Projeto Minha Casa, Minha Cara, Minha Vida, Cabine São Bernardo do Campo
Depoimento de Francisco Chagas Nascimento
Entrevistado por Márcia Trezza e Nilza Rocha
São Bernardo do Campo, 09/03/2014
Realização Museu da Pessoa
ASP_CB011_Francisco Chagas Nascimento
Transcrito por Cristiane Costa
P/1 – Francisco, fala o seu nome completo.
R – Francisco Chagas do Nascimento.
P/1 – Que data você nasceu?
R – Nasci no dia 04/02/1966...
P/1 – Onde?
R – Mais precisamente na cidade de Floriano, Piauí.
P/1 – Você tem lembranças marcantes da sua infância?
R – Eu tenho, que eu na verdade eu fui criado em Osasco e eu saía com meus amigos pra matar preá com espingardinha de chumbo e estilingue, no Rio Tietê. Era muito gostoso.
P/1 – Você veio pra cá, pra São Paulo, muito pequeno?
R – Sim, criança, fui criado aqui. Ou melhor, em Osasco, né?
P/1 – E o Rio Tietê você disse que era muito gostoso. Que lembrança você tem?
R – Da gente matar preá, entendeu, com espingardinha de chumbo e estilingue também.
P/1 – Mas do rio, assim?
R – Não, o rio em si já era poluído, né? Não lembro quando ele não era poluído, quando eu o conheci já era poluído. E como era! Entendeu?
P/1 – E vocês ficavam brincando desse jeito, né, e você morava perto do rio?
R – Sim, morava ali na proximidade da Rodovia Castelo Branco.
P/1 – E como era? Você lembra da sua casa naquela época?
R – Era uma casa humilde, humilde, mas que eu gostava de morar ali porque tinha bastante amizade com as pessoas, então era gratificante morar naquele local.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Eu lembro dos meus irmãos adotivos. Sim, tenho.
P/1 – Sim. Quantos?
R – Três... Quatro, quatro irmãos.
P/1 – Quatro irmãos?
R – Sendo dois irmãos e duas irmãs adotivos. Agora, biológico eu tenho, mas só que eu não me recordo deles, né? Na verdade, acho que... Deixa eu ver, deixa eu me recordar. Acho que é um, dois... Acho que é quatro também.
P/1 – Quatro?
R – Isso.
P/1 – Eles ficaram onde você nasceu?
R – Exatamente, ficaram.
P/1 – Veio só você pra cá?
R – Sim, meu pai... Meu tio que me trouxe quando eu era criança, entendeu?
P/1 – E você conviveu principalmente com o seu tio mesmo?
R – Sim.
P/1 – E esses irmãos adotivos eram os filhos dele?
R – Correto.
P/1 – E vocês brincavam juntos?
R – Sim. Só que eles eram mais velhos do que eu, então a gente não brincava juntos, né? Eu brincava com outros moleques da minha idade na época, né? Entendeu?
P/1 – Entendi. E, além dessa brincadeira de matar os bichinhos lá... Que bicho era mesmo?
R – Preá.
P/1 – Tinha outras brincadeiras?
R – Sim, eu gostava de jogar futebol. Sempre gostei de jogar futebol e tinha, melhor dizendo, uma curiosidade tremenda pra conhecer o que tinha dentro do rádio, entendeu?
P/1 – Olha. É mesmo?
R – Desde criança que eu gostei de rádio, o mundo mágico do rádio, entendeu? Tanto é que uma vez – eu sou muito curioso – eu abri o rádio pra ver se tinha alguém falando dentro. Engraçado, né? Como é que é moleque; a curiosidade de como é que é. Aí, de repente, eu abri, aí eu falei “Cacildis, não tem ninguém falando, de onde vem essa voz?”, né? Aí, quando eu fui crescendo, aí eu fui descobrindo que seria transmitido através de um estúdio, de uma emissora, via satélite, entendeu? Enfim.
P/1 – Bacana. E você, vindo mais pra cá, você disse que é radialista. Quando você começou a estudar pra isso?
R – Eu comecei a estudar acho que foi... Não me recordo...
P/1 – Ou se interessar, assim, pra estudar.
R – Não, me interessei a partir de 98.
P/1 – E estudou como pro radialismo?
