Entrevistada por Karen Worcman
Depoimento de Maria Ninita da Silva
Jaci-Paraná, 24/06/2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV131
Transcrito por Ana Lucia fQueiroz
Revisado por Laís Martins
P/1 – Maria, quando foi que a senhora nasceu?
R – 16 de novembro de 1930.
P/1 – E onde foi?
R – Foi neste lugar, Lago dos Baêta.
P/1 – Lago dos Baêta.
R – Lago dos Baêta, município de Manicoré.
P/1 – No Estado?
R – De Manicoré. Manicoré fica abaixo e este lugar acima.
P/1 – Fica na Amazônia?
R – Fica na Amazônia; aí no Madeira, fica pra lá de Baetá.
P/1 – É longe daqui?
R – É um pouco, né?
P/1 – Quanto tempo?
R – Daqui pra Manicoré, saindo de Porto Velho no barco, de manhã, de tarde. Se sair de tarde, de manhã está Baetá. Quando for o outro dia, nove horas, está em Manicoré.
P/1 – Dois dias daqui. Como era este lugar? Era grande, pequeno?
R – Era um lago, assim, era água parada, não era igarapé. Não tinha igarapé, que é água corrente, né. Era um lago, assim, então era povoado de um lado e de outro. Mas todo mundo só trabalhava em roça. E algum que tinha uma estradinha de seringa, cortava seringa.
P/1 – Roça e seringa.
R – Era roça e seringa. Era só.
P/1 – Tinha muita gente lá?
R – Tinha. Muita gente, sim.
P/1 – E o pessoal de lá como era?
R – O pessoal de lá, o sistema era assim: se tinha um casal que tinha cinco filhos, o mais velho casava, fazia a casa bem aqui. A do velho era aqui, fazia a do filho aqui. O outro casava, fazia deste lado. Ficavam cinco filhos, tudo do lado do velho. O velho ficava no meio ali.
P/1 – Os filhos ficavam bem pertinho dos pais?
R – Ficavam tudo pertinho.
P/1 – E os seus pais, como se chamavam?
R – Meu pai era Luiz Vinicius da Silva e minha mãe era Raimunda Ferreira da Silva.
P/1 – Eles eram de lá também?
R – Não, minha mãe era cearense, do Ceará. Só meu pai que era de lá, da Amazônia.
P/1 – Eles tiveram muitos filhos?
R – A minha mãe teve 14. Ela teve 13 filhos e quando ela teve a conta de 14, ela ganhou dia 06 de agosto de 1952 e morreu dia dez. Minha mãe morreu aqui em Prosperidade, dia 10 de agosto de 1952 e minha avó morreu lá onde eu tava, dia 10 de agosto de 1952. Foi um dia triste.
P/1 – Então a senhora teve 13 irmãos. Todo mundo ficou em volta também? Como era?
R – Não porque nem todos casaram, né?
P/1 – O que a senhora lembra de quando era criança?
R – O que eu lembro? Que eu era muito gorda e danada por mexer, por tentar na vida dos outros, conversar. E gostava de uma farra. Era muito farrista. Meu pai levava muito nós e era, bem dizer, o padre de lá daquele lugar. Então ele ia e nós ia; ele rezava lá a reza dele e quando terminava... Só que nós tinha que se arrumar antes da reza. Porque se fosse se arrumar depois da reza ele não deixava nós ir para a sala pra dançar. Tinha que se arrumar, mudar a roupa, se pentear e tudo antes da reza. Depois da reza podia passar dançando das nove da noite até as sete do dia.
P/1 – E qual era a música? Era ao vivo?
R – Violino, violão.
P/1 – O pessoal de lá mesmo que tocava?
R – Os ‘tocador’ mesmo.
P/1 – E as roupas que a senhora usava como eram?
R – Era vestido, assim, comprido. Quem fazia era a minha tia, irmã de meu pai. Ele comprava os cortes e ela fazia.
P/1 – O seu pai trabalhava em quê?
R – Na roça. Tinha uma estrada de seringa e ele cortava seringa e trabalhava na roça plantando mandioca para fazer farinha. E era só.
P/1 – Era só mandioca?
R – Era só mandioca. Plantava só mandioca, cana. Quando chegava aquele tempo, fazia aquele mel. E cortava seringa. A borracha naquele tempo não valia nada. A farinha, ele fazia 30 paneiros de farinha. Era nove mil réis o paneiro de farinha de duas latas. Naquele tempo não era cruzeiro, era mil réis. Era nove mil réis. Ele levava 30 paneiros de farinha para comprar mercadoria para nós passar o mês.
P/1 – Com nove mil réis vocês passavam o mês?
R – Não, eram 30 paneiros a nove mil réis um paneiro. Quer dizer que com aquele paneiro de farinha ele somava aquilo ali, já fazia o rancho para passar o mês. Era um fardo de açúcar; não comprava arroz, não comprava feijão. Que feijão ninguém quase gostava de feijão. Comia era peixe, macaco, paca, cotia, porco, que matava. Criava em casa galinha e matava a galinha.
