P/1 – Boa tarde, doutor Picanço. Vou começar a entrevista pedindo para o senhor falar seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Boa tarde. Primeiro, foi um prazer muito grande vir aqui e poder participar deste projeto que vocês estão desenvolvendo. Meu nome completo é Mario Antonio Garcia Picanço, nasci no dia 17 de julho de 1941 na cidade de Fortaleza, à beira da praia. Fiz meu curso primário, secundário e ginasial todo no Ceará e minha formação, de Engenheiro Civil, é da Universidade Federal do Ceará.
P/1 – Como foi passar a infância na cidade de Fortaleza na década de 1940 para 1950?
R – Foi uma beleza que a gente não consegue nem narrar, tal a felicidade que eu tive de nascer naquela época, naquela cidade. Uma cidade pequena, que tinha atrativos muito grandes, que hoje as cidades grandes já não têm mais. Foi uma infância muito feliz, muito saudável porque a gente tinha muita liberdade. Podia caminhar, brincar e soltar pipa em qualquer lugar da cidade sem nenhum problema, sem risco de qualquer coisa que viesse incomodar a vida da gente.
P/1 – Em que bairro o senhor morava, doutor Picanço?
R – Dizem que hoje a metade de Fortaleza é Aldeota, mas era na antiga Aldeota, onde hoje praticamente já é o centro da cidade. Quando menino, aquela região da Aldeota era praticamente o final da cidade de Fortaleza.
P/1 – E o senhor estudou os primeiro anos em que colégio?
R – No Colégio São João, do curso primário até o final, desde o jardim da infância até o final.
P/1 – Era católico o colégio?
R – Não era um colégio religioso. Era um colégio que aceitava toda e qualquer crença religiosa, não havia ensino religioso específico no colégio.
P/1 – Tinham algumas matérias que o senhor gostava mais, que o senhor já se dedicava mais?
R – De um modo geral, eu sempre fui caído pelas ciências da matemática. Sempre procurei me...
Continuar leituraP/1 – Boa tarde, doutor Picanço. Vou começar a entrevista pedindo para o senhor falar seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Boa tarde. Primeiro, foi um prazer muito grande vir aqui e poder participar deste projeto que vocês estão desenvolvendo. Meu nome completo é Mario Antonio Garcia Picanço, nasci no dia 17 de julho de 1941 na cidade de Fortaleza, à beira da praia. Fiz meu curso primário, secundário e ginasial todo no Ceará e minha formação, de Engenheiro Civil, é da Universidade Federal do Ceará.
P/1 – Como foi passar a infância na cidade de Fortaleza na década de 1940 para 1950?
R – Foi uma beleza que a gente não consegue nem narrar, tal a felicidade que eu tive de nascer naquela época, naquela cidade. Uma cidade pequena, que tinha atrativos muito grandes, que hoje as cidades grandes já não têm mais. Foi uma infância muito feliz, muito saudável porque a gente tinha muita liberdade. Podia caminhar, brincar e soltar pipa em qualquer lugar da cidade sem nenhum problema, sem risco de qualquer coisa que viesse incomodar a vida da gente.
P/1 – Em que bairro o senhor morava, doutor Picanço?
R – Dizem que hoje a metade de Fortaleza é Aldeota, mas era na antiga Aldeota, onde hoje praticamente já é o centro da cidade. Quando menino, aquela região da Aldeota era praticamente o final da cidade de Fortaleza.
P/1 – E o senhor estudou os primeiro anos em que colégio?
R – No Colégio São João, do curso primário até o final, desde o jardim da infância até o final.
P/1 – Era católico o colégio?
R – Não era um colégio religioso. Era um colégio que aceitava toda e qualquer crença religiosa, não havia ensino religioso específico no colégio.
P/1 – Tinham algumas matérias que o senhor gostava mais, que o senhor já se dedicava mais?
R – De um modo geral, eu sempre fui caído pelas ciências da matemática. Sempre procurei me dedicar mais a esta atividade e menos às ciências biológicas, apesar de ser a menina dos olhos do meu pai.
P/1 – Por que era a menina dos olhos do seu pai?
R – Porque meu pai era médico e ele gostava muito da atividade, falava muito sobre isso. Muito do que eu aprendi da parte biológica foi ouvindo meu pai, não nos bancos da escola.
P/1 – E falando um pouquinho de família, como era a composição familiar do senhor, os irmãos do senhor, irmãs?
R – Nós somos quatro, todos homens, todos nascidos em Fortaleza, na mesma região. Sempre tivemos uma infância muito boa, muito harmoniosa, sempre foi de muita tranquilidade. Meus irmãos, dois deles, seguiram a carreira do meu pai, são dois médicos, e os outros dois, os mais rebeldes, seguiram a engenharia.
P/1 – Era bem natural, o senhor gostando das ciências exatas, das matemáticas, ou o senhor procurou ir para o lado da engenharia?
R – Foi natural, sem nenhuma outra influência. Foi muito mais seguindo a vocação que a gente tinha.
P/1 – E o senhor fez faculdade?
R – Eu fiz a faculdade no Ceará, em Fortaleza.
P/1 – Tinha alguma matéria que o senhor gostava mais, algum professor que o chamava mais atenção?
R – Olha, tivemos vários, eu acho que enumerar agora seria cometer o pecado de esquecer algum... Era uma escola muito nova, recém-criada. Quando eu ingressei na Escola de Engenharia, ainda não havia sido formada a primeira turma. A escola estava acabando de se estabelecer e havia um corpo docente formado por pessoas com muita experiência na engenharia local, do Ceará. Eram professores novos que estavam começando também a sua carreira e um corpo discente muito pequeno. As nossas turmas eram muito reduzidas, eram grupos de, no máximo, vinte pessoas por sala e havia um compromisso muito forte de procurar se desenvolver na escola de criar um nome, de marcar presença em uma escola que estava nascendo. Então foi muito marcante para mim essa passagem na Escola de Engenharia pelo momento que a escola vivia, de afirmação.
Era uma escola que estava procurando se afirmar no cenário nacional como uma escola de bom ensino e havia um compromisso muito sério entre os alunos e os professores, através de um mecanismo que nós criamos - o “Código de Honra”, em que havia um compromisso de todos os alunos em seguir todo o curso de Engenharia sem colar. E nós seguíamos. Fazendo provas em casa, em qualquer lugar da escola, em qualquer sala, em qualquer ambiente, porque o compromisso assumido por nós com o corpo docente da escola era o de não colar. Com isso, nós seguimos, fizemos a escola, e achamos que montamos um nome para ela e um reconhecimento que a Universidade do Ceará teve no ensino de engenharia no Ceará.
P/1 – Tinha alguma especialização, civil, elétrica?
R – Era uma escola de Engenharia Civil, o nosso título de formação era em Engenharia Civil, mas era um currículo politécnico. A escola procurava preencher as necessidades do mercado do nordeste que eram em várias áreas, mas o curso era único, de Engenharia Civil, embora as matérias que eram ministradas caminhavam para uma formação politécnica, tanto que vários colegas meus foram para o campo da engenharia elétrica, outros para o campo da mecânica, industrial e outros no civil.
P/1 – E o senhor, como o senhor começou a carreira então?
R – Na área ferroviária?
P/1 – Na área profissional.
R – A Escola de Engenharia tinha uma participação muito grande com a Rede Ferroviária. Ela praticamente utilizava as oficinas, as instalações da Rede para as suas aulas práticas. Então, desde o início, a gente convivia com aquele ambiente da ferrovia, com as oficinas, com os laboratórios etc. A ferrovia abria as portas para a universidade utilizar e, logo de pronto, mesmo como estudante, eu ingressei na ferrovia como estagiário, já fazendo parte do corpo de funcionários da ferrovia.
P/1 – Quando você fala ferrovia, que ferrovia que é exatamente?