R – Ah, eu trabalhei à beça pra pagar porque foi caríssimo, né? Eu trabalhei e ralei, ralei que nem louco. Saía do trabalho e ia pra escola, chegava em casa por volta de meia noite, uma hora da manhã, entendeu? Mas sempre focado. Eu tinha... Eu falei: “Meu, eu vou ter que trabalhar numa emissora de rádio, que é o que eu gosto na verdade”. Até então, quando eu terminei, eu falei “será que eu vou?”. Tive a oportunidade de estar inserido no mercado, hoje, né? Só que eu fui muito relaxado, tive oportunidade, não corri atrás. Aí foi passando os anos, corri atrás de alguns patrocinadores mas só que, de repente, o pessoal que entrava em contato comigo não ia atrás, aí ficou nisso.
P/1 – Como é esse curso de radialismo pra você, assim? O que você mais aprendeu de significativo?
R – Eu aprendi como lidar como lidar com uma equipe de trabalho, porque lá nós éramos uma equipe. Porque estúdio, geralmente, tem a direção, tem a produção, enfim, tem o pessoal que fica atendendo, faz parte da produção na verdade, né? Porque antes eu era, eu diria até egoísta; eu queria tudo pra mim, queria trabalhar sozinho, enfim. Mas eu vi que não é dessa forma, nós temos que ser, eu diria até menos egoísta e ser mais solidários pra com as pessoas e eu não tinha isso comigo. E, através do fazer rádio, eu conheci que era totalmente diferente. Eu aprendi muitas coisas bacanas, entendeu? Se for enumerar eu vou ficar a tarde inteira falando sobre rádio, entendeu?
P/1 – Mas isso foi o mais significativo, né, pra tua vida?
R – Sim, bacana. E também transmitir, interagir com o público... Eu gosto muito de interagir com o público, é muito bacana as pessoas ligar pra você, e você perguntar como é que tá a pessoa. Enfim, é muito bacana isso daí. É muito gratificante.
P/1 – Você já trabalhou em alguma rádio?
R – Eu já fiz alguns programas em emissora de rádio, entendeu?
P/1 – É? Que rádios? Aqui de São Bernardo?
R – Aqui em São Bernardo eu trabalhei numa emissora, eu cheguei a trabalhar freelancer em algumas emissoras também daqui de São Paulo. Aí, depois, eu relaxei um pouquinho, eu falei “vou ficar mais tranquilo”, entendeu?
P/1 – E dessa época que você trabalhou em rádio, você lembra de algum acontecimento, assim, marcante?
R – Deixa eu ver...
P/1 – Alguma história?
R – Eu achei bacana uma vez, eu tava no estúdio, transmitindo o programa da tarde numa determinada emissora e uma cidadã se encontrava com o namorado dela, aí ela falou que deixou o cara totalmente só pra ir me ouvir numa sala diferente e ficou ligando pra mim, conversando, etc. e tal e eu falei “pô, mas não faz isso, eu sou profissional do rádio, eu não quero, jamais eu vou querer me envolver contigo”, etc e tal. Aí, começou a falar a história dela e eu fiquei só ouvindo, é claro, né. E eu falei “não, eu te respeito muito mas não dá, muito obrigado pela atenção, enfim, boa tarde”. E acabou o papo, mais ou menos assim a história.
P/1 – E a mágica do rádio, como é, assim, de você entrar na vida das pessoas? Fala mais um pouquinho.
R – É muito gratificante. Porque, às vezes, tem pessoas passando por problemas até então difícil. E você vai, com o seu jeito de falar para as pessoas, um conselho amigo já muda totalmente o jeito da pessoa agir, é muito bacana, muito legal. E eu tinha esse dom, até então, que Deus me deu, né? Eu dava um conselho, um conselho amigo pra pessoa, assim: “Minha querida, se eu consegui, você pode conseguir também, que eu não sou melhor do que você e nem tampouco diferente. Nós somos iguais! Assim como eu consegui você vai conseguir também, é só você lutar como eu lutei”. E assim sucessivamente.
P/1 – Você teve momentos da sua juventude, que você falou, né, “eu consegui, você também pode conseguir”. Teve momentos da sua juventude que você teve que, realmente, lutar, transpor barreiras? Você quer contar algum?