P/1 – Então a comida de vocês em casa era o quê?
R – Era peixe e carne. Mais carne de porco, de cabra, carne de galinha. Às vezes, ele ia pelo mato caçar, matava um macaco: macaco preto, macaco barrigudo, macaco guariba. Tudo. Até hoje de tudo eu como.
P/1 – Mas o que acompanhava o macaco? Você não comia com arroz?
R – Com arroz, não, com farinha. Muitas vezes ao amanhecer, descascava uma castanha que o pessoal chama castanha do Pará. Descascava; tirava aquele leite, botava... Rapaz, eu não gosto nem de me lembrar.
P/1 – Era muito bom?
R – Aquilo ficava, você botava uma farinha por cima, ficava muito gostoso!
P/1 – O quê? O macaco?
R – Macaco. É gostoso. Não tem pixé de nada, não tem dizer assim, que ele é sedento, não senhora, ele é muito gostoso.
P/1 – Cozinhava no leite da...
R – Da castanha. Hoje em dia, eu fui a mulher de mais sorte do mundo, que eu tive esses 13 filhos e nunca fui no médico. Se eu disser pra vocês que eu agora que fui no médico, que todo mundo se espantou de eu estar internada no hospital. Porque nunca fui no médico, nem pra ter meus filhos. Eu tive quatro filhos com a parteira, uma mulher mais velha do que eu. O resto foi só eu e Deus, quando meu marido escutava já era o choro do filho.
P/1 – É mesmo? Como é que a senhora fazia?
R – Eu tinha a dor, tava lá dentro, e quando via que ia nascer, eu me deitava lá na cama. Às vezes, eu tinha ele ali e já me sentava. Eu já forrava a minha rede e já me sentava na rede. Puxava a criança pra ali e limpava com um paninho enxuto: “agora vai chamar a fulana pra cortar o umbigo”. Ele ia buscar aquela mulher que vinha cortar o umbigo.
P/1 – A senhora não sentia dor?
R – Não, uma vez eu tava com dor, eu não tava com dor. Tinha uma massa pra torrar, ele disse: “Maria, eu queria pescar e tem aquela massa”. Eu disse: “Deixa aí que eu to um buchão”. Aí ele saiu e foi embora pescar e eu fiquei. Mandei a menina fazer fogo no forno, comecei a torrar, quando foi meio dia começou a doer em mim. Aí eu suspendi a farinha lá e mandava ela puxar com o rodo. Até que terminei, quando foi quatro horas fui pra cozinha, arrumei tudo. Daqui a pouco chegou ele, ele vinha com um peixe, uma pirapitinga. Eu fui, tratei da pirapitinga, lavei, aproveitei tudo, pus lá no fogo e disse: “agora tome conta que eu vou tomar banho”. Aí eu fui chamar a fulana: “vai cuidar da comida para dar a comida para os meninos que estão com fome. Hoje eu ainda não fiz nada para se comer”. Aí eu fui pro rio tomar banho, cheguei: “Tu não quer comer?”. Digo: “Não, quero só um pouquinho de caldo”. Aí ele botou um caldo, levou pra mim, eu bebi aquele caldo e quando foi oito horas da noite eu tive um menino. Este menino eu trouxe para o seringal com dois meses, com seis meses que eu tinha chegado, ele morreu.
P/1 – Ele morreu de quê?
R – O menino? O pessoal diz que é aquela doença que dá em criança. Aquele derrame que ataca a criança. Na criança e na gente grande também dá.
P/1 – A senhora teve quantos filhos? Conta de novo para mim.
R – Eu tive 13.
P/1 – O primeiro, quantos anos a senhora tinha?
R – O primeiro eu tinha 15 anos. Aí em cinco anos eu tive a outra, foi em 1950. Em 1945 eu tive um e em 1950 eu tive esta mais velha que eu tenho.
P/1 – Esta que a senhora teve com 15 anos está viva?
R – Não, morreu. Tinha uma hérnia, não teve jeito. Sofria de hemorróidas.
P/1 – Era grande?
R – Não, tinha cinco anos. Essa mais velha que eu tenho aí é de 1950. Ela inteirou 60 anos agora, dia 17 de maio.
P/1 – Esta vingou! E depois desta quais foram os outros que a senhora teve?
R – Depois dela, da Edna, foi a Gessy. Três: um eu vinha do alto, tava grávida, quando cheguei, abortei. Outro nasceu, não urinava, morreu. O outro nasceu, depois que nasceu, não sei o que foi, morreu. Três. Depois eu tive a Ita, esta que foi embora, que não voltou mais. Depois da Ita foi o Antonio, tem a Maria, e tem uma que nasceu morta. Mulheres foram: Edna, Joana, Maria, Gessy e a que nasceu morta; cinco mulheres.
