Memórias da Vila Nova Canaã
Depoimento de Maria Isabel Moreira Serrão
Entrevistado por Lucas Figueirêdo Torigoe
Paço do Lumiar, 20/10/2020
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número PCSH_HV951
Transcrito por Ane Alves
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Dona Isabel, obrigada pela presença da senhora. Qual o seu nome inteiro? Onde a senhora nasceu e quando?
R - Meu nome é Maria Isabel Moreira Serrão. Sou filha de São Bento, nascida no interior de São Bento, Maranhão. Eu sou de três de dezembro de 1957.
P/1 - A senhora nasceu em casa, em hospital, como foi?
R - Foi em casa.
P/1 - Foi de parteira?
R - É, minha avó era parteira, meu pai era parteiro, aí minha mãe me teve em casa.
P/1 - Seu pai e sua mãe contaram para a senhora como foi esse parto, se foi fácil ou foi difícil?
R - Eles contaram que foi normal, que não teve perigo nenhum. De primeiro, eram os parteiros, hoje é hospital. Tinha minha avó e o meu pai, que tomaram conta de mim quando eu nasci. Foi bem, graças a Deus, não teve complicação nenhuma - assim eles disseram, né?
P/1 - Conte para mim como é fazer um parto em casa.
R - O parto em casa… Inclusive eu já partejei muito, diversas pessoas, lá no meu interior. Eu tenho uma menino que mora lá no Coroadinho, Zé de Olai. Minha vizinha, eu morava lá na Rua Jairzinho, ela ganhou neném lá no interior. Meu pai me ensinou, minha avó, como partejar.
A mulher, quando tava em perigo, quando tava para nascer… Inclusive o pessoal do Dutra, quando eu partejei esse menino, eles me levaram para uma junta médica lá no Dutra. Todo mundo pensava que eu ia ficar presa, porque eu não tenho estudo, estudo é só mesmo para assinar o nome; é só o que eu sei, aprendi aqui no Nova Canaã, então eu não sabia escrever nada. Eles ficaram com muito medo quando eu levei o menino.
Eu partejei minha vizinha e observei o menino. Ele não tinha bunda, eu esperei ele fazer cocô, não fez, aí eu levei pro Dutra....
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Depoimento de Maria Isabel Moreira Serrão
Entrevistado por Lucas Figueirêdo Torigoe
Paço do Lumiar, 20/10/2020
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número PCSH_HV951
Transcrito por Ane Alves
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Dona Isabel, obrigada pela presença da senhora. Qual o seu nome inteiro? Onde a senhora nasceu e quando?
R - Meu nome é Maria Isabel Moreira Serrão. Sou filha de São Bento, nascida no interior de São Bento, Maranhão. Eu sou de três de dezembro de 1957.
P/1 - A senhora nasceu em casa, em hospital, como foi?
R - Foi em casa.
P/1 - Foi de parteira?
R - É, minha avó era parteira, meu pai era parteiro, aí minha mãe me teve em casa.
P/1 - Seu pai e sua mãe contaram para a senhora como foi esse parto, se foi fácil ou foi difícil?
R - Eles contaram que foi normal, que não teve perigo nenhum. De primeiro, eram os parteiros, hoje é hospital. Tinha minha avó e o meu pai, que tomaram conta de mim quando eu nasci. Foi bem, graças a Deus, não teve complicação nenhuma - assim eles disseram, né?
P/1 - Conte para mim como é fazer um parto em casa.
R - O parto em casa… Inclusive eu já partejei muito, diversas pessoas, lá no meu interior. Eu tenho uma menino que mora lá no Coroadinho, Zé de Olai. Minha vizinha, eu morava lá na Rua Jairzinho, ela ganhou neném lá no interior. Meu pai me ensinou, minha avó, como partejar.
A mulher, quando tava em perigo, quando tava para nascer… Inclusive o pessoal do Dutra, quando eu partejei esse menino, eles me levaram para uma junta médica lá no Dutra. Todo mundo pensava que eu ia ficar presa, porque eu não tenho estudo, estudo é só mesmo para assinar o nome; é só o que eu sei, aprendi aqui no Nova Canaã, então eu não sabia escrever nada. Eles ficaram com muito medo quando eu levei o menino.
Eu partejei minha vizinha e observei o menino. Ele não tinha bunda, eu esperei ele fazer cocô, não fez, aí eu levei pro Dutra. Quando eu cheguei, me colocaram numa junta médica e começaram a conversar comigo, fazer procura, me tirar foto, filmar. Passei o dia todinho lá. Nessa época era difícil celular, e o pessoal preocupado comigo e com o menino; eles foram onde eu [estava] e eu disse que o menino tinha ficado, aí eles foram procurar pra mim.
Como foi que eu aprendi, como a gente faz? Eu disse tudinho: quando nasce, dá dois nós, um em cima, outro embaixo. “Como é o nó?” Ai eu amarrei. “Ah, tá certo. O que você fez?” “Passei mercúrio, fiz o curativo com água morna, cortei com tesoura, fiz todo o procedimento.” “Ah, tá certo!”
Passei o dia todinho lá no Dutra, foi uma confusão, e o pessoal que tava lá em casa ficou muito preocupado comigo, pensando que eu ia ficar presa.
Eu disse para eles que foi o meu pai e minha avó que me ensinaram a ajeitar a criança quando nasce, amarrar o umbigo. Levei o menino para operar e hoje ele tá um homem. Trabalhar na Cemar, muito bem.
Fiz diversos partos, até eu mesma sabia quando eu tava em perigo, quando meus filhos não estavam diretos, certos. Eu mesma procurava médico, ou então tinha em casa sozinha, quando pensava que não eu tava tendo meus filhos, sozinha e Deus.
P/1 - Sozinha, como é que você fez?
R - Eu me segurava na rede, me apoiava na perna e eu tinha sentada - não era deitada, era no assento. Eu tive um filho quase dentro da água, na maré, pescando lá no Banuzário. Deu uma dor, eu segurei, botei uma pedra dentro da bacia e cheguei até em casa. Quando eu arreei a bacia, tive o menino. Tava com a pedra na cabeça, olha como é o negócio.
P/1 - Como se faz o parto, normalmente? Põe a moça na rede, na cama?
R - Tem umas pessoas que querem ficar deitadas. Na maternidade tudo é cama; no interior tem o assento, no banquinho, aí você apoia legal e tem no assento. A gente vê se a pessoa não tá com perigo, porque nunca é bom a pessoa ter filho da primeira barriga em casa, sempre é melhor ter quando já está acostumada. O segundo filho já não tem complicação. Agora a maioria das mulheres estão fazendo cesárea, mas de primeiro a maioria das mulheres não tinha dessa, tinha mesmo normal. Eu tive dez filhos, todos [os] dez [de parto] normal.
P/1 - Como é a dor?
R - A dor é forte, a dor é perigo. Não é pra nego carregar capricho, pra não fazer escândalo. Eu ficava aqui no quarto e quem tava do outro lado não escutava, mas também os berços estavam todos feridos, só de eu morder. A mesma coisa são minhas netas, eu digo para elas, explico, aí elas fazem a mesma coisa, igual eu.
P/1 - A dor foi ficando menor ao longo dos filhos, ou é sempre a mesma?
R - Tem mulher que a dor é igual ao homem, e tem homem que a dor é igual de mulher. Não são todos os filhos iguais. Tem uns que são iguais, tem outros que não. Essa minha filha Edileuza enganou até a parteira, que foi minha avó e o meu pai. O jeito da barriga, todo mundo dizia “esse é homem”; quando a pequena nasceu chega a dor, era uma em cima da outra, uma em cima da outra. Quando nasceu era mulher.
Hoje, quando a mulher engravida, quando chega com quatro, cinco meses, nego já vai saber o sexo. De primeiro, não, nego só sabia na hora que nascia. Quando comprava a roupa, comprava azul, amarelo, cor-de-rosa, branco e aquele que nascesse era o dono. Hoje não, tá tudo diferente.
P/1 - Às vezes o parto demora, às vezes não. Como é?
R - Às vezes demora e às vezes não. Tem mulher que tem parto rápido e tem mulher que custa mais. Não é todo mundo igual, tem diferença de um para outro.
P/1 - E o seu pai era parteiro. É muito comum ter homem parteiro?
R - Não! Na minha experiência meu pai era a mesma coisa, igual um doutor, eu comparo assim, porque o segredo [em] que ele via as mulheres, as filhas, os parentes, é um médico. Aquele segredo ele guardava com ele, igual a um doutor que vai examinar uma mulher. Nunca teve preconceito de maldade, é isso.
P/1 - Qual o nome do seu pai?
R - O nome do meu pai era Benedito dos Santos e o nome da minha mãe era Josefa Moreira.
P/1 - Como era a família do seu pai? Eles eram de onde, faziam o quê?
R - Eles são do interior também. Minha mãe é da família Moreira e meu pai, da família Pinheiro, interior diferente. Minha mãe, meu avós moravam no Galho, meu avô, que era Gerinaldo, e minha avó, que era Maria Roxa.
Os pais do meu pai eu não conheci, não soube como era o nome. Eu tinha mais intimidade com o pessoal da minha mãe.
P/1 - Os pais da sua mãe são do Galho?
R - Do Galho, da família Moreira. E o meu pai morava em um interior diferente, chamado Ladeira.
P/1 - E os seus avós faziam o que para sobreviver?
R - A gente sempre foi com roça, lavoura. Hoje é agricultura, mas de primeiro, nego, era roça, era mandioca, macaxeira. Eles tinham de tudo. O sítio da minha avó era um sítio muito conhecido, ainda existe hoje, mas o pessoal tudinho foi saindo, e aí ficou abandonado. Mas ainda tem gente morando lá no sítio que era dos meus avós - da minha mãe também. A gente morava em um sítio muito grande, igual o da [Vila] Madureira.
P/1 - Os seus avós eram agricultores. O que eles plantavam, colhiam?
R - Meus avós plantavam mandioca, que era fazendo farinha, e tinha um sítio de frutas. Tinha muitas frutas plantadas. A gente tinha banana, laranja, tanja, jaca, abacate, manga… Era muita coisa.
P/1 - Seus avós tinham alguma religião?
R - Nós sempre fomos católicos, tanto da família de papai, quanto da família da mamãe.
P/1 - Vocês iam para igreja nessa época?
R - Ia para a igreja, mas o meu pai trabalhava com o négocio de Umbanda. Meu pai, minha mãe, com essas coisas que chamam de macumba. Meu pai era muito fazedor de remédio, dava remédio, essas ervas medicinais. Eu conheci meu pai e minha mãe nesse ramo.
P/1 - Os seu avós também?
R - Não, só o meu pai e minha mãe.
P/1 - Como era o jeito da sua avó e do seu avô? Como você lembra deles?
R - Lembro que eles eram umas pessoas muito legais. Minha avó, meu avô ainda lembro do jeito dele, mas não lembro o procedimento dele, como ele tratava a gente. Eu lembro que ele era um caboclo alto, careca e orelhudo; [é] só o que eu lembro do meu avô Gerinaldo.
Minha avó era uma benção. Era baixinha Nós somos descendentes de índio, porque a minha avó era índia, a mãe dela era índia braba. Isso que a gente sabe, que ela contou pra gente, que era índia braba que foi pegada no mata-cachorro. A minha avó era filha de índia, então nós temos um pouco do sangue do índio.
P/1 - Ela contava histórias para você?