R – Não, a nossa vida é sempre de luta, né? Pra gente conseguir algo tem que ser com muita luta e comigo não foi diferente, tinha que matar um leão, dois leão por dia pra conseguir nosso objetivo de vida, né? E eu, quando chegava mas emissoras de rádio, pelo fato de ser negro, deixava o meu piloto, as pessoas olhavam com menosprezo, eu percebia, né? Eu falei “eu vou conseguir, vou ser perseverante. Eu to aqui não é por acaso, Deus tem uma missão na minha vida, eu vou correr atrás”. E corri atrás, como eu falei. Eu aprendi uma coisa, que quando a gente vai pra conseguir o nosso objetivo de vida, você já vai com “não”, você vai em busca do “sim”. E eu sempre coloquei isso na minha mente, ir atrás. E, claro, em cada porta que dizia, se cem portas falar pra você “não”, uma porta vai dizer “sim”. Tem que ser perseverante e eu sempre fui. Você sabe que tinha horas que eu ficava meio fraquinho, tal, mas eu caí aqui, de repente, do obstáculo, seria a minha escada, conseguir o meu objeto, né? E, assim, eu me levantava, caía hoje mas me levantava e assim sucessivamente.
P/1 – De Osasco você mudou pra cá?
R – São Bernardo, isso.
P/1 – Em que época, Francisco?
R – Papai, querido! Eu acho que foi no ano de... 98.
P/1 – E você mudou por quê pra cá? Saiu de Osasco e veio pra cá?
R – É que eu fui criado com os meus tios e eles jogavam muito na minha cara, porque eles falavam que eu não queria vencer. E na verdade, quando eu era moleque, eu era meio preguiçoso mesmo, né, não queria nada com nada. Só queria jogar bola, ficar no rio matando preá com os amigos. E ela falava “pô, você nunca vai vencer na vida, não, moleque, você é muito folgado”. E eu fui crescendo com aquilo lá na minha mente, né? Eu falei assim “vou mostrar pra ela que eu vou vencer na vida”. E quando eu saí de lá, eu falei: “Pô, eu não gosto de ter opinião, mas isso vai ser uma lição de vida”. Aí, eu coloquei na minha mente, fiquei aproximadamente 15 anos sem ir a Osasco, sem ir ver meus familiares. Quando eu voltei lá, ela tinha falecido. Isso pra mim foi uma dor no coração imensa, foi muito triste ir lá com essa história, dá vontade... EU choro por dentro, né? Porque é triste, né, a pessoa te criou e você desprezar ela, só porque, sei lá, ela foi infeliz na colocação dela e eu acatei aquilo, eu imaginei que seria de verdade o que ela falou mas não, foi de brincadeirinha. Brincadeirinha que machucou por dentro, me feriu, né? Por essa razão eu fiquei aproximadamente 15 anos sem a ver.
P/2 – Mas eu acho que foi um estímulo, né, que ela queria dar pra você, né?
R – Sim, com certeza, foi um estímulo só que doeu por dentro, entendeu?
P/2 – Que você não entendeu na época e só entendeu como se estivesse te tocando, né?
R – Exatamente, né? Eu sou uma pessoa muito emotiva, entendeu? Então, isso tocou dentro de mim e como tocou.
P/1 – E foi aí que você saiu de casa?
R – Sim, aí que eu saí. Eu nem sabia o quê que era morar em favela. Eu falei: “Jesus, eu não queria morar em favela, pai?”. Aí, vim pra aqui, morei na Favela do Oleoduto, aí foi estranho. Nunca fiquei sem tomar banho, né? E lá nós não tínhamos água encanada, tinha que descer o morro pra pegar lá em baixo, no poço artesiano, quando a mulher liberava água pra gente pegar, quando não liberava dormia sujo, sem tomar banho. Nossa, situação terrível, nunca passei por isso, né? Desempregado, morando na casa da minha prima, às vezes não tinha comida pra comer mas, mesmo assim, morando no meio de tantas pessoas que não eram do bem, eu me salvei, nunca fiz coisa errada, Graças a Deus por isso, convite não faltou. Inúmeras pessoas falaram “o, Fulano, você tá passando momentos difíceis? Vem comigo, vai vender isso, vamo roubar!”. Eu falei: “Amigo, para com isso, se você quer ser meu amigo, sem esses conselhos, sem essas conversas pro meu lado, que eu não gosto disso não, hein?”.
P/1 – E eles te respeitavam quando você falava isso?