P/1 – E dos homens foram sete.
R – Foram sete.
P/1 – A senhora chegou a dar nome para todos eles?
R – Não, só dei nome pra uma. Primeiro que era Raimundo e este que morreu da queda, que era Valter. As outras não dava nem tempo de batizar, porque onde nós morava era difícil ir padre. Eu quando me batizei tinha dez anos de idade. Me lembro bem até a roupa que me batizei.
P/1 – Como foi?
R – Meu pai, chegou uma mulher lá, dona Sinhá, né. Minha mãe tinha um menino; um que morreu de picada de cobra. Me contaram assim, depois. Aí ele foi e convidou esta mulher, esta dona Sinhá pra madrinha. E ela disse: “então eu vou chamar, vou trazer um padre aqui para batizar estas crianças”. Aí passou um mês e no outro mês ela avisou que era pra se aprontar que tal dia o padre ia lá, na casa dela. E foi mesmo. Meu pai comprou uma cetineta estampada assim de florzinha vermelha; levou pra ela e ela fez dois camisãozinhos pra nós; eu e minha irmã, pra nós se batizar. Até hoje me lembro daqueles camisãozinhos que ela fez e o ternozinho do meu irmão foi ela que deu, pra batizar. Mas o batizado de antigamente, estes de agora não chegam nem aos pés.
P/1 – Por quê?
R – Porque antigamente o padre batizava, botava um salzinho na boca da criança. As mães não seguravam a criança, quem segurava eram os padrinhos. Hoje em dia, quem segura as crianças para batizar é a mãe. As madrinhas não seguram; ficam só vigiando. Eu não conformo com isto. Porque as madrinhas que tinham que segurar a criança e quem tá segurando a criança é a mãe. Antigamente, se a criança chorasse, a mãe ia se esconder lá pra trás pra criança não chorar por causa dela. Para batizar.
P/1 – A senhora chegou a batizar quantos filhos?
R – Batizado mesmo só foi o primeiro, a Gessy, a Edna e a Joana. Só quatro. As quatros meninas e um menino.
P/1 – Esse que caiu.
R – O padrinho dele era até um primo meu.
P/1 – O que a senhora sentia quando perdia um filho? Ou a senhora já estava acostumada?
R – Eu fiquei curtida. Hoje eu digo para esta gente: “Gente, eu não sinto mais a dor da morte de ninguém”. Porque eu me curti demais com morte. Eu tive filho que morreu, botei uma caixa aqui, botei o corpozinho em cima de uma tábua, noutro dia de manhã meu marido cavou buraco no terreiro e enterrou, porque não tinha uma pessoa pra se chamar. No seringal. Chamar quem? Eram duas horas de uma povoação para outra. Como a gente ia? Ele tinha medo de sair e me deixar em casa com os outros pequenos e o morto. Aí ele mesmo cavava e enterrava.
P/1 – A senhora ficou assim já...
R – Fiquei curtida, traumatizada. Este meu filho que morreu da queda, no que eu corri para pegar ele aonde ele caiu, eu meti um pedaço de osso, de dente, sei lá o que era, no meu pé. Assim, deste tamanho. Isto foi umas quatro horas da tarde. Aí nós baixamos, fomos pra casa do gerente, onde o gerente morava, com o corpo do menino. De noite, quatro horas da madrugada, eu sentada perto da tábua que ele tava, e o dono da casa estava ajeitando pra fazer um caixãozinho, pra botar o corpo dele dentro. Aí eu senti aquela dorzinha na ponta do pé. Comecei a passar mal, topava que era um negócio duro, um pau, alguma coisa. Aí eu chamei a mulher, digo: “Valdemira, dá, por favor, uma olhada no que tem aqui no meu pé”. Aí ela pegou a lanterna do marido dela e veio: “Ish, dona Maria, seu estrepe! Como a senhora se estrepou que não sente, mulher? Tá maior estrepe no seu pé!”. Digo: “agora que começou a doer”. Aí ela foi chamar o marido dela, que era Jaime. “Jaime, vem cá”. Ele veio. “Precisa tirar este estrepe do pé da dona Ninita”. Aí ele pegou, naquele tempo não existia este negócio de gilete, era navalha de fazer barba. Ele foi, pegou a navalha dele; veio, aí começou a me pinicar assim até que engatou, ele puxou e o sangue espirrou. Era deste tamanho o buraco no meu pé. Eu fiquei tão trespassada com a morte do menino que com a roupa que eu tava eu saí. A gente no seringal vive do jeito que dá vontade. E então eu estava só de calcinha e vestido. Com isto que eu fui pra onde estava o pessoal. O pessoal se juntava, porque graças a Deus todo mundo gostava dele. E eu só de calcinha e vestido. A mulher lá era mais magra do que eu e foi ajeitar um vestido dela lá até que ajeitou pra mim tomar um banho e mudar o vestido. Eu fiquei quatro dias na casa dela, que eu não queria nem voltar pra casa. Na minha casa ficou a carne de uma anta um bocado no varal, um bocado na caixa. A crina da anta fritando no fogo. Quando eu cheguei tava tudo arrasado, que eu passei quatro dias pra vir pra casa.