R - Não, ela não chegou a contar. Só o que ela contava era isso, ela dizia que a mãe dela era índia braba. Ela era roxa, do cabelo escorrido. Eu tenho um neto, o Apolo; ele é bem pretinho, roxo, do cabelo liso.
P/1 - A senhora nasceu e foi morar nesse sítio?
R - Depois que a minha mãe faleceu, eu fiquei com idade de dez pra doze anos. Ficou eu e minha outra irmã, que é a caçula. Eu fui criada com a minha madrinha e o meu padrinho e ela foi criada com o padrinho dela que morava em São Bento, lá no Alegre. A gente foi criada em lugares diferentes; passava um tempo na casa de um, de outro. Quando eles cansavam de mim e eu cansava deles, eu ia pra casa da minha avó. Assim que eu fui criada.
P/1 - Você tem quando irmãos?
R - Nós somos seis. Só um irmão homem e cinco mulheres.
P/1 - E você como é na escadinha de irmãos, qual é a ordem?
R - Eu e meus irmãos somos ótimos, nós somos muito queridos. Meu irmão, minhas irmãs, a gente ficou sem ter mãe. Fomos criados assim, depois que meu pai morreu, pegou choque de energia. Pescando de noite, o fio bateu na rede; ele caiu dentro da água, pegou um choque e faleceu em 80. A idade que meu pai tem de morto eu tenho filho, aí eu nunca esqueci. Meu filho estava com três meses de nascido e o meu pai morreu, aí eu deixei ele em casa e fui visitar o meu pai no interior.
Depois que eu cresci, que eu casei [com] marido cedo… Com doze para treze eu já tinha filho, a minha filha mais velha Juliete. Fiquei dona de mim e fui viver minha vida. Morei muito tempo dentro da cidade de São Bento, aí de lá eu me casei, arrumei um marido; me deixou três filhos esse marido, aí ele faleceu, vim pra cá. Eu fiquei sofrendo, passando muitas dificuldades, sem ter casa, sem ter nada; deixei os meus filhos para trás, ai só trouxe a Juliete, porque era mais doentinha e os outros eram mais sadios.
O caçulinha, Zé Hermógenes, morreu com um problema de diarreia. Fiquei desesperada, foi começando meu desespero por aí. Eu só, sem ter condições de criar meus filhos, sofrendo. Foi aí que Deus me ajudou. Depois que meu marido faleceu, eu fiquei pelejando na casa da minha madrinha, minha mãe de criação, que é viva até hoje, graças a Deus. Ela me deu todo o apoio, disse que era pra eu manter minha vida sem bagunça, porque Deus ia botar um marido pra mim.
Passei um ano trabalhando na casa do gerente do armazém Paraíba, seu Vieira, fui criar meus filhos, até quando Deus botou um marido pra mim, me deu um marido. Hoje já perdi ele também, na lida do interior, quebrando coco e apanhando chuva para criar os meus filhos. Foi muito sofrida a minha vida.
P/1 - A senhora teve dois maridos?
R - É, eu sou viúva duas vezes.
P/1 - Vamos voltar um pouco. Sua mãe morreu quando a senhora tinha dez anos. Até essa idade, a senhora morava com o seu pai e sua mãe? Vocês moravam onde?
R - Lá no Galho, na casa da minha mãe mais de meu pai.
P/1 - Essa época a senhora saía para trabalhar ou brincava mais, como era?
R - A gente trabalhou desde pequeno. Quando eu não tinha tamanho, que eu sempre fui danada para trabalhar, eu botava um bocado de pano dentro do forno onde mexe a farinha e ia mexer farinha junto com o pessoal. Tinha aquelas rodas, a bicha grudava aqui na blusa e me jogava à distancia por cima. peguei muita queda. O sarilho que bota massa para espremer, eu ia botar o tipiti, aí não dava de conta. O tipiti me derrubava, eu levanta e juntava, aí eu voltava, espremia a massa, passava na peneira. Peneirava pra ganhar farinha para poder comer.
Ia trabalhar na roça com os outros, plantar mandioca, plantar arroz - os serviços mais leves que eles colocavam a gente para ir trabalhando, pra ganhar pra se vestir, pra se manter.
P/1 - Vendia essas coisas?
R - Vendia. Trabalhava para comer, comprar uma roupa, um chinelo.
P/1 - O pai e a mãe da senhora cozinhavam bem?
R - Cozinhava, minha mãe cozinhava bem.
P/1 - O que ela fazia para vocês?
R - Ela fazia tudo. Beiju de tapioca, que a gente fazia a farinha seca e tirava aquela tapioca para fazer o bolo. A gente fazia o bolo de macaxeira, fazia aqueles pés de moleque de massa d´água. Ave Maria, era muito bom, muito gostoso.
P/1 - A senhora trabalhava bastante, mas tinha tempo de brincar às vezes?
R - Brincava com o facão na mão. (risos) Nós não tivemos infância, era só trabalhando o dia todo.
P/1 - E como a umbanda entrava na vida de vocês nessa época. Seu pai ensinou coisas para a senhora, como foi?
R - Não, o que ele ensinou pra gente foi bater os instrumentos. Eu sei bater tudo, sei dançar, sei fazer tudo.
P/1 - Bater o quê?
R - Bater pra eles dançarem. Eu sei bater o tambor de crioula, sei bater capoeira, sei bater bambaê. De tudo eu sei fazer, não sei é tomar conta do terreiro do jeito que ele fazia, mas eu sei bater todos os instrumentos.
P/1 - Ele tinha um terreiro?
R - Tinha.
P/1 - O que precisa fazer para ter um terreiro?
R - Era só arrumar os componentes que ele fazia, os remédios, para os clientes dele que chegavam doentes. Fazia os remédios e eles ficavam bons. Ele ensinava a gente a fazer os remédios, socava no pilão: “Soca aqui, menino.”
Uma vez meu irmão foi baleado com arma de espingarda, botou a coisa pra paca e na hora mesmo ele caiu na armadilha. Ele mandava a gente a fazer remédio: pegava um pintinho, pegava mastruz, tentém e botava no pilão. Era eu que socava e fazia aquela calda, aí dava pra ele beber para poder aliviar a dor, pra poder trazer para São Bento pra tirar a bala que tava nas pernas dele.
P/1 - O que mais que seu pai fazia de remédio?
R - De remédio ele fazia uma porção de coisas de garrafada, pra doença. O pessoal pegava gonorreia e ele fazia remédio. Colocava a gente pra olhar e aprender. Era jalapa, janaúba, tudinho pra fazer remédio pra barriga, ele ensinava pra gente fazer. Era banho, mato cheiroso pra fazer banho… E assim a gente aprendeu essas coisas com ele, mas não ensinou a gente a melhorar de vida. (risos)
P/1 - Como era seu pai? Era alto, baixo?
R - Meu pai era um negão alto, forte. Minha mãe era cabocla de cabelo liso, baixa.
P/1 - E o seu pai aprendeu a umbanda com quem?
R - Eu não sei, isso ele não explicou pra gente. A gente não conheceu essa história dele. Conheço mais a história do meu pai e da minha mãe, mas dos meus avós, só da parte da minha mãe que eu lembro que conheci o meu avô, Geniraldo.
P/1 - Como é que seus pais se conheceram, você sabe?
R - Não. Ele contava pra gente que estavam namorando e se encontravam debaixo da mangueira. (risos) A minha avó cantava pro meu pai: “Eu vou te esperar debaixo do mangal. Se tu vim tu gosta, se a coisa combinar.” Porque de primeiro o namoro era pedra - jogava pedra, fazia bichinho, piscava os olhos, essas coisas; escrevia carta, aí nego não sabia, saía pedindo para os outros ler. Era essas coisas assim, mais antigas. Hoje não, hoje é fácil de nego namorar, paquerar, porque existe telefone pra nego se comunicar, né? [Isso] se tornou uma coisa muito fácil.
P/1 - Na umbanda venera-se quem, santo?
R - Pelo o que eu entendo, um pouquinho, através de um guia, um espírito. Tem as imagens, os santos. Como eu frequento, somos donos de um festejo, eu entendo desse festejo. Só muda o jeito da dança e as apresentações, porque o tambor de crioula tem uma dança diferente da umbanda. Tem pessoas que mistura as coisas, olha o tambor de crioula e diz que é umbanda, olha a umbanda e diz que é tambor de crioula; tem diferença.
Cada religião tem um segredo, não vê o Bita do Barão? Nunca ouviu falar do Bita do Barão do Codó? Pois é, tinha o segredo, muito grande. No dia que ele revelou, chamou a filmagem e revelou como fazia a buruganda dele, pronto. Não demorou muito, ele morreu, porque cada religião tem um segredo.
P/1 - E quais são os guias que tem na umbanda?
R - São muitos, nem sei o tanto, porque são sete linhas, de cada coisa tem sete. Desse negócio eu não entendo, não entendo muito bem esse negócio de linha, saber quem é de cada linha. O que eu sei é pouco.
P/1 - Qual a diferença da capoeira e do tambor de crioula?
R - O sotaque, o batido, o toque. O jogo é diferente, tem muita diferença.
P/1 - Como é o sotaque de capoeira?
R - O sotaque é berimbau, atabaque, agogô, pandeiro. O tambor de crioula é diferente, tem outro sotaque. As músicas são diferentes, tudo é diferente.
P/1 - Eu posso pedir para a senhora cantar uma música de capoeira e uma de tambor?
R - O nosso grupo, que através dele nós viemos para cá, pro Canaã… Essa sede existe por causa de uma promessa. Era do tio do meu marido, ele faleceu e passou pro meu marido. Quando ele tava pra falecer ele trouxe o santo e a parelha de tambor e disse: “Zé, toma conta desse santo e desse tambor, porque eu não tenho condições de fazer.”
O tio do meu marido era de Santa Rosa, só sendo de fé. Ele veio de lá e trouxe as coisas pra ele, o tambor e o santo, pra fazer a promessa.
A gente já tinha uma promessa antes pra pagar e não tinha condição financeira para fazer a festa, foi aí que minha sogra fez uma promessa. Ela pegou aquela erisipela e caiu todo o cabelo. Fez uma promessa na casa do irmão dela, do tio do meu marido. Ela disse pro santo: “São Benedito, se você fizer meu cabelo parar de cair e que eu fique normal, quando eu puder faço uma festa de tambor.” Com uns quinze dias ela ficou boa, foi criando logo os pezinhos de cabelo e ficou boa, [mas] ela nunca teve condições de fazer.
Minha sogra faleceu e pediu pra mim e pro meu marido que quando a gente pudesse era pra fazer uma festa de tambor pra ela, pra pagar essa promessa, que ela tinha deixado e não pagou, e aí nos ficamos. Fazia a festa lá no Madureira todo ano. Como era meu aniversário e das minhas netas, a gente fazia só uma festa, pegava uma data e fazia. Três, quatro dias só de festa, lá no Madureira, ficamos ‘faladões’.
Meu marido faleceu e eu fiquei tomando conta, fiquei no comando. Com a vinda da gente pra cá, eu não tive mais condições financeiras para fazer. A ENEVA falou que não podia indenizar, porque através da igreja, da capela, meu marido ficou seis meses doente, alejado. Ele pediu que quando se aposentasse ia fazer uma capela pra botar o santo. Passou seis meses andando de muleta, aí saiu da muleta, se aposentou e fez a capela do santo. Ele sonhou com o nome do tambor; como ele ia botar o nome da igreja, ele mandou escrever, porque ele também não sabia ler. Os meus filhos sabiam ler. “Pequeno, escreve aí: ‘À graça de São Benedito’. Esse que vai ser o nome da sede da igreja, a capela.”