R – Sim, sim. Às vezes sim, às vezes não. Quando não respeitava, eu pegava e me esquivava, entendeu? Mas jamais pratiquei algo que não deve. Passei momentos difíceis? Passei. Mas roubar nunca, nem vender drogas, porque não faz parte da minha índole, nem do meu caráter, entendeu?
P/1 – Francisco, quando você veio pra essa favela, tinha alguém que morava aqui, sua prima?
R – Sim, a minha prima.
P/1 – E você veio morar no lugar que ela morava?
R – Exatamente.
P/1 – Com ela?
R – Exatamente, com ela, entendeu? Ela desempregada, eu também, então foi terrível, passamos momentos difíceis.
P/1 – E depois que trabalho? Você conseguiu trabalho?
R – Na verdade, quando eu cheguei aqui, um trampo que eu nunca tinha feito: carpir mato. Já pensou, carpir o mato na Nestlé? Uma agência de emprego... Pra ganhar o pão honestamente.
P/1 – Tá certo.
R – É terrível, gente, no sol quente, já pensou? No sol quente ficar carpindo mato? Eu tinha que fazer isso.
P/2 – Ninguém merece.
R – Ninguém merece. Apesar de que, na época, eu já tinha concluído o Ensino Médio. Mesmo assim as portas se encontravam fechadas pra mim, até então. Enviei currículo pra inúmeras empresas grandes, que nem Volks, Scania, Mercedes... Enfim.
P/1 – Com o Ensino Médio?
R – Exatamente.
P/1 – E mesmo assim?
R – E não teria conseguido nada naquela época, né? Aí, de repente, eu falei: “Cacildis, eu não posso ficar dessa forma, parado, passando necessidade, o que aparecer eu vou abraçar com unhas e dentes”, né? Aí, apareceu o serviço nessa firma de...
P/1 – Pra carpir.
R – Pra carpir o mato. Eu falei “Jesus, carpir o mato nesse sol quente, Papai? O que eu vou fazer? Vou ter que encarar”. Nunca tinha feito isso mas eu tive que fazer, carpindo mato, no solzão quente e eu lá, todo mundo lá, de boa, tranquilamente, sentado trabalhando na sombra e eu lá, me matando. Eu falei “meu Deus, me ajuda”. Aí, de lá saímos, fomos pra Mogi das Cruzes. Já não fui carpir o mato...
P/1 – Você e sua prima?
R – Não, eu sozinho mesmo. Nós saímos não, eu saí. Eu falei saímos porque eu e alguns amigos, que trabalhavam comigo, né?
P/1 – Ah, entendi.
R – Nós saímos pra trabalhar em Mogi das Cruzes.
P/1 – E mudou pra lá? Não, né? Continuou aqui.
R – Continuei aqui em São Bernardo, só que alugaram pra nós uma pensão e lá a gente tinha que montar sabe aquela estrutura metálica, mesmo que nem essa daqui? Fiquei lá uns dois, três meses, aproximadamente. Mais alguma pergunta ou quer que eu “dou” continuidade?
P/1 – Pode continuar. A hora que eu resolver – e Nilza também fica a vontade.
R – Então, gente, “eis-me” aqui pra responder o que vocês quiserem, entendeu?
P/1 – Eu queria te perguntar, você disse que tinha terminado o Ensino Médio, né? Que idade você tinha quando você fez esse trabalho?
R – Cacildis! Parece que eu tinha 19 anos, aproximadamente. Por aí, em torno de 19, 20 anos.
P/1 – E continuou morando aqui?
R – Sim.
P/1 – Em que comunidade você morava?
R – Oleoduto. Vizinho dela.
P/1 – Ah, tá, vizinho da Nilza.
R – No Oleoduto, né?
P/1 – E você falou da dificuldade com a água. Tinha mais alguma coisa, assim?
R – Lama. Tanto é que uma vez, gente, eu ia pra escola... Conhece Brasília, né? Brasília fica aqui, em Conde de Lima, meu pai, eu desmaiei nesse dia. Eu tava descendo, material, tudo limpinho pra ir pra escola e o negão caiu que nem... Vou nem falar, seria pejorativo, né? Eu caí de uma forma desagradável. Jesus, bati a cabeça no solo que eu vi o mundo girar comigo, quase desmaiei na hora, tive que voltar. Falei “gente, que situação é essa, papai?”. Ficou totalmente sujo. Sem contar que quando eu ia pro trabalho também, eu tinha que descer o morro, eu tinha que colocar um monte de sacola no meu pé pra não sujar o tênis. Era terrível, aquele tempo lá só Jesus na causa. Sem contar que eu tinha que passar no meio dos vagabundos fumando maconha, e eu tinha que passar.
