Eu vivia em um braço do Rio Amazonas, que é cortado pela Ilha Grande. Meu pai tinha um depósito, uma casa meio grande, onde ele depositava castanha. Então, fazia aquelas montanhas de castanhas, e nós gostávamos de subir nessas montanhas de castanhas e descer, escorregar. Era o nosso escorrega....Continuar leitura
resumo
Idaliana nos conta a história de suas origens familiares e de sua formação no Colégio São José, em Óbidos-PA, que a levaria a ter o sonho frequente em se tornar freira. Prosseguiu conforme os princípios de Deus, porém pelo caminho da educação. Se mudou para o Chile logo após o golpe de 1964, e depois foi aceita em uma congregação de freiras em Minas Gerais, passando por diversos ofícios com elas, experiências muito duras, que serviram de grande aprendizado: um hotel em Belém, uma fábrica de castanha em Fortaleza e a comunidade de Mirim, no Ceará. Após esse período, foi missionar em São Paulo, onde conseguiu apoio para fundar a Associação Sócio Cultural Educativa Rural Mocambo-Pauxi, que tem como objetivo o apoio educacional da região da Comunidade de São José, em Óbidos.
história
Idaliana Marinho de Azevedo
legenda: Mulher idosa em pé em um campo com vegetação e uma casa ao fundo. Está sorrindo.
Idaliana Marinho de Azevedo
legenda: Mulher idosa em pé diante de várias mulheres sentadas em cadeiras em uma casa.
Idaliana Marinho de Azevedo
legenda: Mulher idosa em pé em um campo com vegetação e uma casa ao fundo. Está sorrindo.
história na íntegra
- Vídeo na íntegra
-
Áudio na íntegra
(não disponível) - Texto na íntegra
- Ficha técnica
Depoimento de Idaliana Marinho de Azevedo
Entrevistada por Karen Worcman
Comunidade São José, Óbidos, 27 de abril de 2010
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV120
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Fernanda P. Prado
P/1 – Eu queria que a senhora me dissesse o...Continuar leitura
Depoimento de Idaliana Marinho de Azevedo
Entrevistada por Karen Worcman
Comunidade São José, Óbidos, 27 de abril de 2010
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista
MB_HV120
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por Fernanda P. Prado
P/1 – Eu queria que a senhora me dissesse o seu nome inteiro, data e local do seu nascimento.
R – Eu sou Idaliana Marinho de Azevedo, nasci no dia 19 de março de 1936, num lugar no interior do Estado do Pará, numa cidade que se chama Paraná do Espírito Santo. Uma localidade que fica em um braço do Rio Amazonas, que é cortado pela Ilha Grande. O braço onde eu nasci vai rumo à Alenquer e o outro braço do rio vai para Santarém. Eu nasci bem aí, nesse intermediário desse braço do rio Amazonas, no Paraná do Espírito Santo. Meu pai era Pedro Alexandrino Siqueira de Azevedo e minha mãe, Neusa Marinho de Azevedo. Eles são descendentes de portugueses, meus bisavôs, talvez, vieram diretamente de Portugal, radicados aqui, lá nesse lugarzinho muito gracioso.
P/1 – Como era esse lugar?
R – Ele é uma região de várzea, onde o rio sobe com as suas águas durante seis meses e tem a descida, a vazante do rio, durante seis meses. Era uma localidade, naquela época, economicamente bem sucedida. Tinha os criadores de gado, tinha também faziam plantios, mas esses plantios duravam seis meses, nessa época da enchente, da vazante. Minha mãe tinha muito amor pela natureza, por plantio. Ela fazia hortas. O aprendizado, praticamente, eu fiz com ela, esse amor pela natureza. Meu pai também.
P/1 – O que o seu pai fazia?
R – Meu pai era criador de gado e um pouco comerciante. Ele comercializava as coisas que o pessoal trabalhava. Ele comprava milho, comprava feijão quando tinha, macaxeira, tudo isso ele comerciava. Mas o gosto dele era mais pela criação de gado, era isso que ele fazia.
P/1 – Ele comerciava essas coisas com quem?
R – Na redondeza ou em Óbidos.
P/1 – O gado, ele vendia a carne?
R – Ele vendia, mas para os compradores.
P/1 – Quem eram os compradores?
R – Os compradores eram, como eles chamavam naquela época, os marchantes, que vinham com as embarcações, contratavam o gado e o levavam. Ele vendia o gado em pé, como chamava, não se fazia o corte da carne.
P/1 – O gado em pé ia para Belém?
R – Não, mais para Óbidos mesmo, para abastecer o mercado, e, às vezes, para Manaus que era o mais aconselhável pela distância e também pelo tipo de comércio porque Manaus é mais próximo de Óbidos que Belém.
P/1 – O comércio sempre foi por rio, por água?
R – É, por água. Sempre.
P/1 – A senhora teve quantos irmãos?
R – Eu tinha cinco irmãos e uma irmã que morreu com um ano e três meses.
P/1 – A senhora é a mais velha, a mais nova...
R – Não, eu sou a terceira dos sete.
P/1 – E o que a senhora se lembra da sua casa?
R – Ah, uma casa linda Eu me lembro da casa porque o meu pai dizia que logo que ele se casou, ele fez uma barraca, era uma barraca de palha que eles tinham. Mas, depois, ele fez uma casa muito bonita, de madeira, era uma casa toda encaixada com pinos, não tinha prego. Você poderia desmanchar esta casa sem prejudicar e transportar para outro lugar. Foi nessa casa que eu morei e tenho muita saudade dessa casa.
P/1 – Essa casa tinha quantos quartos?
R – Ela tinha uma escada, uma varanda na frente.
P/1- Ela era longe do chão, por causa da enchente?
R – Ela era longe do chão por causa da enchente. Então, tinha uma escada, a varanda na frente, depois um corredor no meio. Tinha uma sala embaixo, a outra do outro lado e mais um quarto que eles chamavam de alcôva, que era mais para guardar as coisas. Novamente, uma varanda atrás e depois vinha uma puxada e aqui tinha a cozinha, com fogão e tudo, né?
P/1 – Atrás?
R – Atrás. E o banheiro sempre lá fora naquela época.
P/1 – E os quartos? Tinha quartos?
R – Tinha quarto do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos e o meu.
P/1 – Então, tinham três quartos?
R – Eram... Um, dois, três... Eram quatro quartos: dois de um lado, dois do outro, e a varanda.
P/1 – E o que vocês costumavam fazer?
R – Ah, a gente brincava muito. Eu sempre brinquei de professora, eu sempre brincava de professora. A gente reunia a criançada. Eu me lembro bem que a gente... Sabe, tem uma florzinha que ela tem um buraquinho assim, e a gente fazia as guirlandas. E também, eu era muito... Porque eu só vivia no meio, primeiro dos dois primeiros, porque foram os três primeiros que pegaram mais essa vida de interior. Hélio é o primeiro, Délio é o segundo, e eu sou a terceira, Idaliana.
P/1 – E o quarto e o quinto como chamam?
R – O quarto é o Pedro, depois vem o Paulo. A minha irmãzinha Neuzita, que morreu com um ano e três meses, e o último que é o Dulfe.
P/1 – Dulfe?
R – É. Ele tinha esse nome por causa do meu tio que era da Aeronáutica, era aviador. Depois ele morreu em um desastre e a minha mãe, em homenagem, colocou o nome dele Dulfe, que é o nome do meu tio. Cada um de nós tem uma peculiaridade no seu nome, porque o nome dos homens era o meu pai quem escolhia e o nome das mulheres seria a minha mãe. Então, do meu pai nasceu o primeiro, Hélio. Colocou em homenagem ao sol, que ele lia muito. Ele teve pouca escolaridade, mas foi um homem que gostava muito da leitura, ele lia muito. Então, Hélio. Depois, veio o segundo, ele disse “vou colocar Délio”, era em homenagem, acho que a um militar amigo dele, não me lembro bem, porque o Délio. E o meu, a minha mãe já tinha escolhido, ela dizia que tinha escolhido o meu nome desde quando era noiva.
P/1 – Idaliana?
R – Idaliana.
P/1 – Por que?
R – Porque era o nome das minhas duas avós, Idália e Ana. Ela já juntou e fez Idaliana. Porque, a princípio, era só eu mesmo que tinha esse nome aqui (risos), agora tenho várias xarás.
P/1 – Mas é raro, né?
R – É raro. Então, era o nome das minhas duas avós, Idália, e a outra, a mãe do meu pai, Ana. Ana, eu não conheci, a Idália, sim.
P/1 – Como era a Idália, ela era portuguesa também?
R – Não, ela devia ser neta de portugueses. Então, essa vida, essa convivência no interior, acho que nos fez muito bem, pra nós três.
P/1 – Voltando às brincadeiras. Nas brincadeiras, vocês brincavam de escola...