Viemos pra cá e não tivemos condições financeiras, a festa parou. Foi aí que a ENEVA agarrou - era a MPX - e disse que não podia me indenizar, porque a paróquia era dos padres. A associação que era responsável, mas eu ia ser a guardiã da igreja. Mas ficamos sem nenhum católico para ajudar a fazer a missa, o padre saía catando gente, do Paraíba, que mora bem aí, até a Pindoba pra trazer gente para celebrar a missa, porque o pessoal daqui nenhum queria.
Como é que ia fazer? A ENEVA disse que só podia me ajudar registrando o meu grupo, fazer um grupo pra poder ganhar lá fora algum custo. A gente concordou, registramos. O padre desativou a igreja e a gente botou [a] sede do tambor de crioula [lá], porque a sede tava sendo no endereço da minha casa. Porque se tem um prédio, tinha que vir era pra aí, não para a minha casa.
Estamos aí, formamos um grupo por causa da ENEVA. Já fizemos muitas apresentações nos hotéis que chamavam a gente, deram toda força, apoio. A gente agradece muito a eles, os componentes. Estamos levando a vida pra frente. Eu canto, a minha filha canta, tem um cantador, todo mundo canta, todo mundo ajuda.
A primeira toada do nosso tambor é essa:
…. e ve corea, tu quer ver de novo
a turma do Canaã é a alegria do povo
a turma do Canaã é a alegria do povo” (canta)
Essa é a nossa toada do Canaã.
P/1 - Tem mais alguma toada que a senhora pode cantar?
R - Tem muita toada.
Maria me convidou para uma festa de tambor
Maria me convidou para uma festa de tambor
Eu vou, mamãe, eu vou
Maria dança tambor, eu vou mamãe, eu vou
Maria dança tambor”...(canta)
É muito bom, bom demais. Eu dou maior ponto a esse tipo de brincadeira.
São dois tipos de brincadeira: bumba meu boi e tambor de crioula pra mim. O boi não temos aqui na comunidade, já até falei pro Thiago: “Thiago, bora fazer um boi.” Eu sei todo o movimento, tudo.
P/1: Como é o canto do boi?
R - Eu saía, mas agora que eu fiquei doente, tá com um ano e pouco, eu me afastei um pouco, ai eu não tô frequentando. Mas frequentei uns dois anos, a gente saía num boi lá no Bairro de Fátima, boi de sotaque de matraca.
P/1 - E como são essas músicas de boi? A senhora podia cantar uma pra gente também?
R - Até me passou… É porque a gente vai ficando assim, deixando de fazer o exercício; aquilo vai passando, vai esquecendo um pouco. Tem hora que a gente tá assim, aí vem aquelas músicas tudinho, é igual a cantor.
Eu admiro meu neto Rafael, que quando era criança não cantava, não falava quase e hoje ele se passou para a música que benza Deus. Eu fico admirada de ver a criança dele desde pequeno, porque ele foi criado por mim e por meu marido e hoje ele se tornou um cantor. Ele diz: “Mamãe, vem a música na cabeça da gente.” É, pode crer!
P/1 - É uma coisa que a senhora acha que tem que cuidar, para passar para os mais novos?
R - É, porque a gente, para bater instrumento… Ninguém me ensinou, eu só via eles, aí eu começava, andava batendo na perna, na mão. Onde encostava era bantendo. “Mas rapaz, só vive batendo!” Aquilo vem da gente.
Hoje, há pouco tempo, a ENEVA pagou um curso de seis meses, uma oficina que era eu dando aula para meus meninos, minhas netas, ensinando a dançar e os meninos para bater o instrumento. Eu vejo hoje o movimento, porque de primeiro a gente se olhava e não tinha esse negócio de botar para aprender. “É assim, é desse jeito”, só vendo e aprendia. Assim é que eu… Se eu vir eu bato, eu canto. Agora não, que o juízo já tá pouco de tá brigando com criança. (risos) Porque larga de brigar com filho [e] vai brigar com neto, larga neto, vai criar bisneto, e é assim.
P/1 - Você acha que tem alguma coisa de sangue aí?
R - Tem, o movimento da ginga vem de um pro outro, geração para geração, é doido! Isso é muito emocionante. Sei lá, quando a gente vê o gingado é muito bom.
P/1 - A senhora se sente feliz quando vê um filho, um neto da senhora cantando, dançando?
R - É, pode crer! A primeira vez que eu vi o Rafael cantando, as lágrimas estavam saindo, aquela emoção! Eu não imaginava assim, a voz tão linda. Muito bom, muito bonito.
P/1 - A senhora pode contar pra gente de onde veio o tambor de crioula, onde nasceu? A senhora sabe sobre isso?
R - É uma religião, é através dos negros. Esse tambor de criula é uma festa que os negros fizeram para os brancos, para agradar o branco. Começaram a bater, dançar e foi [se] formando. É uma coisa que vem dos negros, as raizes dos negros. Foram aumentando a festa, de pouquinho foi aumentando a quantidade de pessoas, aí gerou uma cultura.
P/1 - Isso começou quando, no tempo da escravidão?
R - É, no tempo da escravidão, que teve a libertação dos negros, ai começaram fazer festa para branco, agradecendo. Com certeza todo mundo feliz, porque largou de ter aquela escravidão danada.
Eu ainda conheci em Alcântara, no Maranhão, que eu já fui lá, ali em Buenos Aires, aqueles poços deles colocarem os negros, aquelas forcas. A gente vê, ainda tem tudo lá em Alcântara.
P/1 - A senhora já ouviu histórias dessa época?
R - Não sei muito dessas histórias do tempo da escravidão, porque quem pegou foi os meus pais. Do nosso tempo pra cá a gente pega só um pedacinho porque eles não contavam tudo pra gente. [Ao] mesmo tempo não dava pra ficar contando história, escutava era muito história de carochinha. A gente ia logo dormir, nesse tempo não tinha televisão, não tinha desenho, não tinha nada pra nego assistir, ficar encasquetado. Vinha da roça cansado: “Ei, conta uma história.”
A lua bonita, era a hora que a gente brincava, corria tanto, até o dia que quebraram o braço da minha irmã. Pronto, aí largaram de brincar. Era assim a nossa infância.
P/1 - Que história da carochinha seus pais contavam?
R - Eles contavam do lobo, do coelho, uma porção de besteira que eles contavam. Os desenhos que a gente olha hoje na televisão, eles contavam antes, que era a história da carochinha. De primeiro a gente escutava novela no rádio, ficava ali o pessoal escutando no rádio; nego largava até o de cume no fogo e saía de carreira. O que a gente escutava no rádio, hoje a gente vê no desenho, que era marcha de macacaquinho. É assim.
P/1 - Conte uma história que os seus pais contavam para a senhora?
R - Eu não lembro muito bem. A história que eles contavam era do lobo, que o coelho foi para a festa, começou a namorar na festa, se lambuzou de lama. Foi pra festa e começava a dançar, aí dança com um, dança com outro. E o coelho tinha comido, matado os filhos da onça tudinho. (risos) O coelho correu, se escondeu, se lambuzou de lama e foi para a festa. “Rapaz, eu vou para a festa que eu vou pegar o coelho.” Quando chegou lá o coelho tava dançando todo lambuzado de lama, dançou com onça e tudo. Quando tava chegando de manhã o barro começou a rachar, aí um cantava no violino assim:
Meu compadre Constantino, acho bom você sair
o dia já vem raiando, o barro tá escachando
e acho bom sair xaxando, sair xaxando
O coelho tava xaxando no braço da tia onça. Quando ele se olhou, o barro tava tudo espocando, aparecendo o pelo dele. A onça saiu correndo atrás dele: “Isso é coelho!” Coelho agarrou e buraco, entrou. O urubu chegou e disse: “A carne é tua, o fato é meu.” Urubu ficou olhando com o olho arregalado. O coelho mijou, passou lama no olho do urubu, enquanto o urubu tava ali limpando a terra. O coelho foi embora.
Eram assim as histórias que eles contavam pra gente. A gente ria até dormir.
P/1 - E tinha alguma história que a senhora ficava apreensiva, com medo?
R - Não! A gente danava era a sorrir, a achar graça.
P/1 - Não tinha história de curupira?
R - Não, ele não contava história de curupira. A gente dizia: “Não quero coisa assustadora, não quero ficar com medo!”
P/1 - Eu posso pedir para a senhora cantar uma roda de capoeira pra gente?
R - Pode ser.
Ai, ai, a eee
joga bonito que eu quero aprender
ai ai vai ver
joga bonito que eu quero aprender
Só esse pedacinho que eu sei, o resto eu não sei mais.
P/1 - Dona Isabel, como é que faz os tambores? A senhora faz o tambor também?
R - Não, só meu marido que sabia cobrir. Pra fazer eu comprei umas parelhas, mandei fazer. Tem umas do meu interior, lá de São Bento que eu mandei fazer. Tem uma de cano que eu mandei o rapaz lá do Reviver, o mestre Amaral, aí ele fez de cano, é o que a gente tem. Mas pra cobrir tem o meu genro, meu ex-genro, que era o marido da Juliete, que cobria junto com o meu marido. De vez em quando, quando fura uma parelha, eu chamo ele pra cobrir, [o] Erasmo.
P/1 - Cobre com o quê?
R - Com couro de viado, de boi, que vem do interior.
P/1 - Um tambor, dona Isabel, precisa ter quantas pessoas para fazer?
R - São três instrumentos, três pessoas. Tem o crivador, o meião e o grande.
P/1 - São tambores diferentes?
R - São, os tamanhos são diferentes. O tambor grande é o maior, o meião acompanha quase com o grande e o perereca é o menor. Tem a matraca também, que bate atrás do tambor - maracá é o nome.
P/1 - E o que mais tem, canta, dança?
R - É. No nosso grupo é uma faixa de 42 pessoas, mas como morreu daqui, saíram três pessoas do grupo. Morreu a mãe e as duas meninas saíram, mudaram para lugar diferente, aí ficaram só 39 pessoas.
P/1 - E quantos cantam, quantos dançam?
R - São doze homens e 25 mulheres, ao todo. Às vezes tem mais, porque a tendência foi crescer. A primeira vez que a gente apresentou aqui deu muita gente, muita mesmo, porque vieram outras pessoas se aliar no grupo. Quando a gente vai fazer apresentação é muita gente, inclusive minha filha tem muita filmagem do tambor, tem vídeo. Eu não tenho, é só minha filha que tem no celular.
P/1 - E como é a divisão, mulher dança e homem toca?
R - Os homens tocam e as mulheres dançam.
P/1 - E quem canta?
R - As mulheres cantam o coro, os homens cantam e as mulheres respondem, é o coro.
P/1 - A senhora pode fazer pra eu entender, o que homem fala e o que a mulher responde?
R - A mesma música que o homem canta as mulheres respondem, ajudam a cantar. Não tem diferença, porque os homens são na frente e as mulheres atrás, cantando.
P/1 - E como são as roupas?
R - As roupas são aquelas saias com blusa de renda, colar. Tudo bonitão, pano amarrado na cabeça - chapéu nos homens e as mulheres com o pano na cabeça.
P/1 - E quem faz as roupas, vocês?
