrei com 20, e eu era uma das mais novas da minha turma, de repente eu estava vendo turmas que a mais velha tinha 20, e foi esse processo também de mudança lá, mas eu fui me adaptando também ao próprio lugar da universidade, terminei, me formei, fui aos trancos e barrancos, me formei, mas não atuei, não fui atuar, fui fazer teatro, aí agora, eu formei em 2013, aí em algum momento eu fiquei trabalhando 01 ano aqui como assistente social, depois eu fui fazer teatro de novo, para você ver que o teatro sempre...eu não vou negar, porque eu estou com o teatro na minha vida, acho que ele está em primeiro lugar de fato. A minha formação acadêmica é muito importante, tanto é que agora eu estou trabalhando aqui na Maré de novo, ela é muito importante, mas eu não vou negar de que teatro realmente ocupa um espaço da minha vida que é muito fundamental.
02:23:34
P/1 -Com o que que você está trabalhando hoje?
R - Aqui eu estou como assistente social, eu comecei a trabalhar no centro de cidadania LGBTI da Maré, que é o que faz parte do Programa Rio sem LGBTIfobia, a gente vai inaugurar o centro. O centro vai ter uma assistência social que sou eu, tem um psicólogo, uma advogada e vai ser um centro que não é só para pessoas LGBTs, a ideia é que a gente possa atender toda a população da Maré, você não precisa ser gay, lésbica para chegar até o centro e receber o atendimento do psicólogo ou da advogada ou meu. A ideia é que a gente consiga fazer esse atendimento amplo para Maré, porque a Maré acho que é um equipamento do Estado, então a gente acredita que esse movimento é importante, da gente não afunilar só para a nossa população, que eu faço parte dessa população LGBT, mas ampliar.
02:24:43
P/1 - Mas o que que te motiva estar na Maré e trazer essa temática e poder fazer parte desse projeto?
R - Eu acho que o fato, a primeira coisa, eu acho que para mim é muito importante retornar para atuação em serviço social, eu acho que é muito importante ser na Maré, porque aqui é o meu lugar, é o meu refúgio, é onde minha mãe mora ainda, é onde meu irmão mora, minha avó mora, minhas primas moram aqui, é o meu lugar, minha casa, a Maré é minha casa, e é para cá estou querendo devolver o que eu acredito que eu tenho de melhor, como no teatro a gente sempre quer apresentar aqui, quando a gente estreia fora, a gente precisa apresentar aqui, é a mesma coisa que o serviço social que eu sinto, eu preciso estar aqui, fazer isso, e eu acho que pensando na população LGBT é muito importante, eu sou uma mulher lésbica, eu acho que falar de políticas para pessoa LGBTs, direitos para pessoas LGBTs, falar sobre a violência que recai sobre as pessoas LGBTs, e principalmente acolher, que seja um espaço de acolhimento para pessoas LGBTs, é muito importante, eu acabei de falar que não é só para isso, mas é o vetor principal que faz isso chegar aqui. Existem vários centros de cidadania e convivência pelo Estado, esse aqui é o mais novo, está sendo uma rede de acolhimento para pessoas LGBTs, e eu me sinto engajada para estar aqui, porque eu faço parte dessa população, eu faço parte desse público que merece esse respeito, e que é tão difícil ter, a gente vê, a gente vê todo dia (a mulher estranha), o Brasil é o país que mais mata mulheres, pessoas trans e ter um projeto como esse pode ser muito importante dentro da favela principalmente, pode ser muito importante porque ainda tem muitas sombras sobre a nossa vivência dentro desse lugar, sobre nosso espaço mesmo aqui. Como a gente se relaciona. Então estar aqui como assistente social, dentro do centro de referência, é voltar para casa e olhar para mim, e acolher o outro, mas também é me acolher, é me dar a oportunidade de fazer um trabalho que não é só por mim, é por tantos, é me dar essa oportunidade, me dar essa chance, e fazer algo que eu possa me orgulhar muito também, também mais uma coisa que eu possa me orgulhar muito, por isso que eu fiz questão de me inscrever, de fazer a seleção, fiquei muito feliz quando eu passei, a Gilmara que é a coordenadora é uma referência para mim enquanto uma mulher trans da favela que criou Conexão G, que está todo dia batendo de frente, que ganha o Pedro Ernesto porque ela é boa pra caramba, porque ela sabe, ela pensa nessa população aqui todo dia, ela não cansa, ela não cansa de pensar nessa população, e aí a gente vê outros grupos aqui também existindo, tem o Resistência Alérgica, que é incrível com o que está acontecendo lá no Casulo, que é bom o trabalho, as meninas lá na pandemia então, foi um trabalho fundamental. Como que eu não vou estar aqui também. Eu preciso estar aqui também, é fundamental para mim, eu não consigo me enxergar, não fazendo nada, mesmo que daqui a um tempo eu precise sair, eu preciso ir embora, eu ainda vou ter feito alguma coisa, ainda vou ter estado aqui durante um tempo, ainda vou ter participado disso que é tão histórico, ainda vou contar um pouco de mim para esse lugar.