R – De escola, nós brincávamos de casinha. Fazíamos sempre casinhas por aqui, por ali, de palha ou com madeira. A gente brincava muito disso. E nós gostávamos de subir, porque o meu pai tinha um depósito, uma casa meio grande, onde ele depositava castanha, porque ele comprava também a castanha. Então, fazia aquelas montanhas de castanha e Hélio, Délio e eu gostávamos de subir nessas montanhas de castanhas e descer, escorregando. Era o nosso escorrega.
P/1 – E vocês tomavam banho no rio também?
R – Sim, tomávamos. Mas eu não, meu pai não me deixou nunca. Tanto que eu não aprendi a nadar. Os meus dois irmãos, os primeiros, o Hélio e o Délio, sim. À tarde, nós íamos lá para a beira do rio, eu ficava sentada com o meu pai num toco, eu me lembro bem, um toco assim grande, ele ficava, eu doida pra ir fazer perna com os dois.
P/1 – E ele não deixava?
R – Não, ele não me deixava.
P/1 – Por quê?
R – Ele tinha medo porque era fundo. Lá, no Rio Amazonas, você não enxerga o fundo do rio, e ele nunca me deixou. Agora os dois sim, os dois pintavam e bordavam por lá mas, a mim, ele nunca deixou pular no rio. Uma vez, eu ia morrendo afogada. Eu não me lembro muito bem, eu devia ter próximo de dois anos, em um dia de domingo. Aquela região era plantio de cacau, então, dia de domingo, nós íamos para a casa dos amigos e esse cacaual era como varrido, sabe? Fazia aquele caminho varrido, bem aquele sombreado e fomos pra lá. E a menina que tomava conta de mim, se descuidou e o meu irmão, o segundo, o Délio, disse: “Maninha, vamos embora, pular daqui pra ali?” Isso é ele que me conta. Eu, bestinha, caí, fui. Ele não pulou porque era mais entendido. Tinha um senhor lá que ele caiu na mesma hora e foi me buscar lá no fundo. Eu não me lembro disso, a minha mãe que me contava, e ela mostrava: “Olha, foi este senhor que te salvou.” Com a água, eu já aprendi, mais ou menos, a nadar com o meu tio em Fortaleza. Ele ensinou a me colocar na água, flutuar e me ensinou as primeiras aulas de natação mas eu nunca mais... Quer dizer, eu não tenho muita resistência na natação.
P/1 – Agora voltando à sua casa. O seu pai lia muito?
R – O meu pai lia muito.
P/1 – E o que ele lia?
R – Ele tinha aquele Almanaque do Pensamento, era um livro que ele não deixava de ter. Ele comprava aquele livro, se guiava muito por aquele almanaque e outros livros, jornais que na época era muito difícil, mas, ele lia bastante. O que vinha, ele lia. Ele fazia anotações que você ficaria admirada de ver. Eu tenho até hoje os livros onde ele fazia as anotações das compras que ele fazia, da criação do gado, do que ele vendia, com quem ele tinha sociedade de gado. Olha, tudo uma perfeição. Parece que é de um contabilista formado. Essa preocupação muito grande que ele tinha, e a minha mãe também, com o estudo.
P/1 – Ele tinha essa preocupação?
R – Ele tinha essa preocupação. Tanto que ele contratou uma professora. Primeiro, passou um professor que eles chamavam Professor Catalão. Eu tenho uma vaga lembrança dele, um senhor alto, eu era garotinha ainda. Esse senhor apareceu lá, ele falava português, então, ele morava na nossa casa, enquanto ele estava lá, nos ensinava. Ensinava já os meus irmãos que estavam mais crescidos.
P/1 – Mas tinha uma escola ou ele ensinava em casa?
R – Não, em casa mesmo. Depois, teve uma escola da professora que me falha o nome agora. Os meus dois irmãos iam pra escola, mas eu era pequena e ainda não ia, ficava brincando por lá. Quando essa professora não deu mais aula lá, meu pai disse: “O jeito é ir pra cidade.”
P/1 – E a cidade era onde?
R – Óbidos. Então, o que ele fez? Ele ficou lá no Paraná, como a gente chamava.
P/1 – O Paraná é como isso aqui que a gente está vendo?
R – O Paraná é esse braço que fica... Por exemplo, tem uma ilha aqui que divide o rio principal em dois, né? Então, essa divisória é o Paraná.
P/1 – Eu entendi, mas o tipo da comunidade, tal, são casas assim?
R – É mais ou menos assim. É como se do outro lado também tivesse. Aí, é como se fosse o braço do rio.
P/1 – Então, era mais ou menos esse tipo de distribuição.
R – Distribuição. Você foi lá, ao Museu Integrado, em Óbidos?
P/1 – Não, eu o vi de fora. Estava fechado.
R – Pois é, lá tem um mapa do Professor Paul de Cuin, ele é um francês. Ele veio a Óbidos, ficou uma temporada lá e fez um mapa. Dessa região todinha, desse Paraná, ele fez minuciosamente com todos os moradores. É muito bonito o mapa, muito perfeito. Era uma região muito, muito habitada, essa do Paraná. Era uma região de referência aqui no município de Óbidos. Depois, com a continuidade, não sei o que realmente aconteceu. Quer dizer, o cacau cedeu lugar à juta, eles cortaram os cacauás pra plantar a juta, isso tudo foi criando uma nova feição ao lugar. Então, meu pai disse: “Bem, agora, os dois já sabem um pouco ler, é preciso ir pra cidade.” Minha mãe ficou na cidade, ele comprou uma casa em Óbidos, minha mãe ficava na cidade e ele vinha todo fim de semana. Ele ficava lá, gerindo os negócios e nós fomos morar em Óbidos. Eu não entendia muito bem a coisa, mas eu senti essa mudança do interior.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu devia ter uns seis para sete anos porque o Hélio, que é o mais velho, estava com dez, o outro estava com oito, porque tem diferença de dois anos de um pro outro. Então, a minha mãe tinha que ficar na cidade e, como ela gostava muito de plantar, ela fazia horta e os meus irmãos vendiam a verdura, saíam com o tabuleiro na cabeça e vendiam a produção na própria cidade.
P/1 – Mas vocês eram ricos, pobres?
R – Como dizia naquele tempo, nós éramos arremediados. Não éramos nem pobres-pobres, nem éramos ricos, mas era uma situação regular. A gente não tinha necessidades. Como todo mundo aqui, todo mundo é pobre, mas tem alguma coisa, né? Tem alguma coisa e você, morando no interior e sabendo gerir, vive bem. Naquele tempo, não tinha a luz elétrica, era tudo no candeeiro, à luz de lamparinas, mas nós vivíamos bem. Meu pai nunca comprava um quilo de açúcar, dois de arroz, não, ele comprava sacos. Saco de arroz, saco de feijão, não era coisa de você comprar pouco. Quase todo mundo na época, nós não tínhamos essa necessidade que muitas vezes se vê hoje. Naquela época, a gente vivia bem. Então, minha mãe ficou na cidade, eu fui estudar no Colégio São José, aí eu já comecei.
P/1 – Com as freiras?
R – Com as freiras, comecei a estudar no Colégio São José e acho que foi uma benção de Deus, porque aquele colégio completou aquilo que eu tinha recebido na minha casa. Aquela educação que a minha mãe dava, eu digo sempre pros meninos hoje, quando estão jogando papel: “Gente, eu jamais posso jogar um pedacinho de papel porque a minha mãe me ensinou isso. Quando comia alguma fruta, alguma coisa, ela dizia: ‘Olha minha filha, o restinho tu joga aqui que vai servir pra galinha’.” Eu aprendi isso do berço, praticamente. Hoje é impossível pegar um papel e jogar no chão, mas eu recebi isso. Depois disso tudo, o complemento eu recebi no Colégio São José, com as Irmãs da Imaculada Conceição.
P/1 – Eram irmãs de que Ordem?
R – Irmãs da Imaculada Conceição, eram irmãs franciscanas, uma fundação que é daqui de Santarém. Quando Dom Amando foi o bispo de Santarém, ele trouxe da Alemanha uma professora, que ele queria incentivar a parte da Educação. Ele trouxe essa professora que depois se tornou uma religiosa. Ela fundou essa Congregação, cuja missão é Educação e Saúde. Então, elas trabalham mais na Educação e trabalham também nos hospitais, na Saúde.
P/1 – E o que a senhora se lembra da escola?
R – Eu tenho muitas lembranças da escola. Eu me lembro do primeiro dia que eu entrei na escola.
P/1 – Isso, conta como foi.
R – O colégio era perto de casa. Nessa mesma casa que eu moro hoje, era uma casa mais antiga, bem antiga, aquela casa feita de tabatinga, um tipo de barro que tem naquela passagem quando você está perto de Óbidos, que tem aquelas ribanceiras. É feito desse material, tabatinga, e enxertada com pedras. Tanto que a pedra que nós tiramos dessa casa deu para construir essa nova casa, deu para construir a casa do meu irmão, fora pra outras pessoas que nós demos. Eu me lembro que nós chegamos nessa casa, minha mãe foi me levar lá no colégio e quem me recebeu foi a superiora do colégio, a Irmã Felicitas. Ela me mostrou o colégio. Engraçado como as coisas ficam na cabeça da gente. Eu me lembro que ela me mostrou um pé de cutiti, cutitiribá, e a minha surpresa, que eu encontro um cutitiribá bem aqui. Quando eu cheguei, pessoal perguntou: “Que árvore é essa?” “É cutitiribá.” Eu me lembro dessa primeira chegada, daquela Irmã com tanta amabilidade, era uma freira alemã, de ir me mostrar todo o colégio, o quintal, o pé de cutiti. Essa lembrança ficou muito marcante na minha vida, como a importância de acolher as pessoas, do acolhimento das pessoas, sobretudo na escola.