P/2 – É, já é perfume, né, da manhã.
R – Exatamente.
P/2 – Já pegava o cheiro, já incomodava.
R – Exatamente.
P/1 – Logo de manhã?
R – Exato. Chegava no trabalho todo mal cheiroso de maconha, de droga, o cara falava: “Oh negão, que negócio é esse?” “Meu amigo, onde eu moro o local é desse jeito. Pra você vir pro trabalho tem que primeiro vir com cheiro agradável de maconha, senão você não chega aqui no trabalho, né?”. E tinha que fazer isso pra não brigar com os caras. Se eu brigasse, certamente eu seria morto, né, porque naquela época eles matavam. Hoje não, que diz que o tal PCC...
P/2 – Tomaram conta.
R – Apaziguou a favela, né?
P/2 – É.
R – Mas anteriormente aqui era terrível, muito terrível. Mas a gente venceu aos poucos, né?
P/1 – E tinha alguma coisa que, ao mesmo tempo de toda essa dificuldade, te animava lá? Assim, que você achava que compensava no lugar?
R – Pra ser sincero, eu estava ali porque eu sempre fui perseverante, procurando algo de melhor. Mas naquela localidade eu não via nada de bom ali.
P/1 – Nada?
R – Nada, nada. Porque o que eu via! Chegava da escola à noite, já me deparava... Lembra do tal Esquerdinha? Conheci esse cidadão descendo o morro, com a “metranca” na mão, pra quer matar bandido, às vezes matava até trabalhador. Mas tudo bem, até aí normal.
P/1 – Ele era?
R – Justiceiro.
P/1 – Ah, tá.
R – Entendeu?
P/2 – Falavam que era justiceiro mas devia ter os que não...
R – Então, às vezes até quem não devia pagava, né? Quando ia pro trabalho, que eu saía cedo e voltava à noite, me deparava com um monte de pessoas drogadas, enfim, um monte de vagabundo, encontrava com esses tipos de pessoas. Quando voltava, encontrava com esse tal Esquerdinha, que era um cara osso duro de roer também, né, que queria vagabundo mas, de repente, ele matava gente inocente também. Então, eu morei nesse local e eu sei o que eu sofri. Hoje nós estamos... Eu diria, se for comparar com alguns anos atrás, eu estou no céu, entendeu? No céu. Se não estou no céu eu estou do lado do céu, né?
P/2 – Praticamente, né?
P/1 – Tinha companheiros, assim, alguns companheiros que dava pra contar ou que você se divertia, saía passeava?
R – Não. Eu tinha um primo meu que ele chegou de Brasília recentemente, então o único amigo que eu tinha, que eu não me envolvia com ninguém dali, porque eram pessoas do mal e eu não queria envolvimento com pessoas que não deve, né?
P/1 – E a Igreja, você entrou quando?
R – eu entrei no ano de 92, em São Paulo. Eu conheci Jesus lá em São Paulo, em 92.
P/1 – E teve um motivo especial pra você começar?
R – Sim, meu filho, eu tenho um filho que ele é especial. Então, foi pra obter a cura dele, né? E depois que eu comecei a frequentar, eu percebi que ele melhorou gradativamente.
P/1 – Você tem quantos filhos? Um só?
R – Não, não, eu tenho três negros, que amo de paixão, tenho um grande sentimento para com eles. E só ele que teve problema e eu achei estranho porque ele foi o único que fez exame do pezinho, o único.
P/1 – E não tinha dado nada?
R – Nada! E os outros não fizeram e estão lá, Graças a Deus. Um faz Nutrição e o outro vai fazer Química, enfim.
P/1 – São moços já?
R – São, é. Uns negrinhos “sem vergonha”, um tem 18, outro tem 20, enfim. Isso mesmo? Deixa eu ver, Jesus. É, e se não for é algo parecido, né? Um faz Nutrição, o outro vai fazer Química, enfim.
P/1 – Peraí, tem três, então?
R – Isso.
P/1 – Três rapazes?
