Histórias Que Reciclam
Depoimento de Elisandro Carlos Rodrigues
Entrevistado por Lucas Torigoe
São Paulo, 23 de novembro de 2015
Realização Museu da Pessoa
HQR_HV06_Elisandro Carlos Rodrigues
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Sandro, você fala pra mim o seu nome inteiro, local e data de nascimento?
R – Elisandro Carlos Rodrigues. Nasci em Marília em 18 de março de 1975.
P/1 – E o seu pai, qual é o nome inteiro dele?
R – Augustinho Carlos Rodrigues.
P/1 – Ele nasceu onde e data?
R – Na verdade a data exata eu não sei. E a minha mãe também nasceu em São Paulo em 17 de dezembro de 1949.
P/1 – Qual é o nome da sua mãe?
R – Adélia Zafred Rodrigues.
P/1 – E a família do seu pai...
(cortes entre 0:01:15 e 0:02:10)
R – ... ela ficou meio preta lá, né, então eles tiveram que sair de lá e o destino deles foi o Brasil. Eles chegaram aqui, foram trabalhar nas roças, constituíram família e nós estamos aqui hoje graças a essa migração.
P/1 – Então a família da sua mãe é austríaca.
R – Isso.
P/1 – E eles eram judeus ou não?
R – Aí eu já não sei te dizer, mas eu acho que eles não eram judeus, não. Eles fugiram da guerra porque eu acredito que a situação naquela época deve ter ficado ruim pra todo mundo eu acho, não só pros judeus.
P/1 – E eles vieram pra cá, eles contaram para você como foi a viagem, quem que veio?
R – Não, contaram que foi uma parte da família de lá que veio e começaram aqui uma nova vida. Eu também não tenho tanta informação, infelizmente, desse fato.
P/1 – Mas a sua mãe nasceu aqui.
R – Minha mãe nasceu aqui, sim. Minha mãe nasceu no interior, ela conta até hoje muitas histórias do interior, da vida na roça, da vida no campo, uma coisa totalmente diferente da nossa realidade.
P/1 – Que histórias?
R – Ah, histórias que eles cultivavam um pouco da vida difícil que eles tiveram também, porque o pai dela também não era uma pessoa tão fácil de lidar. Ela também perdeu a mãe dela cedo, então teve uma vida um pouco difícil nesse aspecto.
P/1 – Eles trabalhavam na roça?
R – Isso.
P/1 – Eles faziam o quê, plantavam?
R – É, plantavam e vendiam. Plantavam várias coisas, plantavam algodão, café, amendoim. Arroz também. A minha mãe tem uma vivência profunda com a terra, com a coisa da natureza, com coisa de produzir.
P/1 – O seu pai, qual é a história da família dele?
R – Do meu pai eu sei pouco porque assim, eu nasci no interior, fiquei pouco tempo no interior, já vim pequeno pra São Paulo, acho que eu tinha uns três, quatro anos e quando eu tinha cinco anos o meu pai faleceu de acidente de moto. Daí a gente mudou pra Pirituba, pra zona oeste e a gente cresceu um pouco isolado de familiares, porque os familiares estavam no interior, aqui em São Paulo a gente não tinha muitos familiares, então a gente fico um pouco só nesse aspecto. Eu tenho vários parentes que estão no interior, eu vejo pouco, temos pouco contato. Agora com a coisa das redes sociais e tal a gente até consegue ver um pouquinho mais, estar de certa maneira mais próximo. Mas durante um bom tempo a gente praticamente ia lá uma vez por ano, então ficava mais isolado da família, sempre cresceu, sempre viveu meio que só.
P/1 – E você sabe como seus pais se conheceram?
R – Eles se conheceram lá no interior, acho que naquela coisa de jovem, de ir pros bailes, pras festas, se conheceram dentro desse ambiente, dessa realidade.
P/1 – E eles se casaram e tiveram você já?
R – A bem da verdade o meu avô não queria que minha mãe namorasse meu pai. Então, o que aconteceu? A minha mãe fugiu com o meu pai pra São Paulo. Aí constituiu família. Depois ficou tudo bem, mas no início foi meio polêmico a coisa.
P/1 – E eles já te falaram mais ou menos como foi essa fuga, como é que eles pensaram?
R – Ah, eles resolveram de uma hora pra outra, eram jovens também, tinham 20 e poucos anos. Naquele tempo as coisas eram um pouco diferentes, então... E meu avô era muito autoritário nesse aspecto.
P/1 – O pai da sua mãe.
R – O pai da minha mãe. Então eles resolveram fugir. Aí fugiram, vieram pra São Paulo, aí primeiro nasceu a minha irmã. Depois que nasceu a minha irmã acho que as coisas entre eles voltaram ao normal, vamos dizer assim, que o nascimento da minha irmã amoleceu o coração do meu avô, entendeu? Mas eu particularmente tenho boas lembranças do meu avô. Era um avô bem dócil, eu gostava dele.
P/1 – Tratava você bem.
R – Tratava eu bem, sim. Nos tratava bem.
P/1 – Vocês viam muito ele?
R – Sim. Eu tenho bastante lembrança dele. Ele morreu quando eu tinha 15 anos, mas eu tenho bastante lembrança dele. Todas as vezes que eu ia pro interior ele sempre estava lá com a gente, brincando e ele era agradável, ele era uma pessoa boa. Apesar dos “defeitos” ele era uma pessoa boa.
P/1 – E o seu pai e a sua mãe faziam o quê em São Paulo, eles trabalhavam do quê?
R – O meu pai trabalhava na Santa Marina e a minha mãe era do lar mesmo, não trabalhava. Depois que meu pai faleceu que minha mãe veio a trabalhar porque a minha mãe acabou não casando de novo, ficou sozinha e decidiu cuidar dos filhos. Eu, minha irmã e meu irmão, que minha mãe estava grávida quando ele faleceu, então meu irmão nem chegou a conhecer o meu pai.
P/1 – O que é a Santa Marina?
R – Santa Marina é uma empresa de vidros, que trabalha muito com essa parte de vidros, de louças. Minha mãe conta que ele trabalhava nos fornos, era um trabalho bem árduo, bem duro.
P/1 – E você se lembra como foi o dia que você recebeu a notícia?
R – Pior que eu lembro, viu? Eu tinha cinco anos de idade. Eu tenho algumas lembranças de bastante novo. Eu lembro de eu, por exemplo, andando na moto do meu pai, que ele levava a gente pra passear, tudo, essas lembranças eu tenho. E o dia da morte dele eu lembro, eu tenho algumas imagens na cabeça. Eu lembro da minha mãe recebendo a notícia, por exemplo. Algumas coisas não têm como, o cérebro registra essas coisas que vêm carregada de emoção, não tem jeito.
P/1 – E como é que aconteceu?
R – Ele estava indo trabalhar e ele teve um acidente com um caminhão. Na verdade foi fatal o acidente e ele morreu com 32 anos, era bem novo. E aí a gente teve que seguir a nossa vida.
P/1 – Vocês moravam onde nessa época?
R – A gente morava em Perus, morava na chácara, no meio do mato. Era bom, eu gostava. Só que quando meu pai morreu não tinha condições da gente ficar lá sozinho, então a minha mãe recebeu uma indenização, não sei bem se essa é bem a palavra, ou seguro de vida, não sei, referente à morte do meu pai e ela pegou o dinheiro e comprou uma casa em Pirituba. E nós fomos morar nessa casa. Moramos praticamente a vida toda lá.
P/1 – Antes de chegar em Pirituba, me diz como é que era essa chácara.
R – As lembranças que eu tenho é que era no meio do mato e que a gente tinha que subir o morro pra chegar lá, mas lembro muito de eu brincando no meio do mato. Eu lembro que tinha uns pés de bananeira. Tinha uma balança grande que a gente brincava também, então as recordações que eu tenho são essas.
P/1 – Brincar na rua, no mato.
R – Era mais no mato mesmo. Na rua a gente não ia não porque ali não tinha rua lá perto. Mas essas são as recordações que eu tenho de lá, inclusive nessa época eu lembro da música mais antiga que eu conheço, que é aquela do Bob Marley: “Não chores mais”. Eu não sei cantar em inglês, mas essa foi a minha primeira recordação de música, foi nessa época aí também.
P/1 – Tocou onde isso?
R – Aonde tocou eu não lembro, mas eu devo ter ouvido em alguma rádio, alguma coisa assim também, que era raro naquela época. Mas é a música mais antiga que eu conheço desse tempo, acho que foi a primeira.
P/1 – Por que você acha que você se lembra disso?
R – Ah, eu não sei. Eu acho que essa música é forte, ela tem uma coisa forte, uma alma, essa música tem um sentimento forte. Eu não ligo isso necessariamente com fatos, mas é mais uma recordação dessa época, brincando no meio do mato, andando de moto com meu pai, descendo os morros lá dentro de uma caixa de madeira e por aí vai.
P/1 – E você andava muito com a sua irmã na outra casa?
R – Ah sim, acho que a minha infância toda desse tempo pra frente sempre foi com a minha irmã, com meu irmão, os amigos lá de Pirituba também que a gente cresceu tudo junto, foi assim.
P/1 – E como era essa chácara? Tinha quintal?
R – Era uma casa no meio do mato. Não tinha quintal, não tinha nada. Era casa e você saía era mato, não tinha outras casas perto. E a lembrança que eu tenho também é vaga, eu não lembro necessariamente de: “Ah, tinha uma ruazinha aqui, tinha outra ali”, até mesmo porque eu não voltei mais lá. Hoje em dia nem sei como é que está lá. Tenho vagas lembranças desse espaço. Sei que eu acabei saindo de lá com cinco anos. Depois quando eu cheguei em Pirituba que aí começa lembranças mais concretas na minha mente, entendeu?
P/1 – E vocês se mudaram. Onde é que ficava essa casa em Pirituba? Como é que era?
R – Essa casa fica num bairro chamado Vila Nossa Senhora do Retiro, que é um bairro da periferia. Era uma casa simples, mas era uma casa boa. A gente morou durante muito tempo lá, em 92 a gente praticamente derrubou a casa e fez outra. Eu fiquei lá até, eu fui sair de lá acho que faz uns sete anos mais ou menos que eu acabei indo morar no Belenzinho, que é onde é a cooperativa hoje. Mas cresci em Pirituba.
P/1 – E como era Pirituba quando você cresceu?
PAUSA
R – Pirituba pra mim foi onde eu passei a maior parte da minha vida na verdade, onde eu me formei, onde eu cresci. Eu saí pouco de lá. Eu fui sair realmente, de fato, de Pirituba depois que a gente fundou a cooperativa, que a cooperativa a gente fundo ali no Belém. Mas a minha infância, a minha juventude, o meu início de fase adulta passei todo em Pirituba mesmo.
P/1 – Na mesma rua?
R – Na mesma rua. Sempre naquela região. Eu conhecia pouco do centro, de outros lugares. Até hoje eu conheço pouco. Eu comecei a conhecer um pouco mais depois que eu comecei a dirigir, né, porque aí você consegue acessar mais, mas eu nunca fui muito de sair, conhecer São Paulo inteiro, por exemplo.