P/1 – Deu medo?
R – Não, eu não tive medo. Eu era meio arrojada, nem sei como era. Então, eu estudei o primário.
P/1 – As professoras eram as próprias irmãs.
R – As próprias irmãs.
P/1 – E as principais matérias? O que elas ensinavam? A ler, escrever?
R – Ler, escrever, português, história, geografia. Quando eu fui uma vez ao colégio, eu mostrei lá: “Olha, nessa sala...” Porque hoje em dia não tem mais essa sala, eles tiraram: “Aqui, nesta salinha, eu me lembro, no terceiro ano, a freira nos ensinando sobre o Rio Amazonas, eu nunca mais esqueci, que o Amazonas nascia lá no Peru, que ele vinha descendo que aqui em Óbidos era a parte mais estreita, chamada Garganta do Amazonas.” Eu nunca mais me esqueci disso. O ensino era muito prático, sabe, a vivência da gente. Eu acho que nós fomos privilegiadas, não só eu, como as 16 que eram dessa turma, nós nos achamos as criaturas mais privilegiadas, pela educação que nós recebemos no Colégio São José pelas Irmãs da Imaculada Conceição.
P/1 – Esse colégio era pago?
R – Era, nós pagávamos. Era um pagamento condizente com a situação naquela época. Mas tinha as outras meninas, que não podiam pagar, elas estudavam igualmente, mas você nunca sabia quem pagava, nem quem deixava de pagar. Nunca nós soubemos. Um dia desses, que uma menina me disse: “Mas professora...” Sabe, eu não me lembrava disso porque uma das alunas, umas colegas que tinham mais posses... Eu não tinha mais posse porque eu comecei a trabalhar com 15 anos. Com 15 anos, eu já estava em uma sala de aula. Eu estudava e trabalhava também no colégio. E essa menina me disse que eu tinha contribuído para o estudo dela. Sabe que eu não me lembro? Porque uma dava, mas a gente não sabia quem é que recebia, eu não sabia. Então, era uma convivência harmoniosa, fraterna. No colégio, as irmãs nos educaram pra tudo. Nós aprendiamos a cozinhar, a limpar uma casa, a costurar. Dentro do curso, nós tinhamos o curso de enfermagem, de primeiros socorros. Só que no dia da aula prática de aplicar injeção, eu fugi com uma outra colega, com medo de aplicar injeção. Mas nós aprendiamos tudo isso, aprendiamos boas maneiras, a receber bem as pessoas, a colocar uma mesa. Porque hoje é meio difícil: “Mas pra quê isso?” Mas elas nos ensinaram. Até a servir banquetes, porque naquela época, veio, uma vez, o Núncio Apostólico, que visitou a nossa Prelazia. Naquele tempo, meu Deus, chegar uma autoridade era o máximo na cidade. Então, a prefeitura geral oferecia um banquete e éramos nós, as alunas do Colégio São José, que íamos servir esse banquete, com toda a etiqueta. Essa freira, Irmã Firmina, era a mentora de tudo isso, ela nos preparava pra tudo isso, nos ensinava. Canto orfeônico, nós aprendemos com ela.
P/1 – Canto orfeônico, eu ouvi a senhora cantando e falei, ‘ela estudou canto’.
R – Estudei e a iniciação musical foi com ela.
P/1 – Vocês aprendiam a ler música?
R – A ler música. A gente cantava pela partitura. Foi ela quem nos deu esse incentivo. E o que ela tinha? Ela era uma pessoa polivalente, tudo ela sabia fazer: ela ensinava canto, ela sabia cozinhar, sabia pintar, sabia bordar e isso tudo ela ia passando pra gente, esse incentivo.
P/1 – Isso foi durante o Primário?
R – Começou no Primário, mas o forte mesmo foi quando nós começamos a estudar o Normal Regional.
P/1 – Normal Regional era na própria escola São José?
R – Na própria escola São José.
P/1 – E era exatamente o quê?
R – Quando terminava o quinto ano a gente fazia o Exame de Admissão para poder ir para o que eles chamavam naquele tempo de Ginásio. Só que em Óbidos não tinha o Ginásio, então, como havia necessidade de formação de professoras, a Secretaria de Educação adaptou um curso. Lá em Belém era o Curso Normal, eles chamavam de Instituto de Educação do Pará, formava professoras mesmo. Como era difícil trazer toda a estrutura para funcionar, eles adaptaram esse curso Normal, que depois o chamaram de Pedagógico. Eles adaptaram para o interior, para formar regentes de Ensino Primário, pra lecionar o Curso Primário.
P/1 – E isso era com que idade? Só mulheres?
R – Nessa época, eram só mulheres no Educandário São José.
P/1 – E era com que idade que se formava no Normal Regional?
R – Nós nos formamos, a primeira turma, nós tivemos essa felicidade porque nós passamos logo do Primário para o Normal Regional, não houve interrupção. Então, foram quatro anos de estudo, e quando nós nos formamos, as mais novas, nós estávamos com 17 anos.
P/1 – Mas a senhora já trabalhava antes?
R – Eu já trabalhei antes, quando eu estava no quinto ano primário, eu já ajudava uma freira que lecionava no Jardim de Infância e, depois, já na primeira série. Com 15 anos, eu estava nessa sala de aula. Logo depois, as Irmãs me contrataram pra trabalhar lá no próprio colégio. Então, eu comecei a minha vida de professora. Só que nós não ficamos só para lecionar o Primário. Aconteceu que faltavam professoras para o Normal, havia um curso de Cades, e essa freira, Irmã Firmina, nos levou assim, sem dó nem piedade, pra fazer esse curso.
P/1 – Onde se fazia esse curso?
R – Em Belém, que dava Licenciatura para lecionar já o Normal Regional.
P/1 – Com quantos anos isso?
R – Eu me formei com 17. Devia estar com 18 para 19 anos, para lecionar no Normal Regional. Então, ela foi colocando cada uma assim: eu fiquei na Matemática, porque eu gostava mais da matemática, outra foi pro português, outra pra geografia, outra pra ciências, outra pra história e assim nós formamos uma equipe e garantimos, depois, o ensino no São José, para não haver interrupção. Porque quase não vinham mais freiras, houve uma decadência, eu acho, na formação das freiras. Então, nós as substituímos.
P/1 – E a senhora sempre quis ser professora, mesmo?
R – Eu sempre quis. Tanto que quando eu me formei, eu me lembrava do interior eu dizia: “Mas por que eu sou privilegiada?” Porque, na verdade, do Paraná de Baixo, os únicos pais que se interessaram de fazer essa força para os filhos estudarem foram o meu pai e a minha mãe. Então, eu me achava privilegiada. Depois, mais um outro, acho que pelo exemplo do meu pai, mandou também a filha pro colégio. Nessa ocasião, tinha o internato lá, alunas internas. Eu nunca fui interna, eu adoraria ser interna porque eu era papa do colégio, eu fugia de casa, contava mentira pra minha mãe e fugia pro colégio porque eu gostava de estar lá.
P/1 – Gostava de ficar dentro do colégio?
R – Dentro do colégio, fazendo alguma coisa e, quase sempre, eu fiquei. Primeiro como aluna e, depois, como professora. Pois é, depois que terminou o Normal Regional, eu fiquei dez anos trabalhando lá em Óbidos, no Colégio São José. Depois, o prefeito me arranjou uma vaga no colégio do Estado, mas logo no outro ano a politicagem entrou e me jogaram de lá do Ensino Público.
P/1 – A senhora está falando de que época?
R – A Politicagem?
P/1 – A senhora se formou em 1956 mais ou menos?
R – Não, me formei em 1953, eu tinha 17 anos.
P/1 – E a senhora começou a dar aula em...
R – Já estava dando aula com 15 anos, nessa turma de primário.
P/1 – Nessa época, como era a cidade de Óbidos?
R – Olha, era uma cidade pequena, mas um ambiente familiar muito grande, sabe? As famílias, muito unidas. O colégio e as famílias eram como uma família só. Os pais davam um apoio integral ao colégio, tanto que lá, o colégio foi construído nessa base. Nós fazíamos quermesses, teatro, aprendemos a fazer peças de teatro muito bonitas. Tudo era essa Irmã Firmina que fazia. Então, através dessas coisas práticas, de um grêmio que tinha no colégio, nós tínhamos um desenvolvimento fora do comum, fora do normal, porque ela aproveitava todo o momento que tinha: as festas, para você desenvolver alguma atividade. O colégio não só cuidava da informação, mas da formação integral dos alunos e todos que, naquela época, estudaram dizem a mesma coisa.