R – No Ceará chamava-se Rede de Viação Cearense, que era um dos segmentos da antiga Rede Ferroviária Federal S/A (RFFSA). Era oriunda de uma situação anterior que existia no sistema ferroviário, que eram unidades estanques que não se conversavam uma com as outras, mas a do Ceará, que englobava o estado da Paraíba, do Ceará e do Piauí chamava-se Rede Viação Cearense (RVC).
P/1 – Quais foram os desafios da carreira como ferroviário?
R – Como ferroviário, foi o de fazer um reparo geral de uma locomotiva. (risos) A minha primeira missão, já como estagiário de Engenharia, foi a de organizar e participar de toda a montagem do planejamento de um reparo geral de uma locomotiva, que significa uma desmontagem, verificação e conferência de todas as partes eletromecânicas de uma locomotiva. Apesar da minha formação de engenharia civil, eu iniciei o meu trabalho como engenheiro mecânico, trabalhando em oficinas, trabalhando em reparo de motores elétricos.
P/1 – Descreve para a gente, doutor Picanço, como é esse ambiente das oficinas ferroviárias? O que chama a atenção? Quais são os cheiros, os sons?
R – É um ambiente bem característico de uma oficina: muito cheiro de diesel, muito cheiro de óleo... No caso da ferrovia, muito barulhenta; o nível de ruído é muito alto por causa das máquinas, dos motores funcionando, mas [era] um ambiente muito grande, com muita gente, muito trabalho, com uma diversidade de atividades muito grande, que vai desde carpintaria e serraria à de mecânica especializada em rolamento de motores elétricos etc.
P/1 – Nessa época, qual era a principal missão desta ferrovia destes três Estados? Era o transporte de pessoas?
R – A ferrovia sempre atuou em todos os campos de transporte, mas o transporte de cargas sempre foi o principal, aquele que, digamos assim, dava a maior sustentação econômica à ferrovia. O transporte de passageiros era aquele que dava o maior prestígio e o relacionamento da ferrovia com a comunidade e com o ambiente onde se estava inserido. Eu diria que o transporte de passageiros era o carro-chefe das preocupações das ferrovias, era ali que se concentravam os grandes esforços para ter a ferrovia bem cuidada, ter os equipamentos bem ajustados para prestar um bom serviço para os passageiros.
P/1 – No caso do transporte de carga, que tipo de carga era mais comum se transportar, naquela época?
R – Naquela época, no campo da ferrovia do Ceará, era principalmente o algodão. O Ceará era um estado exportador de algodão, tinha um transporte muito intenso de algodão, de vários pontos do interior do estado para o porto de Fortaleza, onde eles eram exportados. Derivados de óleos vegetais, depois apareceu o cimento de fábricas que foram se instalando na região, mas fundamentalmente, naquele momento em que eu ingressava na ferrovia, o transporte principal era de algodão, dos derivados de vegetais e de sementes de mamona, de oiticica, que eram produzidos na região.
P/1 – Como se desenvolve a carreira do senhor dentro da Rede?
R – Dentro da Rede, depois de formado, eu fui chefiar um oficina de manutenção de locomotiva e comecei a minha vida me dedicando a esta formação de oficina. Por conta disso, eu fiz cursos de especialização em locomotiva nos Estados Unidos da América, junto aos fabricantes de locomotivas que atendiam a Rede Ferroviária do Brasil. Por aí, eu comecei nessa questão das oficinas e progredindo para o transporte. As oficinas eram exatamente quem comandava as locomotivas que produziam os trens e faziam circular e a minha carreira foi daí, das oficinas, para o Setor de Planejamento de Transporte.
P/1 – Quando foi, mais ou menos?
R – Depois de uns cinco ou seis anos de atividade nas oficinas.
P/1 – Quais passaram a ser os novos desafios para o senhor?
R – Dentro da ferrovia?
P/1 – Dentro da ferrovia. O que mudou, substancialmente, ao sair da oficina?
R – Sair da oficina e ir para os transportes era quase uma situação natural dentro da carreira da formação do transporte, você vir da formação da manutenção dos trens para a execução dos transportes. O desafio maior foi assumir a chefia de todo o serviço ferroviário do Ceará que foi, para mim, na época que eu estava lá, o maior desafio que eu enfrentei.
P2 – Eu queria aproveitar e perguntar das locomotivas. Que locomotivas eram essas?
R – Quando eu ingressei na Rede, a ferrovia do Ceará tinha sido a primeira ferrovia do sistema nacional a abolir a tração a vapor, todas as locomotivas eram diesel, elétricas. Na época, a frota do Ceará era composta das locomotivas da Whitcomb Locomotive Company, que é uma das bem antigas, e das locomotivas da American Locomotive Company (Alco). Locomotivas essas que ainda hoje estão prestando serviço na Rede Ferroviária do nordeste, são locomotivas pequenas, chamadas locomotivas de baixa potência.
P/1 – Ainda falando em oficina, do dia a dia do senhor, como eram seus horários nas oficinas?
R – Nas oficinas, a gente iniciava o horário às sete horas da manhã, encerrava às onze, começava à uma e terminava às cinco da tarde. Meu trabalho na oficina era das sete até as três horas da tarde, junto com os funcionários, trabalhando nas locomotivas, e das três em diante era no escritório, para poder fechar a papelada de documentação etc. Então a gente trabalhava sujando a mão de graxa, não era só assinando papel e sentado no ar condicionado. Isso era geral de todo o trabalho do engenheiro, era assim que se fazia: junto do trabalho na bancada de serviço, fazendo e executando também as operações que era necessário fazer para a manutenção dos trens.
P/1 – Quem eram os funcionários que faziam parte da oficina, quais eram as profissões?
R – Uma oficina de manutenção é composta geralmente de mecânicos, eletricistas e metalúrgicos, o pessoal de solda de torneamento de peças...
P/1 – E tinha caldeira, como era?
R – A caldeira, são só...
P/1 – Não a caldeira não, desculpa. Era para metalurgia essa coisa toda?
R – Não, era metalurgia, mas é solda. Isso eu estou falando de uma oficina de manutenção, que foi a oficina que eu comecei trabalhando. Uma oficina de reparação, você pode imaginar, tem toda a gama de equipamento, de material, de peças, de máquinas operatrizes, as mais diversas possíveis, mas numa oficina de manutenção basicamente é um trabalho de mecânicos, eletricistas e soldadores.
P/1 – A oficina ficava em que lugar da cidade?
R – No centro da cidade de Fortaleza, ao lado do cemitério, ainda hoje existe esta instalação. Ela foi desativada como oficina de manutenção de locomotiva, mas hoje é uma instalação que existe e está sendo aproveitada pela ferrovia.
P/1 – Como o senhor fazia seu trajeto para o trabalho? Como o senhor se deslocava pela cidade para chegar no trabalho?
R – De carro particular, deslocamento relativamente pequeno. A cidade ainda não era tão grande e o trânsito não era muito complicado, a gente fazia com relativa facilidade.
P/1 – De que época a gente está falando? De 1960?
R – Eu estou falando de 1965 a 1970, 1975 mais ou menos, nessa década.
P/1 – Aí o senhor passou para o escritório?
R – Aí eu passei para o escritório.
P/1 – E o que mudou efetivamente?
R – Eu passei de usar o macacão. Deixei de usá-lo para ficar no escritório.
P/1 – E em termos de desafios profissionais?
R – Sim, ficando sempre cada vez maiores. À medida que a gente assumia responsabilidade, que ia se envolvendo com outros aspectos do sistema, com outras obrigações e passava a ter uma responsabilidade maior sobre o pessoal, sobre todo o corpo da casa, claro que as preocupações eram muito maiores e os desafios consequentemente eram bem mais intensos.
P/1 – Dessa época, a gente ouviu falar em problemas de acidentes de logística. Que tipo de situações que o senhor lidou ali?