P/1 – E qual é a rua que você morava?
R – Eu morava na rua Hermínio Fidelis, número 158. Na verdade eu ainda digo que eu moro lá porque eu tenho duas casas, eu tenho essa casa no Belém que eu moro e lá também eu construí uma casa. Lá em cima da nossa casa eu fiz uma casa quando eu tive a minha primeira filha. Só que depois a gente acabou, eu fico mais na Mooca, mas costumo dizer que eu ainda moro lá também. Então eu vou lá, passo uns finais de semana. Tem o estúdio lá também que eu toco, entendeu, então Pirituba pra mim ainda é muito, eu vejo como a minha casa mesmo, de verdade. E no Belém na verdade eu moro lá numa casa alugada mas mais em razão do trabalho, porque nada melhor do que você morar perto do trabalho, veio, não tem nem comparação.
P/1 – E me diz como é que era Pirituba na sua infância.
R – Pirituba é assim, vamos lá. Então as primeiras recordações que eu tenho é indo pra escola, primário, uma escola lá perto. Uma escola que hoje eu vejo assim, nossa, foi uma escola tão precária, sabe? Uma escola tão, como a maioria das escolas da periferia, são judiadas. Mas eu tive a sorte de ter uma professora boa, não sei se é a palavra certa, mas ela era rígida, disciplinada, então isso me ajudou na minha formação. O nome dela era Laura Elisa, inclusive. Uma professora que não tem como não lembrar dela e não tem como não ser grato a tudo que ela contribuiu pra minha formação. Eu estudei desde a primeira até a quarta série com ela, então foi um período longo. E quando eu fui pra escola, olha como é engraçado, eu fui parar numa classe. Eu não sei se minha mãe me matriculou tarde, eu não sei o que aconteceu, eu só sei que eu fui parar numa classe especial que eles chamavam, que era a classe que só tinha louco, no bom sentido, claro. Eu fiquei nessa classe um tempo, tal, aí acho que eles viram que eu era “normal” (risos), aí eles me passaram pra classe dessa professora, que era a Laura Elisa. Mas a minha chegada na escola é marcada por essa fase de chegar numa classe, eu lembro que era um pouco conturbado, acho que pra professor era difícil lidar com aquelas pessoas especiais porque você tem que ter toda uma habilidade pra você tratar com pessoas especiais, seja qual for a dificuldade que a pessoa tem, se é física, mental, psicológica. Então era uma classe meio conturbada e depois eu fui para uma classe mais tranquila. E todas as mães queriam que os filhos estudassem com essa Laura Elisa, que era a professora que tinha uma fama muito... e naquele tempo minha mãe ainda chegava pra professora e falava assim: “Se aprontar você pode bater, viu?” (risos) Naquele tempo a coisa era diferente, muito diferente de hoje, ó como eu estou ficando velho já. E era assim. Mas eu sou muito grato a essa professora, ela me ensinou bastante coisa.
P/1 – Como ela era?
R – Ela tinha uma fisionomia de uma pessoa de classe, sabe? Ela tinha uma elegância, uma pessoa elegante, falava bem, tinha uma postura bonita. Então essa é a lembrança que eu tenho dela, de uma mulher com muita elegância, muita classe e muita educação também, que nos ensinou muito bem.
P/1 – Como é que era a escola?
R – Ah, a escola eu acho que assim, nesse local que eu moro é periferia, é um local mais carente, eu posso dizer. Então tinha todo tipo de gente, só que pra mim era normal porque eu não conhecia outra coisa, você não conhece outra coisa então sua referência é aquela. Mas hoje, depois que passa muito tempo, aí você vê que, nossa meu, a gente passou por um teste, uma prova dura e a gente nem sabia. E ali a gente já tinha que se defender, já tinha que saber lidar com aquela situação. Eu também não tinha irmão mais velho, não tinha nada, tive que me virar também. Mas foi legal. Estudei nessa escola, aí da quinta a oitava série também continuei nessa escola. Quando eu tinha 14 anos eu fui fazer Senai. Vou voltar um pouquinho antes a fita. Com 11, 12 anos eu comecei a trabalhar, totalmente inadmissível nos dias de hoje, mas eu já comecei a fazer uns bicos, pegava umas coisinhas pra montar, pra ganhar um dinheiro. Eu tinha consciência que minha mãe era sozinha, eu tinha que fazer alguma coisa, já tinha uma certa consciência. Eu lembro que eu fui trabalhar numa tapeçaria como assistente. Trabalhei um pouco lá, isso com uns 12 anos, conheci algumas ferramentas e tal. Aí minha mãe praticamente me obrigou a fazer Senai, era uma coisa que eu nem conhecia: “Não, você vai fazer Senai, todo mundo fala que é bom”. Tinha que fazer uma prova e tal, até hoje tem que fazer uma prova, você não entra lá só porque você quer. Eu fui, fiz a prova, e passei e comecei a fazer Senai porque essa coisa de escola também, eu sempre faltei muito em escola, era meio rebelde nesse sentido, mas quando eu ia eu gostava de estudar, eu gostava de aprender, tinha facilidade de aprender. Então no Senai foi assim também. Quando eu comecei a fazer Senai foi numa fase também que eu comecei a andar de skate, uns 13 anos ali, mais ou menos, em 1989. Skate era uma coisa, nossa, de outro mundo. E os caras passando de skate: “Eu quero fazer aquilo lá, que legal!”. E todo mundo andava, era coisa da periferia, então era a diversão. Isso é uma coisa que eu tenho certeza que pegou todo mundo daquela época, com certeza entrou nessa onda. Aí eu comecei a andar de skate nessa época também, fazer Senai, tal. E Senai era o dia inteiro e eu queria andar de skate (risos). Nessa época do Senai eu faltava muito também, eu saía pra ir pro Senai mas acabava indo andar de skate. Mas o Senai me deu uma base muito forte. Como lá no Senai eles conheciam a minha história, sabiam que eu não tinha pai, tal tal tal, então vamos dizer que eles ponderavam. Então eles me deram uma chance de terminar mesmo eu não sendo um bom aluno no aspecto falta. Então eles deixaram eu fazer o curso, deixaram eu continuar, me davam vários conselhos, tive ótimos professores também. E eu tive muita base, eu aprendi muita coisa lá no Senai, eu fiz Mecânica Geral, que é tornearia e ajustagem, então eu conheci muita ferramenta, conheci muita técnica, medidas. E muita conta, tinha muita, muita conta e não podia usar calculadora. E eu sempre tive facilidade com Matemática, então eu me dei bem lá nesse aspecto, por isso que eu também consegui terminar, porque quando eu estava lá eu estudava; eu faltava, faltava, faltava, mas só que eu era o primeiro a terminar as apostilas de Matemática, por exemplo. E quando eu estava na oficina fazendo as peças também eu gostava, me dava bem ali com aquela coisa de fazer, de construir. Também acho que vem um pouco do fato de ter trabalhado lá como assistente de tapeçaria. Quando eu comecei a andar de skate eu também comecei a montar rampas, eu fazia os obstáculos, a gente construía: juntava um monte de molecada lá, serrote, martelo, os pregos velhos que a gente procurava lá e montava no improviso. Então essa coisa de construir já começou daí já, entendeu? Aí fiz Senai, fiz dois anos, terminei graças a Deus foi tudo bem. Não fui trabalhar nesse ramo, acabei não indo. Porque eu estava em outra pegada, em outra fase. Comecei também a tocar guitarra nessa época, a curtir um rock and roll, aí você junta tudo isso e pronto (risos). Eu fiquei um tempo assim, dos 16 até os 19 anos, fiquei naquela fase meio, aquela coisa de pré-alistamento militar que você não consegue trabalho também, tal, então eu fiquei um bom tempo nessa fase aí. Não prestei serviço militar, fui dispensado, que era uma coisa que até eu poderia ter feito se eu fosse voluntário, mas eu acabei não sendo, mas é uma coisa que o serviço militar é uma coisa que talvez poderia ter sido interessante pra mim. Mesmo eu tendo um pouco dessa rebeldia a coisa da disciplina eu admiro, entendeu? Hoje em dia mesmo eu gosto de ver documentários de assuntos militares, eu acho interessante não a violência que é cometida nas guerras e tal, mas a parte tecnológica, parte de estratégia, essa outra visão eu acho interessante.
P/1 – Agora voltando um pouquinho, em Pirituba você falou que andava de skate, né? Mas, além disso, o que as pessoas em Pirituba faziam para se divertir, onde elas iam, o que tinha.
R – Olha, em Pirituba na juventude eu passei boa parte andando de skate que a gente procurava lugares onde tinha uma turma andando e ia. E a gente também ia muito pra São Bernardo do Campo, que tinha uma pista, tem até hoje lá, uma pista gigante. Então a gente pegava o trem, que antigamente tinha um trem que ia direto pra Paranapiacaba e a nossa diversão de final de semana era andar de skate em São Bernardo do Campo, por exemplo. Isso foi uma coisa. E outras coisas que a gente fazia ali era, logo com 17, 18 anos já montei banda, a gente tocava lá nos barzinhos também, ensaiava, a gente cresceu meio que nessa coisa de bandas, da cultura das bandas de rock, tal.
P/1 – Mas eu digo em Pirituba tinha um ponto? Não só do skate.
R – Perto da onde eu morava tem um lugar que eu acho que ali daquela região é muito importante que é o parque, o Parque da Lagoa, acho que até o pessoal do rap, o RZO, fala bastante desse parque. Porque naquele perímetro ali, num grande perímetro, posso dizer que num raio de uns dez quilômetros pelo menos ali, o que o pessoal tinha de quadra de jogar futebol, de jogar basquete, de vez em quando ter alguns eventos é nesse parque. Então a gente sempre estava ali nesse parque. Era um lugar legal. O shopping de Pirituba também era um local de encontro onde se encontravam, onde tinha alguns eventos, campeonato de skate, as bandas tocavam lá também, então são lugares que marcaram pra gente.
P/1 – E vocês pegavam skate, vocês andavam em turma e iam pra São Bernardo.
R – É, andava em turma. Tinha um grupo, aí um grupo conhecia outro grupo ali, tal, então a gente sempre estava andando junto, conhecendo lugares novos, pistas novas. Eu mesmo quebrei o braço duas vezes andando de skate. E assim, eu quebrei o braço e eu fiquei com medo de contar pra minha mãe, dela não deixar eu andar de skate mais. Eu quebrei o braço, fiquei em casa, fiquei o dia inteiro deitado e minha mãe viu que tava alguma coisa estranha. Ela foi olhar e meu braço inchado. Levou no médico, braço quebrado. Tudo bem, tal, sarou. Não passou dois, três meses, fui andar de skate de novo, quebrei o pulso. Aí fiquei mais três dias sem falar pra minha mãe que estava com o pulso quebrado (risos). Aí vai no médico de novo. E depois parou de quebrar, eu aprendi um pouco a cair, que também faz parte, você tem que aprender também a cair. Aí parou de quebrar um pouco, continuei andando. Mas o skate também é uma coisa interessante que eu acho, não sei se vocês andam, se andaram, mas o interessante do skate é a condição mental, entendeu? Quando você anda de skate você tem que estar totalmente concentrado e certo do que você está fazendo. Porque se você não estiver concentrado, se você não estiver a convicção, certeza, você vai se esborrachar, entendeu? Então o skate dá essa condição de você se concentrar, ter seu objetivo e aprender a fazer aquilo. E outra, é um desafio também, o skate tem o fator desafio também, você aprende a fazer uma manobra hoje, aí aprende, não erra mais e você já quer fazer outra coisa, inventar uma outra coisa, então isso é interessante também. Fora que o skate dá uma base física boa também, ele exige bastante do corpo, então isso foi bom.