P/1 – Fora o colégio, qual era a sua maior diversão em Óbidos?
R – Nessa época, a gente gostava muito de passear.
P/1 – Passeava por onde?
R – Passeava, Passeava... Nas férias a gente saía. Tinha um grupinho que ora ia pra Fortaleza, ora pra Belém.
P/1 – Viajava pra fora?
R – A gente viajava pra fora.
P/1 – Sem os pais?
R – Sem os pais. Eu já estava como professora. Lá em Óbidos, nessa época, que nós éramos jovenzinhas, uma coisa que a gente gostava de ir era para o futebol. Tinha um estádio lá, aos domingos à tarde, e a gente ia com aquele grupinho, tinha aquelas pipocas que eles faziam, uma pipoca de goma. Eles vendiam em uns sacos, a gente comprava aqueles sacos e ficava brincando lá de comer pipoca e assistir ao jogo (risos). Passeávamos, passeávamos aqui mesmo na região, a gente saía para o Curuçambá, como dizia, pro Engenho, que eram lugares mais próximos pra tomar banho, eram essas, um pouco, a nossa diversão. Sobretudo às festas que a gente criava, festas juninas, a gente brincava muito. Para dança eu não me sentia chamada muito. A dança que normalmente tinha não, eu gostava mais das festas que a gente mesmo criava.
P/1 – Óbidos era pobre nessa época?
R – Não, eu não achava uma situação de pobreza extrema, não. Houve uma influência muito forte dos militares em Óbidos, porque é zona de fronteira. Óbidos já faz fronteira com Suriname, né?
P/1 – Ah, é?
R – É. Ele é assim, uma tira. Mas, naquela época era tudo. Oriximiná e Óbidos eram um município só, no tempo do interventor Magalhães Barata que dividiu. Como o Barata não gostava muito de Óbidos, deixou uma lasquinha só pra Óbidos e o resto deixou tudo para Oriximiná (risos). A gente brinca com o pessoal. Então, houve a influência dos militares porque eles formaram, de certa maneira, uma elite.
P/1 – Os militares?
R – É. Então, umas casas que tem ali próximo à Praça do Sesc Centenário, era lá o quartel.
P/1 – É uma igreja?
R – Não, tem a capelinha do Bom Jesus que é lá no alto, mas é no outro lado, onde tem o que eles chamam de “Castelo”.
P/1 – O Forte?
R – Não, o Forte é na beira do rio.
P/1 – Onde hoje é a Secretaria da Cultura?
R – É, lá na Casa da Cultura. Ali era a sede dos militares e havia a casa dos oficiais, dos militares graduados. Eles criaram uma certa mentalidade de bem-estar, sabe? Porque quem tinha um lugar garantido no Exército, naquela época, era rico. Eles tiveram uma influência muito forte na formação e também na questão da água encanada. Óbidos foi um dos primeiros lugares que teve água encanada, devido aos militares, porque, como eles precisavam da água, a parte de cima, em um lugar em que hoje o pessoal chama de “A cabeça do frade”, que é uma construção, uma abóbada que tem, faz parte de um conjunto onde tinha o tratamento da água. A partir daí, eles fizeram a ligação para a toda a cidade e nós tivemos água encanada muito cedo. Depois, passou de lá, para um outro equipamento que eles fizeram ao pé da serra. Tem um poço e os canos vinham por cima de uma ponte. Porque passa aquele laguinho e os tubos para abastecer a cidade vinham por cima de uma ponte. Então, água, luz, telefone, tudo isso, Óbidos teve em primeiro lugar, antes que qualquer um desses municípios.
P/1 – Então, nessa época tinha os militares e os comerciantes?
R – Tinha os militares e os comerciantes; eram fortes.
P/1 – Eram imigrantes judeus e italianos?
R – Sim, os judeus e os italianos. Depois, começou a vir também um grupo de nordestinos. Os nordestinos ajudaram muito na parte da agricultura. Porque, na cultura, o pessoal diz que o paraense é preguiçoso. Ele não é preguiçoso, ele tem tanta riqueza, tanta riqueza, que ele não precisa se preocupar mais adiante. Eu me lembro do Frei Rodolfo, ele dizia assim: “Deus é culpado do povo ser assim.” Porque ali, por exemplo, nessa margem que vocês vieram, pelo igarapé, tem muita castanha. Ele dizia: “A castanha está atrás, o peixe está na frente, tu achas que o povo vai se preocupar em trabalhar assim, como São Paulo? Não.” (risos) ‘’É doidice” Ele dizia assim. Então, a riqueza é tanta que o pessoal é pobre porque não sabe aproveitar essa riqueza imensa que nós temos aqui. Uma das coisas é a falta, justamente, de educação para trabalhar com essa terra que é rica demais. Porque eles não se preocupam mesmo: “Pra que eu vou me matar trabalhando, se eu tenho o peixe que eu posso jogar o anzol?” Eu mesmo aqui quando, às vezes, a gente não tem, eu jogo o anzol e pego pelo menos piranha. Que nunca falta, é claro, não chega a esse extremo, né? Mas eu digo, morre de fome aqui quem quer porque você tem, se você vai na mata você encontra uma infinidade de frutas.
P/1 – Vamos voltar um pouco, então. A senhora disse que saiu depois, foi pra Belém, e aí? O que aconteceu na sua vida?
R – Depois que eu estudei, eu fiquei dez anos como professora no próprio Colégio São José. Depois, foi o tempo que Óbidos foi desmembrada de Santarém e ficou a Prelazia de Óbidos, que é a Diocese em formação. Então, o bispo que veio pra Óbidos, era Dom Floriano, ele já me conhecia desde criança, ele era muito, muito amigo da minha família, afinal, de todos em Óbidos. Era uma figura que a gente venerava, ele era um santo mesmo. Ele me convidou, se eu não gostaria de trabalhar na Prelazia ajudando na equipe de formação dos líderes das comunidades e, para me preparar, ele me mandou fazer um curso no Instituto Catequístico Latinoamericano, no Chile. Isso foi em 1964, exatamente na época do Golpe. Na época do Golpe, eu estava viajando do Recife pra Santiago.
P/1 – Em março?
R – Final de março, em 31 foi o golpe. Eu saí de Óbidos mais ou menos nesse dia e acho que no dia 4 de abril eu viajei pra Santiago. Lá, no Recife, onde eu fui pegar o avião é que eu vim tomar conhecimento do que estava acontecendo. E mais ainda em Santiago, lá no Instituto Catequístico Latinoamericano, que eu vim tomar conhecimento desse movimento político que estava acontecendo no Sul do país porque para cá, no Norte, você não sabia de nada.
P/1 – Não sabia que tinha tido o Golpe?
R – Não. Sabíamos que tinha havido alguma coisa, que o presidente havia sido deposto, que assumiu Fulano, mas a profundidade desse ato, você não tinha essa consciência.
P/1 – Nem em Recife?
R – Em Recife, sim. Em Recife, eu fui conhecer mais o que estava acontecendo. E aí as conversas eram tantas, sabe?
P/1 – O que se falava nessa época?
R – O que se falava nessa época? É que as coisas que aconteceram nesse momento, o que eles falavam em Recife... Eu fui morar no colégio das Irmãs, dessas mesmas Irmãs de Óbidos, elas tinham o Colégio Vera Cruz. Então, o que elas diziam era o seguinte, que aquele bicho de sete cabeças que eles faziam do comunismo e que os comunistas estavam querendo entrar no país. E as conversas que estavam é que os padres iam vestir macacão listrado e iam trabalhar nas ruas. Alguns seriam serrados pela barriga. Você vê? Eles falavam isso.
P/1 – Que os comunistas iam fazer?
R – É, o que os comunistas iam fazer isso.
P/1 – As freiras acreditavam nisso?
R – As freiras não, elas contavam o que o povo estava falando a respeito do comunismo e que por isso foi dado o Golpe, para que o comunismo não entrasse aqui.
P/1 – Qual era a posição dessas freiras?
R – Elas estavam neutras, não estavam nem a favor, nem contra o movimento do Golpe.
P/1 – E os padres?
R – Os padres eu não tive muito contato, muita conversa, com eles.
P/1 – E lá no Chile, como é que foi?
R – No Chile, quando eu cheguei, o que mais ressaltou lá foi aquela campanha que eles fizeram, uma campanha do ouro. Não fizeram uma campanha de jóias?
P/1 – Em 1964?
R – É, foi em 1964 mesmo, que as pessoas davam jóias, davam aquilo pra fazer um movimento que eu não sei nem pra quê. Mas eu sei que era esta a idéia. O que mais salientou lá foi essa generosidade do povo brasileiro em se desprender dos seus bens pra pagar o quê? Eu não lembro...
P/1 – Isso no Chile?