P/1 – E as suas crianças não estavam lá?
R – O que tinha era a Gessy, que eu levei. A Maria tinha um ano. A Gessy eu levei e não ficou ninguém em casa.
P/1 – E o marido foi também?
R – Foi.
P/1 – A senhora cresceu neste seringal, nesta capoeira no Lago dos Baêta. E aí?
R – Lá que eu nasci e me criei.
P/1 – E aí a senhora se criou lá. A senhora nunca foi pra escola?
R – Não, que não tinha escola naquele tempo.
P/1 – O que as crianças faziam?
R – Trabalhavam na roça com os pais.
P/1 – Fazendo o quê?
R – Eu com cinco anos já tinha meu pandeirinho de carregar mandioca da roça pra botar na água, pra amolecer e fazer a farinha.
P/1 – Isso a senhora fazia com seu pai ou com sua mãe?
R – Com meu pai e com minha mãe. Mas mais era com meu pai. Eu, minha irmã e meu pai. Porque a minha mãe às vezes tinha uma criança pequena, quando não ficava cuidando da comida. Nós carregávamos mandioca, depois que eu cresci, que fiquei moça, 12 pandeiros de mandioca, eu e minha irmã. Pra botar na água. Nós tirava dez de mistura; raspava; ralado na mão, não era no motor.
P/1 – O ralador era a senhora que fazia?
R – O ralo era nós que furava com prego para ralar. Tirava a goma todinha ali espremida na mão. No outro dia descascava e ia espremer no tipiti. Torrava até dez horas da noite.
P/1 – Quem fazia isto?
R – Eu, minha irmã e meu pai.
P/1 – E isto era pra comer?
R – Era pra vender, pra comprar o açúcar, pra comprar o... Café não comprava, que a gente tinha uns pezinhos da planta e a gente colhia e torrava em casa.
P/1 – E a roupa?
R – Pra comprar uma roupinha. Fazia um pedido pro patrão, o patrão comprava. Quando era no fim do mês chegava lá; se pedisse três cortes, já estavam lá. A minha mãe era gorda e fazia um vestido pra minha mãe, se fosse um pano estreito eram seis metros. Minha mãe pesava 80 e poucos quilos.
P/1 – Por que ela era gorda assim?
R – Não sei. E a mãe dela era tão magrinha.
P/1 – Esse lugar tinha patrão, tinha dono esta terra?
R – Tinha patrão, mas a terra era daquele que morava. Se pegava um pedacinho ali, outro pegava outro de lá para lá. E o patrão morava na beira do Madeira.
P/1 – Mas o patrão era patrão por quê?
R – Porque ele vendia a mercadoria, o açúcar...
P/1 – Ele era o dono da barraca?
R – E as casas tinham tudo plantado. Todo mundo neste lugar que eu nasci e me criei, todo mundo vivia da roça.
P/1 – E vendia para ele.
R – Vendia para ele. Teve um tempo que foi seu Jaime, depois foi seu Araclides, depois foi seu Mário. Isto tudo foi patrão de lá.
P/1 – E lá tinha índios morando perto?
R – Não, se tinha nunca vi, nunca ouvi nem falar. Eu vim ver índio quando cheguei no seringal.
P/1 – Lá tinha seringa também.
R – Tinha, mas era uma estradinha que ficava no terreno. Tinha as demarcações e aquela estradinha que ficava ali dentro era do dono daquele terreno.
P/1 – Que era seu pai.
R – Era meu pai.
P/1 – Quando a sua mãe morreu a senhora tinha que idade?
R – Eu tinha 22 anos.
P/1 – A senhora já estava grande.
R – Eu estava criando a minha segunda filha, que era a Edna.
P/1 – E o seu pai? Ele bebia?