02:28:48
P/1 - Jaqueline, eu vou agradecer profundamente esse compartilhar da sua história, da sua trajetória, realmente estamos agradecidas, gostaria de te perguntar sobre você tem sonhos? Ainda pensa sobre isso? Desejos? Poderia compartilhar aqui com a gente?
R - Eu tenho sonhos bobos assim, sabe? Eu tenho vontade de ter uma casa, sempre que me perguntam isso dá vontade de ter uma casa para mim, eu acho que um teto sobre a cabeça é muito importante sabe, eu tenho um teto né claro, mas isso para mim é muito caro, custa caro para minha pessoa, não é caro no sentido do dinheiro, mas é caro esse tipo...é precioso para mim esse lugar. Eu tenho vontade de fazer várias coisas, eu quero que minha mãe fique bem, eu quero que minha avó viva muitos anos ainda, eu quero que o meu irmão seja o homem que ele já é, que ele só melhore, que ele é um homem maravilhoso, ele é incrível, eu quero que meus amigos sejam felizes, não sofram violência. Eu quero que esse país saia desse caos, que a gente se livre dessa aberração que está no comando porque é muito triste, é muito inacreditável ver esse cara, as vezes eu duvido. Como é que a gente deixou isso acontecer? Eu quero poder beber mais cerveja, eu quero louvar meu pai xangô, a religião tem sido um espaço de muita importância para mim, estar no meu barracão com os meus irmãos de santo, com a minha mãe de santo, aprendendo sobre ancestralidade também naquele lugar, sobre religiosidade, sobre fé, foi um retorno para fé depois de fazer a primeira comunhão, ir para a Casa das Águas que é o nome do meu axé é muito importante, foi muito importante para mim, me iniciar foi muito importante, então eu quero continuar indo para a Casa das Águas, eu quero continuar recebendo, eu quero continuar recebendo meu pai, recebendo o amor que ele me dá quando ele está em mim, quando eu sinto tudo aquilo tudo que ele é para mim. Ele foi um início de renovação muito importante, a minha iniciação no candomblé foi muito fundamental para eu ter alguns equilíbrios que eu não tinha antes também, e eu sou muito feliz por ter reencontrado a minha fé nessa religião, porque durante muito tempo eu achei que eu não tinha mais fé, que eu só tinha desejos, mas não fé e eu descobri que eu tenho muita fé ainda, que eu tenho muita fé, para mim isso é muito importante, cuidar da minha religiosidade é muito importante, beber minha cerveja no bar é muito importante, saudades de beber, de estar com os amigos, de abraçar acho que essas curas são...viajar, saudades, essas coisas todas são coisas que eu desejo ainda para mim. Talvez ter um filho não sei ainda, mas tudo é muito perto, mas também é muito longe ao mesmo tempo, então a gente fica, a gente vai botando 01 tijolinho em cima do outro, vamos vendo para onde vai essa construção, né?
02:32:57
P/1 - Jaqueline o que você achou de dar um depoimento pra gente, para o nosso projeto? R - Eu fiquei muito feliz, acho que estava precisando falar um pouquinho. Acho que é bom voltar às vezes contar a história de novo, lembrar de algumas coisas que já não lembra mais, que já está ficando um pouco no esquecimento, aí de repente a memória ativa de novo, foi gostoso, foi muito legal, fiquei muito feliz, fiquei à vontade, foi bem bacana para mim, muito mesmo, revisitar minha própria história, já muito tempo que a gente vai falando do imediato, é bom às vezes voltar um pouquinho e foi bacana, foi gostoso, foi muito legal. Fiquei muito feliz, de verdade gente, de verdade, chorei muito.
02:33:51
P/1 - Obrigada Jaqueline!
R - De nada.
P/1 - Obrigada pela parceria. Obrigada.
02:34:48
R - Esse aqui é o meu fio de conta que a gente usa como uma proteção, né? E cada orixá tem um, esse aqui é o de Xangô que é o meu pai, o santo da minha cabeça, e esse aqui é da minha iniciação, foi quando eu, como dizem por aí, deitei para o santo e ela é muito importante para mim, porque significa a minha conexão com a minha fé e com meu pai mesmo. Sempre que eu boto ele eu me sinto mais próxima do meu pai Xangô, então eu fico muito feliz de poder usá-lo, e eu espero que meu pai Xangô também esteja feliz por saber que eu sou filha dele, por me permitir ser filha dele. É muito importante para mim, esse fio é muito importante para mim e é por isso que eu estou trouxe para vocês verem, isso aqui é um processo muito esperado por mim, mas também muito cauteloso, eu tive muita cautela para me iniciar, não me iniciei por curiosidade, eu me iniciei no momento que eu percebi que eu precisava, que eu percebi que estava chegando a minha hora, Porque às vezes a gente fica tão curioso para ver como é que é o lado de lá, que a gente faz as coisas, e ainda bem que eu consegui ultrapassar a minha curiosidade e me iniciar pela minha fé mesmo, pelo que eu estava sentindo naquele momento e foi uma decisão muito acertada, acho que uma das decisões que eu tomei na minha vida foi o candomblé, foi a iniciação, é Xangô é isso, aqui são minhas coisinhas que eu levo para o barracão.
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