R – Isso já no Chile. As idéias que haviam tido esse, só que eles não chamavam Golpe, chamavam Revolução. Uma Revolução que era em benefício do povo, a idéia lá era que tinha sido em benefício do povo e contra o comunismo.
P/1 – Lá no Chile foi essa a conversa?
R – Lá no Chile também.
P/1 – Aí, a senhora ficou lá e aí?
R – Eu fiquei... Nesse tempo lá foi também a eleição que estavam o Salvador Allende e o Eduardo Frei.
P/1 – O Allende entrou em...
R – Foi 1964. Mas 1964 ele já entrou como candidato junto com Eduardo Frei.
P/1 – Já?
R – Já. Eu acho que foi ele que entrou, não sei se ele. Eu sei que nessa ocasião, nós, brasileiros, estrangeiros, não podíamos sair quando houvesse manifestações porque eles faziam aquelas manifestações de todo o Chile. Vinham aquelas caravanas, quando vinha tudo vermelho é porque era da esquerda, então, nós não podíamos sair, não saíamos de casa. Eles diziam: “Tenham cuidado, quando vocês virem os carabineiros na rua vocês não saiam.” Tinham aquelas concentrações. Nesse ano, quem venceu foi Eduardo Frei, mas eu acho que foi com o Allende, o Allende foi nessa. Eram três candidatos, Allende, Eduardo Frei, Julio Duran. Quando as caravanas eram vermelhas, já se sabia que era do Allende. E é claro, nessa época, o Paulo Freire foi pra lá.
P/1 – Na Educação, nessa época, já se discutia a proposta de Paulo Freire?
R – Não, a gente nem ouvia falar em Paulo Freire aqui. Queimaram tudo dele, queimaram tudo que era de Paulo Freire. Olha, para eu conseguir os livros do Paulo Freire, nessa época, nem se sonhava conseguir. Porque 1961 foi uma época muito importante na minha vida, antes de começar a trabalhar na Prelazia, eu fui fazer um curso de catequese no Maranhão. E, no Maranhão, era muito forte o movimento de Educação de Base. Muito forte. Aí, foi que nós começamos a conhecer o Paulo Freire pelo método de alfabetização e tudo. Eu bebi naquela fonte, que foi impressionante. Depois, acabaram com tudo isso. Lá no Rio Grande do Norte tinha aquela “de pé no chão a gente também aprende a ler”. Menina, acabaram com tudo, até os mimeógrafos eles quebraram quando eles entraram nas casas onde o pessoal trabalhava a alfabetização. Foi um negócio estarrecedor o que fizeram com o Paulo Freire. Para eu conseguir os livros de Paulo Freire, foi em 1975, em Medelín, quando eu fui fazer uma reciclagem do curso que eu tinha feito lá em Santiago do Chile.
P/1 – Nesse momento, você já estava com uma consciência de Educação diferente...
R – Com certeza.
P/1 – Lá no Chile, isso?
R – Isso no Chile eu comecei também, porque lá eu conheci umas irmãzinhas que trabalhavam nas favelas, nas callambas, como eles chamavam. Então, elas também trabalhavam, não diretamente, mas apoiavam esse movimento do Paulo Freire. Mas nem lá eu consegui os livros, fui consegui-los em Medelín, em 1975.
P/1 – Nós estamos nesse momento em 1964.
R – 1964.
P/1 – O que aconteceu daí?
R – Bem, em 1964, eu fiquei o ano todo no Chile. Claro que a minha visão de mundo mudou completamente. Mudou completamente, meu Deus. Quando eu cheguei aqui, que eu vim começar a analisar tudo o que tinha acontecido de 1964 até aqueles meses que eu tinha passado fora. E é claro que eu vim com uma outra conscientização. Esse desejo grande de trabalhar nas comunidades, sobretudo nessa linha de alfabetização de adultos, pra começar esse processo de conscientização.
P/1 – Isso foi em...
R – Em 1964.
P/1 – Em 1964, no Chile?
R – No Chile. Os trabalhos de comunidade que eles exerciam, como eles faziam esse movimento de educação de base, isso tudo me despertou muito. Então, quando eu vim pra cá...
P/1 – Quando foi?
R – Isso no final de 1964. No começo de 1965, eu já comecei a trabalhar diretamente na Prelazia.
P/1 – Aqui?
R – Prelazia de Óbidos. Com o bispo, eu fazia parte de uma equipe de catequese, de formação de lideranças nas comunidades. Nós começamos nas próprias comunidades passando três dias na comunidade. Nós começamos esse trabalho ainda em 1963, antes de eu ir pro Chile, convidando as lideranças das comunidades. Nessa época, eram 77 comunidades que tinham na Prelazia. E fizemos uma grande semana, chamamos Semana Catequética. Foram mais de 300 pessoas, nós concentramos também lá no Colégio São José. A partir daí, nós estabelecemos uma meta de trabalho, a partir das comunidades. A gente fazia três dias na comunidade, passando nas comunidades, para conhecer e descobrir as lideranças. E eles tinham um trabalho, uma missão. Eles começavam a juntar o pessoal, visitar, fazendo culto dominical, essas coisas assim, mas bem definidas. Eles faziam visitas nas casas, davam o catecismo também pra criança quando ia fazer a Primeira Comunhão. As campanhas que se faziam de Saúde,
de Esporte, tudo o que era campanha era também nessa equipe. E essa equipe começou a tomar força na comunidade e nós começamos os três dias nas várias comunidades. Depois, uma semana ao ano, a gente juntava estes que eles escolhiam dessas comunidades. Depois, já em 1969, nós começamos com cursos de um mês, lá em Óbidos, para as lideranças. Gente que mal sabia ler e escrever.
P/1 – O objetivo dessa articulação das lideranças era?
R – Era formação de leigos para assumir um trabalho consciente nas comunidades. Um trabalho de desenvolvimento tanto humano como cristão, porque todo mundo é cristão.
P/1 – Essas eram as Comunidades Eclesiais de Base?
R – Não tinha esse nome. Nós chamávamos de núcleos de base, o nome comunidade já é mais recente. Então, nós começamos esse trabalho e, toda vez, eu me questionava e o bispo, Dom Floriano, acompanhava todos os movimentos que tinha, e ele ficava também preocupado com o nível de escolaridade das pessoas. Tanto que, nos cursos que a gente fazia na cidade, nós tinhamos professoras que iam dar a parte de leitura, sobretudo de como interpretar. Então, durante os cursos, e qualquer curso, ele dava prioridade pra isso. E foi justamente nesse trabalho na Prelazia que me voltou aquele pensamento: “Poxa, mas por que não dar essa Educação lá no lugar em que o pessoal vive, onde o pessoal vive e mora? Porque eles têm que se deslocar para cidade pra aprender?” Bem, depois da Prelazia, foi a época que eu saí um pouco de Óbidos, fui fazer essa reciclagem em Medelín, aí, eu tive contato com essas irmãzinhas que eu tinha tido no Chile, eu tinha contato com elas lá. Depois eu disse: “Mas eu quero ver como é que vivem essas freiras.” Porque elas eram diferentes de todas. Aí, eu disse: “Eu vou escrever.” Eles tinham a casa mãe em Roças Novas, lá em Minas. Eu fui lá, nessa época, eu já estava com 42 anos, eu disse: “Eu não sei se eu dou pra isso, mas eu quero ver como vocês vivem. Eu quero morar com vocês, faça de conta que eu vou ser freira, eu não garanto que eu vá ser freira.”
P/1 – A senhora queria ser freira?
R – Não, eu pensei em ser freira desde 18 anos, eu pensava em ser freira.
P/1 – Mas não se tornou.
R – Não, primeiro porque a minha mãe não quis. E esse bispo que já me conhecia desde pequena, um dia eu pedi pra ele: “Mas vá lá falar com a minha mãe.” E eu não fazia isso, as coisas eu resolvia com a minha mãe, eu nunca queria que alguém fosse falar por mim. Nesse dia, eu disse pro bispo: “Mas vá lá falar com a minha mãe pra eu ser freira.” Ele também não queria que eu fosse porque eu já estava trabalhando lá.
P/1 – E por que ele não queria? O que ele disse?
R – Não, porque ele dizia: “Você pode servir a Deus aqui mesmo, no lugar onde você está.” Era isso que ele me dizia. Mas como eu estava querendo ir pra essas freiras mesmo...
P/1 – Que são as freiras franciscanas?
R – De Imaculada Conceição. Ele foi lá com a minha mãe. Minha mãe ficou fera.
P/1 – Por que ela não queria?
R – Por eu ser filha única. Ela achava que por eu ser filha única, eu tinha que ficar com ela. E não sei mais o quê ela pensava, ela não queria de maneira nenhuma. Passou um tempo assim que eu não podia nem falar com ela. Depois, quando ele voltou de novo a Óbidos, ele me chamou e disse: “Não, você não vai.” “Mas Dom Floriano, e o meu compromisso? Não é isso que Deus quer de mim?” Ele disse: “Pode deixar que eu me responsabilizo com Deus” (risos).
P/1 – Então, nesse momento, a idéia de casar, namorar, nem passava pela sua cabeça?