R - É, nós temos uma costureira. O tambor tem uma costureira, a gente paga ela para fazer as saias, as roupas.
P/1 - E a dança como é, o giro?
R - O gingado é beleza. (risos) nclusive o rapaz até falou pra gente fazer uma apresentação ao vivo, aí a gente tá organizando´. Ontem à noite eu falei com o cantador da frente e tem os outros ajudantes.
P/1 - As músicas falam sobre o quê?
R - Ela fala sobre o santo e fala também sobre as pessoas. Vai do jeito que a pessoa quer cantar, porque ela fala mais sobre o santo; na hora que acaba de rezar tem que salvar o santo, um agradecimento. Inclusive agora, por causa do meu problema - eu fiquei doente - a gente vai fazer uma festinha mês que entra agora, uma festinha que faz todo ano do tambor. Não teve essa agora por causa da pandemia. Depois do carnaval começou esse negócio, aí pronto, não tivemos São João. Todo mundo tem que fazer uma festinha, a gente vai fazer agora.
P/1 - Vocês tocam em São João também?
R - É, nos saímos no carnaval e São João.
P/1 - Aonde vocês saem, aqui?
R - A gente frequenta ali no Viva do Paço do Lumiar e tem o do São Luís. A gente tem documento, é documentado com o pessoal do São Luís e daqui do Paço do Lumiar, a prefeitura do Paço e a de São Luís. Marcelo que é responsável lá de São Luís, da cultura de lá. Através do documento que a gente tem, CNPJ, tudinho, bonitinho, a gente leva pra lá e participa das brincadas lá em São Luís, no centro.
A gente já foi apresentar [no] Anjo da Guarda, Anil, numa porção de lugar, aí ganha o cachê que a prefeitura paga, pelo menos para ajudar. De primeiro os componentes, eu inclusive, minha filha, brincavam porque a gente gostava. Hoje, depois que teve négocio de cultura, essas coisas pra pagar dinheiro, a maioria do pessoal vai só para ganhar o cachezinho deles. Não tem esse negócio não, pra ganhar dinheiro ele vai, se não...
P/1 - O povo quando vai assistir lá no centro gosta de ver?
R - Gosta. Nosso tambor é bonito, inclusive tem muita criança. Tem uma pequena no interior, uma sobrinha minha; essa pequena dança demais, ela dança desde os sete anos. Ela dança que ninguém olha pra ninguém na roda, só fica de olho nela. Pode crer, é muito danadinha, ela.
P/1 - Conte como é o Santo Benedito.
R - O São Benedito é uma imagem, uma imagem que nós temos, com um bebê no braço. Não sei contar o significado, como ele ficou sendo o São Benedito. Ele era cozinheiro, só esse pedacinho que eu sei, que ele era cozinheiro da festa, aí virou santo. Eu não sei mais contar por que.
P/1 - E a festa de São Benedito é essa que vocês fazem?
R - É, essa que a gente faz, e tem que ter comida, bebida, merenda. É tocada a murro e dançada a coice. Tambor de crioula é, porque nego esmurra a mão que incha, escangalha a mão, fica só calo.
P/1 - Quando é a festa de São Benedito no ano?
R - É no mês de agosto.
P/1 - Em que dia?
R - Acredita que eu até passei batido? Teve o dia de São Benedito, minha filha disse: “Mamãe, a senhora sabe que dia é hoje?” “Eu sei!” Eu esqueci a data, mas cada pessoa faz uma festa em uma data, tem a data das festas que quer fazer. Todo tempo é dia de São Benedito, no dia que você quiser você faz uma festa, mas tem o dia adequado, que eu digo que é o dia dele mesmo. É no mês de agosto.
P/1 - E como é organizar a festa? Como vocês fazem, o que vocês preparam?
R - A gente prepara muita coisa. A gente prepara o lanche das meninas, das crianças, que é refri, é biscoito, é pastel. Pros adultos tem que ter comida, tem que ter bebida, uma bebidazinha quente, uma cerveja, um vinho. Tem que ter bastante comida.
É muita organização, tem um custo pra gente poder preparar uma festa.
P/1 - Quantos dias são a festa?
R - Aqui no Canaã eu fiz só de dois dias. Quando eu morava lá no Madureira, a gente fazia festa de três, quatro dias, porque era um povoado. Eu tirava licença de dois dias, era o tambor de crioula e a festa dançante. No outro dia, [se] tinha uma pessoa que ia fazer aniversário a gente aproveitava, aí tinha a lavagem do prato, o lavamento de prato do Ribamar. Era só pros componentes, para os ajudantes que faziam lá em casa, que me ajudavam a preparar as coisas, fazer a comida. A gente matava boi, eu me preparava lá em casa. Eu tinha muita criação de bicho, muito porco, muita galinha; eu tinha sete compartimentos de chiqueiro de porco, aí eu vendia um, dois porcos e comprava um boi pra matar. Depois do boi, tinha dois, três porcos que eu matava pra poder dar comida pra tanta gente. Era uma saca de arroz.
A gente se preparava de um ano para o outro. Na hora que acabava a festa a gente dizia: “Esse porco aqui vai ficar para a festa, esse daqui a gente vai vender para fazer as despesas, pra ajudar.” Assim que era, a gente separava tudo logo. Meu marido era bem organizado, ele fazia direitinho.
P/1 - E o que acontece em cada dia da festa?
R - Cada dia da festa… Acontecia a festa dançante. O tambor de crioula era primeiro, depois no outro dia era a radiola; ficava a radiola cantando, tocando, o pessoal lá bebendo, dançando. Eram assim quatro dias. Aí alguém tinha aniversário, porque lá em casa a maioria é de dezembro, até no dia 24 é gente. Começava por mim, eu sou dia três, a outra era do dia quatro - a Bárbara, minha neta - do dia cinco era a Kelly, minha nora. Aí vem Natalia, vem a Natalícia que trabalha aqui, Nana; vinha até o final do mês, era o mês todinho. A gente fazia em uma data que comemorava o aniversário de todo mundo nesse tempo.
P/1 - Aqui no Canaã, qual foi a primeira festa que a senhora fez aqui?
R - A primeira festa já está com uns dois anos que eu fiz. Tem uns três anos que a gente tá em movimento aí.
P/1 - E como foi a primeira festa?
R - Foi boa, legal. Só não foi melhor porque a gente não tirou licença e o posto policial queria que pagasse dinheiro. Aí através do Zacarias, Patrícia [disseram]: “Não, rapaz, é uma festinha da comunidade.” Aí só tinha umas horas, não passava de uma hora, porque aqui tem uma lei dos idosos, do silêncio, não pode tá com muita bagunça, mesmo tendo muitos velhos - mas os velhos já morreram quase todos, aí já não ‘coisa’.
De primeiro, nego não botava radiola porque era a lei do silêncio, incomodava. Uma vez chegou um cara com uma casa alugada aí, com um som no carro, gritaria; no outro dia tava todo mundo fazendo abaixo assinado para tirar ele. Incomodava demais, chega parecia que tava tremendo até as casas.
P/1 - Ele saiu?
R - Saiu, foi embora. Aqui é muito calmo, é bom demais.
P/1 - E essa festa que a senhora fez foi dois dias, o que aconteceu em cada dia?
R - Foi o tambor e a radiola. Essa segunda teve tambor, o Rafael veio fazer o show.
P/1 - E o povo aqui gostou?
R - Já estão querendo de novo
P/1 - Porque o povo que estava aqui estava também na Vila Madureira e lá também tinha o tambor.
R - É. O pessoal de lá me cobra muito, querem vir para a festa aqui. Agora ficou mais difícil, depende de transporte; ficou mais longe, tem muita dificuldade, mas de vez em quando eles vêm. Quando a gente faz, eles dizem: “Me convida rapaz, me diz!”
P/1 - A senhora acha que o tambor conseguiu sobreviver da Vila Madureira para cá?
R - De primeiro eu não tinha ajuda financeira como a cultura. Era só eu e o meu marido, a gente se esforçava para manter as coisas. Hoje a gente já tem ajuda da comunidade pra ajudar a fazer a festa. Já teve ajuda da prefeita daqui da Pindoba, elas ajudaram a gente aqui em algumas coisas, então já não sai só do bolso da gente.
P/1 - E na mudança da senhora para cá as pessoas faziam questão do tambor?
R - Sempre quiseram o tambor aqui, o movimento. O único movimento que tem aqui é esse. Na Madureira, quando a gente morava lá, não tinha essas igrejas. Era só o irmão Ivaldo que era morador de lá, fazia o culto na casa dele.
Zacarias que teve a associação de lá, esses outros não tinha lá. Muita gente que tem aqui no conjunto não tinha lá. Foi aqui que a gente conheceu esse pessoal. A maioria se mudou, vendeu; teve morador que nem veio pra cá, só veio pegar as coisas que a ENEVA deu, botou no caminhão e foi embora, ninguém sabe nem pra onde. Só ficaram aqui as pessoas que realmente moravam lá, que sobreviviam de lá.
P/1 - Dona Isabel, queria voltar bastante agora. A senhora falou que bem cedo já teve neném. Como a senhora conheceu o primeiro marido?
R - Eu conheci meu primeiro marido… Inclusive eu fui criada um tempo com a esposa dele. Ela faleceu e ele se agradou de mim, aí ficamos junto. Quando ela morreu ele ficou viúvo, ele procurou se eu não queria morar com ele. Meu tio falou que se ele me levasse ele tinha que casar comigo, aí ele disse: “Meu compadre, casamento não enche barriga de ninguém.” Aí ele disse: “Mas se você levar ela, roubar ela…” Porque de primeiro tinha, os homens roubavam as moças.
P/1 - Ah, é? Como assim?
R - Roubava porque os pais não iam saber, não ficavam sabendo com quem saíam, com quem iam. Ele pegava, conversava com a gente: “Eu vou te levar, te roubar”, aí faziam a trouxa e iam embora com ele. Ele [meu tio] disse que se fizesse isso ele tinha que casar comigo. Ele tinha me achado suficiente pra casar, mas casamento não ia encher barriga, não ia dar riqueza pra ninguém. Eu disse pra ele que ele que sabia se queria casar ou não.
A única coisa que ele me deixou foi esses três filhos, a riqueza que ele me deixou.
P/1 - Qual o nome dele?
R - Hermógene Anastácio Mendonça. Fiquei só, eu e os meus filhos.
P/1 - Qual é o nome dos seus três primeiros filhos?
R - O nome da minha primeira filha é Juliete, conhecida como Benta. Tem a Edleuza, o Benedito, do meu primeiro marido, e tinha o Zé Hermógenes, que faleceu primeiro que meu marido. Fiquei com esses três filhos.
P/1 - A senhora teve os três filhos com que idade, cada um?
R - Eu tava com doze anos, dentro dos treze, quando eu tive a minha primeira filha, aí era de uma ano para outro. (risos) Todo ano! Quando um criava um ano o outro já tava no braço, era assim que era.
P/1 - Nessa época, com o seu primeiro marido, vocês moravam onde?
R - Em São Bento.
P/1 - Dentro da cidade?
R - É, lá num lugar chamado Tupi. Lá que nasceu a minha filha mais velha.
P/1 - E como era São Bento nessa época?