P/1 – Vocês tinham ídolos no skate?
R – Ah, tinha, tinha. No skate, nossa, teve vários, posso te falar vários. Começar pelos brasileiros, não vou começar pelos gringos, não. Brasileiro tinha o Fernandinho Batman, o Rui Moleque, tinha o Ueda que veio depois também. Tinha o Sérgio Negão, o Trom também, o Thronn é lenda também. Tinha um programa, Grito da Rua, que nossa, a gente esperava o sábado naquela televisão ruim que não pegava direito pra assistir o programa que falava do grito da rua, mostrava os caras andando lá no Ibirapuera, nem sabia onde era o Ibirapuera. Então foi legal. E aí tinha os ídolos internacionais que era o Hosoi, o Christian Hosoi, o Tony Hawk, Caballera, tinha vários aí. Então a gente vivia conectado com esse pessoal. Naquele tempo mesmo os skatistas curtiam mais rock mesmo, era uma coisa mais punk também, Dead Kennedys. Os primeiros sons que eu lembro de rock foi Garotos Podres, uma fita cassete que um amigo meu tinha e Dead Kennedys também. Depois veio várias bandas, um monte de banda, você vai escutando um pouco daqui, um pouco dali. Naquele tempo era muito separado as coisas, ou você era punk, ou você era headbanger, ou você era não sei mais o quê, um não misturava com o outro.
P/1 – Dava briga?
R – Dava, dava briga. Punk com headbanger, careca também. Os Carecas do ABC que era uma coisa mais nacionalista, uma coisa mais radical também, não sei se existe ainda, mas eram grupos bem separados. A Galeria do Rock era muito... Os headbangers também eram muito fechados, os caras eram muito radicais também. Eu também fiz parte, eu fui também, então eu sei como era a coisa. E depois, eu acho que depois da década de 90, 92, pessoal de Seatle, as bandas, tudo, acho que o pessoal começou a misturar influências, o som mesmo começou a mudar. Porque antes não tinha, o som ou era punk ou era headbanger. Aí eu acho que vieram várias bandas e começou, tipo Faith No More, Red Hot, vou falar as mais conhecidas. O próprio Rage Against the Machine, que chegou misturando o som, fazendo umas coisas loucas que não existia, então acho que isso meio que dissolveu essas etnias, essas turmas aí. Hoje você vê que é tudo mais unificado, a coisa não é tão radical como era antes. Então a própria evolução da Música fez isso acontecer, que eu acho interessante, acho bem mais interessante. E eu vim dessa coisa, a Música pra mim eu gostava da mistura, eu gostava da coisa nova. A gente mesmo na nossa banda que a gente tinha a gente queria fazer coisa diferente, a gente queria fazer coisa nova, que ninguém fazia, a gente queria inventar, entendeu? Eu mesmo com banda assim, pouquíssimas músicas que eu tocava que era cover, que era música de outras bandas, a gente gostava era de criar, de compor. Então eu venho nisso desde 93, 94. As aparelhagens tudo podre (risos), as guitarras velhas, os amplificadorzinhos velhos, umas coisas bem toscas mesmo. E depois que a gente vai aprendendo, vai vendo como é que é.
P/1 – Qual é o nome da banda?
R – Já tive várias bandas, várias. A primeira, por exemplo, pra você ter ideia, que era 90 e pouco, aquela fase do trash ainda, que a gente cantava em inglês, a primeirinha mesmo chamava Spy Death (risos). Não tenho nada gravado daquela época e eram umas coisas bem, posso até falar que era engraçada hoje em dia. Depois eu tive outra banda que chama Chemical War, também era pro trash, cantava em inglês. Aí o Chemical War mudou o nome, virou Salem’s Lot, já era uma coisa mais misturada, aí veio misturando mais, aí começou a cantar em português também, o Salem’s Lot. Aí acabou o Salem’s Lot em 2000 mais ou menos, aí eu montei uma outra banda que chama Cabeça Ativa. A Cabeça Ativa também foi bacana, a gente teve uma repercussão bacana, mas aí o vocalista teve que mudar pro interior e a gente parou. De lá pra cá eu entrei em outros projetos, mas nada muito profundo, até mesmo porque o trabalho que eu desenvolvo hoje na cooperativa toma muito tempo. Pra você ter banda, ir pra frente, você tem que dedicar, você tem que correr atrás, tem que estudar, você tem que investir em equipamento, em composições, você tem que dedicar horas, não tem jeito. Mas a Música é uma coisa que eu tenho bastante interesse, sabe? Eu gostaria muito de mudar o meu estilo de vida, vamos dizer assim, mudar um pouco o estilo de vida e continuar a trabalhar com Artes Visuais, com Artes Plásticas que é uma coisa natural pra mim, não é uma coisa assim: “Ah, o trabalho é um trabalho”. Não é, pra mim é uma necessidade, é uma coisa que eu tenho vontade: “Po, eu tive uma ideia aqui, eu vi aqueles negócios ali e vou fazer”, mais ou menos assim, entendeu? E a Música também, a Música, poxa, é uma necessidade que você sente de tocar também, entendeu? Tem coisas que são tão profundas dentro de você que se você não faz você sente falta. Eu não digo necessidades básicas, tipo comer, se você não come você vai ficar com fome, tal, mas tem coisas que são da alma, que eu digo que são da alma, são humanas que você tem necessidade. Então pra mim as duas coisas que eu tenho necessidade é Música e a Arte também, essa coisa de fazer, entendeu? E essa coisa de fazer pra mim aconteceu mais ou menos assim, depois dos 20 anos eu nunca tive nenhum emprego bom, sabe? Eu não tive uma profissão que eu possa falar: “Porra, eu tive uma profissão, tive um trabalho bom”. Eu não tive, é um trabalho ou outro. E ficava um tempo em um e saía, aí ficava desempregado, aí esperava procurar outro. E nesse intervalo eu sempre inventava alguma coisa pra fazer, sabe? Não conseguia muito ficar parado. Eu comecei a fazer, construir escultura dessas coisas. Aí foi uma coisa que veio naturalmente foi indo.
P/1 – Eu queria voltar um pouco, perguntar onde você tocou? Onde a Música te levou? Em Pirituba, São Bernardo?
R – Em Pirituba a gente tocou na Feira de Pirituba, a gente gravou alguns CDs coletânea lá, a gente fez show em um monte de lugar. Aqui na Vila Madalena mesmo também a gente tocou. Não sei se foi 2004 ou 2005 a gente já como Cabeça Ativa se inscreveu num Festival de Música da Secretaria do Estado da Cultura. E a gente se inscreveu na categoria rock, sem pretensão nenhuma, entendeu? Porque a gente já tinha participado de outros festivais que era até festivais pagos e tal, não sei o que e nunca deu em nada, a gente nunca teve nada assim. E como esse era da Secretaria a gente achou interessante: “Ah, vamos lá”, não sei se tinha que pagar alguma coisa, não lembro, mas a gente foi. E era uma música só que concorria, então a gente escolhia uma música lá, se inscreveu e a gente chegava no dia das audições várias bandas lá, cada uma tocava uma música só e a gente foi passando de etapa, então a gente foi em uma, passou: “Ah, vocês estão pra outra”, aí íamos na outra etapa. E foi, foi, foi, até que a gente conseguiu chegar na final. Foi lá no Ginásio do Ibirapuera. E a gente também, sabe, “Vamos lá” “Vamos, mas beleza, se der, deu, se não der também” (risos). A gente tocou e a gente acabou ganhando esse festival, foi bem legal pra nós, que a gente não esperava. Aí a gente fez vários shows, a gente gravou um videoclipe de uma música que chama “Catador de Papelão”, inclusive, que foi de um aluno meu que escreveu a letra, um aluno meu ex-presidiário, tal, não sei o quê. Foi uma fase legal, a gente tocou bastante. Só que aí foi aquilo que aconteceu, que o vocalista, infelizmente, o destino, perdeu a mãe dele, a mãe dele morreu atropelada, uma morte inesperada, então desestabilizou a família. A família dele acabou mudando lá pro Paraná, ele ficou aqui, então ele não estava bem aqui, então a banda.
(Corte em 42:28. Repete a partir de 0:14:52 até 0:42:28 em 1:10:05)
P/1 – Pode continuar, você estava falando do vocalista.
R – Aí aconteceu isso, como o cara estava desestabilizado ele acabou mudando pra junto do pai dele e da irmã dele que foram lá pro Paraná e a gente ficou sem vocalista. E a gente não quis ir atrás de outro. E foi nessa fase que eu também estava iniciando a cooperativa. E a cooperativa é muita responsabilidade, é muito trabalho, sabe? Eu tinha que me dedicar muito lá, então meio que acabou parando um pouco pra mim essa coisa da banda. Eu toquei em outras bandas e tal, como toco até hoje, mas de uma maneira com menos dedicação, vamos dizer assim.
P/1 – Antes de entrar na parte da cooperativa eu queria te perguntar se você se lembra quando você era criança ou adolescente de como era feita a coleta de lixo, como era a reciclagem? Tinha essa questão na escola ou em casa, na TV, era discutido?
R – Não, essa questão de coleta seletiva na minha infância não existiu. O que existia na verdade, o que eu lembro é apenas uma coisa que se chama ferro velho. É a única coisa que tinha de reciclagem, não era nem de coleta seletiva, era o único ponto que faziam reciclagem. E eu lembro que minha mãe falava: “Essa sacolinha da feira é feita de lixo, eles pegam lixo e transformam em sacolinha”. Eu não entendia muito bem isso: “Mas como fazem isso?”, a única referência de infância que eu tenho era essa. E eu lembro que uma das primeiras vezes, eu não sei quantos anos eu tinha, uma das primeiras vezes que eu consegui ganhar um dinheiro foi porque eu juntei um pouco de cobre, comecei a juntar, juntar, fui lá e vendi no ferro velho. Eu lembro que no tempo não era muito dinheiro, mas o que eu fiz foi passar no açougue e comprar um pouco de carne pra levar pra carne, de mistura, de frango, sei lá o que era (risos). E provavelmente o que sobrou do dinheiro eu usava pra empinar pipa, porque pipa também era a minha paixão na infância, sabe? Quando eu era criança é uma coisa que eu gostava mesmo, que era de empinar pipa. E de fazer, né? Tem a coisa de fazer as pipas e tal. Então foi uma coisa bem marcante mesmo, sabe?
P/1 – Como é que era, tinha muita pipa?
R – Muita pipa, muita.