R – Você sabe que eu me envolvia tanto com as coisas, com o meu trabalho, que eu tinha que pensar. Apareceram os pretendentes, aí, eu tive que analisar. Eu pensei, por isso que dizem que quem pensa não casa, né? Eu pensei muito, eu digo, eu não tenho a estrutura pra ficar a vida inteira numa família, o meu trabalho me chama mais a atenção, me satisfaz mais do que se eu ficar numa família só. Numa família só eu vou ficar... E acho que se eu me casasse era para o meu marido e pros meus filhos e acabou-se.
P/1 – Essa era a sua imagem?
R – Essa era a minha imagem. Quer dizer, eu pensava assim, porque se eu fosse me dedicar a um homem e aos filhos, era pra eles. Eu queria dar o melhor que fosse pra eles.
P/1 – E aí era pouco?
R – Aí era pouco.
P/1 – Queria o mundo (risos).
R – O mundo.
P/1 – Mas aí, foi viver com essas freiras lá em Minas?
R – Não, em Minas, eu fui só falar com chefa lá, com a irmã. E ela me disse que sim, que me aceitava. Eu disse, eu já estou toda estruturada, tenho toda uma estrutura, eu não sei se eu vou aguentar, me resumir. O pior pra mim é me fechar, assim, alguma coisa que me limita. Por exemplo, família, me limita, se eu ficaria com aquela família... Mesmo uma Congregação, uma instituição, ela sempre limita a gente. E eu não tenho essa... Por exemplo, eu não tenho uma programação: é isso, isso e isso. Não, eu tenho uma coisa lá na frente e os caminhos eu vou procurando. Então, eu fiquei com essas irmãzinhas.
P/1 – Onde?
R – Eu vim pra uma casa que eles recém fundaram em Belém, na Terra Firme. Porque essas irmãzinhas são todas especiais, elas não têm uma atividade de escola, não. Elas vivem na comunidade.
P/1 – Isso que é a diferença?
R – É a diferença. Elas vivem na comunidade, elas não têm obra nenhuma. Elas fazem o trabalho que as mulheres naquela comunidade fazem. E o trabalho delas é só de presença. Uma presença silenciosa no meio onde vivem. É muito interessante, diferente de qualquer outra congregação.
P/1 – Eu nunca vi isso.
R – Pois é.
P/1 – Elas ficam lá na comunidade?
R – Ficam na comunidade.
P/1 – E não fazem nada além...
R – Deixa-me dizer como é: por exemplo, eu fui pra Terra Firme. Lá, as mulheres do bairro sempre trabalhavam como faxineiras. Elas vão pegar o serviço de faxineira. Lá em Belém eu trabalhei como faxineira numa casa de família, não, não. Em Belém, eu trabalhei no Hotel Vanja, como camareira.
P/1 – Porque as mulheres fazem lá...
R – Porque as mulheres fazem lá esse tipo de serviço, lá no bairro onde elas estavam morando, lá em Terra Firme. Então, a gente tem toda uma história que tem com essas camareiras aí, e o trabalho que é a presença delas lá. É isso que é importante.
P/1 – E quando elas voltam, elas conversam?
R – Conversam, elas conversam com a gente, dizem os problemas e é aí que entra a presença delas e como elas podem ajudar aquelas mulheres dentro daquele ambiente. E é terrível, eu vivi um ambiente terrível lá.
P/1 – No Hotel?
R – No Hotel Vanja.
P/1 – É? Por que?
R – De assédio. Uma vez eu olhei ainda da janela pra ver se eu tinha coragem de pular, porque o homem vinha mesmo com afinco de me pegar. Ele estava meio bêbado, eu estava no nono andar do prédio. Eu estava com a chave pra fazer a limpeza do outro quarto e lá eu me tranquei. E ficou. Apagou a luz, eu fiquei quase duas horas naquele apartamento. E assim, a história daquelas camareiras era terrível.
P/1 – Porque passavam por isso.
R – Passavam por isso.
P/1 – E muitas cediam...
R – Cediam? Sim, cediam. Então, depois de Belém, eu fui pra Fortaleza e, aí, eu vivi no bairro Antônio Bezerra e lá as mulheres trabalhavam nas fábricas de castanha, tirando a castanha, selecionando a castanha. Castanha de caju. Eu trabalhei na fábrica de castanha Cione, era o nome da fábrica. Uma lou-cu-ra. E a coisa mais doida que pode existir nessas fábricas de castanha que você nem imagina, é o submundo.
P/1 – Por quê?
R – Porque, nessa fábrica, entravam as mulheres que não tinham nenhuma prática. Primeiro, começa pela procura do trabalho. Eu, com 42 anos, naquele tempo, já não era recebida nas outras fábricas que precisavam de um trabalho especializado. Então, só tinha essa fábrica da Cione, que recebia pessoas que não tinham prática na castanha. E para conseguir foi um mês seguido de porta de fábrica, um mês seguido, junto com as mulheres de lá do bairro, umas cinco ou seis mulheres. E eu já entrei mesmo por acaso porque eu de certa maneira aproveitei uma brecha deles. Porque as mulheres diziam, elas me chamavam de irmãzinha: “Irmãzinha, eles não vão lhe aceitar porque a senhora é branca. Para o trabalho do óleo, da castanha, de tirar a castanha, eles não aceitam branco.”
P/1 – Por quê?
R – Discriminação pura, porque o trabalho assim, que aparentemente é um trabalho muito árduo. Olha, para você trabalhar com a castanha, você passa um óleo, óleo de linhaça, na mão. Só que eles não tinham óleo de linhaça, era um outro óleo de baixa categoria. Então, tu trabalhas porque a resina da castanha, ela empola teus dedos, ela queima. Esse trabalho, eles acham que é o pior e muito mal remunerado porque você trabalha com a máquina, uma tira e corta a castanha, era de uma em uma. Agora não, já tem máquinas, mas, naquela época, era máquina de uma em uma, uma unidade cada. Eles cortam e quem está na frente tira com o estilete.
P/1 – A castanha?
R – A castanha de dentro da coisa. E só te pagam a castanha que sai inteira. Quer dizer, no final do dia tu pesas a castanha que tu separaste e essa castanha só conta pra ti as que tu tiraste inteira. Eles aproveitam tudo, até aquele farelinho da castanha, aquela pelica, eles aproveitam. E a outra, pra nós, não, só contra. E outra coisa, eles só te pagam, fazem tu assinares o salário mínimo, como se tu ganhasses o salário mínimo. Eles pagavam por semana, né? Então, um quarto do salário mínimo cada semana. Tu assinas como se tu ganhasses o salário mas, na verdade, tu recebes por aquilo que tu produzes. Eu nunca consegui fazer a produção equivalente a um salário mínimo. Só mulheres muito experientes que conseguiam fazer isso. Então, é uma luta daquelas mulheres. Quando estávamos lá na porta da fábrica, esperando, as meninas: “Irmãzinha, aqui é horrível, aqui a senhora vai sair ou doida ou tuberculosa.” Eram 1200 mulheres que trabalhavam nessa fábrica. E, na verdade, eu quase saí tuberculosa.
P/1 – Mas por quê? A castanha...
R – Insalubridade na fábrica.
P/1 – Por que, tudo fechado?
R – Tudo fechado, aquele óleo, o cheiro. Você trabalha com a castanha passada por um vapor, sabe? Então, essa parte é muito terrível o trabalho, muito duro.
P/1 – São muitas horas por dia?
R – Quem queria ficava o normal, mas quem queria produzir mais, às vezes, ficava até as dez da noite. Mas eu só ficava até a hora do trabalho e eu era privilegiada porque eu chegava lá na casa, as Irmãs já tinham colocado uma água lá. Porque era água puxada de poço, tinha alguma coisa pra comer, não tinha o aperreio de chegar em casa e ainda ter filho e marido pra cuidar. E essas mulheres? Mil e duzentas mulheres que viviam nessa luta diária. Às vezes, saíam às quatro da manhã de casa pra chegar em casa às dez da noite. Umas desmaiavam. Menina, cada história que essas mulheres contavam... Meu Deus do Céu Então, esse é o trabalho da irmãzinha, ouvir as outras e ajudar em alguma coisa que pode, no sentido de aumentar a autoestima dessas mulheres. E eu aproveitava, meio contra as regras (risos), eu as ajudava a fazer as contas do peso da castanha, porque, às vezes, elas eram logradas no peso, na conta. Às vezes, elas vinham: “Olha irmãzinha, veja aqui o meu envelope.” Eu as fazia anotar tudo o que era pesado a cada dia. Eu digo: “Anota no teu papelzinho, no fim da semana...” Eu brincava com o homem que fazia as contas: “Mas você não tem vergonha, não?” Ele dizia: “Irmãzinha, isso é um negócio.”
P/1 – Eles sabiam que a senhora...