R - Era movimentado. Hoje é melhor do que antes, porque o que tinha antes agora tá tendo muito mais. Cresceu mais a cidade. Tinha pouca loja, pouco comércio e agora tem muito, pra todo lado que vira tem coisa. De primeiro, lá era um farmaceiro que tinha, o Vicente Aragão; era o doutor lá de São Bento. Hoje é tanta farmácia que a gente nem sabe onde entra.
P/1 - Conta pra quem não conhece, São Bento fica o quanto de distância de São Luís?
R - Eu nem sei direito, eu sei que é um bocado longe.
P/1 - É no interior do Maranhão?
R - É, pega o ferryboat e vai embora, pega a estrada e tem as placas indicando. São Bento, Pinheiro, Santa Helena… Essa é minha cidade, São Bento.
P/1 - O seu marido faleceu quando vocês tinham quanto tempo de casados?
R - Nós passamos doze anos morando juntos, foi aí que ele ficou doente e morreu aqui, em São Luís.
P/1 - Ele fazia o que, o seu primeiro marido?
R - Ele trabalhava em casa de jogo, jogo de baralho. De primeiro tinha as casas de jogo, e ele trabalhava em uma dessas
P/1 - O que ele fazia na casa de jogo?
R - Ele ganhava dinheiro, eles apostavam, perdiam a aposta e ele ganhava. Eu não entendia muito bem porque eu não frequentava lá, ele não deixava porque tinha muito homem, podiam querer tomar gosto comigo. Eu era toda arrumadinha, a mulher assim o homem tem mais ciúmes. Ele tem ciúme de onde tem só homem, que aí tem palavrão; hoje não, que mulher, esteja junto ou não, eles chamam tanto nome. De primeiro tinha mais sigilo, no lugar ficava só homem, e as mulheres ficavam mais onde tinha mulher. Ele não deixava eu frequentar lá, às vezes mandava eu levar alguma coisa pra ele, mas chegava, entregava e voltava logo, não ficava lá. Eu não prestava muita atenção no movimento deles lá.
P/1 - Ele faleceu do quê?
R - Ele teve câncer. Saiu um bocado de caroço, debaixo dos braços, nas amígdalas e nas partes íntimas, em cima do pênis. Era muito caroço. Ele passou uns seis meses ou mais internado na Santa Casa, mas de primeiro eles não diziam nada pra gente, hoje que descobriram. O atestado de óbito não teve muitas explicações como eu era analfabeta, a irmã dele não deixava ninguém ver, eu não sabia ler, então não adiantava ficar olhando um papel com um bocado de coisa sem saber o que era. Ela tomou conta das coisas.
Quando chegou a hora que era pra eu me aposentar, por causa dos meninos, aí ela agarrou e escondeu atestado de óbito, carteira de identidade, o título de eleitor, a carteira profissional e a carteira do sindicato, lá do interior de São Bento. Ela escondeu tudinho e disse que eu que tinha pego os documentos, e ela que ficou com tudinho. Eu disse que um dia ela ia se arrepender dessa maldade que ela tava fazendo para os próprios sobrinhos dela. Ela não me amparou, ela tinha como me amparar porque ela não tinha só uma casa; na Rua do Arame, lá no bairro de Fátima, ela tinha cinco casas alugadas e não me amparou - pelo menos as crianças, não é? Eu fiquei muito triste com essa situação, com essa atitude que ela tomou.
P/1 - Quando seu marido morreu a senhora continuou lá em São Bento?
R - Não, fiquei aqui, não fui mais pra lá.
P/1 - A senhora veio para a Vila Madureira, é isso?
R - Eu vim embora pra cá. Quando eu tava em São Luís, porque a gente morava no bairro de Fátima, foi que o meu cunhado comprou esse sítio lá no Madureira. Foi que convidou a gente pra morar pra lá, com o meu segundo marido, que era irmão dele.
P/1 - A senhora conheceu o seu segundo marido como?
R - Porque ele era irmão do meu cunhado, aí vivia tudo junto, minha mãe de criação e minha madrinha. Ela criava o meu cunhado. Conheci o meu marido através do meu cunhado, entendeu?
P/1 - E a sua madrinha, como é o nome dela?
R - Tomásia Aguiar Pereira. Mora lá na raia, lá na Vila Maranhão
P/1 - Ela cuidou muito da senhora?
R - Ela que me criou. Fiquei morando com ela, conheci esse marido e a gente ficou junto. O meu cunhado, filho de criação da minha madrinha, foi que agarrou e me levou lá pra Madureira
P/1 - E qual o nome do seu segundo marido?
R - José da Trindade Serrão, conhecido como Cuscuz.
P/1 - Por que Cuscuz?
R - Porque é apelido de empresa. Ele trabalhava na Coca-cola e fumava muito, caipora, aí apelidaram ele de cuscuz de fumo. (risos) Ele ficou bravo pra danar. Nós morávamos lá na Rua Jairzinho, aí ele ficou bravo, comprou uma faca e disse que queria furar o cara. Falei pra ele: “Menino, larga disso!” Acarinhei ele, conformei. Todo mundo dizia, ele nem ligava mais, aí pronto, ficou falado, ninguém chamava mais o nome dele.
Depois ele foi entender que ia fazer uma besteira. Ia furar o cara, arriscado até estar preso por causa de uma besteira, aí até morrer foi Cuscuz de fumo. Ninguém chamava de Zé, pra falar Zé tinha que falar Zé de Mocinha - Mocinha era a mãe dele, pra ter uma diferença, porque era uma porção de Zé.
P/1 - Então a senhora e os três filhos da senhora foram morar com ele?
R - É. Os meus três filhos chamavam ele de pai, todo mundo.
P/1 - Era bom, ele?
R - Era uma bela pessoa, era muito bom, até os últimos dias que a gente conviveu. Fez doze anos no dia primeiro de outubro que ele faleceu. Meus filhos sempre gostaram dele, todo mundo gostava, até esses moradores lá do Madureira.
P/1 - Como era o jeito dele, brincava com as pessoas?
R - Ele não era muito de brincar, mas era uma pessoa de moral, de caráter, ele era rígido. Ele não gostava de molecagem, de bandidagem. Era uma pessoa honesta, respeitadora. Perdemos ele.
O cara matou a minha filha, aí foi entrando em desespero todo mundo, perdemos o ânimo. A minha filha caçula, o cara matou ela pra poder prostituir ela, usar ela; ele vivia dentro de casa junto com a gente, comia, bebia, aí matou ela. Ele [o marido] ficou desesperado, todo mundo ficou desesperado com essa decisão que esse cara tomou.
P/1 - Esse cara era de onde?
R - Ele era marido de uma colega dela, da Greidiane, uma moradora lá do Madureira. Esse marido não sei por onde ela arrumou e trouxe, tava morando lá. Com a amizade dela, que ela vivia lá em casa, ele gostou da minha filha e fez essa tragédia: matou ela, quebrou o pescoço dela. E ela jogava muita capoeira, ele só conseguiu pegar ela porque bateu nela com o pau no escuro. Ela não viu, mas sabia se defender muito. Acho que ele ficou com raiva, aí a porrada que ele deu na cabeça dela, na fonte… Ela desmaiou, caiu e ele quebrou o pescoço dela, abusou dela, mas foi encontrado em cima da bucha, em cima da hora, porque ela tava junto com a minha filha. Meu genro e a mulher dele, a colega, tavam vindo de uma festinha. Ela tava vindo na frente, mas meu filho, um que é deficiente, meu genro e minha filha Juliete… Ela ficou pra trás. A bicicleta quebrou e ela voltou pra deixar a bicicleta. Quando é na vinda dela, ele já tinha adiantado e tava no escuro no caminho, esperando ela. Quando ela passou ele agarrou ela, começaram a lutar no areal, até que ele bateu nela, ela morreu.
P/1 - Pegaram ele depois?
R - Não. Ele foi pego no Pará tem uns dois anos, porque a polícia pegou ele lá, aí pegou, foi descoberto, porque no Linha Direta tava espalhado o meu número. Ele era procurado pelo Linha Direta, o último programa do Linha Direta foi esse da minha filha.
Nessa empresa que ele tava, foi descoberto pelo Google, que eles cutucam, a minha filha e minha nora. Encontraram, viram, aí começaram a pesquisar. A advogada da empresa mandou, ele pediu demissão e botou a empresa na justiça. Com a empresa que ele tinha colocado na justiça, eles agarraram e mandaram ele vir para São Luís, que era pra ele pegar a indenização, trinta mil reais que a empresa ia pagar [pra] ele; eles agarraram e saíram procurando a gente, porque a gente tinha saído de lá. Eles procuraram e encontraram a gente, vieram certinho no endereço da casa, no nome. Chegaram procurando, eu procurei o que era e ele disse que não podia dizer. A polícia que veio trazer a intimação, que era pra se apresentar no fórum, a gente procurou por que e o que era e eles não disseram. A gente ficou em dúvida de não saber o que era; eu ainda disse pra ele, porque eu sempre fui atenta às coisas, tá acontecendo as coisas eu tô aqui, mas o pensamento, os olhos tão por todo lugar da casa. Eu procurei pra ele, eu disse: “Me diz uma coisa: essa intimação tem a ver com o assassino da minha filha?” Ele disse: “Olha, a gente não pode adiantar nada.” Ai eu matei. Que diabo esses policiais querem comigo?
Quando chegou a hora minha filha foi, as duas, deram de cara com ele lá no fórum. Assim que foi, foi um susto, minha filha passou mal. Aí que foi descoberto, foi que a polícia foi saber o que tava acontecendo. Só quem sabia era o delegado, mas o resto não sabia o que era. Ela começou a gritar, a minha filha Edileuza, e dizer: “Esse assassino que matou minha irmã e o meu pai. Gente, esse é um assassino!” “Que assassino?” Tava na ficha dele que era pra receber uma indenização com o advogado dele. O advogado dele ainda disse: “Tá havendo alguma coisa errada! “ Aí que eles agarraram e foram mexer lá, foi tudo descoberto.
Levaram ele para Pedrinhas. Não passou nem um ano, já soltaram.
Ficou a dor todo o tempo da perda. Meu marido entrou em depressão, ele vivia só chorando atrás da casa, pelos cantos, e a gente todo tempo chamando ele, dando conselho. Com três meses que ele recebeu o laudo médico ele passou mal. Levamos para o hospital, não teve mais jeito. Disseram que ele tava com muita depressão e causou um aneurisma cerebral, aí não teve jeito, perdi.
P/1 - E o cara tá solto, a senhora acha?
R - Com certeza tá solto, porque não teve nem audiência, não teve nada. Só teve essa que intimaram que era pra ver ele e aí não teve mais.
Eu fiquei logo doente, meu filho também ficou doente, esse meu filho capoeirista também entrou em depressão. A gente não sabia se corria atrás do caso ou se caçava recurso pra ele.
Desbandalhou a família toda, mexeu com todo mundo; desmantelou a família toda, ficou todo mundo doido. Eu tenho um filho que é deficiente, se perdeu no mundo da droga e ficou horrível por causa disso. O que tava junto com ela, ele se sente muito culpado com isso.
P/1 - Qual é a deficiência que ele tem?
R - A barreira caiu em cima dele, lá no Madureira, abafou ele. Ele tava trabalhando, enchendo caçamba manual; a barreira quebrou e caiu em cima dele. Quebrou a bacia, quebrou e fastiou, ele ficou deficiente.
P/1 - Ele anda de cadeira de rodas?
R - Não. O [Hospital] SARAH conseguiu ajeitar o fêmur dele, mas ele ficou com uma perna mais curta do que a outra, aí ele caxinga.