P/1 – (não compreensível)
R – Ah sim, com certeza. E era aquela coisa, você tinha que fazer a pipa, você não tinha dinheiro pra comprar. A linha mesmo você tinha que tomar cuidado pra você não perder a sua linha. E era aquela coisa, era cerol, você tinha que fazer, moía vidro, aquela coisa perigosa mesmo, né? Mas todo mundo fazia, moía vidro, passava cola, passava a linha e ia lá competir ver quantos pipas conseguia cortar. Mas isso na verdade era legal, o interessante é o quê? Porque na minha concepção o que eu tiro com isso, o que eu ganhei com isso? Eu aprendi a olhar pro céu. A gente solta pipa e olha pro céu, começa a entender a natureza, começa a saber se vai ter vento, se não vai, por que está ventando, quando é que dá vento, que direção que está o vento. Então nessa simples brincadeira você acaba tendo essa conexão, entendeu? E o fato das pipas também é legal por quê? Porque você também já começa com as suas habilidades manuais, tem que fazer a pipa equilibrado porque senão ele começa a cair de um lado. Rabiola tem que estar equilibrada senão a pipa roda. Porque não sei se você já empinou pipa, a pipa, você consegue mandar ele pra onde você quiser através dos comandos que você faz na linha. Então você consegue mandar ele pra cá, pra cá você consegue descer ele assim, ó. A gente descia as pipas, quando ia chegar na casa a gente subia. Ainda deixava a rabiola bater lá embaixo, entendeu? Então quando você vai cortar um outro pipa também você tem toda a posição por onde você vai entrar, ali tem que descarregar, tem que puxar, tem toda uma física que envolve, entendeu? Então a gente desenvolveu essa coisa. Naquele tempo de infância, década de 80, praticamente década de 80 e o comecinho da de 90 era muito pipa, soltava balão. Podia, né? (risos) Espero que eu não seja preso por isso, mas a gente fazia balão também pra soltar. Aquele trabalho artístico também. Tinha brincadeira de bolinha de gude, tinha pião, essas coisas tudo tinha, véio, não tinha jeito, era diversão de quem morava lá, na periferia era isso. A época da pipa era férias de escola, mas tinha época de pião, de bolinha.
P/1 – Você jogava futebol?
R – Jogava futebol também. Eu joguei futebol até uns 12, 13 anos. Jogava bastante também na escola, tal, mas depois parei de jogar futebol. Joguei bastante basquete, comecei a aprender basquete. Nessa mesma escola que eu falei que era lá, que era precária e tal, apareceu um cara lá, um professor, que o cara revolucionou. Que até então tinha a cesta de basquete lá, mas ali naquela região da Vila Mirante, de onde eu morava, ninguém nunca tinha visto uma bola de basquete, a não ser na televisão. Ninguém nunca conhecia, não sabia, não tinha. Aí esse professor foi e ensinou a escola inteira a jogar basquete, ensinou as regras básicas mesmo, não pode bater, tal. Isso foi uma revolução pra gente lá. E ele começou a inscrever a gente nos campeonatos que tinha entre escolas, então a gente ia pra esses campeonatos de basquete também, então foi assim. E quando eu entrei no Senai lá também tinha os campeonatos de basquete entre as classes e tal. Quando eu estava no último termo a minha classe foi campeã. E nesse parque também, no Parque da Lagoa, tem uma quadra de basquete lá também. Nossa, eu cresci minha adolescência e minha juventude também jogando basquete, então esporte sempre esteve bem próximo e me ajudou bastante, graças a Deus.
P/1 – E você assistia TV, gostava de assistir?
R – Assistia TV. Bom, os programas de skate, os programas de banda com certeza. Mas eu assistia também jogos de basquete, até de vôlei um pouco. Futebol sinceramente eu nunca tive muita paciência pra assistir, não. Eu sou corintiano e tudo, mas eu nunca fui no estádio, eu só sei que o Tite é o técnico, não conheço nenhum jogador. O Cássio é goleiro, mas não é uma coisa. Até mesmo porque eu estudei no Zuleika, ali na Pompeia, que é do lado do Parque Antártica. Imagina eu querendo curtir a vida, querendo lá beijar as meninas, namorar sossegado e os caras se matando lá, se arrebentando e eu tendo de sair correndo. Então me gerou uma certa aversão ao futebol, entendeu? Inclusive eu acho que é uma energia, isso é uma opinião particular, eu acho que futebol, as massas, os grupos, as torcidas, eu acho que é uma energia meio que desperdiçada. O Brasil precisa de tanta coisa que poderia ser utilizada essa energia e, infelizmente, o pessoal meio que se confronta. Então isso eu acho uma coisa que fez eu distanciar no futebol.
P/1 – Com que idade, mais ou menos, você começou a procurar romance ou namorar?
R – Vixi Maria, se eu te falar, malandro (risos), se eu te falo, você não vai botar uma fé, viu? Eu acho assim, desde quando eu me conheço, acho que desde a escola, eu não sei se isso é natural, não tenho muitas referências, mas desde quando eu tinha sete anos que fui pra escola eu já olhava pras meninas já, não tinha jeito, já gostava das meninas, já olhava. E eu acho que com 11, 12 anos já comecei a querer namorar, beijar as meninas e daí foi. Então eu posso dizer que essa parte eu comecei um pouco cedo, viu?
P/1 – Quem foi sua primeira namoradinha?
R – Vixi maria, namorada, namorada mesmo? Deixa eu ver. Olha eu acho que assim, ficar com as meninas e tal, acho que eu comecei com uns 12... Acho que a primeira namorada eu tinha 12 anos, ela tinha 15, então ali já foi minha primeira namorada. Acho que namorei uns três meses. Ela chamava Vanda. Nem sei por onde anda a Vanda, mas foi a primeira namorada. E daí sempre, sempre mantive relação com as meninas, não teve jeito.
P/1 – E nessa época o que vocês tinham que fazer pra conhecer as meninas, onde é que vocês iam? Como é que era, diferente?
R – Ah, eu acho que não, acho que era mais ali mesmo, na escola, eu acho que a maioria foi da escola. Acho que também pelo fato de naquela época foi a época que eu comecei a andar de skate também, acho que chamava um pouco a atenção das meninas também, acho que as meninas também gostam de meninos diferentes, que fazem umas loucuras (risos). Sei lá, não sei, talvez isso. Mas foi por ali, sempre.
P/1 – E você falou que teve um aluno seu que fez uma letra. Qual foi essa história?
R – Essa história é o seguinte. Em 2002 que eu já tava nessa coisa da reciclagem, trabalhar com Arte, um amigo do Reciclasa me convidou pra trabalhar em um albergue de moradores de rua que é ali no Brás. Até então eu nunca tinha tido essa experiência. E eu fui dar aula de artesanato lá porque como eu achei a minha profissão, o meu ganha pão, vamos dizer, nesse tipo de trabalho, eu falei: “”Pô, se eu posso os outros podem também, basta ter uma força de vontade”. Porque eu não estudei Artes Plásticas, não fiz nada disso, eu fui fazendo porque eu gostava, achava interessante. Então eu fui dar aula lá no albergue e tinha uma turma lá. Era mais ou menos 300 pessoas que tinham nesse albergue, 300 assistidos, mas na minha sala tinha uns 15, 20. Aí um dia eu dando aula lá, tranquilo, numa boa, chega um cara lá e fala: “Seguinte, eu acabei de sair da cadeia, eu sou soropositivo e eu não quero voltar lá pra cadeia. Você tem um espaço pra fazer um artesanato aí?”, começou assim. É Carlos Ferro o nome desse cara. Eu falei: “Tudo bem, pode vim, vem aí”. Esse cara veio, tal, e a gente começou, a gente tem uma sensibilidade um pouco mais, então a gente começa a conversar, a gente se identifica com outras pessoas que têm a mesma sensibilidade. Ele é um cara que já tinha participado de livros, já tinha escrito um livro lá numa participação de um livro do Carandiru, que é Letras de Liberdade o nome do livro, que lá no Carandiru eles colheram depoimento de várias pessoas lá, vários internos, e o depoimento dele foi um dos que foi escolhido. Como ele sabia que eu tinha banda e tal ele escreveu várias letras e me deu. Ele falou: “Meu sonho era ver uma banda cantando uma letra minha”. Aí me deu várias letras e tinha uma que era essa daí que se chama “Catador de Papelão”, inclusive tem um vídeo no YouTube.
P/1 – Você lembra a letra?
R – Lembro um pouco. “Só porque eu cato papelão/ me tratam como lixo/ me tratam como cão”. Esse é o refrão. O começo é... Como é? Ai meu Deus. Agora eu não lembro. Mas é bem interessante, a letra é bem interessante. Deixa eu ver se eu consigo buscar aqui. Nossa, faz tempo que a gente não toca, então. Agora não lembro, não. Mas é uma letra bem interessante. Então esse cara tinha essa vontade, aí a gente pegou a letra dele. Só que o que aconteceu? Enquanto ele estava lá no albergue teve um dia que eu fui embora, tal, era inclusive Dia de São João, aí quando chega no outro dia: “O Carlos foi preso” “Foi preso? Mas o que aconteceu?” “É, ele bebeu, aí ficou meio louco, arrumou confusão com um cara, aí chamaram a polícia pra conter ele, algemaram ele, mas ele conseguiu se soltar por baixo, estourar o vidro da viatura com a algema, aí levaram ele embora de novo”. Aí como ele estava em condicional ele foi preso de novo. E daí eu não tive mais contato com ele, não fiquei sabendo mais do paradeiro dele. Até procurei, mas não encontrei, então não sei nem se está vivo, se ele chegou a ver a música ou não. Eu não tive mais contato. Mas essa fase que eu dei aula nesse albergue foi bastante interessante pra mim, deu muita base porque fez eu conhecer um outro lado da alma humana, entendeu? É um outro lado que até então eu não conhecia. Porque você pensa: “Pô, os moradores de rua, tal, os caras são vagabundos, coitadinho deles”, tem todas essas coisas que você deve saber que fala. Mas quando você está lá, que você começa a conversar com eles e começa a saber das histórias, saber como é, você vê que é uma outra coisa, que é uma outra cultura, uma outra situação. E nem todos são coitadinhos, né? E que a maioria deles tem algum tipo de trauma na vida, alguma coisa que fez eles pararem ali. Ou então algum obstáculo que eles não conseguiram sobrepor, alguma dificuldade que eles tiveram na vida que eles não conseguiram vencer. Mas várias experiências, várias histórias de vida que me deram muita base de reflexão pro meu trabalho.
P/1 – Isso foi em que ano, mais ou menos?
R – 2002.
P/1 – Mas a questão da reciclagem você começou com ela quando?