R – As mais diversas possíveis. O sistema ferroviário era um sistema muito precário, de baixa qualidade, com a dormentação ainda muito deficiente, com os trilhos muito antigos. Os equipamentos que se tinha também tinham várias deficiências e se convivia muito com essa questão do acidente. Era muito comum você ter quase diariamente que atender alguma irregularidade de tráfico provocada por um acidente de um trem, de uma passagem qualquer. Isso era, digamos assim, o desafio maior que todos nós naquela época enfrentamos na ferrovia: mudar este quadro, tentar reverter esta situação, dar uma característica mais segura à ferrovia, mudar o padrão técnico que tinha para poder reduzir e, se possível, até eliminar de uma vez este quadro.
P/1 – Vocês trabalhavam com uma consultoria de fora?
R – Não, nessa época, quase tudo era gerado dentro da própria ferrovia. Dificilmente tinha alguma contratação externa, a não ser em uma coisa muito particular, de um detalhe muito pequeno. Era uma época que as empresas públicas tinham um corpo técnico muito grande e que era capaz de enfrentar todos os desafios sem a necessidade de recursos externos.
P/1 – Tinha troca de informação entre as outras ferrovias para a resolução destas questões?
R – Muito, muito. Havia um trabalho, isso já era um trabalho da direção nacional da Rede, de estabelecer essa troca de informações. Havia seminários, encontros técnicos durante várias oportunidades no ano para exatamente haver este intercâmbio.
Foi um grande sucesso que a Rede alcançou naquela época: haver uma padronização técnica do serviço ao longo do Brasil todo. Só para você ter uma ideia do que significa isso, quando eu ingressei na Rede, a ferrovia que fazia contato com a do Ceará, que era de Pernambuco, as especificações dos trens eram diferentes e o trem de uma não circulava na linha da outra porque havia diferenças de altura, de gabarito, de coisas deste tipo, que não permitia, o que dificultava esse intercâmbio. Quando a Rede assumiu este trabalho de harmonizar tecnicamente todo o material, foi um sucesso muito grande, que permitiu que se modificasse um pouco o cenário e a atuação da ferrovia, fazendo com que as unidades operacionais pudessem estender o seu campo de atuação para outras regiões, outros locais e buscar, consequentemente, transportes outros que não tinham naquele momento.
P/1 – Por que esta situação acabou acontecendo, de ter estas bitolas diferentes?
R – Isso vem da origem do sistema ferroviário brasileiro. O sistema ferroviário brasileiro nunca foi concebido como um sistema, como um mecanismo de integração de regiões. Ele foi concebido como um sistema para atender alguma demanda da economia de alguma região para exportação e importação de determinado produto, sempre limitado a uma ligação de uma região produtora a um porto de importação ou de exportação que depois, ao longo do tempo, foi se interligando e procurando criar, transformar, essa rede de ferrovias isoladas num sistema só. Até hoje o nosso desenho da malha ferroviária traz dificuldades para você concorrer, porque ele não tem a diretriz exata de um sistema de integração entre regiões.
P/1 – Isso tem mais a ver com o fato de a gente ter um país com dimensões tão grandes, continentais, ou pelo fato de terem sido iniciativas locais de implantação...
R – Eu acho que mais pelo fato de terem sido iniciativas locais. Eram muitas iniciativas para atender determinadas situações muito regionais e, por conta disso, se buscava equipamentos e especificações que, às vezes, diferenciavam uma das outras. Então se criaram algumas coisas diferentes, algumas dimensões diferentes, porque não se pensava naquele momento em ter o sistema integrado funcionando, como outros países do mundo fizeram.
P/1 – E como a carreira do senhor vai se desenvolvendo?
R – Depois que eu passei a chefiar o serviço ferroviário do Ceará, foi quando a Rede criou uma nova estrutura administrativa, criando os Sistemas Regionais. Até então havia um certo isolamento de algumas unidades e criou-se o sistema regional, estabelecendo em Recife um comando de todo o sistema do nordeste, que, no momento que foi implantado, abrangia da Bahia até o Maranhão. Depois disso, eu fui convidado a ir para Recife, para atuar na direção do Sistema Regional em Recife (SR-1) que, já naquela oportunidade, era só de Alagoas até São Luís do Maranhão. Foi aí que eu praticamente encerrei a minha carreira na ferrovia, no trabalho da Regional do Nordeste, que era sediada em Pernambuco e que englobava o trabalho das ferrovias do Maranhão, do Ceará e de Pernambuco.
P/1 – Como foi sair do Ceará?
R – Sair do Ceará, para mim, foi fácil porque meus meninos ainda eram crianças, não tinham dificuldades. Minha mulher também se mostrou muito disposta a me acompanhar e me incentivar nisso, então, para mim, foi fácil a mudança para o Recife. Eu já tinha um conhecimento muito grande, um relacionamento bom com todo o pessoal da ferrovia pernambucana, não foi difícil. O que foi triste foi que eu tive de deixar uma outra atividade que eu exercia no Ceará, que era muito prazerosa: era a de ser professor da Universidade Federal do Ceará, onde eu tinha me formado. Por conta disso, eu tive de abandonar a minha carreira universitária.
P/1 – O senhor ministrava aulas do quê?
R – Eu ministrava aula de Mecânica aplicada às máquinas, nos cursos de Engenharia Civil e Engenharia Mecânica. Já havia o curso de Engenharia Mecânica na escola de Engenharia.
P/1 – Indo para o Recife, o que passou a ser mais presente dentro da ferrovia?
R – Era exatamente dar continuidade a todo aquele trabalho que a Rede vinha desenvolvendo no cenário nacional, de padronizar todo o serviço ferroviário, de buscar uma maior participação da ferrovia no mercado de transporte e de melhorar tecnicamente a qualidade do serviço que se prestava.
P/1 – E na prática, na ponta da linha, como isso foi feito?
R – Isso foi feito modificando todo o processo de manutenção e de conservação da via permanente, que é onde correm os trens, que são os trilhos, os dormentes. Criando toda uma filosofia nova de manutenção de via, uma programação de melhor aproveitamento do recurso existente, o que permitiu que o grau de segurança da linha aumentasse consideravelmente. E se passou a colocar materiais mais modernos, substituir os trilhos, abriu-se a iniciativa de colocar dormentes de concreto que, pela primeira vez, se fazia na ferrovia. Era uma novidade se colocar materiais adequados no leito da ferrovia e de dar uma melhor qualidade de manutenção aos seus vagões e locomotivas. Isso fez com que os resultados operacionais da regional melhorassem consideravelmente, apesar de ser uma unidade da ferrovia de dificuldade de atuação no mercado. O mercado no nordeste é um mercado muito restrito, mas melhorou bastante a qualidade técnica da prestação do serviço.
P/1 – Quando o senhor fala mercado restrito, o que é?
R – É que se você olhar hoje o sistema ferroviário do nordeste, você vai verificar que até hoje ele continua isolado do resto do Brasil. Ele continua praticamente só atendendo as trocas dentro do próprio nordeste. Hoje, inclusive, a ferrovia está desligada do sistema do sul. Naquela época ela estava ligada, mas, mesmo assim, por um trajeto e um traçado que não dá muita competitividade nas trocas entre o nordeste e o sul. Então você fica com a ferrovia atuando só no mercado nordeste, por isso que eu digo que tem uma dificuldade maior de captação de carga porque as trocas entre os Estados do nordeste não são tão grandes que permitam ocupar uma ferrovia em tempo integral.
P/1 – Estas trocas seriam...
R – Mais para o sul e mais para o mercado exportador, o que hoje está se configurando no cenário nacional como uma perspectiva excelente nas ferrovias do nordeste pela alteração que se está criando, diante dos portos que estão surgindo no nordeste e que vão atuar no mercado exportador de grãos de uma maneira bem intensa.
P/1 – E quando você fala em grãos, que grãos são?