R – Não. Meu pai quando foi embora aqui de Jaci, segundo me contaram, que chegou na barreira de Manicoré, quando foi um mês que ele chegou lá, morreu. Aí meus irmãos que estavam em Manaus vieram buscar o outro meu irmão que estava com ele. Eu passei 46 anos sem saber onde eu tinha um irmão, onde eu tinha um parente.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu não sabia. Eu não sei escrever e não gosto de estar pedindo nada para ninguém que não gosta de fazer favor para os outros. Porque a pessoa quando quer fazer um favor não cobra nem fica reclamando. “Essa menina enjoada pedindo pra gente fazer carta e tal”. Então eu pegava e deixava de pedir para não ficar escutando. Que eu não sei ler nem escrever. Então eu tinha que pedir para os outros fazer. Até que quando eu achei o meu tio, irmão da minha mãe, aqui em Porto Velho, ali na rua Goiás. Por sorte minha tia tava lá. Que eles eram cinco irmãos: minha mãe, meu tio, outro tio, depois a minha tia e depois outro tio. Três homens e duas mulheres. Quando eu achei ele aqui, por sorte a minha tia estava lá. Então ela foi e disse: “minha filha, eu acendi vela pela sua alma. Que eu soube que a sua irmã morreu, a sua outra irmã morreu grávida, sua mãe morreu de resguardo e suas irmãs morreram grávidas antes de ter a criança. Eu pensei que você tinha morrido também. Acendi vela pela sua alma”. Aí ela foi e disse: “eu tenho uma carta que o teu irmão mandou pra mim em 1982. Ele foi lá em casa e, quando ele voltou pra Manaus, ele escreveu pra mim dizendo que tinha chegado lá”. Disse: “Quando eu vier por aqui vou trazer”. Aí quando ela veio, chegou aí, essa minha filha veio aí na casa dos tios, lá para onde nós morava. Ela era uma cearense toda brava. “Minha filha, como vocês vêm morar num lugar deste, que a gente embarca neste bicho do pé redondo com rastro comprido”. Que era o ônibus que ela foi pra lá. Eu digo: “não, titia, mas é assim mesmo, a senhora vem bem aí”. Aí ela foi e trouxe a carta. Eu escrevi três cartas, mandei escrever três cartas e não tive notícias. Aí depois que eu cheguei em Porto Velho, a minha neta foi pra São Paulo, aí ela voltou pra passear e um dia disse pra mim: “vó, a senhora já teve notícias dos seus irmãos?”. Eu digo: “não”. “A senhora ainda tem aquela carta?”. Eu digo: “Tenho”. “Me dê”. Eu digo: “ah, já mandei fazer três cartas e não veio nenhuma notícia”. Peguei e dei pra ela. Aí a Joana, minha filha que mora aqui, neste tempo estava lá no mutum, a serraria que eles tinham lá. Aí eu vim pra cá e deixei a carta lá. Ela pegou, fez a carta, mandou, comprou envelope, botou. E mandou a irmã dela botar no correio. Quando eu cheguei lá ela disse: “olha, botei a carta no correio, se daqui a uns 15 dias não chegar notícias eu vou mandar uma para o Silvio Santos, pra procurar seus irmãos”. Eu digo: “mas tu tá com muito trabalho”. Quando foi dia primeiro de janeiro ela botou o endereço de uma mulher que mora lá onde vende carro. A dona Lindalva. Para o endereço dela. Ela tem uma caixa no correio, né? Aí quando ela chegou lá e foi ver, quando chegou ela disse pra empregada dela: “Sebastiana, tu conhece a dona Maria, não conhece?”. Ela disse: “conheço”. “Porque eu acho que tem uma carta lá na minha caixinha, com o teu nome e o nome da dona Maria. E o nome de um homem que eu não conheço. O nome do homem é Luiz”. Ela disse: “Cadê? Então me dê. É da dona Maria”. Aí quando ela veio do serviço ela passou na minha casa e deixou. Era do meu irmão. Vinham três cartas: uma do Luiz, uma do Antonio e outra do João. O João era o mais novo. São os três irmãos mais novos. Eu sou a segunda filha do casal. Aí ele mandou. Aí sempre ele tava telefonando. Quando foi em junho ele mandou carta dizendo que ia pra Belém, em julho, fim de julho, nas férias dele e de Belém ele vinha para Porto Velho, que a filha dele ia pagar a passagem dele para ele vir para Porto Velho, mas nas condições de ele me levar. Se ele não me levasse, que ele nem voltasse.
P/1 – Aí a senhora não quis.
R – Não, eu fui. Quando foi dia cinco de agosto. Onde eu morava não existia quase telefone, um bairro ali perto da Cohab. Ele telefonou pra mulher dele e a mulher dele telefonou pra esta Sebastiana. Ele tinha dito o dia que era pra pegar ele no aeroporto e a hora. Oito horas da manhã do último dia do mês. Digo: “E agora, que eu nem sei onde é o aeroporto?”. Aí eu fui lá com uma mulher que chama-se Maria Olinda, aí ela disse: “eu vou com a senhora”. Aquela mulher pra mim é uma bênção. “Vou com a senhora”. Pegou, quando nós estávamos lá na rua Sete de Setembro ela disse: “Dona Maria, já vai dar oito horas, pra oito e meia não custa. Disse que o avião chegava oito e meia. Vamos pegar um táxi”. “Pega, se a gente chegar lá e o dinheiro não der eu ajudo a pagar e depois você me paga”. Saiu e foi embora. Quando nós chegamos lá perto, o rapaz perguntou: “a senhora vai esperar alguém?”. “Mas vem sempre um pegar passageiro aí; gente chegando de viagem, de tarde”. Eu digo: “não”. Aí ele passou o rádio pra lá e a moça disse: “se ela vem esperar alguém do avião, o avião tá chegando”. E disse: “minha nossa senhora que coisa é esta?”. Aí quando nós chegamos lá em cima o avião estava atrasando. Aí ele vinha descendo e disse pro rapaz que vinha com ele: “Estou aqui atrás daquela mulher. Aquela senhora que está lá em cima. Da cabeça branca” (risos).