R – A questão da reciclagem, na verdade, acho que teve essa coisa da infância. Na infância eu sempre tive a ilusão de que se eu juntasse um monte de coisa e vendesse eu ia ganhar dinheiro, coisa de criança mesmo. Vendi o cobre lá, deu um dinheirinho mas eu lembro que eu tinha essa ilusão de juntar um monte de ferro lá, ir lá vender que eu ia ganhar um dia, essa coisa. Na verdade quando eu tinha 22 anos eu fui trabalhar no Extra Anhanguera, fui trabalhar com plantas, até então não conhecia nada de planta. Uma das minhas primeiras namoradas me indicou esse trabalho porque ela trabalhava lá de caixa, ela falou: “Tem um amigo meu que falou que está precisando lá, você não quer ir lá?”, e eu desempregado, minha mãe falava: “Você vai arrumar trabalho de qualquer coisa, mas você não vai ficar em casa sem fazer nada”. Minha mãe era linha dura, né? Não dava realmente pra ficar em casa e eu também não gostava de ficar sem fazer nada, sem dinheiro.
P/1 – Seus irmãos estão fazendo o quê nessa época?
R – A minha irmã sempre foi muito responsável, muito certinha. Ela é totalmente ao contrário de mim, que era mais rebelde um pouco, rock and roll, skate, essas coisas aí; a minha irmã não, ela sempre trabalhou cedo, teve as coisas dela. E o meu irmão era bem mais novo, ele é seis anos mais novo do que eu, então nessa época minha irmã já estava na vida dela, já tinha o namorado dela, já estava indo pra casar. Eu fui trabalhar lá com planta, não conhecia nada de planta. Eu lembro que eu cheguei pro cara, o cara falou: “Você conhece planta, você gosta de planta?”, eu falei: “Conheço, gosto”, mas assim, nunca nem tinha olhado pras plantas. Minha mãe gostava muito, mas eu mesmo... Só que eu fui trabalhar lá e era um cara que chama Marcelo Engel, que hoje está lá na Alemanha fazendo tatuagem, ele é um cara que tinha muito amor por aquilo, sabe? Ele sabia nome científico das plantas, ele gostava mesmo, ele fazia aquilo com amor, o cuidar das plantas. Então eu tive a sorte de aprender com ele isso, entendeu? Então quando eu fui trabalhar com ele eu comecei a gostar muito também, eu comecei a aprender. E assim, a gente trabalhava dentro do Extra, mas a gente não era funcionário do Extra, a gente era funcionário de uma empresa lá de Holambra, então a gente tinha acesso a qualquer tipo de planta que a gente quisesse colocar na loja, nós tínhamos autonomia. Então a gente fazia o que a gente queria lá dentro. E tinha um espaço grande dentro do Extra Anhanguera que hoje não tem mais, um espaço grande de planta, então foi ali que eu comecei a desenvolver essa coisa da Arte, meio que sem querer. Por quê? Porque você tinha que combinar cores, eu comecei a compor, pegava uma planta daquele tipo e começava a compor ali na prateleira uma história, sabe? O layout da loja, a gente começou a mexer. “Meu, vamos pendurar um monte de samambaia lá em cima, colocar uma placa ali que está jogada no canto”, então eu comecei com isso, junto com o Marcelo. Só que também tinha o fator rebeldia, ainda estava, não tinha jeito. Por quê? Porque você trabalhar no supermercado você não pode ter barba, você não pode ter cabelo comprido, supermercado é assim. E eu, meio veio, porra meu, não tinha jeito, né meu. Era uma coisa que pra mim era ruim pra caramba essa fase. Daí eu também faltava, chegava atrasado, pá, pá, pá, só que esse cara sempre me apoiando, ele sempre ponderando, sabe? Porque quando eu estava lá eu também gostava, a gente se dava bem, eu comecei a conhecer as plantas, saber o que era planta de sol, que aquela outra não é, tal, entendeu? Então foi aí que eu comecei a ter um olhar pra plantas, pra árvores, pra tudo. Então a Arte pra mim começou nesse período. E também a questão do lixo. Por quê? Porque como eu trabalhava nesse mercado, então era um desperdício, véio, um desperdício descabido, entendeu? E eu digo assim, no mercado inteiro, não era só da parte de planta porque parte de planta é assim, você tem um vasinho de violeta lá, a gente pedia, era coisa de 500 vasinhos de violeta pra cima. Você tem um vasinho de violeta lá com florzinha linda, maravilhosa. Só que a flor murcha, a flor morre e o vaso continua. Só que aí não tem mais um valor comercial. O que os caras faziam? Jogavam no lixo, um vasinho de violeta vivo. Com terra, com tudo. “Ó, essas daqui estão todas sem flor, pode jogar tudo fora”. Eu falava: “Pô, por que não vende a 10 centavos? Faz alguma coisa”. Mas não, era tudo. E outras plantas também, tipo, vai, uma orquídea, digo das mais simples. Uma orquídea morreu, a flor não tem mais valor econômico, então os caras jogavam muita planta. E também jogava muita comida fora no mercado. Então quando eu ia pra caçamba pra jogar planta fora eu via os caras vindo e jogando outras coisas fora também. Eu falava: “Nossa”, foi aí que começou essa sensibilidade pro desperdício. Aí tudo bem, comecei a ter essa observação. Teve um dia que eu estava na casa de um amigo meu, aí ele falou assim: “Vou jogar essas coisas fora aqui, você quer alguma coisa?”, um amigo meu que era meio riponga, fazia uns artesanatos meio bicho grilo. Ele tinha umas tranqueiras lá, eu olhei aquelas tranqueiras, eu lembro que era um cabo de telefone, um pedaço de osso de mocotó, um monte de tranqueirinha lá. Eu falei: “Eu vou pegar esse negócio e vou fazer um barato, véio, vou fazer uma obra disso daí, só pra mostrar que dá pra usar”. Então eu fiz um bonequinho que é um guitarrista e a cabeça dele é uma garrafa PET que parece uma lâmpada, que eu quis dizer o quê? Que a reciclagem era uma boa ideia. Então foi ali que começou mesmo pra mim o meu trabalho de Arte com material reciclado. Eu já tinha feito outras coisas. Antes disso eu tinha feito uma árvore de concha que eu fui pra praia e eu vi umas conchinhas lindas que eu não conhecia. Fui pra praia velho já, já tinha 20 e tantos anos. Aí veio um monte de conchinhas lá: “Puta que legal, que bonitas essas conchinhas, vou pegar pra fazer alguma coisa”. Peguei e fiz uma árvore de concha e depois eu fiz esse bonequinho aí, tal. Foi aí que começou o meu trabalho com Arte, com material reciclado. Inclusive esse bonequinho acabou virando capa de discos de coletânea da Feira de Artes de Pirituba e tal, então aí foi. Depois não parei mais. Aí eu fui, dessa coisa de trabalhar num lugar, trabalho em outro, aí o meu último trabalho que eu tive registrado foi na Livraria Siciliano. Tinha trabalhado no Extra, depois eu fui pro Walmart, trabalhei cinco meses e pedi as contas. Aprendi muito no Walmart também porque os americanos têm uma filosofia interessante, uma filosofia disciplinar também, eu aprendi bastante coisa. No Walmart também foi onde eu senti que eu tinha um pouco de aptidão artística porque eles tinham um curso de desenho lá semanal: “Quem quiser trazer desenhos relacionados ao Walmart pode trazer”, e eles davam um pin, que é um negocinho que você colocava, cultura deles, dava um pin pra quem ganhava. Então eu ganhei dois prêmios de desenho lá. E eu nem sei desenhar, pra falar a verdade, mas eu acho que o que fez eu ganhar foi a ideia, a concepção da coisa. Então eu trabalhei no Walmart esses cinco meses, ajudei a abrir o Walmart Pacaembu que estava fechado o Walmart. Eu cheguei lá e não tinha nada. E os caras iam abrir dali a um mês. Eu falava: “Mas como é que os caras vão conseguir abrir esse mercado daqui um mês se ele não tem nada?”, e os caras conseguiram. Depois trabalhei na Livraria Siciliano, aí fui mandado embora. Quando fui mandado embora da Livraria Siciliano eu falei: “Eu não vou mais procurar emprego, eu vou dar as caras nessa parada que eu estou fazendo”, que era essa coisa de Arte. Aí eu conheci o Movimento Ecocultural, por quê? Porque eu tocava e a gente já tinha participado da feira junto com eles e tal. Eu falei: “O único lugar que eu conheço que tem um pouco mais a ver com o que eu quero é o Movimento Ecocultural”. Eu cheguei lá, que era um ONG lá em Pirituba também e eu falei: “Vocês deixam eu ficar aqui fazendo os meus trabalhos, minhas Artes?”, os caras: “Não, pode fazer”. Eu comecei a frequentar lá direto, ia todo dia lá, tinha um espacinho lá, eu ia fazendo as coisas e ia ajudando o pessoal lá também nos eventos deles. Só que era uma coisa bem mambembe, a gente não tinha uma remuneração fixa. Minha mãe mesmo não entendia porque eu ia todo dia pra lá e não ganhava nada. Mas foi onde eu conheci bastante gente, foi onde eu comecei a me envolver mais nessa parte de Arte, então o Movimento Ecocultural me deu bastante base. Depois eu fui trabalhar em outros lugares.
P/1 – Como é o Movimento Ecocultural?
R – O Movimento Ecocultural é uma ONG que até hoje está ativa, ela existe ainda, mas não como era antes. Era um espaço que dividia com um pessoal que era gospel, pessoal que era gospel ajudava a pagar o aluguel do espaço. E o pessoal do Movimento Ecocultural que eram alguns artistas e algumas pessoas que escreviam projetos, o que elas faziam? Escreviam projetos e propostas de eventos culturais. Por exemplo, a Feira de Artes de Pirituba, que eles aprenderam com o pessoal da Pompeia, o que é? Você pegar uma avenida, demarcar ela, pedir as autorizações e vender espaço para os artesãos, para o pessoal de alimentação, conseguir os palcos, colocar música lá. Mas o dinheiro mesmo vem dos aluguéis das barracas. Porque os patrocinadores também é muito difícil conseguir patrocínio pra esse tipo de evento, eles conseguiam lá mas o dinheiro mesmo, o recurso, vinha dessa venda desses espaços na feira. Então era o grande projeto do Movimento Ecocultural era a Feira de Artes de Pirituba, que é onde trazia mais recursos durante o ano. Fazia outros pequenos eventos, feiras, evento lá no Pico do Jaraguá também, que é um lugar interessante lá em Pirituba. Então, vivia disso, mas era muito instável. Eu fiquei dois anos indo lá direto, só que aí chegou uma hora que pra mim já não dava porque eu tinha que ganhar também, eu tinha que, é uma remuneração, aí eu fui trabalhar em outros lugares. Logo depois também eu montei a cooperativa porque eu fique lá no Movimento Ecocultural de 99 até 2000, 2001, eu fiquei uns dois anos, aí logo depois eu fui dar aula no albergue, já estava também trabalhando no Conjunto Nacional nas decorações de final de ano, então a coisa meio que andou sozinha depois.
P/1 – Foi lá que você conheceu o Jair?