R – Soja, milho. Hoje, o futuro da ferrovia do nordeste é ir buscar grãos no cerrado do Brasil. Ela hoje está saindo do mercado do nordeste propriamente dito para atuar no mercado do centro-oeste, para trazer grãos para exportação pelos portos do nordeste, que são portos que têm uma qualidade muito boa de operação marítima e que têm uma perspectiva muito boa no mercado internacional pela localização.
P/1 – Por que os portos do sul estão sobrecarregados?
R – Também e os do nordeste estão mais perto do mercado consumidor.
P/1 – Quando o senhor fala cerrado, a gente fala o que? Goiás, Mato Grosso?
R – Principalmente o cerrado piauiense e maranhense, da região do Maranhão e do Piauí e também da região do Goiás, do oeste da Bahia, onde hoje a fronteira agrícola do Brasil, no que diz respeito a soja, está caminhando.
P/1 – Na década de 1970 o senhor está no Recife?
R – [Na] década de 1970 eu estou no Recife, chegando no Recife já praticamente nos anos de 1980. Passei cinco anos na direção da regional do Recife e de lá eu fui para Brasília, até onde eu estou hoje.
P/1 – Como que o senhor foi parar em Brasília? Teve um convite?
R – Teve um convite, uma oportunidade que eu tive a convite do ministro do transporte, para assessorá-lo na Secretaria Executiva do Ministério.
P/1 – Quem era o ministro?
R – O ministro José Reinaldo Tavares.
P/1 – De que época?
R – Do governo de José Sarney.
P/1 – O senhor saiu da praia e foi para Brasília?
R – Saí da praia e fui para o planalto central que, no início, foi muito difícil... A família teve dificuldade de se ajustar a esta nova situação.
P/1 – Vocês foram morar no Plano Piloto ou nas cidades?
R – No Plano Piloto, ainda hoje eu moro no mesmo no local para onde eu fui, mas hoje, se perguntar se alguém quer sair de Brasília, ninguém quer mais voltar de Brasília. Está todo mundo muito bem estabelecido lá, ajustado, a família toda organizada por lá.
P/1 – O que apaixona em Brasília?
R – Brasília é uma cidade que agrada pela arquitetura, pela qualidade de vida que a cidade proporciona, a facilidade de acesso às coisas. É uma cidade muito tranquila para se viver.
P/1 – E o senhor foi para o Ministério?
R – Fui para o Ministério.
P/1 – De novo a pergunta: quais os desafios? Por que o Ministério pensa de uma maneira macro...
R – Aí foi um bocado de coisa nova que apareceu, porque pela primeira vez eu atuava em todas as áreas de transporte e eu estava mais acostumado só na área ferroviária, que era a minha de origem de formação. Passei a desenvolver trabalhos em todas as atividades, tanto rodoviária, portuária, de planejamento de transporte etc. Foi uma coisa que fez com que eu me dedicasse com muita intensidade, para poder superar todo este desafio que vinha pela frente.
P/1 – Voltando só um pouquinho, em que circunstâncias se deu este convite?
R – Na circunstância em que eu estava saindo da direção da ferrovia em Recife. O ministro tinha sido superintendente da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) lá em Recife, nos conhecíamos muito bem e quando ele assumiu o Ministério, me convidou para ir com ele. Nós já nos conhecíamos de algum tempo, tínhamos um relacionamento anterior, já grande, aí eu fui guindado para lá.
P/1 – Como o senhor começou a ter este olhar mais integrado para os transportes?
R – Foi um aprendizado novo porque a gente tinha que começar a reciclar tudo, a entender toda uma nova situação. Foi uma coisa muito prazerosa, mas que exigiu muito trabalho e muita dedicação.
P/1 – Foi na década de 1980?
R – Na década de 1980. Isso foi durante todo o governo do presidente Sarney.
P/1 – A gente tem como contexto da década de 1980 muita dificuldade financeira, tiveram os planos econômicos todos. Como foi lidar com estas questões dentro de uma área tão importante?
R – Muito complicado. O grande desafio que o ministério tinha era o de prover recursos para que os sistemas pudessem continuar funcionando. A malha rodoviária exigia uma quantidade grande de recursos, que até então existiam através do Fundo Rodoviário Nacional, que a constituição de 1988 extinguiu. Consequentemente, os recursos ficaram mais escassos e difíceis. O sistema ferroviário exigia também uma complementação porque a ferrovia não era autossuficiente, não gerava todos os seus recursos, era necessário que o governo complementasse. A grande dificuldade do Ministério era essa de gerir os recursos e de provê-los para o sistema; aquela dificuldade econômica que o país vivia dificultava os financiamentos externos e os acordos que se podiam firmar com bancos internacionais. Tinha-se muita dificuldade na gestão destas coisas, o que ocupava muito o trabalho do Ministro e, consequentemente, quem executava as ordens dele tinha a maior dificuldade de transmitir tudo isto adiante e levar ao final da linha.
P/1 – Pensando em transportes de uma maneira geral, nesta década de 1980 tem a construção da Estrada de Ferro de Carajás e junto tem o porto, que é pensar soluções integradas...
R – Que é o porto do Itaqui.
P/1 – Como o ministério ajuda a pensar - porque, na época, a Vale do Rio Doce era estatal...
R – Mas a Vale não era uma empresa do Ministério dos Transportes, a Vale era ligada ao Ministério de Minas e Energia, se não me engano.
P/1 – Existia alguma participação nessas ações?
R – Com a Vale muito pouca, de integração do Ministério dos Transportes com a Vale. A Vale se dedicava muito ao seu negócio próprio, que era o transporte do minério que era produzido por eles, e não tinha uma atuação muito grande no mercado de carga geral do país. De fato, a integração da Vale e o Ministério dos Transportes era muito pequena.
P/1 – E no caso de outras empresas similares, que tinham seu foco específico.
R – Exatamente.
P/1 – Pensando numa integração maior com a América Latina, tinha essa preocupação já?
R – Tinha. A preocupação com a América Latina sempre foi, nesta época em que eu participei do governo federal, muito grande, na preparação do que é hoje o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), principalmente nas relações com a Argentina.
P/1 – Que o Sarney se aproxima de Raúl Alfonsín.
R – Houve um esforço muito grande no governo Sarney e com o governo Alfonsín de se fazer um embrião e de se estabelecer as bases do que depois se transformou no Mercosul. O transporte era um dos elementos importantes deste processo de integração, que permitia que houvesse uma consolidação maior das vias de transporte entre os dois países. Era uma via muito travada, essa entre Brasil e Argentina, em que as coisas não aconteciam com facilidade. As fronteiras eram muito difíceis de serem abertas para o trânsito de caminhões, de navios, o que levou a um esforço grande do governo naquele momento de fazer essa integração. Isso existiu mais intensamente com Argentina, Uruguai e Paraguai, que foi exatamente onde nasceu o Mercosul.
P/1 – A ideia era abrir os canais de transporte para as mercadorias?
R – Principalmente de abrir as facilidades, porque a dificuldade maior não era nem do sistema viário, era muito mais das questões de regulamento de um com o outro, questões alfandegárias, questões de fitossanitárias que travavam o relacionamento de um país com o outro. A ação era muito mais no sentido de dar mecanismo de regulação mais favorável, mais simples, do que propriamente novas vias de comunicação - aquelas que já existiam eram mal aproveitadas.
P/1 – No caso, as que existiam iam mais para o lado das rodovias ou das ferrovias?
R – Hoje, a integração dos países da América do Sul se dá toda por rodovias. As ferrovias praticamente não se interligam. A ferrovia com a Argentina se encontra em Uruguaiana, em bitolas diferentes. Na Argentina era uma bitola, a do Brasil outra, então o intercâmbio não é fácil. Ela se dá na mesma bitola com a Bolívia, mas o mercado de transporte não é muito grande. Com os outros países ela praticamente não existe.