R – Sabiam. Eles sabiam que eu era irmãzinha. Outras já tinham trabalhado lá. Depois, eu saí por causa da pneumonia. Eu peguei uma pneumonia, estava gripada e lá tinha um refeitório, refeitório que era pro inglês ver, pra pessoa que ia lá visitar. Mas nós nunca nem chegamos perto desse refeitório. Na hora da comida, a gente saía com a marmita, cada uma trazia sua marmita de casa e íamos sentar debaixo de umas mangueiras, como aquela, lá na frente da fábrica. E você tinha que sair da fábrica, chovendo ou não. E quando dão aquelas chuvas em Fortaleza, são terríveis, são daquelas que enchem logo, porque não tem pra onde vazar muito. Nesse dia, eu estava já com uma gripe muito forte e, na hora da comida, não teve jeito, tivemos que sair com chuva mesmo. Aí, eu peguei aquela chuva forte, no outro dia, já fui parar no hospital. Fiquei lá no hospital um tempo, foi pneumonia forte mesmo. Eu não tive mais como... As irmãzinhas falaram: “Não, Ida, você não fica, não”. Aí, eu fui morar em uma outra comunidade no interior, Mirim, uma comunidade que vive de fazer chapéu de palha, essa palha da carnaubeira, é isso que eles fazem lá. É outra história É tudo muito interessante. Mas, disso tudo eu aprendi uma visão muito relativa.
P/1 – O que a senhora aprendeu de tudo isso?
R – A relativizar as coisas, a não acumular nada, a viver numa certa liberdade de espírito, a encarar as pessoas um pouco como elas são. Porque, na verdade, eu sou muito exigente nas coisas. E, às vezes, eu fico pensando: “Mas pra quê tudo isso?” Lembrando um pouco que cada um dá aquilo que tem. Como que eu posso exigir do outro aquilo que eles não tiveram e eu tive? E também que muita teoria, pra mim, não conta muito. Esse relacionamento entre as pessoas, eu acho fundamental, é isso que fazem as irmãzinhas. Então, um pouco essa viagem do Chile por aí, a vivência que eu tive com as irmãzinhas, isso que eu aprendi no colégio com as freiras. Porque lá, com as irmãzinhas, elas me ajudaram a refletir, elas me disseram: “Ida, tu já tens uma estrutura, a tua vocação é ser professora, tu gostas de fazer isso, é uma coisa que te satisfaz.” Com isso que me dá de transmitir aquilo que eu posso transmitir pra eles, mas numa simplicidade, não com muita teoria, não. Mas, sobretudo, nessa vivência do dia a dia, com as pessoas. Eu vejo aqui mesmo, não são as minhas aulas, as minhas teorias, que vão. É o dia a dia que a gente tem com elas. É isso que elas vão captando, vão aprendendo. Mais do que eu falar meia hora e eu falo muito (risos). Mas é esse relacionamento, essa vivência, esse relacionamento do dia a dia com as pessoas, ajudando naquilo que dá para ajudar, né? Transmitindo um pouco de mim pra eles. É isso.
P/1 – Essa reflexão foi depois dessa pneumonia? Depois disso a senhora parou de trabalhar nas comunidades?
R – Aqui?
P/1 – Não, lá em Fortaleza.
R – De Fortaleza, eu fui trabalhar na comunidade do Mirim que faz o chapéu de palha, que é outro tipo de vivência. Porque lá as irmãzinhas trabalham fazendo o chapéu. Eles tinham lá uma cooperativa pra compra desse chapéu, então, eles tinham alguma coisa garantida. Só que naquele ano de 1978, foi o tempo da seca. Em abril, eles não tinham mais nada de comida, porque eles armazenam. Lá eles plantam feijão, mas eles armazenam o feijão que eles vão consumir naquele ano. Só que nesse ano, o feijão que deu na colheita, só deu pra eles fazerem até abril. E o resto? Então, lá, a cooperativa era quem sustentava, eles faziam a comprinha da semana e pagavam no final da semana com a produção do chapéu. Só que a cooperativa também fraquejou um pouco e, nesse dia, essa senhora foi a primeira vez que eu vi alguém chorar de fome. Eu fui lá pra casa de uma senhora fazer o chapéu, era na beira do açude, vinha subindo o que eles chamam lá de cágado, aqui nós chamamos muçuã. Aí, eu disse: “Mas olha, um muçuã. A senhora não come isso?” Ela disse: “Não.” E já passando a fome daquele tempo, ela disse: “Não, aqui a gente não come isso.” Eu disse: “Ah, mas eu vou comer, eu vou pegar.” Eu peguei e levei à noite pro meu vizinho lá. Eu disse: “Oh, meu compadre, o senhor mata isso pra gente fazer uma farofa amanhã?” Quando eu cheguei na casa era um silêncio total e as casas eram muito vivas, sabe? Animadas. O pessoal ficava fazendo o chapéu, uns tecendo. O marido, em geral, passando a ferro. Quando eu cheguei lá, aquele silêncio. Aí, eu disse: “Oh minha comadre.” Ela disse: “Ah, irmãzinha, eu já coloquei meus filhos todos pra dormir com fome, nós todos estamos chorando com fome porque as bodegas não querem mais fiar pra gente porque o chapéu não está vendendo agora na cooperativa.” Olha menina, aquilo me deu uma coisa assim, tão dolorida, de ver crianças chorando porque não tem. Aqui tu pega numa árvore aí qualquer coisa e vai comendo, mas lá não, o pessoal não tem mesmo. Se não tem o da colheita deles, eles não têm. Aí, eu fui lá, no outro dia, matei, fiz a farofa e disse: “Olha, isso a gente come, meu compadre, eu como muito essas coisas.” Essas coisas que foram me fazendo refletir que a gente tem que relativizar muito a vida, né? Acumular as coisas não leva a nada. Então, é essa a vida, isso me ajudou a mudar um pouco a visão das coisas (risos).
P/1 – Vamos dar um salto, que eu estou vendo as crianças ali. Como é que foi que a senhora foi vindo trabalhar pra cá.
R – Bem, isso que eu te digo. Apesar de tudo isso, no fundo, no fundo, sempre voltava: “Mas como é que eu posso?” No trabalho da Prelazia, a mesma coisa: “Eu gostaria de viver isso que a gente está pregando aqui. Porque você fala muito em comunidade, comunidade, mas você não vive isso, né? Você não vive.” Então, quando eu voltei, depois das irmãzinhas, eu vim primeiro para casa, com a minha mãe, foi o tempo que a minha mãe estava muito acometida do reumatismo, artrose, né? E eu fiquei acompanhando a minha mãe, ela morreu em 1988. Nessa ocasião, nós tinhamos começado o movimento com os quilombolas, encontros e tudo. Mas eu disse: “Agora, eu acho que está na hora de eu realizar o que eu sonho.” Nessa ocasião, eu tinha ido depois trabalhar em Brasília e, de Brasília, eu trabalhei em São Paulo. Porque o padre que trabalhava lá na Faculdade de Teologia, ele já me conhecia do trabalho aqui. E, como faltou a secretária lá, ele me telefonou, perguntando se eu não queria trabalhar. Eu disse: “Olha Paulo, eu estou ainda machucada com a morte da minha mãe.” Ele disse: “Mas venha pra cá.” Eu fui trabalhar com ele lá na Missiologia e fiquei esse tempo lá em São Paulo.
P/1 – Quanto tempo, mais ou menos?
R – Eu fiquei de 1991 até final de 1994. Ainda em 1995, eu andei por aí afora, viajando, vendo algumas coisas que me interessavam e, depois, eu voltei. Foi nessa ocasião que eu disse: “Acho que agora está na hora. Deixe-me ver se tem alguém que me apoie na ideia de fazer alguma coisa no interior para o pessoal não precisar vir para a escola em Óbidos, não precisar sair do seu lugar.” Então, nós começamos. Era um pesquisador francês que estava andando por aqui, na região e o pessoal da Universidade do Pará, que tinha um rapaz muito interessado, e eu coloquei para eles a ideia. Eu digo: “A minha ideia é essa. Como a gente poderia fazer uma coisa dessas no interior? Alguma coisa que o pessoal não precise vir pra cidade pra estudar, que ele possa estudar lá mesmo.” Porque nós fizemos as jornadas e das jornadas foi que nasceu junto, eu coloquei a ideia que eu tinha da escola no interior e eles apoiaram e nós fizemos aqui o Mocambo.
P/1 – Como vocês escolheram essa comunidade?
R – Não foi nem essa comunidade. Porque a minha ideia era fazer lá próximo de Óbidos onde tem um terreno que meu pai comprou. São mais de três mil hectares de terra, pega da cidade pra cá, sabe? Quando meu pai e minha mãe morreram foi dividido pelos seis, só que ninguém sabe onde é a sua parte, está todo mundo em condomínio. Então, eu queria fazer justamente na parte que fica lá, mas as coisas não deram certo e hoje eu sei o porquê. Deus escreve direito por linhas tortas. Quando nós resolvemos adquirir um terreno pra fazer, eu já gostava muito dessa comunidade, Comunidade São José, e aqui o pessoal parece que aderiu mais a ideia. Então, nós andamos, procuramos e achamos esse lugar aqui. O dono estava querendo vender.