R – Foi, no Movimento Ecocultural. O Jair não tinha nem a cooperativa que ele tem hoje ainda, o Jair era o cara que escrevia projeto. Quem era do Movimento Ecocultural naquele tempo era o Jair, que escrevia projeto, tinha o Manu, que era o presidente e que é um grande artista, eu vejo ele como um grande artista principalmente na coisa da pintura. Tinha o Eduardo Sanchez que era mais ambientalista, ele trabalhava no pico do Jaraguá, ele também era fotógrafo, então ele era mais dessa parte ambientalista. Também fazia alguma coisa de Artes Plásticas. Tinha a Gi, Gisneide, que era mais da parte burocrática, financeira e eu. Então eram essas cinco pessoas que faziam ali o movimento cultural. Eu era mais da parte de produção, parte artística, de botar a mão na massa também.
P/1 – Quando você entrou você começou a pensar mais ainda nessa questão da reciclagem, importância?
R – É, quando eu entrei no Movimento Ecocultural eu já estava com a coisa da reciclagem bem clara pra mim, entendeu? Eu sabia que a reciclagem era uma necessidade, necessidade social, não tem outro caminho. Nessa sociedade que a gente vive a reciclagem é indispensável. Não é “eu quero, eu não quero”, não, tem que fazer, tem que ter. Porque a quantidade de resíduo que é gerada por nós é muito grande. O nosso modo de viver, de consumir hoje, pode ser que mude, mas hoje em dia é indispensável. E essa coisa da reciclagem ainda está até hoje, eu depois de mais de 15 anos trabalhando com isso eu ainda vejo que essa coisa da reciclagem ainda vai ter que evoluir, vai ter que andar bastante ainda. Já andou bastante, de quando eu comecei pra agora já andou bastante, mas eu acho que ainda vai ter que andar mais, vai ter que evoluir mais.
P/1 – O que você acha que mudou desde que você começou?
R – Eu acho que o que mudou, primeiramente, é o olhar do público em relação ao material, porque antigamente era tudo lixo, tinha até aquele slogan, “Jogue o lixo no lixo”, tudo era só lixo, a coisa da reciclagem era bem fraca, era pouca que tinha. Então acho que as pessoas e as empresas começaram a mudar a visão nesse aspecto, de saber que tem que ser reciclado. Eu acho que o que fez bastante essa mudança, essa alteração, por mais estranho que pareça, mas eu acho que foi a garrafa PET. Por quê? Porque antigamente os refrigerantes eram vendidos em vidro, você levava a garrafa pra trazer o refrigerante. Depois teve a embalagem de plástico que era retornável, que você também tinha que levar pra trazer o refrigerante. Depois veio a embalagem descartável de refrigerante, que aí eu acho que encheu o meio ambiente de garrafas de refrigerante, entupindo bueiro, nas ruas você via muito, então acho que aí foi popularmente, em termos de população, de classe média, de classe baixa, acho que foi uma coisa que chamou a atenção pra coisa da reciclagem, entendeu? Essa coisa de volume mesmo.
P/1 – E depois do Movimento Ecocultural você abriu uma cooperativa sua, é isso?
R – Depois do Movimento Ecocultural eu comecei a andar um pouco sozinho, fazer oficinas, dar aula, vender peça. Eu fazia as peças no quarto da minha casa, não tinha ateliê, não tinha nada, fazia as peças no quarto da minha casa, colocava dentro de uma mochila e ia pra rua. Ia pra evento, ia pra show, conhecia algumas pessoas que organizavam alguns eventos, alguns shows, alguma coisa assim. Eu ia pra esses lugares e expunha, começava a vender. E lá eu fazia contatos e ia dar aula e a coisa aconteceu assim, começou a andar nesse sentido. E isso de conhecer gente, de fazer amizade e tal. E eu sabia o quê? Que era uma coisa difícil, então eu tinha que fazer o quê? Eu tinha que ajudar as pessoas que estavam na mesma condição do que eu, eu não via outra saída, eu achava que a disputa era a pior besteira, que o interessante era você se fortalecer com outras pessoas. Então assim, quando eu tinha alguma oportunidade de trabalho bom eu indicava pra todo mundo que eu conhecia: “Ó, vai lá que tem essa parada lá”, entendeu? Então nisso eu indiquei uma amiga minha e essa amiga minha conseguiu, através dessa indicação, um contato no Conjunto Nacional, um contato com o Sílvio Galvão, que é o que era o cenógrafo que foi contratado pra fazer a decoração natalina do Conjunto Nacional. Aí essa menina pra retribuir esse contato que eu tinha dado, ela me indicou. Eu fui lá no Conjunto Nacional, conheci a Valquíria e a Coca, foi a primeira pessoa que eu conheci do Conjunto Nacional. Aí a Valquíria falou: “Faz o seguinte”. Eu cheguei lá no Conjunto Nacional, olha só como é que é, cheguei lá com uma sacolinha de supermercado cheio de esculturas velhas minha lá, esse bonequinho mesmo, guitarrista estava na sacola. Eu cheguei lá com a sacolinha do supermercado na mesa dela, abri, mostrei pra ela lá e tal, umas coisas bonitas, outras feias (risos), porque é toda uma evolução. Ela chegou e falou: “Vai lá e procura o Sílvio Galvão e fala com ele. Leva essas peças e mostra pra ele, pede uma chance pra ele pra você trabalhar no Natal”. Eu fui, nisso já estava a Miriam que me indicou e a Alessandra. Eu cheguei lá com elas pra conhecer o Sílvio e tal, então elas meio que... o Sílvio é um cara extremamente desconfiado (risos), aí acho que ele deve ter pensado assim: “Pô, já estão querendo me empurrar uma pessoa aí pra trabalhar”. Mas aí comecei, começamos a conversar com o Sílvio, ele me explicou o trabalho, tudo, aí eu integrei a equipe de desenvolvimento. Porque é assim, ele desenhava, aí ele chegava com os desenhos lá pra mim, era eu, a Miriam e a Alessandra. A Miriam já tinha experiência com trabalho com reciclagem também, a gente já vinha de uma trajetória, a gente já vinha correndo atrás de garrafa PET, vamos dizer assim, há um tempo. E a Alessandra já tinha trabalhado com o Sílvio na TV Cultura, já tinha feito Castelo Rá Tim Bum com o Sílvio, tal. Aí juntou nós três e a gente montou um laboratório. A gente pegava os desenhos do Sílvio e começamos a inventar protótipo praquilo que ele tinha inventado. Então a gente desenvolveu muita coisa nessa fase, que foi 2001. A gente inventava os protótipos, bolava um jeito de fazer e eu era responsável de passar isso pras oficinas externas, então a gente tinha mais de dez oficinas externas que era a Penitenciária Feminina, pessoas com necessidades especiais físicas, a gente foi dar aula pra adolescentes com Síndrome de Down. Então nesse Natal de 2001 a gente teve várias, foi assim um Natal que a gente não conseguiu repetir daquela maneira, de tão grandioso que foi. E a gente tinha uma pessoa que conhecia todas essas instituições e que indicou, então a gente conseguiu ter acesso. A gente desenvolvia o trabalho: “Essa vai fazer só canudinho, essa vai fazer só aquela tampinha que vai lá”, então cada uma a gente viu o perfil da entidade e mandava o trabalho, então eu era responsável por fazer esse desenvolvimento e depois ir lá e ensinar esses grupos a fazer. Depois tudo isso voltava pra gente e a gente fazia a montagem final. Então foi uma loucura esse primeiro trabalho. Deu muita base pra gente fazer todo o trabalho depois. Aí fizemos 2001, aí tudo bem. Em 2002 tivemos a oportunidade de fazer de novo. Aí o Sílvio me liga: “Nós vamos fazer de novo, você tá a fim?” “Tô, vamos aí”.
P/1 – Vocês fizeram uma montagem de Natal?
R – Nós fizemos uma montagem de Natal lá no Conjunto Nacional, que é uma fachada de 120 metros, tinha uns 60 anjos, branco, preto, japonês, tudo misturado, o formato de rosto dos anjos. Aí esses anjos seguravam um estandarte e cada estandarte tinha um santo diferente. Tinha os santos católicos, santo budista, tinha o santo de umbanda, tudo misturado. Foi um escândalo, né, porque muita gente não gosta dessa mistura. Então tinha essa procissão dos santos e dentro era o presépio, que era a família sagrada e os três reis magos, só que era um presépio grande, as figuras tinham quatro metros de altura. E o manto delas gigante também, tipo oito metros tudo bordado a mão com material reciclado. E esses estandartes de fora eram todos trabalhados com material reciclado, todo feito de florzinha, de coisa, de material reciclado. Então foi assim, nós fomos pioneiros nessa coisa de decoração natalina com material reciclado. Só que a síndica do Conjunto Nacional chamou o Sílvio e falou assim: “Eu quero um Natal que seja brasileiro, eu não quero nada de boneco de neve, nem papai Noel, não quero nada disso, eu quero um Natal brasileiro que seja social, tenha cunho social e que seja de material reciclado”. Esse foi o briefing que ele deu pro Sílvio Galvão criar. Porque ela queria que as instituições fizessem, ela não queria apenas pagar uma decoração, ou ela não queria contratar uma decoração que viesse coisa da China e ela montava lá, ela queria uma coisa que fosse feita a mão, que fosse feito de preferência por pessoas excluídas, que foi o caso das instituições. Com tema brasileiro e feito com material reciclado. Então esse é o briefing que a gente segue até hoje no Conjunto Nacional. A gente fez 2001, aí 2002 também fomos chamados. Aí o que o Sílvio inventa? Um presépio negro. Então é Jesus, Maria e José negros. Na verdade nesse ano não teve os três reis magos, foi só a família sagrada, o boi e o burro e lá fora umas bolas de papel. Nesse ano eu já estava trabalhando em dois locais, em um albergue e em uma outra instituição ali na Luz, uma cooperativa, eu dava aula de Arte com reciclagem. Esse ano a gente pegou essa turma pra fazer o Natal do Conjunto Nacional, eu usei essa equipe. O Conjunto Nacional pagava pra gente e também pagava pra essas pessoas pra fazer o trabalho. Aí fizemos 2002, 2003 também, a mesma coisa, fizemos de novo do mesmo jeito. Aí em 2004 a síndica me chama, doutora Vilma e a Cristina falam assim: “Por que você não pega esse pessoal que vem te acompanhando, por que você não monta uma cooperativa?”, eu falo: “Eu já tentei montar, mas me falaram que é tão burocrático, é tão difícil”. Ela falou: “Eu vou te dar uma pessoa que vai te dar uma assessoria”. Aí a gente começou a fazer reuniões com o Antônio Celso, que é o nosso contador. Ele sabia muito de cooperativa então ele começou a explicar pra nós. Eu convidei todos os amigos, os alunos e a gente começou a fazer palestras, ele começou a explicar tudo o que era a cooperativa. Então a gente achou legal a ideia de cooperativa e a gente decidiu realmente fundar a cooperativa. Por quê? A cooperativa ia atender o Conjunto Nacional de uma maneira mais profissional, a gente ia poder emitir uma nota fiscal, e a gente poderia, além do Conjunto Nacional a gente poderia oferecer trabalho pra outras empresas. A gente achou isso interessante e fundou a cooperativa em 2004, devido a esse andamento que vinha acontecendo.
P/1 – Qual o nome?