P/1 – Então seria mais por rodovias?
R – Mais por rodovias ou por meio marítimo.
P/1 – Chegando no final da década de 1980, a gente tem a questão da desestatização e a privatização de várias instituições. Como fica a questão da ferrovia?
R – A questão da ferrovia... Uma das boas soluções que se deu para o sistema ferroviário foi a de partir para privatizar a operação do sistema, que já não conseguia fazer esta gestão através do serviço público. Foi uma medida que se fazia necessária e eu acho que está dando um resultado muito satisfatório para o sistema ferroviário. É uma pena, eu lamento, que nesta oportunidade não se deu uma solução ajustada para o transporte de passageiros e o sistema ferroviário nacional. Hoje é um sistema só voltado para a carga e com muita dificuldade de voltar a se inserir o sistema de passageiros.
P/1 – Com pouquíssima possibilidade?
R – Olha, tem que começar tudo de novo. Tudo praticamente do zero, porque o sistema não progrediu, não evoluiu para o sistema de passageiro, ele foi praticamente extinto.
P/1 – Na visão do senhor, porque a gente fez a opção por transporte rodoviário ao invés do ferroviário?
R – Olha, são coisas que a gente vai voltar muito para trás. Houve uma época no país, isso eu estou falando lá nos anos de 1960, por aí, em que se tomou, nitidamente, como política de governo, uma opção pelo implemento do transporte rodoviário e a extinção do transporte ferroviário. Nessa época, criou-se, no Ministério dos Transportes, o grupo de erradicação das ferrovias, que erradicou várias ferrovias no país e não desenvolveu aquelas que não iam ser erradicadas. Houve essa situação, nitidamente, de uma posição do governo. Foi quando nasceu a indústria automobilística no país e quando as rodovias tomaram um vulto muito grande, a rede asfaltada brasileira cresceu muito. Eu acho que, para aquele momento, foi uma excelente solução econômica que se deu para o transporte, mas, infelizmente, penalizando o sistema ferroviário, que ficou estagnado e muito dele até reduzido e extinto.
P/1 – Como foi o processo de privatização da Rede Ferroviária?
R – Eu já não acompanhei este processo. Eu já tinha saído do governo, saído da Rede, já estava me aposentando. Apenas fiquei acompanhando de fora, como qualquer cidadão acompanhou. Foi um processo necessário, que precisou fazer. Acho que a modelação dele poderia ter sido um pouco melhor na divisão das regiões que foram privatizadas, mas todo o processo desses está sujeito a críticas e vantagens. O fato é que no resultado final ele foi positivo. Gerou uma situação positiva. O tempo vai ajustando e corrigindo aquelas coisas que, no começo, a gente achava que deveria ter sido pensado com antecedência.
P/1 – Quais foram as empresas que entraram?
R – Quando foi privatizado, se não me falha a memória, foram criados seis sistemas, que depois foram sendo reincorporados e modificados. O que modificou muito quando houve a privatização, até hoje, foi a composição acionária das empresas. Hoje, praticamente, a Vale do Rio Doce domina grande parte do sistema ferroviário e a América Latina Logística (ALL) outra parte. Ficou, primeiro, aquela divisão pensada para haver uma maior diversidade de empresas e isso foi se modificando ao longo do tempo.
P/1 – E hoje, como o senhor vê este ramo de atuação?
R – Eu acho que está muito bem. No que diz respeito ao transporte de carga, eu acho que está muito bem. O primeiro momento das empresas privadas foi um momento de reorganização, de reposicioná-las no mercado, de modificar os processos de controle do tráfego, de melhorar frota etc. Agora, eles devem partir para um trabalho de melhoria das suas vias, de novos traçados, de dar maior capacidade ao sistema que ainda é restrito, mas eu acho que o caminho é este mesmo e os resultados estão aí. Eu acho que a participação da ferrovia na matriz de transportes do Brasil está crescendo, chegando a alcançar níveis mais expressivos, principalmente no que diz respeito a essas demandas que vêm desta região mais desassistida de ferrovias, que é o centro-oeste do Brasil, a região do cerrado, a região produtora de alimentos. Com o trabalho das novas operadoras e com o trabalho que o governo federal vem agora desenvolvendo - diga-se de passagem, nunca se construiu tanta ferrovia no país como está se construindo agora -, vai modificar e vai dar uma outra posição para ferrovia no país.
P/1 – Vamos falar especificamente da ferrovia no Recife? Eram três linhas, a Linha Tronco Centro, a Norte e a Sul?
R – A ferrovia Pernambucana estava estruturada basicamente em três linhas e alguns ramais. Era a Linha Tronco Centro, que é a linha de Recife a Salgueiro; é o eixo estrutural de Pernambuco, que vai ser a grande ferrovia da Transnordestina que está se falando hoje. A Linha Tronco Sul ia para Alagoas e de lá se interligava com a Rede Ferroviária no Rio São Francisco e a Linha Tronco Norte ia ao Rio Grande do Norte.
P/1 – Se a gente for pensar em cada uma destas linhas, elas têm um aspecto da paisagem específico? Se o senhor fosse descrever para a gente, se o senhor fosse entrar na Recife-Salgueiro ,que visões eu teria desse espaço?
R – Na linha Recife-Salgueiro você tem uma visão completa do Estado de Pernambuco. Você atravessa todas as regiões de Pernambuco, começando pela zona da mata, aquela região do canavial, de muito verde. Depois, você entra na região do agreste, que é bastante diferente, se vê clara e nitidamente a diferença da zona da mata para o agreste até chegar no sertão. No sertão de Salgueiro, de Serra Talhada, que caracteriza o sertão nordestino, seco, semi-árido, com a vegetação bastante característica da caatinga. O percurso que se faz na linha Recife-Salgueiro, na Linha Tronco Centro, tem uma demonstração clara de toda a divisão regional do nordeste.
P/1 – E a população na Linha Tronco Centro, como ela vai se organizando nas cidades?
R – Primeiro, com o grande centro de Caruaru, saindo de Recife, que é o maior centro que se tem; é uma cidade importante, que congrega, polariza, toda aquela região do agreste pernambucano e, depois, com Salgueiro, já com a característica própria de uma região do sertão, mas é uma região bastante habitada. Toda esta linha passa por uma série de cidades que foram desenvolvidas e que cresceram sempre à margem da ferrovia, porque a ferrovia foi o indutor do crescimento destas cidades. Todas essas cidades nasceram e se desenvolveram por conta da ferrovia que, quando da sua implantação, tinha exatamente este objetivo, o de fixar a população no sertão, na zona mais afastada e, exatamente, em torno da sua estação central.
P/1 – Se a gente pegar a Linha Tronco Norte, que paisagem a gente tem?
R – A Linha Tronco Norte, até Natal, é uma ferrovia que praticamente circula toda a zona da mata, depois segue o ramal da Paraíba que vai para o Ceará, que tem características semelhantes à da linha do centro. Elas praticamente seguem paralelas, atravessando a Serra da Borborema, passando por outra grande cidade do interior do nordeste, que é Campina Grande, e chegando ao sertão do Ceará, na cidade de Sousa, na Paraíba. Também é uma ferrovia cuja paisagem se modifica à medida que vai caminhando mais para oeste, caminhando mais em direção ao sertão. Já a Linha Tronco Sul, que é a linha que vai para Alagoas é inteiramente implantada na zona da mata, na zona do canavial. Praticamente você circula, durante toda a viagem nessa linha, dentro de canaviais.
P2 – E o senhor chegou a fazer alguma destas viagens de trem?
R – Todas. Isto era uma necessidade que a gente tinha. Eu tinha que conhecer todos os pontos e todas as estações. Percorri 100% de toda a ferrovia.
P/1 – Tinha algum lugar que o senhor gostava mais de ver, de ficar, alguma coisa que a gente perde o olhar?