P/1 – Vocês compraram esse terreno todo?
R – Todo. São mais ou menos dez hectares. Nós compramos o terreno e aí começou.
P/1 – Com que dinheiro vocês compraram?
R – Primeiro, nós fizemos uma campanha de compadres e dizemos que quem quisesse ajudar, colocasse algumas quantias, se alguém quisesse. Alguns deram 500 reais, nós fomos juntando, as primeiras parcelas nós pagamos. Depois, a Acobe, que deu o nome logo no começo, completou a compra. E foi assim, toda a nossa vida aqui é assim, a ajuda que as pessoas dão, vem aqui, gostam, ajudam.
P/1 – E o que acontece aqui? A associação chama Mucambo?
R – Não, a associação é Associação Sócio Cultural Educativa Rural Mocambo-Pauxi. Mocambo, como eles explicaram hoje na História, foram os índios e os negros que estiveram aqui. Então, Mocambo por causa dos negros. Porque tem Quilombo e Mocambo. O Quilombo é mais itinerante, é quando os negros ficavam itinerantes, iam de um lugar para o outro, então, lá onde eles viviam chamavam Quilombo. O Mocambo já é uma residência mais fixa deles. Por isso chamamos Mocambo em atitude aos negros e Pauxi porque pelo que conta a História foram os primeiros que habitaram aqui. Então, ficou assim. O Canto relata um pouco quais eram os nossos objetivos, do começo. E a gente está tentando, não está nem na metade daquilo que a gente sonhava, mas também, houve modificação. Porque, no nosso pensar, seria um ensino do dia a dia, como nós fazíamos no começo: fazíamos o puxirum, trabalhávamos até as dez horas, na hora do sol quente, depois, a gente fazia a alimentação e ia estudar. Estudar o que a gente tinha trabalhado e o que mais eles queriam. Era assim que eram feitos os estudos no começo. Depois, houve a necessidade de implantar a casa familiar e nós cedemos o espaço. Só que esse trabalho continua no dia a dia, mas é assim, na base da amizade. Por exemplo, eles vêm aqui e dizem: “Olha, eu quero aprender a fazer uma carta.” Aí, vamos juntar aqueles que querem aprender a fazer uma carta, a gente ensina. E assim, esporadicamente, não é um currículo que tu vais de ponta a ponta, seguindo aquilo. Não. É o que eles querem, a educação para a vida.
P/1 – Mas mesmo aqui na escola, as crianças?
R – Não. Essa é a minha preocupação, como transformar este num estudo mais adaptado à realidade. Mas está muito difícil.
P/1 – Por quê?
R – Porque primeiro vem de cada professor, cada professor tem sua mentalidade. A gente vai tentando entrar, fazer alguma coisa diferente, mas ainda está muito difícil. Nós temos um Conselho que rege a escola.
P/1 – De pais?
R – De pais, alunos, professores e o pessoal que trabalha na casa. Wilma já estuda, também. Olha, a Wilma é um dos frutos daqui. Ela começou do nada. Ela já era mocinha e casada, mas ela e o marido aderiram de cheio ao projeto. E hoje, Wilma já está concluindo o Ensino Médio. Ela terminou. Nessas aulas do dia a dia, esporadicamente, ela começou a despertar, estudou, quando ela tinha alguma dificuldade, ela vinha. Depois, ela fez o Supletivo, terminou o Fundamental pelo Supletivo e agora está terminando o Médio. O marido dela também começou mas ainda está no Supletivo. Depende muito da pessoa, a pessoa que realmente quer, a Wilma é uma dessas pessoas, ela tem aspiração. As outras têm, mas é mais lento, mais lento.
P/1 – Mas nessa escola, por exemplo, tem criança que frequenta aqui?
R – Não, são jovens e adultos. Não tem pra criança, porque a criança estuda lá na escola. Aqui é especialmente para jovem e adulto.
P/1 – E aqui tem papel legal, se a pessoa estuda aqui, ela consegue fazer...
R – O certificado?
P/1 – É.
R – Sim, pelo Some, sim. Eles terminam com o Ensino Médio, já formou aqui a primeira turma no ano passado. A primeira turma já ganhou o certificado de Ensino Médio. Porque isso é pela Secretaria do Estado de Educação (Seduc) e pela Secretaria Municipal. A Seduc é quem estabelece os currículos e paga os professores.
P/1 – Então, hoje, o Mocambo faz essa escola, essa Educação, faz o que mais?
R – Nós nos empenhamos também nos cursos profissionalizantes. Em 1999 e 2000, que foi um ano que a Secretaria do Estado investiu muito nos cursos profissionalizantes, nós fizemos 20 cursos aqui. Então, as pessoas que fizeram, por exemplo, mecânica, carpintaria, o curso foi dado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai). Eles com a carteirinha do Senai foram longe. Quase todos eles que fizeram o curso de mecânica e carpintaria pelo Senai aqui, estão longe, logo, logo, eles ganharam um emprego.
P/1 – E o seu objetivo pra cá, o que está faltando ainda?
R – Ai menina, muito. Eu quero ver aqui uma escola pra vida desses meninos, porque o que falta pra nós aqui, eu contava com professoras, porque logo no começo nós tinhamos professoras e era a nossa esperança, que essas professoras depois pudessem ser nomeadas pra cá e elas estão dentro do espírito dessa Educação pra Vida e, com certeza, elas iriam fazer. Só que não depende delas, então, uma está lá pra um lugar, outra está lá pra Maria Teresa, outra está lá pra não sei aonde. O grupo de professoras que a gente contava pra isso se dispersou um pouco. Então, praticamente, professoras, professoras, agora, nós temos quem no grupo? A Ivanilde, aquela que falou da História da comunidade. Nós temos sócias a Anita, que é a filha dela, está trabalhando no Some, mas está lá pra Vila Vieira, ela só vem aqui quando ela dá Português. Então, quando ela vem, ela adere a essa idéia, mas os outros professores a gente não pode contar com isso, com essa visão de um ensino mais dentro da realidade.
P/1 – Eles vem com qual visão?
R – Eles só passam as disciplinas. Só. Mas não tem essa vontade de formar os meninos como a gente pretende que sejam pessoas com uma formação integral, é essa a formação que a gente quer, que o menino saia daqui, como gente, não só com a cabeça cheia de tanta coisa.
P/1 – E me diga uma coisa, a senhora mudou pra cá?
R – Mudei.
P/1 – Por quê?
R – Ah, gosto daqui. Eu me sinto mais realizada aqui e posso conviver com as pessoas e ter mais tempo pra me dedicar a elas. Porque lá na cidade, o que é que eu vou fazer? (risos). Lá, eu fazia os cursos de artesanato, mas não dá pra satisfazer, como você faz aqui. Aqui você está presente, um chama, um vem. É um pouco a vida de irmãzinha, mas diferente, né? Num outro plano.
P/1 – Tem mais alguma coisa que a senhora queria dizer?
R – (risos) Ah, só agradecer a vocês pela oportunidade. Vocês fazem um trabalho tão bonito que a gente gostaria de estar mais por dentro desse trabalho de vocês, pra gente poder dar uma melhorada. Ah, aqui eu ainda tenho sonho. Um sonho muito grande de ver tudo isso como um lugar onde o pessoal possa vir e aprender pelo que ele vê, sabe? É isso. Que ele possa aprender pelo que ele vê, só que ainda está muito distante pra gente, sobretudo faltam os recursos. A gente vai fazendo na proporção que chega uma ajuda daqui, uma ajuda dali, um arranja roupa, a gente vende as roupas. Faz a feirinha. É assim que a gente vive, não vive com muito, nem com pouco dinheiro (risos). A gente vive na base daquilo que entra e que sai. Agora aqui, a questão da água já foi um benefício grande para essas famílias que pegam a água daqui. Agora já veio uma bomba, parece que vai resolver o problema. Mas é assim, se o outro está precisando, que a gente pode, vamos lá adiante, estamos trabalhando. E só agradecemos a vocês, pelo trabalho bonito também que vocês fazem, eu fiquei entusiasmada quando eu vi a entrevista. Acho que foi no Serginho Groissman.
P/1 – Ah, era eu mesma (risos).
R – É isso mesmoRecolher
Título: A irmãzinha Ida
Data: 27/04/2010
Local de produção: Brasil / Pará / óbidos
Personagem: Idaliana Marinho de Azevedo Revisor: Fernanda Prado Transcritor: Karina Medici Barrella Entrevistador: Karen Worcman Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.
histórias que você pode se interessar
Tricolor hermano
Personagem: José PoyAutor: Museu da Pessoa
Eu tenho tanto pra te dizer, como é grande o meu amor por você...
Personagem: Flávia e AlexandreAutor: Flávia e Alexandre
Um pouquinho de mim!!!!
Personagem: Renata Martins de SouzaAutor: Renata Martins de Souza
Um menino muito esperto
Personagem: Miguel HerzogAutor: Museu da Pessoa