P/1 – Era seu irmão. Há quanto tempo a senhora não via ele?
R – 46 anos.
P/1 – Nossa!
R – Quando ele saiu de perto de mim tinha oito anos.
P/1 – Então, quando foi que a senhora deixou o seu lugar. A senhora saiu de lá quando?
R – De lá onde eu morava? Eu saí de lá em 1958.
P/1 – Por quê?
R – Porque meu marido queria vir pro seringal.
P/1 – Para Rondônia?
R – É.
P/1 – A senhora casou lá mesmo?
R – Casei lá mesmo. Ele queria vir, em 1958 nós viemos para o seringal. Um afluente do Machado.
P/1 – E por que ele queria vir?
R – Porque um homem passou lá convencendo ele. E os homens, não sei se é tudo, mas a maior parte que eu conheço, quando se despenca pra ir pra um canto a mulher não empata. Não diz não e ninguém não vai. Porque eu não queria vir e ele: “Não, não” e eu ainda quis ficar.
P/1 – Aí vocês vieram para cá?
R – Nós viemos para ir pro seringal.
P/1 – Como era o seringal, quantas pessoas moravam no seringal?
R – Ish! Era muita. Tinha três depósitos de gente e pra dentro e pro lado eram as estradas. Pra cá estrada, pra ali estrada. Tudo era estrada.
P/1 – E a senhora veio morar onde? Numa casa? Eles deram casa para a senhora?
R – A primeira colocação que eu fui morar, quando vinha a chuva, eu sentava ali e punha ao redor de mim uma lona na cabeça.
P/1 – Era isto a casa?
R – É, a casa era essa. Nos começos que a gente chegava era assim. Depois, se a pessoa tivesse coragem, fazia outra casa, porque madeira tinha muita, palha tinha muita.
P/1 – A casa não era uma casa, era só uma lona?
R – Era só uma lona.
P/1 – Vocês dormiam na areia?
R – Aquele primeiro mês, a gente tirava a madeira, palha e tudo e fazia um barraquinho, cercava de palha, cobria de palha e pronto.
P/1 – E vocês comiam o quê?
R – Peixe.
P/1 – Era perto do rio.
R – Rio Preto.
P/1 – Quem pescava, seu marido?
R – Era meu marido, era eu.
P/1 – Só peixe?
R – Peixe, paca. Matava uma paca, matava um mutum, matava um jacu.
P/1 – A senhora que caçava?
R – Não. Ele.
P/1 – Nesta altura a senhora estava com quantos filhos?
R – Quando eu vim, eu tinha a Edna, o Teobaldo e a Gessy. Eu tinha quatro com este que morreu quando eu cheguei lá no rio. Eram quatro.
P/1 – E como era? Ele fazia a seringa e para quem que vendia?
R – O dono que levava lá. Que chamava Armelindo Brasil. Já morreu também.
P/1 – E ele pagava bem pela seringa?
R – Nada, minhas filhas andavam cobertas de remendos. Que a roupinha delas, pra não andar nuas, andavam cobertas de remendo. Tinham a cabeça pior, porque não tinha um pente pra pentear o cabelo.
P/1 – Não tinha nada.
R – Não tinha nada. Se o seringueiro não fizesse borracha, ele não comprava nenhum grãozinho de açúcar. Se não tivesse borracha, ele não vendia.
P/1 – Então ficava só no peixe.
R – Só no peixe com a farinha, porque a farinha era a gente que plantava a mandioca e fazia a farinha.
P/1 – Então cada um fazia a sua farinha?
R – Cada um fazia sua farinha. Era muito difícil ir farinha lá para o barracão.
P/1 – E era muito difícil conseguir a borracha ou tinha borracha?
R – Não, era difícil. Porque a estrada era ruim, não ajudava.
P/1 – E vocês ficaram quanto tempo neste seringal?
R – Eu fiquei 18 anos.
P/1 – E o seu marido morreu lá? Com quanto tempo de seringal ele morreu?
R – Ele morreu com 16 anos que nós estávamos lá. Depois eu ainda passei mais dois anos.
P/1 – E aí ele morreu e o que aconteceu? A senhora ficou com filho?
R – Eu fiquei com uma filha de oito anos, outra de três e com três meses de grávida desta minha filha pequena, que eu moro agora com ela.
P/1 – E o que a senhora fez?