R – Não tem uma negra que faz Nutrição, uma negrinha gente boa. E um neguinho gente boa mas terrível, tá lá na mão de Deus. E tem uma história engraçada também, o neguinho que vai fazer Química, hoje ele não era pra estar aqui no nosso meio, entendeu, gente? Ele com dois anos, não, dois meses de idade, eu trabalhava numa firma, de porteiro. Aí, eu trabalhava à noite, eu era folguista, né? Das duas às dez, dez às seis, seis às duas. E nesse horário eu tava à tarde, né? Aí, o moleque deu um problema nele, ninguém sabia o que é que era, sei que ele ficou molinho, com dor, enfim. Eu peguei o garotinho, joguei nas minhas costas e levei pro pronto socorro. Chegou lá, falaram “tranquilo, não tem nada o garoto, pode levar pra casa de volta”. Eu trouxe ele de volta pra casa. Gente, eu deixei a mulher e fui trabalhar. Os meus vizinhos falaram “caramba, não é normal”. A minha mulher chorando, o moleque tava mal de novo e eu trabalhando, tranquilo. Aí, o vizinho tinha um caminhão, pegou, colocou a criança e levou pro pronto socorro de novo. O moleque tava com uma doença... Sabe aquela que quando não mata aleija? Meningite meningocócica B? Ou, então, fica com sequela, entendeu? Tanto é que a minha vizinha, não sei se vocês conhecem, na frente tem uma mocinha, deve ter 18 anos, 15. Ela tá lá, de cama, ela tá vegetando, gente. Teve o que o meu filho teve. Foi a fé que nós temos no nosso Deus, entendeu, gente? Porque tá na bíblia, não sei se vocês creem, mas eu creio, “sem fé é impossível agradar a Deus”, entendeu? Então, eu tenho isso comigo, eu e a minha mulher ali, orando pra Jesus, orando. Com dois meses ele foi para o Emílio Ribas, aí eles fizeram, assim, uma radiografia – eu não entendo muito, não é minha área, né – da cabeça dele e tinha uma bolsa de pus e eles deram remédio pra que ele... Correto ou, então secasse, e não aconteceu nada disso. Ele falou: “Se isso não acontecer, iremos abrir a sua cabeça, literalmente, e vamo tirar essa bolsa de pus” e isso aconteceu, né, com dois meses. Falei: “Jesus, perdi o meu filho”. Abriu literalmente a cabeça da criança. Gente, com três dias o moleque tava pulando na UTI. Eu falei assim: “Esse moleque é um touro” e foi mesmo, três dias tava pulando.
P/1 – E não ficou com nenhuma sequela, nada?
R – É safado, toca violão, pega as menininhas e fica com palhaçada, moleque é safado e inteligente. O mau dele é que ele é teimoso, mas fazer o quê? Não são todas as coisas. Então, gente é uma história de vida e se eu fosse contar, a minha história não caberia num livro, entendeu? Teria que ser várias laudas pra caber a minha história de vida, que ela é longa, hein? Super longa.
P/1 – E nós estamos... A gente não mudou pra cá, pro condomínio ainda. Antes de mudar pro condomínio, Nilza, você quer perguntar alguma coisa?
P/2 – Como é que você chegou? Você enfrentou alojamento também, né?
R – Never. No. Não, não.
P/2 – Você já foi direto pro prédio?
R – Correto. Não, veja bem, minha querida, eu fui direto pra morar no Nazaré, numas casas de aluguel, peguei renda abrigo. Eu não tive oportunidade de morar no alojamento, que eu fiquei sabendo que era terrível, né?
P/2 – Então você teve sorte.
R – Graças a Deus por isso. Como é que é morar em... Não, melhor, vocês são entrevistadas, eu sou (risos). Ou melhor, eu sou entrevistado, são entrevistadoras.
P/2 – Não é bom, não. Porque, como eu falei, são 22 famílias. Você chegou a ver como que era o modelo, né?
R – Sim, sim.
P/2 – Vinte e duas famílias, 11 em baixo, 11 em cima. Então, tinha dias que eu não dormia à noite porque a moradora do meu, ela dormia o dia inteiro e à noite ela ia fazer faxina.
R – Rapaz.
P/2 – Então, ela arrastava sofá, arrastava tudo, aí eu tinha que pegar com a vassoura e ficar batendo a noite toda no teto pra ver se ela se tocava.
R – (Risos) Meu Deus, que loucura, hein?
P/2 – Aí ficava quieta um pouco, daqui a pouco começava. Eu tinha que abrir a minha porta, sair pra fora, subir a escada lá fora pra poder na porta dela.