R – Cooperaacs, Cooperativa de Arte Alternativa e Coleta Seletiva. Aí a gente fundou. No começo a gente não tinha nem computador, alugou uma casa lá no Belenzinho e a gente fazia os trabalhos numa casa, uma casa que tinha uma garagem grande. A mulher que morava em cima quase morria quando a gente começava a trabalhar porque era barulho, era cheiro de tinta, era, nossa senhora, era muito mambembe, era muita coragem a gente tinha. E quando a gente ia fazer coisas grandes que não cabiam lá dentro a gente começava a trabalhar na calçada. Espalhava as coisas na calçada pra secar, sabe? Era uma loucura. Em 2006 a gente conseguiu alugar um galpão maior, que a gente está lá até hoje. Aí a coisa ficou mais organizada e ficou melhor pra trabalhar, entendeu?
P/1 – E com o que você trabalha geralmente de resíduo?
R – Depende muito do projeto, mas a gente trabalha com qualquer tipo de resíduo. Por exemplo, agora a gente está trabalhando com tampinha, mas a gente trabalha muito com garrafa PET, já trabalhou com latinha. Eu já fiz uma obra também que era um monte de plástico misturado, qualquer peça que achava, que foi o Don Quixote, né? Que eu tive o prazer de fazer o cavalo, isso em 2005. E o cavalo nada mais é do que uma estrutura de ferro coberta com sucata, que ele dá a anatomia do cavalo. Então cada projeto tem um tipo de material. A garrafa PET é o mais comum porque ela também é fácil de trabalhar, ela tem características que tornam fácil, ela é fácil de recortar, ela recebe tinta, então você consegue fazer bastante coisa, né? Por isso que tem tanta gente fazendo com garrafa PET.
P/1 – Como é que vocês conseguem esse material todo?
R – Esse material a gente consegue... Primeiramente, esse trabalho que a gente faz a gente poderia estar trabalhando com qualquer outra coisa. Eu poderia estar trabalhando com madeira, estar fazendo cenário, poderia estar fazendo qualquer outra coisa, mas a gente escolheu trabalhar com material reciclado por causa da consciência. Acima de tudo o nosso trabalho tem uma mensagem. Do quê? Do meio ambiente, de falar: “Ó meu, vamos ver direito aí, vamos cuidar mais um pouco”, ele tem essa mensagem inicialmente. A gente trabalha com material reciclado por causa disso, porque a gente quer passar essa mensagem, ne? Então a gente escolheu trabalhar com isso justamente pra chegar no público e falar, e mostrar essa necessidade. Porque, eu esqueci qual foi a sua pergunta inicial, mas tudo bem. Porque assim, eu acho que o ser humano de uma maneira geral, ele enxerga pouco, ele não tem uma visão, ele está mais preocupado com a vida dele, né? Ele não está preocupado, não é nem com a vida do outro que está vivendo perto dele, mas digo assim, ele não se preocupa com o que ele vai deixar pras próximas gerações. Eu acho que nos últimos cem anos, que não é nada em termos de tempo para o mundo, mas em cem anos mudou muito a forma de tratar o mundo, né? Então eu acho que isso vai ter consequências para as outras gerações que ainda vão vir, entendeu? A minha preocupação maior, na verdade, quando eu faço o meu trabalho não é nem agora, não é nem de mudar agora, eu não me iludo achando que o mundo vai mudar agora, né? Eu acho que o mundo tem que mudar, o nosso trabalho da cooperativa é um pouco utópico, a gente quer realmente mudar o mundo, mas eu vejo isso pras futuras gerações, para os filhos, para os netos e muito daqueles que vão vir ainda, entendeu? Claro que se der tudo certo, se a gente seguir o caminho certo, porque como eu estava falando dos antepassados. Pô, pra eu estar aqui hoje, vocês tudo estarem aqui hoje, muitos passaram pra trás, muitos antepassados nossos passaram muitas coisas lá, né? E eu acho que a gente tem que manter esse cuidado que eles tinham com a natureza, esse contato. E o que aconteceu nos últimos cem anos com a Revolução Industrial principalmente é que a coisa ficou assim: “Meu, dá lucro? Então beleza. Se dá lucro não importa o resto”, entendeu? Eu vejo que o mundo, que as grandes metrópoles, que as grandes empresas mesmo são movidas exclusivamente pelo lucro, não importa se vai matar, se não vai matar, se vai ter ou se não vai, então acho que isso é uma maneira de enxergar a curto prazo. O nosso trabalho está bem calcado nessa coisa de conscientizar pra quê? Pra gente continuar de uma maneira que seja sustentável, de uma maneira que seja não poluente, de uma maneira que respeite a vida, né? A vida do planeta. A vida do planeta que eu digo é assim, a vida dos outros animais também, né? A vida das plantas. Que a gente consiga ter uma qualidade de vida melhor porque uma coisa eu tenho certeza: inteligência pra isso o ser humano tem, entendeu? Capacidade pra isso ele tem. Mas eu acho que vai ter que amadurecer um pouco, ultrapassar essa coisa do lucro, do dinheiro, pra depois ter uma consciência um pouco mais coletiva, um pouco mais... Que na minha opinião, independente se existe Deus ou não existe Deus, se tem religião ou se não tem, é uma coisa mais abrangente, é uma coisa que envolve uma coisa maior, sabe? Uma coisa de você pensar na futura geração, uma coisa de você pensar num ambiente de uma maneira mais ampla e não simplesmente só você, só esse momento ou dane-se, eu coloco meu saquinho de lixo na porta da minha casa e não me interessa pra onde ele vai, eu só quero que suma dali. Acho que a coisa é mais ampla, então é por isso que, como eu tenho essa coisa contestadora que veio da minha juventude, que veio, a Música também me trouxe esses questionamentos. Então essa coisa de questionar continua, então eu vou, eu aponto pra esse lado, eu acho que não está legal e os nossos trabalhos dizem isso, entendeu?
P/1 – E você acha que através da Arte você sensibiliza mais as pessoas?
R – Eu acho assim, véio, eu vou te falar. Uma das coisas que me fez caminhar pra Arte também foi assistir à TV Cultura. Que eu não tinha TV a cabo, não tinha nada disso, então assistia. Você até me perguntou o que eu gostava de assistir, né? Então assim, uma das poucas coisas que tinha interessante na televisão era TV Cultura, que eu achava interessante. Eu olhava os caras fazendo trabalhos diferentes, davam aqueles depoimentos, eu falava: “Pô, esse cara aí, interessante o que ele está falando, viu? É diferente”. E ele tem razão. E uma frase que eu lembro nesse programa que eu assisti que eu nem lembro de quem é, que o cara falava assim: “A Arte resgata a humanidade da pessoa”. Então a gente, nessa loucura de cidade grande, tal, a gente esquece um pouco o nosso lado humano, a gente entra mais numa coisa mecânica, automática, né? E a gente esquece que nós somos seres humanos, a gente esquece os nossos sentimentos, a coisa compartilhada, a coisa de sentir, a coisa de ver através das entrelinhas, né? Que tudo tem as entrelinhas, tem coisas que você não precisa falar ou não precisa ver, que ela está lá e você consegue sentir. Então a Arte faz isso, entendeu? Eu acho que a Arte traz um pouco isso. Eu acho que nada melhor do que você ficar fazendo um discurso ou fazendo uma palestra, eu acho que às vezes uma obra de Arte consegue tocar dentro, de uma maneira mais simples, entendeu? De uma maneira mais básica possível. Porque que nem quando você mostra alguma coisa para uma criança, uma obra de Arte pra uma criança, você vai falar: “Tá bonito ou tá feio?”, a criança vai falar na lata, ela não vai mentir nem nada, ela vai apenas falar o que ela sente, entendeu? Então Arte faz isso, e Arte não necessariamente tem que ser só coisa bonita. Porque a Arte também é o outro lado. A Arte nada mais é do que uma expressão, aquilo que você quer colocar pra fora, uma necessidade. E eu digo ainda mais, eu digo que artista todo mundo é, todo mundo é artista, cada um tem o seu tipo de Arte, tem a sua pegada, mas todo mundo tem a questão da Arte dentro de si, não tem como.
P/1 – Depois que você abriu a cooperativa ela está crescendo, como é que está acontecendo? Vocês estão trabalhando (incompreensível).
R – Então, eu acho que a cooperativa na verdade é um desafio de uma coisa... Porque primeiramente, você viver de Arte já é uma desafio, você viver de Arte com material reciclado já é outro desafio. E você viver de Arte com material reciclado numa cooperativa onde as pessoas têm que trabalhar em grupo já é outro desafio, entendeu? Então a gente passou por muitos altos e baixos. Porque não é só ter o trabalho, o trabalho é um fator, muito importante, mas não é só ter o trabalho é como você gerencia, como é que você vai lidar com as pessoas que você está trabalhando? Como é que você atende o cliente? Então tem muitos aspectos, né? E a cooperativa foi uma escola muito grande nesse sentido. Então a gente aprendeu demais, aprendi demais a lidar. Na cooperativa você tem que cuidar de tudo, então o grupo cooperativa é uma empresa democrática, então você tem que lidar com criação, você tem que lidar com prazo, você tem que lidar com a peça ficar bonita, você tem que lidar com a questão financeira, você tem que lidar com a questão de gerenciamento com o grupo, entendeu? Então é bastante desafiador. A gente, graças a Deus, conseguiu se manter todos esses anos, mantemos várias possibilidades de trabalho, já fizemos muita coisa. Então nós estamos seguindo. Eu particularmente nessa fase eu estou, eu tenho a parte artística, mas agora eu estou focalizando mais para a parte empresarial da coisa, entendeu? Agora a gente está procurando meios de fazer mais negócios, de trazer mais trabalho e mais recurso para as pessoas da cooperativa também, mais remuneração. Então a gente agora está andando com essa coisa. E assim, cooperativa sempre está se reinventando, nós estamos sempre nos reciclando. Não adianta você achar que você vai abrir um negócio, seja ele qual for, e ele vai ser aquilo e pronto. Não, você vai ter que se adequar ao mercado, entendeu? Você vai ter que se adequar às realidades, às vezes você vai ter que melhorar o seu produto, inventar coisa nova. Então é assim que a coisa vai, a coisa anda.
P/1 – Quantas pessoas trabalham lá hoje?
R – Depende do projeto. Esse ano, por exemplo, a gente teve uma diminuição considerada dos trabalhos mediante a essa coisa de crise, né? Como a gente faz uma decoração natalina, as decorações natalinas esse ano caíram bastante, pra todo mundo. Todo mundo que eu conheço, que trabalha com isso tem falado. Então esse ano a gente está com uma equipe um pouco mais reduzida, a gente deve estar trabalhando lá com umas dez, 12 pessoas. Acaba um projeto aí a gente espera começar outro projeto. O outro projeto pode ser que precise de cinco, pode ser que precise de duas, pode ser que precise de 15, de 20, então a gente vai se adequando mediante os trabalhos que nós vamos fazendo, né?
P/1 – E que outro trabalho você fez nesses anos que você gostou muito e se sentiu recompensado em fazer?