R – Eu fui pedir para o gerente arrumar um jeito de me mandar pelo menos pela estrada do Oriente, pra eu ir embora procurar a minha família. Ele disse que não ia me mandar que ele precisava de mulher solteira lá no seringal. Eu mandei ele buscar a mãe dele, as irmãs dele, a filha e a mulher e botar lá pra rapariga dos seringueiros que não tinham mulher. Ele disse: “você é atrevida”. Eu digo: “atrevido é você que quer fazer negócio com a minha vida. Vai fazer negócio com a sua”. Aí disse um palavrão pra ele.
P/1 – E o que ele fez?
R – Ele não disse nada, não queria que eu comprasse nada no armazém. Eu digo: “não converso com o porco, converso com o dono dos porcos. Vou conversar com o Armelindo Brasil, quando ele chegar aqui”. Ele chegou lá: “dona Maria, como está?”. Eu digo pra ele: “Eu quero minha fatia, não é porque o meu marido não está, morreu e eu não tenho borracha que eu vou morrer de fome com as minhas filhas”. “Pode pegar no armazém o que a senhora precisar”. Eu digo: “porque o seu gerente não quis me dar nada e disse que eu ficasse aqui”. “Não, a senhora vai sair daqui. Por água não dá pra senhora sair, porque no verão tem cinco cachoeiras pra passar, não dá de sair. Então a gente vai levar a senhora aqui pela estrada do Oriente”.
P/1 – Aí ele levou?
R – Levou nada. Eu vim embora pra Porto Velho. Me juntei com um maranhense velho que tinha lá, que fazia farinha, e peguei os animais lá do gerente; nem pedi. Mandei o tropeiro amarrar, botar a bagagem em cima e trazer pela estrada do Oriente. Porque tinha que fazer assim. Se a gente fosse se rebaixar pra eles; ele ia tarrafear, pegava a bacia assim, cheinha de peixe, de pacu. Você pensa. Ele não me dava nem escama! Eu digo: “eu não preciso, miserável, tu vai morrer de fome”. Ele já morreu e eu ainda estou vivendo, graças a Deus.
P/1 – Mas ele pegava bacia de peixe?
R – Pegava bacia de peixe com uma tarrafa, no igarapé, mas não tinha coragem de dizer assim: “você quer um peixe, dona Maria?”. Eu botava as minhas duas filhas na canoa e ia pescar. Chegava com meu peixe e fazia comidinha para as minhas filhas. Gente, a minha história, minha vida, se eu fosse contar o que eu já passei, nós vamos sair daqui seis horas ou sete da noite. Eu já sofri demais, hoje em dia estou bem. Só não sofri mais porque eu não era mulher doentia, de viver doente. Mas a minha filha está aí e, graças a Deus, hoje ela diz pro filho dela: “olha, a minha mãe nunca me deu um beliscão. Hoje em dia os filhos apanham, os filhos fazem e acontecem e a minha mãe nunca me deu um beliscão, mas eu nunca disse um não para a minha mãe”. Eu botei pra estudar. Queria ir na festa: “vai”. Depois que ela estava de maior. “Quer ir pra festa? Pode, minha filha”. Você que sabe o caminho. Você já leu um pouquinho, você sabe o caminho, qual é o melhor. Você cai se quiser. “Ah, mãe eu queria ir pra Ji-Paraná”. “Vai, eu pegava, ia lá no mato, pegava a minha borrachinha; vendia, pegava o dinheiro e dizia: “Tá aqui o dinheiro, vá!”. E ela pode ir. E eu chegava da estrada, uma hora desta tava lá na roça, amontoando pau, queimando, pra fazer farinha também, pra ajudar a borracha. Mas eu comprava meus lençóis, comprava minha roupa, pano; comprava o sapato dela, comprava leite, comprava bolacha. Não faltava nada. Posso dizer que nunca tive que dizer: “hoje não tenho leite pra mim tomar, não tenho uma bolacha pra mim comer”.
P/1 – Isto a senhora fazia na mandioca e no peixe.
R – No peixe.
P/1 – Mas a vida mudou muito quando seu marido morreu?
R – Pra mim mudou.
P/1 – Mudou como?
R – Mudou porque eu não tinha mais quem mandasse na minha vida. Quando eu quisesse fazer alguma coisa eu ia e fazia.
P/1 – Então melhorou?
R – Melhorou, quando ele tava vivo, se eu quisesse fazer um serviço e ele me pedisse pra fazer ali: “que! Vai fazer serviço para os outros! Mulher é pra estar em casa!”.
P/1 – Quando ele morreu ficou melhor?
R – Pra mim ficou. Ele me esculhambava, me xingava. Eu era isto, era mulher isso. Eu era sem vergonha, que eu era fêmea de fulano, que era fêmea de beltrano. No dia que ele morreu, antes dele... que parou uma diarreia, ele ajoelhou na minha frente e pediu perdão: “Maria, pelo amor de Deus me perdoa. Porque eu falava que tu era sem vergonha, mas o sem vergonha fui eu, que te traí três anos. A fulana ta grávida de mim”. Eu digo: “Vá, meu filho, vá com Deus. Deus te leve pra onde você merecer”.