R – Olha, cada local tinha a sua particularidade. A gente tinha umas programações muito rígidas porque tinham determinados locais... Quando escurecia, a gente tinha que parar em algum lugar. A gente, geralmente, procurava algum centro maior, tipo Campina Grande, Caruaru, coisa desse tipo, mas sempre na margem da linha. Nós nunca nos afastávamos, como se diz, da circunferência da estação, então nossa visão das cidades do interior era muito a visão da praça da estação, daquela região ali, porque era ali que a gente passava muito rapidamente e seguia, às vezes, para pernoitar em alguma outra cidade.
P/1 – Quando você fala praça da estação, quais são os edifícios, qual é o aparato que a gente encontra na praça da estação?
R – Basicamente a estação, que é o prédio principal, e, geralmente, algum restaurante, alguma venda de alguma coisa. Um pouco comercial, sempre uma área mais comercial.
P/1 – Tinha pensão, pousada?
R – Sempre tinha, embora nós usássemos instalações próprias da Rede. A gente sempre tinha dormitórios, porque havia uma quantidade muito grande de gente viajando na ferrovia, então a ferrovia tinha em vários locais instalações próprias de dormitórios, alojamentos, para o seu pessoal. Nós os utilizávamos.
P/1 – Além da estação que o senhor já comentou, a oficina, que outros prédios ou instalações eram necessários à ferrovia?
R – Da ferrovia muito poucas, você tinha alguns poucos locais que tinham alguma instalação de oficina, não era muito... Eu diria que em cada linha dessas, além da instalação central, você tinha, quando muito, mais uma instalação em algum outro lugar.
P/2 – Que eram os diques?
R – Diques? Sim, a oficina de locomotiva geralmente tem um dique de manutenção, se eu estou entendendo o que você perguntou, que é uma vala onde você coloca a locomotiva para poder passar por baixo dela e verificar por baixo. Mas eram poucas as instalações que tinham. Algumas delas, mais numerosas, praticamente não eram utilizadas, que eram aquelas que eram oriundas do sistema de locomotivas a vapor. Estas exigiam uma quantidade maior de oficina de manutenção, de reparação, mas com a extinção da tração a vapor estas oficinas praticamente já estavam desmobilizadas.
P/1 – Além das oficinas, o senhor falou dos dormitórios. Tinha a casa do chefe da estação?
R – Tinha, a ferrovia era constituída geralmente de uma estação propriamente dita com seus armazéns, a casa do agente e algumas casas de pessoal de manutenção de via, do mestre de linha, dos trabalhadores. Isso sempre acontecia numa determinada região de uma estação e outras ao longo do trecho - mesmo isoladas, as casas de residência do pessoal, dos trabalhadores de linha.
P/1 – Por que a ferrovia inspira esta paixão nas pessoas pelo trem, por andar de trem até hoje?
R – (risos) Não sei, talvez pelo porte do equipamento, pelo som do apito, alguma coisa que dá uma nostalgia. De fato, a ferrovia, se você voltar à origem dela, era o meio de comunicação daquela comunidade com o mundo porque as coisas chegavam de trem, o jornal vinha de trem, as pessoas vinham de trem, as notícias vinham de trem, o correio. Então toda a cidade vivia aquele momento na chegada do trem, era uma coisa importante porque o trem trazia tudo. Existem canções até muito bonitas sobre este tipo de relacionamento, do que era um trem numa cidade. Por isso é que as pessoas tinham essa visão muito prazerosa do trem, que hoje causa essa nostalgia. Era ele realmente o veículo de comunicação com o mundo, e hoje a internet, as televisões e as redes sem fio estão aí para substituir tudo isso.
P/2 – Como eram essas viagens que o senhor fazia? Como vocês viajavam?
R – Geralmente era num auto de linha, quando a gente fazia este tipo de inspeção, porque com o auto de linha você podia parar, podia fazer alguma verificação em qualquer lugar em qualquer momento, que o trem não permitia que você fizesse. A menos que você estivesse fazendo alguma viagem de preparação de trabalho do próprio trem, essas tinham que ser feitas no próprio trem, mas as que eu fazia, grande parte delas, pelo menos neste momento, que eu já tinha saído das oficinas – quando nas oficinas, eu tinha que fazer as viagens nos trens – já eram em auto de linha.
P/1 – Para quem é leigo, o que é um auto de linha?
R – Auto de linha é um veículo como um automóvel, que anda em cima dos trilhos. Existem aqueles autos que são fabricados propriamente para a ferrovia e quando a gente não tem cão, caça com gato. Nós não tínhamos estes autos, então nós fizemos daqueles veículos Rural Willys. Naquela época, era um veículo que vendia no mercado, [a gente] tirava as rodas dele e colocava roda de trem em cima da linha.
P/1 – Como vocês faziam para sinalizar se estavam perto de alguma composição? Como era a comunicação?
R – Seguindo as regras e a regulamentação de segurança do tráfego. A segurança do tráfego de uma ferrovia se baseia no seguinte princípio: num determinado segmento só pode ter um trem. Só pode ter um veículo ocupando aquela linha, não pode ter dois, então qual é o segmento primeiro que você encontra em uma ferrovia? É o segmento entre duas estações.
Entre uma estação e outra só pode ter um veículo na linha, não pode ter dois. O comando é dado pela estação, que permite ou não que aquele veículo prossiga naquele trecho. Quando é dada uma permissão para ele seguir no trecho, é bloqueada a permissão para que outro dê continuidade.
P/1 – O que estava atrás tinha que esperar...
R – Esperar que ele chegasse na outra estação para liberar aquele segmento.
P/1 – Aí, chegou, a outra estação avisa a anterior.
R – Isso é o princípio básico da sinalização ferroviária, que hoje é feita através de sistemas eletrônicos que criam sinais de linha. Mas, no fundo, é criar um bloco de linha que naquele segmento só tem um trem circulando e garantir que isto aconteça. Os sistemas de segurança, hoje, com a eletrônica desenvolvida, dispensam a estação, o que leva que o sistema ferroviário atual dispense a necessidade da estação que tinha nas cidades, a menos que aquela estação seja um ponto de coleta de mercadoria, de entrega de produto etc. Para o sistema gerencial da ferrovia, ela não tem mais importância nenhuma porque os sistemas de controle de segurança dispensam a necessidade daquele controle.
P2 – E para as viagens de longo percurso? Por exemplo, está saindo um trem de Pernambuco até Fortaleza. A locomotiva de Pernambuco ia até os limites do Estado e voltava?
R – Na época que nós trabalhávamos lá era assim - infelizmente era assim, porque já podia ser diferente. Era assim porque tinha uns problemas administrativos que não facilitavam esta troca de locomotivas, então cada qual matinha e cuidava do seu equipamento, mas nada impede que uma locomotiva siga qualquer direção e qualquer ponto.
P/1 – Na época em que o senhor estava como gestor da Rede Ferroviária, o senhor teve algumas questões ligadas ao movimento sindical? Como era isso dentro da classe dos ferroviários?
R – Constantemente. Os sindicatos eram bastante fortes, atuavam muito e este diálogo e esta integração com o sindicato eram permanentes. Felizmente, eu nunca tive nenhuma grande dificuldade na condução deste trabalho com os sindicatos, mas eles faziam um trabalho que requeria atenção constante, cuidado extremo, porque eram sindicatos fortes atuantes que faziam acontecer.
P/1 – Quais eram as principais reivindicações dos ferroviários?
R – Eram sempre reivindicações de ordem salarial e de melhoria das condições de trabalho, sempre girando nessa ordem.
P/1 – Eles colaboravam com ideias e sugestões?
R – Sim. Eles colaboravam com sugestões, com ideias. Eu sempre vivi um momento de um diálogo muito bom com o sindicato, não era de submissão de um com o outro, mas um diálogo muito fácil e os sindicatos sempre buscavam a melhoria das condições de trabalho de seu pessoal.