P/1 - Isso aconteceu com quantos anos que vocês estavam na Vila Madureira?
R - Já tava com mais de vinte anos de nós lá. Foi começando o desgosto de ficar lá, aí surgiu essa empresa pra tirar a gente de lá. Mas ficou a dor todo o tempo, nunca cicatrizou.
P/1 - Quanto tempo depois veio a MPX para fazer a remoção?
R - Ela não demorou não, foi rápido pra a gente sair de lá. Tava com três anos dela morta.
P/1 - Foi um alívio, então?
R - Sim por uma parte, mas por outra... Eu que sou mãe, parece que todo tempo ela tá chegando. Eu fico todo o tempo com aquela lembrança dela, tem o movimento dela. Ela queria ser veterinária, porque lá em casa tinha muito cachorro, ai ela disse que ia estudar, tava fazendo o curso. Disse que ia estudar para ser uma veterinária pra tomar de conta dos cachorros. Tudo isso acabou com o sonho de todo mundo. Ela já sabia dirigir. Ela completou quinze anos, tava com dezesseis anos quando ele matou ela... Tá com mais de 22, 24 anos. Ai eu fico com essa coisa perdida no meio, bandalhou todo mundo.
P/1 - Agora me conta uma coisa: quando vocês chegaram na Vila Madureira, como era lá, quem morava lá?
R - Quem morava era só minha mãe de criação, meu cunhado, que morava lá. Foi fazendo o povoado do pessoal, esses outros, porque nós morávamos em uma parte e Zacarias morava em outra parte. Nós morávamos embaixo e ele morava em cima, porque tinha os morros, tinha uma piçarreira. Meu cunhado trabalhava num lugar que tinha esses maquinários, areia, jazida, era muito movimentado de caçamba, aí que foi [se] formando. A minha família era grande, a família da minha madrinha, aí foi fazendo aquele sítio, aquele povoado. Foi aumentando, o pessoal do Zacarias foi chegando, o meu outro cunhado; foram fazendo casa e morando pra lá, aí fizeram a vila.
P/1 - Qual eram as ruas que tinham lá?
R - Só tinha a nossa e a do Zacarias, ficava uma para um lado e outra pro outro e a piçarreira no meio. Assim que estirava o material de construção, tirava o barro, tirava areia, tirava pedra. Todo o maquinário era do meu cunhado. Quando ele tava trabalhando nas empresas, nas firmas, precisava de material, aí vinha para onde o meu cunhado [trabalhava] e tirava o material quando era pedra. A gente saía, juntava meus filhos, meu marido, ia juntar pedra. A máquina cortando e nós arrumando a pedra.
P/1 - Qual eram os nomes das ruas?
R - Não tinha nome de rua, era só mesmo Madureira. Tinha Madureira de baixo e Madureira de cima. Depois vinha Camboa dos Frades, que pertencia à Beira da Maré.
P/1 - E as pessoas iam morar na Vila Madureira por que, era bom lá?
R - Porque era bom, era calmo, não tinha bagunça. A maioria morava por aqui no Anjo da Guarda, Fumacê, essas bandas, aí começou negócio de facção, nego já tava procurando lugar para se esconder, saindo de movimento.
P/1 - E o que dava pra fazer?
R - Pescar, tanto pescava da parte da água doce como da água salgada, porque a gente era rodeado de água. Tinha água na frente e maré atrás, água doce, [de] qualquer lado ali a gente pescava, tanto na água doce como na água salgada.
A casa que eu morava ficava pertinho da maré, da água salgada, o mangue. Pegava caranguejo, inclusive até me acidentei. O cascaio de arraia furou o meu pé, passei muitos anos, seis meses doente. Tirava caranguejo, apanhava siri, pescava de rede. Pintava o sete.
P/1 - E o seu segundo marido tocava tambor também?
R - É.
P/1 - A senhora ensinou pra ele ou ele já sabia?
R - Ele já sabia, vem do ensino do tio dele, que era dono de um festejo.
P/1 - Foi por isso também que a senhora gostou dele?
R - Não. A gente se gostou por causa da amizade, o respeito, o tratar, porque a gente vivia junto, no mesmo movimento.
P/1 - Ele era da umbanda também?
R - Não, não. Ele só batia os instrumentos também, igual a gente fazia, eu fazia.
P/1 - Vocês fizeram toada na Vila Madureira também?
R - Não.
P/1 - E como era a casa de vocês lá?
R - A minha casa era pegada à igreja, a capela. A minha casa era grudada, formava tudo só uma casa. Por dentro da minha casa atravessava pra dentro da igreja. Era de alvenaria a minha casa todinha, tanto a capela que ele mandou fazer como a minha casa. Tinha casa dos outros filhos meus, o quarto da casa de Fábio, de cabeludo, de Flávio, da Edileuza, Juliete, aí a do Biné. Tinha essas cinco casas ao redor da minha e a minha ficava no centro, bem no meio. Formava só um sítio, só a minha família.
P/1 - Você sente saudades dessa casa?
R - Eu sinto muitas saudades do meu movimento lá, porque mudou. O que eu tinha lá, aqui eu nunca consegui. A única coisa que eu consegui foi paz, porque lá aconteceram essas duas tragédias, então não foi bom. Mas devido a outras coisas lá era muito bom, se não fosse essas duas coisas que houve na família.
P/1 - Conte um pouquinho como foi quando a empresa chegou para conversar com vocês.
R - Eles chegaram pegando o nome da gente e disseram que o governo tava precisando da área, que era pra fazer uma distribuição de energia. Eu pensava que eles iam botar a energia pra nós. (risos) Porque a nossa energia era fraca, tinha que botar um estabilizador pra poder funcionar uma geladeira e uma televisão de bateria, que depois foi botada na bateria. A minha televisão era na bateria, mandava carregar, trazia pro Anjo da Guarda, pro centro pra carregar; botava carga pra botar na televisão para assistir.
Quando eles falaram de energia eu pensei que ia ficar todo mundo lá, que ia aumentar mais a carga da energia pra gente não ter dificuldade da energia. “Não, vamos desocupar para fazer uma usina, distribuidora de energia.” Parece que foi um pedaço de mim que tava tirando, outro pedaço. Porra, e agora? Como é que a gente vai fazer?
Eles me mandaram, era pra gente vir aqui pra olhar o local, pra poder se agradar. Teve muitos que diziam assim: “Que dia que nós vamos?” Realmente, os que moravam lá queriam sair.
Eu, pelo menos, pensava que ia ter uma vida melhor, porque eles disseram: “Tudo que você tem aqui lá você vai ter muito mais. Lá você vai ter criação dos bichos que você quiser.” A gente teve, mas eu pensava que cada qual ia ficar na sua área. Pensava que o local que eles iam dar para a gente, a gente ia ficar trabalhando junto dali, perto de casa, porque é muito difícil para nós. Foi muito difícil essa distância todinha daqui para o polo agrícola. Eu padeci demais, ave Maria, tu é doido! Sair daqui para enfrentar cinco quilômetros a pé, quando chegava lá já chegava cansadinho, com as pernas cansadas.
Nunca deu condição de eu fazer um quarto pra ficar lá [com] o que eu ganho. Eu tenho cinco netos órfãos de mãe, sustentados por mim. Ficou uma carga pesada pra mim, sem ter um homem do meu lado para me ajudar, pra resolver o problema, pra gente conversar, fazer projeto - porque primeiro as coisas a gente tem que pensar, projetar e dizer assim: “Rapaz, será que vai dar certo pra cá?” “Não, não dá certo pra cá, nos vamos pra cá.” Num acordo.
Eu não fiz casa nenhuma lá no polo. Pra mim, esse sufoco todinho, esse desespero e vai e vem, chegava lá já morta de cansada. Ia de pé daqui pra lá. Quando pegava uma carona, tudo bem. Comecei a andar de bicicleta. Tenho as duas pernas operadas, uma de cascaia de raia e outra baleada, que eu mesma me baleei. (risos)
P/1 - Como é que foi isso?
R - Lá em casa tinha muita criação, eu mais meu marido. Entraram lá na minha casa, levaram uma radiola e uma televisão. Eles já tinham roubado um bocado de galinhas, catraio, lá em casa, e eu tinha muito porco. O cunhado do meu marido era delegado. “Rapaz, tô caçando um jeito de ter uma arma”, só essa espingarda punhetada aqui pela boca.
O ladrão ainda me chamou para querer me matar, disse: “Se tu pisar daí tu morre!” E eu olhando ele. Se eu tivesse uma arma eu não matava ele? Matava, derrubava ele, porque coragem eu tenho.
Falei com ele [o cunhado do marido] e ele falou: “Cuidado, não tem porte de arma.” Eu disse: “Não, é só pra gente se defender.” Já imaginou? O cara ia me matar, meu marido e mais quem tivesse, ele com o revólver e nós só com uma espingarda que metia pela boca, saía por trás; era um tiro, uma carreira. (risos)
[Ele disse:] "Rapaz, eu vou passar o revólver para vocês.” Ai eu era mole para danar; se agarrou, botou um óleo na coisa, eu trisquei. Tava com a perna bem assim… Pá!
Credo! Olha o buraco. Era sangue pra disgrama, entrou aqui e varou aqui. Fui para o hospital e lá eles fizeram tanta pergunta pra mim… “De quem é o revólver?” “É meu, eu que comprei”. “Cadê?” “É para me defender.” Foi logo lá o Erionaldo, conversou com os colegas dele: “A mulher toma de conta do meu sítio, rapaz!” Aí foi que eles abafaram. Eu me curei.
Da outra vez eu fui pra maré pegar caranguejo. Pisei no cascalho de arraia, furou, passei seis meses doente da perna. Andando de bicicleta aqui, indo pro polo agrícola, ai minhas pernas doíam tanto que me dava vontade de me jogar no chão. Eu não dou conta mais de andar de bicicleta, larguei de andar de bicicleta, aí não fui mais. Eu preferia ir andando mesmo, que me dava uma dor na perna que só faltava gritar de tanta dor.
P/1 - E a senhora vai como hoje?
R - Foi uma coisa que ficou muito difícil pra mim. Eu já tô com 62, 63 anos, aí fica difícil de fazer muita ginástica, me dói. Eles falaram que eu não ia ficar aleijada, mas ia ficar sentindo de vez em quando, ia ficar com sequela. Deram pra mim esse polo agrícola pra lá, ficou difícil pra nós aqui.
P/1 - Hoje a senhora ainda vai lá?
R - Não, eu me desfiz da minha área. Passei para Zé Maria a minha área. O pegado de Zé Maria, botaram a gente em grupo, nós ficamos agarrados um ao outro. Eu me desfiz da minha área porque fiquei doente, não pude mais ficar trabalhando. Só crescendo o mato lá, dando trabalho para os outros, então me desfiz dela.
P/1 - Quem está no polo que a senhora é mais amiga?
R- A minha filha e o Zé Maria, eles todos que trabalham lá: Nonato, Zé Domingos, são os meus vizinhos lá do Madureira. Zacarias. a Gelsina, que agora ficou viúva, perdeu o marido há poucos meses. Zulu, ainda não está com seis meses [que ele morreu]. Era muito meu chegado, ele. Quando eu chegava, esse Zulu era gordão, aí ele dizia: “Eita, nega véia, a nega chega tá cansada” Eu tava acabada, tava me acabando, cê é doido!