R – Jesus.
P/2 – Aí, tinha dia que ela “vou ficar quieta”; tinha dia que ela “ah, eu tenho o meu horário de trabalhar, é agora, de fazer faxina é agora”.
R – Nossa, meu Deus, o que é isso?
P/2 – Mas era terrível, né, porque era o banheiro, tinha das mulheres e dos homens, cada alojamento tinha o seu e era os quatro vasos, tinha os três chuveiros, quatro, mas dois funcionando, o restante não. E você tinha que sair à noite pra ir fora no banheiro.
R – Meu Deus.
P/2 – Então, o pessoal que morava em cima, não queria ir no banheiro, fazia na sacolinha e jogava lá na gente, lá embaixo.
R – Meu Deus.
P/2 – Você levantava de manhã, aquela sujeira! Você perguntava quem era, nunca ia saber quem era, né, porque nunca era falado. Então, foi uma vida difícil.
R – Que loucura. Acredito.
P/2 – Porque era polícia direto, no nosso nem tanto. Agora, o pessoal aqui embaixo, na José Fornari, sofreu mais, né...
R – Meu Deus, Jesus.
P/2 – Nesses casos de polícia. Então a gente ficou um tempo, tava desabando, a prefeitura a gente chamava pra vir arrumar e nunca vinha, uma vez a caixa d’água, a gente já tava saindo, despencou lá de cima, sorte que não tinha ninguém porque senão tinha matado alguém. Então, foi difícil, foi terrível.
P/1 – É, eu tou vendo o horário, né, que a gente já vai terminar daqui a pouquinho. Com toda essa situação, como a Nilza contou, o lugar que você morava você falou o nome... Fala de novo pra mim? Você já falou.
R – Morava no...
P/2 – Jardim Nazaré, antes, que você falou.
R – Ah, sim, Jardim Nazaré?
P/1 – Não, você falou que era uma favela.
R – Ah, na favela, não foi do Nazaré ainda, né?
P/1 – Qual era mesmo?
R – Oleoduto.
P/1 – Ah, Oleoduto. Você já tinha falado, mas só pra eu me localizar novamente.
R – Se quiser eu tenho mais história de lá. Se quiser eu tenho, entendeu?
P/1 – Então, é que a gente tá terminando o tempo e eu tava perguntando pra ele, mas... Você quando veio pro condomínio, qual foi a principal mudança, assim, que você percebeu nessa transformação aí, de lugar?
R – Transição?
P/1 – Transição, é.
R – Gente, quer que eu seja sincero mesmo?
P/1 – Quero. De verdade.
R – De verdade? Eu vou ser bem claro e objetivo. Veja bem, quando eu morava de aluguel, lá no Nazaré, eu não tinha o problema que eu tenho aqui, porque eu sou síndico aqui, onde eu moro atualmente, e os moradores – não diria todos, mas alguns – são porcos, desorganizados, bagunceiros, enfim. E são os adjetivos que eu posso classificar essas pessoas, porque são terríveis. Eu tento organizar, porque eu gosto de organização, mas não tou conseguindo. Tem cachorro, os cachorros não eram pra estar mais nas escadarias do prédio, né, mas os moradores não, sei lá, não gostam de limpeza. Pelo contrário, a gente até pagando a pessoa pra limpar, mas só que a mulher limpa hoje, e quando é amanhã, os pais não educam os seus filhos, suja tudo. Joga lixo lá de cima no chão, do lado da sede, do outro lado também. Pô, é terrível, sinceramente, gente. Onde eu morava era totalmente diferente.
P/1 – Porque da favela você foi pra Nazaré, né?
R – Exatamente.
P/1 – Na casa de aluguel?
R – De aluguel, correto.
P/1 – E lá era mais tranquilo?
R – Com certeza, lá não tinha esse problema. O carro ficava na garagem, ninguém mexia. Eu deixo o carro aí, o pessoal fica subindo, deitando em cima do carro. Nossa, é uma palhaçada, total e completa. Ninguém respeita as pessoas, a sujeira também é tamanha e completa. As pessoas, que nem eu falei, o local – anteriormente, né, porque hoje tá melhorando a limpeza – nem porco queria morar ali naquele lugar, porque o lugar é conhecido como bloco do fedor, entendeu?
P/1 – O que você tá morando?