P/1 – Tinha questões de insalubridade ou na parte de segurança?
R – Tinha estas questões que eram também bastante tocadas pelos sindicatos, eram bastante controladas por eles. Isso também fez com que muitas dessas questões fossem melhoradas, pela pressão dos próprios sindicatos.
P/1 – Vamos falar um pouquinho de ferrovias e urbanização. Em alguns lugares, chega uma hora que a ferrovia, os trilhos começam a atrapalhar as cidades, as cancelas, o tráfego de carros... Como o senhor analisa esta situação?
R – Isso é uma coisa que faz parte do desenvolvimento urbano. As ferrovias chegaram primeiro porque foram a indutora do crescimento da maioria e este crescimento vai gerando este tipo de conflito. É preciso encarar isso com soluções técnicas que permitam que isso se faça com o menor impacto possível.
Neste ponto, eu gostaria de registrar uma coisa que eu acho que foi um dos grandes fatos que marcaram a nossa presença lá na ferrovia de Pernambuco: nós deixamos, em todas as capitais dos estados, o sistema de transportes de passageiro funcionando e, ainda hoje, funciona. Para isso, foi feito um trabalho muito grande de diminuir e simplificar estes conflitos que existiam com a ferrovia nas áreas urbanas.
Hoje tem transporte de passageiros dentro de Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife e Maceió. São praticamente as únicas capitais do Brasil, tirando Rio, São Paulo e Belo Horizonte, em que o sistema ferroviário permaneceu atuando no sistema de passageiros e dentro da cidade, com todos estes problemas que existem, mas que foram gradativamente sendo equacionados ou pelo menos melhorados. O do Recife evoluiu para o Metrô do Recife (METROREC), que é inteiramente montado em cima das antigas linhas da ferrovia. O de Fortaleza está evoluindo para o sistema de metrô e os demais estão sendo aumentados, melhorados. Agora se fala em sistema novo, de veículo leve sobre trilhos etc, porque foi um trabalho que se fez exatamente neste sentido, de reduzir o conflito da ferrovia com o meio urbano.
P/1 – Por que o senhor falou que no começo elas eram a indutora do crescimento, então a ferrovia propiciou o crescimento de uma cidade...
R – Não, as cidades chegaram e envolveram as ferrovias completamente, mas se a ferrovia transporta passageiro, ela passa a ser um elemento do tecido urbano. Ela não passa a ser um elemento estranho ao tecido urbano, ela passa a ser um elemento que faz parte da vida cotidiana da população. As soluções acontecem, vão sendo processadas, porque passam a ser parte integrante disso. Quando a ferrovia não tem o transporte de passageiros, passa a ser um transtorno: é uma fonte de ruído, de acidente, de preocupação e que não traz nenhum benefício imediato, nenhuma contribuição à vida social daqueles que estão lá.
P/1 – O senhor pode citar algumas dessas decisões que minimizaram estes problemas urbanos, algumas tomadas de decisões que vocês tiveram?
R – Várias delas. Principalmente, é em equacionar a necessidade da população com transpor a linha.
Eu vou lhe dar um exemplo do que se fez no Recife. Estava se construindo o METROREC, o metrô do Recife, numa linha que era a Linha Tronco Centro da Rede e que já tinha sido preparada. Enquanto isso, eu estava preparando já a linha de Boa Viagem, a Linha Tronco Sul, [em] que hoje está sendo implantado o metrô, procurando separar a linha, cercar. O dinheiro não dava para fazer nos padrões que estavam fazendo na outra linha, então a gente fazia com tijolo simples, sem nenhuma preocupação com fazer aquelas coisas fortificadas.
Diziam: “Você vai fazer isso e no dia seguinte vão derrubar o muro.” No dia seguinte aparecia um buraco no muro, mas a gente ia lá com uma equipe própria de gente para isso para saber por que abriu-se o buraco no muro. Sempre tinha uma razão: ou a passagem ou a necessidade de alguma coisa, então se procurava, junto à prefeitura, junto aos órgãos competentes, dar a solução para aquele problema e pronto. Cada caso desses foi sendo resolvido e o muro até hoje está lá, mas com todas as questões urbanas resolvidas ou pelo menos encaminhadas à sua solução, porque eram das coisas mais simples de você pensar: às vezes, era a falta de uma calçadinha aqui, a falta de um acesso do caminhão de lixo do outro lado da via... Coisas simples, que se precisa ter o cuidado para fazer.
P/1 – E esse recurso de implantar o metrô onde corria o trem?
R – Isso foi uma política que o governo federal tomou na época da crise do combustível. Foi quando o preço do combustível, do petróleo, andou disparando e deixou todo mundo preocupado...
P/1 – Ainda na década de 1970? 1973?
R – Isso foi na década de 1970, por aí. Na década de 1970, 1980, nessa faixa. O governo se preocupou e desenvolveu um programa com financiamento externo para, exatamente, melhorar e implementar um sistema de transporte menos oneroso do que do produto petróleo e as ferrovias foram beneficiadas para fazer melhorias no transporte urbano. Aí nasceu o metrô do Recife, a Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre (Trensurb), nasceu o metrô de Belo Horizonte, nasceram várias ações aqui em São Paulo de melhoria do sistema urbano, no Rio de Janeiro etc.
P/1 – Antes de a gente entrar nessas atividades atuais do senhor, dá para falar um pouquinho de história da ferrovia no Brasil, que o senhor estava comentando das primeiras ferrovias, que estão em tráfego hoje. Gostaria que o senhor explanasse um pouquinho?
R – A ferrovia no Brasil nasceu com a iniciativa de Barão de Mauá, com a colocação em tráfego da ferrovia de Porto de Mauá à Raiz da Serra, que atuou durante algum tempo, mas que depois foi desativada e que hoje está inteiramente sem utilização. A segunda ferrovia que foi implantada no Brasil foi a ferrovia Recife ao Cabo, que depois se estendeu até a cidade hoje de Palmares, por mais ou menos 120 quilômetros, que é a ferrovia mais antiga que está em tráfego no Brasil. Foi construída na época de 1858, se não me falha a memória, em bitola larga. Depois, reduzida sua bitola para um metro, registra esta ferrovia o primeiro túnel ferroviário que foi feito na América do Sul. É uma ferrovia que tem ainda hoje o mesmo traçado, as mesmas diretrizes daquela ferrovia que foi implantada naquela época. Isso é um registro que eu faço porque está, hoje, nessa ferrovia de Pernambuco, o registro mais antigo que está em tráfego da ferrovia brasileira.
Os indicadores disso estão muito bem colocados no Museu do Trem, o museu ferroviário do Recife, que foi uma iniciativa de um colega pernambucano, o engenheiro Emerson Jatobá, que eu tive o prazer e a honra de ter ajudado a ampliar e desenvolver o museu ferroviário do Recife como uma das coisas mais importantes que a ferrovia deixou no nordeste. É pena que ele hoje não esteja com o aproveitamento que se precisava estar, mas ele contou, na época da sua formação, com o apoio inestimável de Gilberto Freyre. Gilberto Freyre participou de toda a montagem deste museu, tem peças inclusive produzidas por ele, quadro pintado por ele no acervo do museu, o que permitiu que fizesse aquela estação central no Recife ser toda preservada, no sentido de montar o museu ferroviário do Recife. Encontra-se, além de diversos registros de história da ferrovia pernambucana, desde a sua implantação em bitola larga, aos registros da Great Western of Brazil Railway, que foi uma das empresas mais importantes que teve no nordeste na sua época, era a empresa que administrava o sistema ferroviário do nordeste.