R – Olha meu, sinceramente eu acho que todos os trabalhos eu me sinto recompensado. Porque assim, eu particularmente gosto de grandes trabalhos, grandes desafios e projetos inéditos, coisa que nunca fez, então isso é uma coisa que me chama assim, embora tenha outro lado porque você vai fazer uma coisa que você nunca fez, você não sabe e às vezes o orçamento não ajuda muito, então você às vezes corre algum risco, né? Mas de toda minha carreira posso dizer que o que eu mais gostei, o mais desafiador pra mim foi o Don Quixote. Foi um trabalho que eu fiz em 2005, faz bastante tempo, mas ele foi bastante marcante pra mim, entendeu? Porque foi um trabalho que eu nunca tinha feito e que eu não sabia se ia dar certo ou não e que eu aceitei fazer e é um dos que eu mais gosto. Fora isso eu ja fiz vários outros, várias outras decorações de Natal também, outros trabalhos. Hoje em dia o que eu estou fazendo e acho bastante interessante são os quadros que vão vir pra cá, pro Museu. Esses quadros é o seguinte, há muito tempo, há pelo menos uns três, quatro anos eu venho ensaiando essa coisa de começar a fazer quadro, de querer entrar pra essa coisa de fazer quadros, é uma coisa que eu já fiz alguns, desde 2008 que eu venho fazendo alguns. E essa coisa de fazer rosto, de fazer a feição humana vem me chamando, só que enquanto você não tem um cliente é difícil porque assim, no meu caso eu tenho que cuidar da cooperativa, eu tenho minha família, eu tenho um monte de coisa. Então você ter um espaço também pra fazer obras que você está fazendo porque você quer é difícil, entendeu? Então acabou acontecendo através desse trabalho, através dessa necessidade, que foi essa demanda da gente fazer quatro quadros grandes. Está sendo uma aula muito interessante, um projeto artístico, uma coisa muito interessante pra mim, entendeu? Uma nova fase, vamos dizer assim. E de uma certa maneira, de tanto você pensar, pensar, adquirir, adquirir, a coisa uma hora vem e acontece, que é o que está acontecendo agora. Então está sendo bastante interessante essa fase em termos de Arte.
P/1 – E você chegou a falar que você tem um filho.
R – Na verdade eu tenho duas filhas. Duas filhas lindas, maravilhosas, a razão da minha vida. Olha como são as coisas. Em 2006 a Ângela, que é a minha esposa, ela ficou grávida. O que aconteceu? A minha primeira filha tem síndrome de Down. E antes dela nascer a Ângela tinha feito um exame que já indicava a possibilidade de ser Down, entendeu? Eu particularmente, como já tinha dado aula pra Down, já tinha uma vivência ali não foi uma coisa que me assustou, a minha esposa acho que ela ficou mais assustada um pouco, pelo fato dela ser mãe, tudo, acho que ela ficou bastante preocupada durante a gravidez, mas eu já fiquei mais tranquilo. E quando a Vivi nasceu foi de uma felicidade, sabe, de uma mudança na minha vida muito grande. Ela trouxe uma luz. E ela tem um grau baixo, não sei como é que fala, mas ela não é tão comprometida. Então pra mim é normal também assim, eu vejo que ela tem algumas dificuldades a mais de aprender, demora um pouco mais, mas sinceramente eu vejo ela como uma criança normal. Aí nasceu a Vitória, o nome dela é Vitória. E olha como é que é: Vitória era uma senha minha no computador de um e-mail meu. Toda vez que eu ia colocar a minha senha vinha uma voz na minha cabeça e falava assim: “Esse vai ser o nome da sua filha”. E eu falava: “Mas o que é isso? Filha?”, sabe, nem pensava nisso. Porque até então eu achava que eu ia ter um filho, não imaginava tendo uma filha, imaginava sempre tendo um filho, tal. Aí vinha essa voz na minha cabeça (risos), vai ser o nome da sua filha. Aí quando eu fiquei sabendo que ia ser Down, não sei o quê e pá, pá, pá, foi uma verdadeira luta, eu falei: “O nome dela vai ser Vitória”. Realmente, eu falei pra Ângela: “Vamos colocar Vitória”, e realmente foi, Vitória, mais conhecida como Vivi. Quando ela estava na barriga da mãe dela eu já chamava ela de Vivi. Então ela veio e é uma alegria, é uma felicidade muito grande. Aí quando a Vivi era pequenininha ainda a Ângela ficou grávida de novo, isso meio sem programar, sabe? A Ângela nem sabia que estava grávida, só foi ficar sabendo depois, foi meio que um acidente, uma coisa não programada, aí veio a Valentina. A Valentina já nasceu normal, não é Down, nem nada e faz uma puta de uma companhia pra Vitória, as duas são grudadas, uma ensina a outra, uma apoia a outra. Então isso foi uma mudança, uma alteração muito significativa na minha vida, ter essas meninas. E hoje em dia eu sinceramente não me imagino com filho homem, porque elas são tão próximas de mim e eu também sou muito próximo delas, então é bem interessante isso.
P/1 – E como é que você conheceu a sua esposa?
R – A minha esposa eu conheci quando eu trabalhei no Walmart, nessa passagem rápida eu acabei conhecendo ela lá e a gente está junto já faz 15 anos. E ela acompanhou toda essa trajetória minha dessa coisa da Arte, ela pegou lá no começo quando eu fazia os trabalhos no meu quarto, saía pra vender, ela acompanhou toda essa fase. Também foi trabalhar comigo na cooperativa um bom tempo. Ela também tem uma pegada assim. Quando ela trabalha comigo na questão de fazer as coisas ela faz bem, ela leva jeito pra coisa.
P/1 – E as suas filhas, elas já têm alguma coisa que elas querem fazer na vida, ou que você queria que elas fizessem?
R – Ah, eu não tenho como muito querer o que elas fazem porque é uma decisão delas. O que eu procuro fazer é fazer com que elas descubram a vocação delas, entendeu? Eu não quero influenciar. Elas gostam de fazer coisas comigo, de trabalhar. A Valentina mesmo adora pintar quadros e tal, mas eu estou deixando pra que isso aconteça de uma maneira natural. Como elas têm sete, oito anos agora, então acho que elas têm mais é que brincar nessa fase, se divertir, não pensar nisso por enquanto.
P/1 – E agora, depois disso tudo o que você me falou, você acha que a reciclagem mudou a sua vida?
R – Sim, eu acho que a reciclagem mudou, com certeza. A reciclagem, na verdade, ela direcionou a minha vida, ela me deu uma base muito grande nessa questão da reciclagem. O meu trabalho está direcionado pra isso. Eu vejo que tem um caminho ainda a ser trilhado pra que a gente possa melhorar de fato essa coisa do consumismo. Porque quando você fala em reciclagem é uma questão tão ampla, uma questão que abrange tanta coisa. Porque abrange o consumismo, abrange a indústria, seus designers. Abrange também o pós, que são as cooperativas que trabalham com isso. É muito abrangente. Abrange também o poder público na questão de incentivar, apoiar através de leis também. A logística disso. Porque por exemplo lá onde eu moro, tanto em Pirituba como na Serra de _2:17:13_ não tem uma coleta seletiva, entendeu? Se eu quiser reciclar o meu material eu tenho que colocar dentro do meu carro e levar para uma cooperativa. E eu conheço a maioria das cooperativas de São Paulo, eu já fui visitar, comprar material, conhecer e a maioria das cooperativas eu fico um pouco triste porque a realidade delas é muito dura. Eu acho ainda muito precário como as cooperativas trabalham. Como não é levado a sério a questão dos resíduos e muito menos das pessoas que trabalham lá. Porque a maioria das pessoas que está trabalhando numa cooperativa de reciclagem hoje é porque não tem outra opção de trabalho, não é porque elas estão lá porque elas veem um futuro, ou porque elas gostam. Porque é um ambiente inóspito, desagradável. Eu acho que a coisa tem que ser mais bem organizada, tem que abrir mais cooperativas, como eu disse pra você é uma questão mais profunda, é uma questão de educar, uma educação constante também, que eu acho que as crianças são parte fundamental nisso porque elas estão vindo como se fossem um papel em branco, então a maneira que a gente vai educá-las é fundamental.
P/1 – E você pensa nisso das suas filhas também?
R – Sim. Eu acho que o que cabe a nós é educá-los da melhor maneira porque isso eles já sentem um pouco na escola, né? Por exemplo, na casa da minha filha eu faço a decoração de Natal da escola delas com material reciclado. Lá na escola eles já falam de não gastar o material do planeta, não gastar a água do planeta, então eles já têm já essa preocupação. Eu particularmente não tive, na minha época não se falava nisso, de questões ambientais. Eu comecei a ouvir a questão ambiental na questão da camada de ozônio que começou mais, que hoje em dia nem se fala mais, né? Então vamos ver, vamos trabalhar pra que a coisa mude, pra que a gente se conscientize.
P/1 – Hoje você tem quantos anos?
R – Hoje eu tenho 40.
P/1 – E quais são seus sonhos pro futuro?
R – Boa pergunta, hein (risos). Eu acho que o meu sonho hoje, depois de tudo isso, tudo o que aconteceu, eu acho que o meu sonho maior mesmo é viver de uma maneira tranquila, feliz, de uma maneira harmoniosa. Acho que essa é a maior riqueza que uma pessoa pode ter, entendeu? Eu acho que riqueza na verdade não é dinheiro, não é bens de consumo. Riqueza é você estar tranquilo com você mesmo, você estar em paz, é você estar com pessoas que você gosta e você passar coisas boas pra elas. E de você se conectar a coisas boas e simples da vida. Eu acho que isso é o que eu busco, o meu sonho na verdade é isso, é estar tranquilo, é continuar fazendo esses trabalhos e trabalhar com Música, criar as minhas filhas da melhor maneira possível. Porque eu sei a falta que faz um pai porque eu cresci sem pai, então o que eu puder de ser um bom pai também, de instruir, tanto as minhas filhas como outras crianças também, outras pessoas. Então essa é a minha busca na verdade, é o que eu quero alcançar tanto na Arte como na Música, como na vida.
P/1 – E como é que foi contar a sua história?
R – Nossa, é tanta coisa, né? É tanta coisa. Vamos dizer que foi uma parte, então eu acho que é legal, é interessante (risos). É interessante contar um pouco de como foi. Eu olho assim e falo: “Nossa, já estou com 40 anos, meu Deus do céu. Já fiz isso, já fiz aquilo, já fiz não sei o quê. Xi” (risos). É diferente.
P/1 – Tá certo então, Sandro, obrigado pela sua presença, seu tempo, sua disposição.
R – Eu é que agradeço, imagina. Espero que seja bastante proveitosa, foi uma grande honra poder participar aqui desse depoimento. Mais uma formiguinha já que vai fazer uma diferença no todo, né, eu vejo isso. E sucesso sempre pra vocês que é muito importante esse trabalho que vocês estão fazendo de pegar e mostrar como é o ser humano, o que é o ser humano, o que ele já fez, o que ele pensa. Isso é indispensável para as futuras gerações, é muito importante.
P/1 – Tá certo, obrigado. Foi ótimo.
R – De nada, tá ótimo.
FINAL DA ENTREVISTA
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