Então não tenho condições, meus netos, ninguém quer ir pra lá. “Ah, vó, eu tô cansado.” O dinheiro não dava pra comprar uma moto, não dava pra comprar um carro pra sustentar essa marcha de pequeno, pra ter farda e sapato e dar de comer todo santo dia para não faltar nada. É remédio de vez em quando, fica difícil; o pai não tinha, quem tem que dar sou eu, sustentava os filhos e o pai. É assim.
P/1 - Quando a senhora veio pra cá, a senhora ganhou uma casa só?
R - Só uma casa. Essa minha casa eu dei para o meu filho e fiquei sem ter.
P/1 - E mora onde?
R - Eu moro na casa da Edileuza agora. Eu morava em casa alugada, porque eu arrumei um marido; passamos cinco anos juntos, um paraense. Quando tava uns três meses juntos, quando ele chegou, ele alugou uma casa para ele. Aí começamos a paquerar, ficamos juntos e ele: “Vem logo embora pra cá, pra minha casa.” E eu digo: “E a minha casa?” Ele: “Vamos fazer o seguinte: durante [o tempo que] tivermos juntos, vamos ficar na minha casa. A sua casa, aluga ou dá para os seus filhos, pra um dos seus filhos morar.”
Como eu já tinha ido buscar o meu filho, o Biné, que tava lá no Madureira, que tinha ficado pra trás… Fui buscar ele com a Kelly, uma facção queria agarrar ele lá. Olharam a Kelly nua e botaram no celular. A mulher dele era bonita, tinha grande e tal, começaram com sacanagem, ai ele ficou doidinho de raiva, começou a vigiar à noite, ela dormindo e ele vigiando. O ladrão, disseram que iam voltar, aí ele trabalhava de manhã e de noite ele ficava cochilando ali, sentado, esperando o bandido. Ele ligou pra gente e disse que ela tava muito preocupada com ele, porque ele viajava de noite e de dia ia trabalhar de motorista, podia de uma hora pra outra ele dormir no volante e ter um acidente. Aí eu fiquei doida da cabeça, agarrei Edileuza e falei: “Vai buscar meu filho, bota ele pra cá!
Ela foi, eu paguei o caminhão e botou as coisas dele dentro. Quando ele chegou do serviço, as coisas já estavam dentro do caminhão, entendeu. Trouxeram ele, as coisas dele ficaram em três casas, não cabia só em uma porque as casas são pequenas. Botaram na casa de Juliete, na casa de Edileuza e na minha casa.
O cara que eu morava, o Cosme, disse assim: “Minha filha, bora fazer o seguinte.” Eu senti que ele tinha largado a casa dele lá, me senti obrigada a dar um apoio pra ele, porque eu já tinha ganhado uma casa no direito. Quando a empresa indenizou, tirou todo mundo, deu uma casa pra ele, tinha uma casa, mas como ele tinha outra família, eu falei com a outra mulher dele, Lilian, que era pra ela não processar ele. Ela ia botar ele na justiça por causa da neném, que era pra poder ganhar, ai eu disse pra ela: “Minha filha, é o seguinte: bora fazer um negócio nós duas. Eu te dou todo o direito de Biné pra você não mexer com ele, deixa ele viver a vida dele e fica com a menina pra você poder manter ela. Uma casa, ganhou um terreno no polo, ganhou algumas coisas, as coisas que a empresa deu e deixa ele de mão, deixa ele viver a vida dele e ser feliz com outra.” Aí ele ficou com a Kely e a mulher foi embora com essa filha e ela ficou com a casa, a primeira mulher dele, de Biné. Ele ficou sem casa, me achei no direito de apoiar ele.
Eu disse: “Meu filho, é o seguinte. Eu tô vivendo com esse homem, então tu fica na minha casa. Com o tempo, o esforço do meu filho, eu vou passar a casa pro seu nome, eu vou ficar sem casa.” “E a senhora, mamãe?” “Eu quero que vocês, que são meus filhos, não me botem em asilo quando eu ficar velha, não me deixem ficar em asilo, perambulando; me botem num canto.” Então ele disse que ia fazer um quarto, disse que tem um quarto na casa dele pra mim, só que eu não vou, porque eu tenho meus netos, esses filhos de Gago, meu filho. É pra mim, quando eu tiver velha, que ninguém me quiser mais, tá entendendo?
Eu me senti culpada, tirei ele da casa dele e trouxe pra perto de mim. Ia deixar ele ficar como, zanzando? Então fico eu sozinha, porque se é de ficar três, fique só um, né? Então me senti no direito, passei a minha casa pra ele, e hoje fiz negócio com o Zé Maria, com a Edileuza; ela já comprou uma casa lá na Vila do Povo, com o dinheiro do terreno lá do polo, e passou a casa dela pra mim. Ela comprou uma casinha lá na Vila do Povo, perto da filha dela, da Carol e tá todo mundo assim, arrumado, porque ele não ficou desamparado, eu não to desamparada, nem a Edileuza tá desamparada. Ainda tá faltando fazer.
P/1 - Aqui na Vila Canaã, de parente seu, quem mora?
R - Minhas netas, a Juliete - que tem três filhas, a Fernanda, a Bárbara e a Natalícia - o Rafael, os meus filhos, meu sangue. O resto é só amigo. Se dizer qualquer coisa de Isabel, aí pronto, porque eu sou moradora antiga lá do Madureira e fui a primeira pessoa que se mudou pro Canaã, fui eu que a empresa trouxe. Eu fui a primeira moradora que a empresa trouxe.
P/1 - A senhora lembra o dia que chegou aqui com a mudança?
R - Não, eu não me lembro a data. Lembro que foi um período que tinha acabado o carnaval - carnaval acaba em fevereiro, março, né? No mês de abril, não lembro mais assim a data. Eu sei que fui a primeira moradora que vim embora pra cá, a primeira mudança foi a minha, eu e a minha família. Eu, Edileuza, e a Juliete. Depois foi a Edileuza, nós morávamos uma agarrada na outra, aí foram três caminhãozadas de coisa. Veio até a carroça, meus jumentos, cachorro. Tudinho eu trouxe.
P/1 - Trouxe porco, galinha?
R - Não, a gente trouxe mas tudinho no congelador porque a gente não podia trazer. O que tinha de matar a gente matou, o que tinha da gente vender a gente vendeu, que tava bom pra venda, aí a gente trouxe tudinho no freezer. Tinha dois congeladores tupetados de carne de porco, leitão inteirinho, só pelado e dentro do freezer. A gente comeu foi [por um bom] tempo, vixe… Galinha, tudinho.
P/1 - E como era a casa quando a senhora chegou, o bairro?
R - Era muito esquisito, quase não tinha ninguém. A gente tinha medo de todo mundo, tinha medo das outras pessoas e as outras pessoas tinham medo da gente. (risos) Eles procuravam assim: “Ei, a gente pode entrar aqui?” Na realidade, pensavam que era um condomínio fechado porque tinha vigia. Eu me perdi uma vez vindo do centro, me perdi porque não sabia. Depois que começou a vir van pra cá, [há] pouco tempo que veio ônibus. A gente pegava ônibus lá na Vila São José, ia pegar. Olhava as pessoas, ficava todo mundo um com medo do outro, eles com medo da gente e a gente com medo deles.
P/1 - E aqui não tinha árvore?
R - Não, aqui não tinha árvore. A gente que trouxe de lá um pés de planta e foi plantando no quintal. Não era pra levar para o polo porque não era para contaminar a área agrícola, pra não vir contaminação de outros lugares, bactérias para as outras plantas, aí nos danamos a plantar cheiro-verde e tudo, e ia para a feira. Era um corre-corre muito doido.
P/1 - E por que escolheram o nome de Vila Nova Canaã?
R - Foi a empresa que fez. Eles que botaram os nomes das ruas e o nome do bairro, não sei por que. A gente procurou por que eles colocaram o nome de pássaros; a Beth mais a dona Olga falaram que é porque a gente vivia em uma área florestal, tinha muita árvore, por isso que eles colocaram nome de pássaro, porque tinha a ver com a natureza.
P/1 - Canaã, não sabe por que?
R - Não, não sei por que. Agora tem um Canaã que é um abrigo de criança, é um presídio de menor. A gente ficava em dúvida, às vezes, quando a gente via na televisão, a gente ficava meio em dúvida desse nome.
P/1 - Os primeiros dias aqui, os primeiros anos, foram esquisitos?
R - É, esquisito! Por isso que a gente pediu esse posto de polícia, porque tinha essa pracinha que a empresa botou uma porção de brinquedo, de coisas para as crianças brincar, e eles bandalharam tudinho, o pessoal da redondeza. Fumavam maconha, começava com palavrão na praça, [falaram pro] Zé Maria, que morava de frente: “E aí coroa, quer encarar?” (risos) Por causa disso que a gente exigiu que tivesse um pouco de segurança, porque a gente não tinha segurança.
Tinha arraial, aqui era muito lindo no começo. A empresa começou a botar, todo ano a gente botava um arraial, vinha brincadeira. Era o tambor de crioula, era boi, era cacuriá, era uma porção de doidice, brincadeirinha pra se divertir. Com esse último caso que deu, uma cara furou o outro dentro do arraial, ai pronto, foi logo bagunçando, acabando logo o movimento da gente. Foi aí que montaram esse posto policial. Melhorou mais um pouco, mas de primeiro era pânico.
P/1 - E o que vocês demandaram que tivesse aqui na vila?
R - Um posto de polícia, hospital, que tem.
P/1 - E agora tem a Casa de Cultura também.
R - É, tem a Casa de Cultura, mas não tá servindo pra nada ali. Antes não tivesse, antes tivessem me dado a casa para eu morar de que botar, porque não tem nada ali, só tá chamando morcego pra dormir dentro. Porque se fosse uma coisa ali, era pra ter, no meu ponto de vista… Como a gente tem aqui essa sede do tambor, era pra ter um bocado de artesanato, umas coisas pra chamar mais atenção de uma pessoa que fosse visitar, fosse olhar. Tinha que ter coco, balaio, peneira, essas coisas de cultura e artesanato; tinha que ter dança de tambor, de capoeira, de cacuriá, essas coisas assim. Tudo na foto, não tem nada lá. O que esse povo tá querendo?
P/1 - Será que é por causa da pandemia?
R - Mas antes nunca teve. Quando foi a inauguração já era pra ter feito aqueles banner, botava, bonito e tal. Ficava ali pra chamar a atenção das pessoas. A gente vai ali e não olha nada, não tem um desenho, não tem nada. Quer ver coisa bonita é a casa do tambor lá em São Luís; todo o tempo, você chega tá passando na televisão tambor de crioula, bumba meu boi. Tem desenho pra tudo quanto é lado.
P/1 - Com todas essas coisas, o que a senhora acha de terem tido o cuidado de colocar tambor de crioula aqui?
R - O pessoal daqui não dá valor pro que tem na comunidade. Valentim mede é um teatro, depois que chegou aqui botou o teatro e tudo, mas não foi pra frente com desenvolvimento, pra desenvolver, apresentar. Só mesmo quando a empresa chama mas não sai para apresentar em outro lugar. Por que? Porque o pessoal não dá valor a brincadeira que tem na comunidade.
Nós, do tambor de crioula, se não fosse a minha família, que é grande, que tá segurando… Se chamasse alguém da comunidade não apareceria ninguém. A gente faz a festa aqui com o pessoal da Vila São José e do centro, pagando a passagem deles, vai buscar pra eles virem ajudar a gente a fazer festa, mas daqui é difícil, é a coisa mais difícil do mundo, pode crer! Não dão valor. Só dão valor a hora que perdem.