O museu ferroviário do Recife guarda peças de grande importância. A locomotiva a vapor mais potente que existia no nordeste está ainda hoje naquele museu e parou no museu funcionando; a primeira locomotiva a diesel que aportou o nordeste, uma locomotiva a diesel, que já se encontrava em estado precário, foi restaurada para ser colocada lá. De modo que é um registro que eu faço, que o sistema ferroviário do Recife tem uma importância muito grande na história ferroviária do Brasil, não só pelo tempo que ele foi implantado, como pelas coisas que lá aconteceram. O desenvolvimento que o sistema teve com a época da Great Western, que foi muito importante para o nordeste, foi muito importante para o sistema ferroviário daquela época. Isso tudo está muito bem marcado e preservado no museu ferroviário do Recife.
P/1 – O senhor falou que em determinada época o senhor se aposentou, se afastou do Ministério?
R – Eu saí do Ministério, fui me aposentar.
P/1 – Mas o senhor não parou?
R – Não, continuei trabalhando como Engenheiro Ferroviário. Ainda hoje continuo, prestando serviço, principalmente na área de desenvolvimento de novos projetos ferroviários.
P/1 – Quais são estes novos projetos?
R – São estes projetos que o governo está implantando, principalmente através da VALEC Engenharia, Construções e Ferrovias S.A., de construção de novas ferrovias, a Norte-Sul, a ferrovia Oeste-Leste, a ferrovia de integração transcontinental. Tem uma série de ações que felizmente eu estou participando, através de outras empresas consultoras, no desenvolvimento destes projetos.
P/1 – A transcontinental faz ligação?
R – Ela liga os portos do sul fluminense, qualquer coisa assim, com Belo Horizonte, Rondônia e vai terminar em algum lugar do Peru. Ainda está sendo definido seu traçado. Não está todo finalizado, está sendo ainda preparada a planta.
P/1 – Diga-me uma coisa, doutor Picanço. Elas são construídas a partir de leilão ou a partir da iniciativa do governo mesmo?
R – Hoje, elas estão sendo construídas a partir da iniciativa do governo. O governo está tomando a iniciativa, planejando, fazendo seu plano, agora a partir de uma visão de sistema nacional de grandes ligações, de criar grandes eixos. O governo está investindo na implantação da ferrovia e está concedendo a operação. É claro que, neste leilão de concessão da operação, os recursos que são oriundos deste leilão são também empregados na construção, mas, primeiro, o governo está construindo, criando a infraestrutura. Depois é que ele está fazendo o leilão para a concessão.
P/1 – Então a gente pode dizer que agora nós teríamos estas grandes ferrovias que fariam este... A leste-oeste iria de onde para onde?
R – Chama-se Oeste-Leste, mudaram a ordem das coisas, não me pergunte por que. Ela, pelo sentido, termina no porto de Ilhéus. Ela vem de uma conexão com a ferrovia Norte-Sul, nas proximidades da cidade de Figueirópolis, atravessa o Estado da Bahia todo e vai ao porto de Ilhéus. Essa questão com Ilhéus ainda está sendo discutida. Neste momento, vive-se uma discussão do ponto de vista ambiental sobre a conveniência ou não de ir a Ilhéus. Isso está sendo ajustado, certamente nesses próximos dias tem-se uma definição exata, mas é um traçado neste sentido. Este planejamento novo estabelece um grande eixo norte-sul estruturado em cima da ferrovia e a ligação no sentido leste-oeste, este na Bahia e o outro em Pernambuco com a Transnordestina. A Transnordestina tem também a mesma configuração desse eixo da Bahia, em que se propõe também a fazer um escoamento da produção agrícola daquela região do oeste, do sul do Piauí, do sul do Maranhão para o porto de Suape.
P/1 – A transcontinental passa por Acre, Rondônia e de repente acaba?
R – Eu não conheço bem como é o final dela, mas é uma ligação que se propõe a este tipo de ligação com um sistema, algum porto do Pacífico, uma saída para o Pacífico. Essas são reivindicações muito antigas que existem, mas essa ligação com o pacífico é difícil de ser feita porque infelizmente entre nós e o Pacífico tem a Cordilheira dos Andes e a Floresta Amazônica, que dificultam estas passagens, apenas estes dois elementos que atrapalham.
P/1 – Mas passa a ser o que, um desafio da engenharia? Da logística?
R – Olha, a engenharia resolve de todo o jeito, mas a solução que pode ser dada pela engenharia pode trazer custos operacionais altos ou custos ambientais que não se queira bancar. Se pode se fazer uma ferrovia atravessando os Andes? Pode se fazer uma ferrovia atravessando, mas vale a pena? Aí é que vem a pergunta, se vale a pena pagar o preço para isso. Existem algumas alternativas que estão sendo estudadas.
P/1 – Olhando para o futuro, qual é o futuro das ferrovias?
R – Eu vou só me lembrar de uma frase que eu vi em 1960 ou 1970 acho, quando estudei ferrovia na França, dito pelo presidente da ferrovia francesa Société Nationale des Chemins de fer français (SNCF). Ele disse o seguinte: “Se as ferrovias sobrevirem ao século XX, serão o meio de transporte do século XXI.” Nós estamos no século XXI e acho que isto está acontecendo. De fato, o século XX foi perverso para as ferrovias, elas tiveram muita dificuldade porque o transporte rodoviário se impôs, mas hoje as ferrovias no século XXI estão mostrando que podem dar resposta à necessidade de transporte que o mundo requer, tanto pela economia de combustível que ela proporciona, quanto pela capacidade de transporte que ela dispõe, pela pequena poluição ambiental que ela provoca e pelo pouco espaço que ela ocupa na região, as faixas são estreitas.
Estão aí os exemplos no mundo, das ferrovias de transporte de passageiro em alta velocidade. Você consegue somente com o transporte ferroviário, em meio terrestre, desenvolver velocidade do porte da ferrovia, na rodovia jamais vai chegar a este tipo de velocidade. Elas estão aí, mostrando que elas têm respostas e soluções para o desafio de transporte que o mundo moderno precisa. É aquilo que disse o então presidente da SNCF: sobrevivendo o século XX, elas vão mostrar que no século XXI tem muito espaço para atuar, muito que fazer e respostas a dar.
P/1 – O senhor acha que ficou faltando alguma coisa para a gente perguntar, abordar que o senhor gostaria de deixar registrado?
R – Eu acho que não. Acho que foi muito boa a nossa conversa, abrangemos todo o elenco de coisas que a gente fez na vida e que acho que não teria outra coisa que acrescentar, não.
P/1 – E sobre este projeto de registro dos saberes e ofícios da Rede Ferroviária, que o senhor pensa sobre isso?
R – Ah, isso é muito importante. Eu acho que isso é muito importante, isso deve ser feito. Infelizmente nós, engenheiros, somos muito ruins de escrever, deixamos muito pouca coisa registrada. Acho que é uma falha enorme que tem, faz parte do nosso hábito de fazer muita conta e escrever pouco. Mas é um registro importante porque serve de exemplo para gerações que vêm aí, mostra que muita coisa que se fez errado pode ser começado de novo.
Tem muita coisa que é importante. Incentivar este tipo de ação, este tipo de projeto, é muito importante para o futuro do país. Não é nem para o registro do que passou, é o registro do que passou como importância para o futuro, para que a gente colha as histórias do que aconteceu, exemplos, para não cair no mesmo erro que já se caiu no passado.
P/1 – Uma espécie de “lições aprendidas”?
R – Eu acho que sim, né?
P2 – O que significou para o senhor ter trabalhado na ferrovia?
R – Olha, foi minha vida quase toda. Ali eu passei todas as alegrias, as dificuldades, as tristezas... A vida da gente toda foi montada em cima disso. Foi aquilo que eu escolhi para fazer e tive muita sorte em conhecer pessoas da mais alta categoria e capacidade, pessoas muito prazerosas de viver e que tornou a vida profissional muito boa por conta deste trabalho que foi feito.
P/1 – Então eu gostaria muito de agradecer o senhor, doutor Picanço.
R – Eu que agradeço esta oportunidade de participar deste trabalho.
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