R – Exato, que nós moramos atualmente. Ela deve saber disso, né? Porque as pessoas – não diria todas, mas algumas não gostam de limpeza, não gostam de ser organizadas, gostam de bagunça. Tem pessoas que, pô, não tem nada a ver comigo, por essa razão que eu assumi aquela bomba, que ali é uma bomba na verdade.
P/1 – Agora que você assumiu, que você virou síndico?
R – Exatamente.
P/1 – Nesse ano?
R – Correto.
P/1 – E, aí, você pensa em fazer o que, Francisco?
R – Olha, eu penso em mudar totalmente.
P/1 – Mas tem como se as pessoas não têm vontade?
R – Aí que tá o problema, aí que tá o problema, né? Por exemplo, eu queria colocar umas câmeras pra flagrar as pessoas desordeiras, que gostam de jogar sujeira de cima, que fazem sujeira na escadaria, entendeu? Enfim, só que eles não querem, alguns não querem pagar o condomínio, então não tem como eu fazer algo, entendeu?
P/1 – Entendi.
R – Ficar com as mãos amarradas, aí fica difícil fazer algo, né?
P/2 – É que eles estavam acostumados com o barraco, não pagava nada, nem água, nem luz, então eles acham um absurdo ter que pagar, né?
R – Exatamente. Mas eu penso dessa forma: se eles não querem pagar nada, que voltem pra onde eles vieram “prefeitura, por gentileza, me dá o meu aluguelzinho que eu vou ficar diretamente no aluguel, que eu faço o que eu quero”. Mas lá é diferente, lá, gente, eles têm um endereço. Antes, porém, eles não tinham, eles não eram cidadãos brasileiros, cidadão tem que ter um endereço, eles não tinham anteriormente, né? Hoje eles têm endereço, eles têm moradia digna, é só zelar. Moram num local privilegiado...
P/2 – É, tá melhor do que a gente até.
R – Na avenida, tá de brincadeira? Na avenida, lugar privilegiado, perto de hospital, perto de escola, perto de mercado, enfim.
P/2 – Ponto de ônibus...
R – Exato, ponto de ônibus! Não é igual as pessoas que moram no final, lá onde você mora, não é isso?
P/2 – É que eu moro nos primeiros que fizeram só que ali, pra Anchieta, é rápido, só que é demorado os ônibus, aqui tem mais variedade.
R – Com certeza. Aqui é bem melhor, em todos os sentidos.
P/2 – Eu queria perguntar pra você se vocês não escolheram os vizinhos antes de mudar? Igual nós, que nós escolhemos.
R – Eu não tive opção, minha querida. Eu fui escolhido depois que as pessoas vieram morar. Se tivessem me escolhido anteriormente, claro que eu ia escolher. Pior é que eu não conhecia também as pessoas, né? Mas se eu conhecesse, eu ia falar “esse pra mim não serve, esse também não”, enfim. Mas eu não tive também essa opção de escolha, né? Por essa razão é que eu tou sofrendo demais com as pessoas.
P/1 – Que desafio, né, Francisco?
R – Não, eu tou no desafio! Mas eu sou, quando entro na luta, eu entro pra ganhar, não entro pra perder, entendeu? Eu sou um cara muito guerreiro, muito batalhador, gosto de lutar pelos meus objetivos e quero sair vencedor e vou sair, em nome de Jesus. Não vai ser fácil, né, mas a esperança é a última que morre, e ela não vai morrer, não. Eu creio, não irá morrer, com certeza!
P/1 – Ótimo. Então a gente tá terminando.
R – Já?
P/1 – Já. O quê que você achou de fazer essa entrevista?
R – Muito bacana. Lembrei quando eu tava em estúdio, tal, entendeu? É legal.
P/1 – Gostou.
R – Muito bacana.
P/1 – E nós também, viu, Francisco. A gente faria muito maior a entrevista, com muito mais tempo, que a gente sabe que você tem muita história, mas eu acho que você falou coisas importantes.
R – Se vocês quisessem eu ultrapassava o limite.
P/1 – Tem o pessoal esperando.
P/2 – O tempo é pouco, né? E o que a gente tem pra contar vai dias, né?
R – Isso é verdade.
P/2 – Se for nos detalhes.
P/1 – Mas obrigada...
R – Eu que agradeço.
P/1 – Mas o que você contou já foi bem importante pro projeto.
FINAL DA ENTREVISTA
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