Antes de ter a igreja, eles queriam igreja pra batizar, pra fazer missa. Você acredita que passamos mais de dois anos pelejando pra esse pessoal pra manter a igreja? Quando chega a hora desse Paraíba buscar gente na Pindoba de carro pra trazer, pra vir assistir missa, era só eu, a mulher de Paraíba, Paraíba e a Dona Maria do Coco bem aqui, para assistir à missa, porque a comunidade não vinha. Que comunidade é essa? O padre saía vestido - isso que era engraçado - saía de batina e ia pra beira do campo: “Filho, vamos pra cá, pra igreja, assistir a missa.” Vinha era muito, que vinha.
P/1 - Aqui tem muita igreja evangélica, né?
R - Pois é. O que tem muito, é o que não tinha lá. Por que tá tendo esses evangélicos? É porque tão vindo de outra congregação pra cá. Tem uns pastores que a gente não sabe nem de onde veio. Só o que a gente conhecia [de] evangélico é Ivaldo, Zacarias é só! Dona Inácia, Zacarias com a esposa e Ivaldo com a mulher e os filhos, era só.
P/1 - Agora me conta uma coisa: o que a senhora pensa da relação de vocês com a ENEVA?
R - No meu ponto de vista, eu só não gostei dessa distância do polo agrícola. (risos) Quase me mata só de andar, mas em compensação… E também não gostei do tamanho das casas que eles deram pra gente, que foi muito pequenininha. A cozinha, se entrar um, o outro tem que ficar esperando lá pra passar, poder entrar, porque é muito pequenininha. Foi só isso que eu não aprovei deles, que o espaço ficou muito pequeno. A cozinha, a casa, o quarto… A gente botava a cama, do jeito que botava tinha que ficar, então pra mim… Como a minha casa era grande, se fosse uma coisa que eles pedissem opinião, eu queria que eles fizesse minha casa do tamanho que era lá, me desse o tamanho dos meus quartos grandes, pra eu andar dentro à vontade. Só isso que eu não aprovei. Mas o resto pra mim foi maravilhoso, [me] trataram super bem.
Só não ficaram aqui as pessoas que realmente não queria nada com a vida. Só ficou no Canaã as pessoas que queriam alguma coisa, que queriam algum futuro melhor na frente, mas os que não queriam, foram embora tudinho, meu filho! Um atrás do outro. A maioria dessas casas aqui não tem ninguém, foram tudo embora, venderam em cima da bucha, a empresa entregou [e] eles saíram vendendo por dez mil reais, é assim. Nem moravam lá, só foram pegar a casa. Quando tava pra sair que foram fazer casa.
Teve gente lá do Madureira que eu nunca conheci, uns moradores que chegaram aqui no Canaã e eu: “Quem é aquele?” “Morava lá.” “Onde?” Assim que a gente ficou, todo mundo assustado. As pessoas que realmente moravam, a gente conhece todo mundo que morava lá. As pessoas que moravam lá tão aqui, essas pessoas mais velhas, mas essas pessoas novatas ninguém nem sabe de onde veio, só sabe que é da banda do Anjo da Guarda, Vila nova, não sei mais quem. Assim que foi.
P/1 - E o que a senhora pensa da união dessas pessoas mais velhas que vieram da Vila Madureira, ainda estão unidos?
R - Não. Tem muitos que foram bem unidos, bem como o Zulu, Zé Maria, sempre nos demos bem. Zacarias, a gente se dava bem. Tinha a mãe de Gelza, a Maria do Cabelão, tinha o tio dela, João, Raimundo - sei lá, até me esqueci o nome do tio dela que mora lá pra trás da casa de Gelza, lá no polo. Tinha o Felipão que era meu vizinho, meu parente; não veio, foi embora, vendeu a casa dele ali.
Tem muita gente que a gente tinha um vínculo de amizade, porque a gente trabalhava junto. Eu tinha um cara que botava uma reciclagem pra mim, umas comidas pros bichos, porcos, que vinha de dentro da área da Vale, botava lá em casa. Eu dividia com eles a comida que vinha do restaurante, sobra de restaurante, aí eles botavam lá em casa para os meus bichos. Tinha o local, aí a gente dividia entre eles a comida dos bichos, dos porcos. A gente tem esse vínculo desde lá, essa união se dava muito, conversava. Tinha essa amizade.
P/1 - E continua hoje?
R - É, continua. Só não continua mais porque depois que eu fiquei doente diminuí mais o meu movimento lá do polo, porque eu passei minha área pra Zé Maria. Só vou mais lá pra casa de minha filha, ficar lá sentada. Os mais velhos foram todos morrendo, aí ficou assim, pouca gente.
P/1 - E como é que a senhora vê o futuro da Vila Nova Canaã? Os mais novos tocando isso daqui, o que a senhora acha?
R - A gente fica até preocupado com isso, com esses grandes movimentos que tão tendo agora, negócio de facção, essas besteiras. O vínculo, entrando um por dentro do outro. Graças a Deus que nós, aqui… Até tem usuário, mas não tem a boca do cão, como eu digo logo. (risos) Pra dizer assim: tem um boqueiro ali, tá vendendo droga, isso que a gente tem medo. Por quê? Porque a maioria do pessoal que veio de lá, todo mundo tem responsabilidade. Se tem alguém que mora na comunidade e usa, não vende aqui, ele vai buscar lá fora. Esse que é o nosso medo, de ter essa facção, esse negócio que eles faltam se matar; fica esse desespero, uma coisa muito preocupante.
Peço a Deus que melhore pra esses jovens. Eu tenho esses netos, eu converso muito com meus netos. É uma dor de cabeça, graças a Deus que até agora tá todo mundo bem, porque a gente se preocupa demais com esses jovens. “Meu filho, bora por ali, bora trabalhar.” Porque é menor, botava tudinho aqui e levava pro polo, bora pro polo!
O conselho tutelar... “Que diabo de conselho tutelar, rapaz!” Antes ele estar aqui comigo no meio do mato do que estar na rua, que eu não sei o que ele tá fazendo. Esse conselho nunca foi atrás de mim. Eu queria dizer: “Seu conselho tutelar, ele tá junto comigo, tô vendo o que ele ta fazendo. A hora que eu sair ele sai junto. Ele em casa, o que que ele vai fazer?” “Ele vai pra escola.” Sei lá se ele vai pra escola. Eu, passando o dia todinho fora de casa… Aqui não, bora pra casa, tá na hora do almoço. Faz o come, come, aí vai pra escola, tá pertinho. Deixar ai vagabundando, sabe nem o que faz, o que acontece.
Graças a Deus, ninguém nunca me incomodou, Leandra que dizia assim: “Isabel, cuidado pro conselho tutelar não te agarrar, tu com esses pequenos, botando esses meninos pra trabalhar.” Eu digo: “Olha, conselho tutelar não paga conta de energia lá em casa, conselho tutelar não dá comida para os meus pequenos, quem dá sou eu. Eles tão junto comigo, eu tô vendo o que eles tão fazendo, meu filho!”
“Ah, porque é serviço escravo.” Eu digo: “Escravo é eles saírem de perto de mim e eu não saber o que tá acontecendo, não eles junto. Eu tô olhando aqui. Tava era certo botar nego pra trabalhar, e boto!”
P/1 - Dona Isabel, tem alguma pergunta que a senhora gostaria que eu fizesse e eu não fiz, ou quer contar alguma história antes da gente terminar? Alguma mensagem, alguma coisa?
R - Não. O que eu tenho, devo muito a ENEVA, porque como eles disseram: “Dona Isabel, a gente não pode dar tudo pra você. A única ajuda que a gente pode dar pra você é registrar o grupo de vocês, pra vocês poderem ter alguma coisa pelo menos para se vestir.” Então uma coisa que eu agradeço a eles, o chefe lá da ENEVA, a Beth…Todo mundo eu agradeço muito pela ajuda que já me deram, de transporte. “Beth, eu tô precisando de um transporte pra ir pra tal lugar. “O que tiver no meu alcance a gente faz, da maneira possível.” Então eu agradeço a eles dessa parte que a gente precisa e eles nunca disseram que não, sempre eles me ajudam.
A hora que eles precisarem de mim pra qualquer evento, pra qualquer coisa, eles têm que avisar com antecedência pra gente poder se organizar, não em cima da hora. (risos) Porque a gente tem que juntar o pessoal pra poder fazer bonito o que eles quiserem. A gente agradece muito, é só isso que eu tenho pra agradecer a eles e a qualquer pessoa que faz as coisas pela gente, da atenção.
P/1 - Como foi contar um pouquinho da sua história?
R - Foi legal, eu gostei. Não saiu tudo porque minha história é uma doidice, pode crer! É um sofrimento muito grande e tem hora que eu não gosto nem de relembrar o meu sofrimento, como eu sofri. Tem muitas coisas que dá até vontade de chorar. Eu choro por dentro, eu choro por fora não, de lembrar o sofrimento pra criar os meus filhos, pode acreditar. Principalmente esses três filhos, foi muito dolorido.
Canso de dizer de vez em quando pra esses meus netos: “Meus filhos, hoje vocês têm de um tudo.” Os que mais sofreram foram esses três filhos grandes: o Biné, a Edileuza e a Benta, que é a Juliete. Com a doença do pai deles eu passei muita dificuldade financeira, sem ter o que comer.
Às vezes eu conto para os pequenos, eles dizem: “Ai, vovó, eu não acredito!” “É meu filho, isso aqui aconteceu!” Fazia o angu da farinha seca e botava a paia da pindoba pra fazer a isca, porque eu não tinha pedaço pra botar de comer para os meus filhos. Quando eu ia metendo na boca, puxava a pindoba e botava o angu na boca dos meus filhos pra comer. Pegava a folha da cebola, cortava e fazia o angu, botava a folha da cebola em cima da colher pra botar dentro da boca deles, pra fazer de pedaço. Fazia angu purinho.
Eles diziam que essa minha filha Edileuza… “Rapaz, essa pequena é muito boa de boca. Pode fazer angu de casca de coco que essa menina come.”(risos)
Foi uma coisa muito sofrida, pode acreditar. Eu soquei arroz parida, eu pesquei parida pra dar [de] comer pra esses filhos, esses três filhos sofreram. São os filhos que menos me dão preocupação, foram as pessoas mais sofridas. Os que nasceram no berço de ouro são os mais atentados, pode acreditar. Eu largava de comer para dar para os meus filhos, mingau de farinha seca.
P/1 - Mas eu digo que mesmo assim a senhora sorri contando.
R - É, pois é. (risos) Dizem: “Rapaz, não sei como tu é tão engraçada desse jeito!” Eu não tenho ódio dentro de mim, tenho alegria dentro de mim. Com todo o sofrimento, tanta tristeza que eu já passei, eu me sinto uma pessoa feliz dentro de mim. Meu modo de falar, eu só vivo sorrindo, e tudo meu é sorrindo, mas na hora da ________ nego diz: “Sai de perto porque vira um bicho.”
Nego diz: “Rapaz, tu é muito alegre, parece que não se zanga.” Eu sou assim mesmo, com tanta tristeza, mas eu tenho espírito sorridente, alegre.
P/1 - Muito obrigada pelo seu tempo, Dona Isabel.
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