(FIM DO ARQUIVO 01)
P/1 – A senhora o conheceu lá onde a senhora morava?
R – Eu estava numa festinha na casa de uma conhecida minha, vizinha do meu pai e ela tinha umas cinco filhas mulher, e nós se dava muito. Nós sentava, fazia aquela reza. O pessoal de antigamente tinha promessa e tal e aí mandava rezar. E meu pai era quem ia rezar. Aí a gente ia, chegava lá e ele tava lá. Que ele era parente desta mulher desta casa, na roça. Quando eu cheguei lá, ele tava lá. Aí começamos a conversar e falar, tal. Sempre se encontrando e se gostando. Passou quase um ano assim: se encontrando, se gostando. Depois foi que eu casei com ele.
P/1 – Ele pediu pra casar e a senhora gostava dele?
R – Não gostava muito, não, mas... Eu fui uma pessoa que nunca me apaixonei por ninguém.
P/1 – Por quê?
R – Gostar é gostar e apaixonar é apaixonar. Eu gostava dele, mas não era apaixonada.
P/1 – E a senhora aceitou casar por conta do quê?
R – Porque... Uma coisa assim, sem pé nem cabeça.
P/1 – E a convivência, o dia-a-dia? A senhora casou e foi morar numa casa com ele?
R – Fui. Lá na casa do pai dele.
P/1 – E como foi?
R – O pai dele era meio ruim, mas eu não dava confiança de escutar o que ele falava. Tinha a irmã dele que morava perto e eu ficava mais na casa da irmã dele. E ele saía, ia pra roça. Trabalhar. Só mesmo na roça, que lá não tinha negócio de trabalhar por dia pra alguém, não tinha não. Tudo era na roça.
P/1 – Ele foi seu primeiro namorado?
R – Foi.
P/1 – Ele era apaixonado pela senhora?
R – Ah, não sei. Ele dizia que era, mas o coração dos outros quem entende? Às vezes a pessoa diz que gosta da gente dos dentes pra fora, dos dentes pro coração tá dizendo que não. Diz: “mulher é uma besta, fica aí se iludindo”.
P/1 – Ele bebia?
R – Não.
P/1 – Ele era só controlador?
R – Só.
P/1 – Vocês brigavam muito?
R – Não. Ah, se for atrás de briga! Eu não brigava com ele. Eu desconfiava que ele tinha esta amante.
P/1 – Como a senhora desconfiou?
R – O homem muda muito! No sistema de dormir perto da mulher. A gente vai deitar, chama. “Espera aí que eu já vou”.
P/1 – Ele parou de dormir com a senhora?
R – Ele parou, a rede dele ali e a minha aqui. A gente lá não tinha cama, dormia na rede. Mas eu não tinha certeza, não ia falar nada. Fui saber a certeza quando ele morreu, que ele disse da boca dele. Eu digo: “Pois é, meu filho, vá com Deus, que Deus leve você pra onde você merecer”.
P/1 – Foi mesmo?
R – Foi. Aí ele disse assim: “vá tomar um café, você está há duas noites que não dorme. Eu não deixo você dormir e tal”. Aí eu saí, nem tomei banho. Botei um café no caneco e saí bebendo lá pra dentro. Escutando. Aí não vi remorso, não vi gemer, não vi mexer nada. Aí fiquei ali, aí ia sustentar o mosquiteiro que tava arreado – que era mosquiteiro que a gente usava – tava arreado assim, aí eu suspendi o mosquiteiro e do jeito que ele deitou quando eu saí, ele tava. Mas estava morto. Aí eu chamei um homem que tava numa casa de farinha que tinha bem pertinho e ele veio. “Dona Maria a senhora não viu?”. Eu digo: “não, quando ele mandou eu sair, ele não queria que eu visse ele morrer. Já morreu. O problema é dele. Se não fosse, ele já ia arrumar outra mulher; botar a buchuda pra dentro de casa”.
P/1 – A senhora enterrou ele?
R – O pessoal enterrou ele.
P/1 – A senhora não fez nada?
R – Fazer o quê? Enrolaram numa rede e enterraram. Cavaram um buraco, botaram lá dentro e jogaram terra em cima.
P/1 – A senhora foi lá rezar ele? Nada. A senhora ficou brava mesmo.
R – Fiquei foi na minha. No meu cantinho.
P/1 – E a mulher, a buchuda?
R – Nem perguntei, não quis nem saber. O pessoal dizia: “a senhora não vai falar nada com ela?”. Eu digo: “Eu? Quando ela quis dar o rabo pro meu marido, ela não veio pedir licença de mim nem me dizer nada. Portanto ela que se dane”. O pessoal diz: “mas a senhora é ruim, dona Maria”. Eu digo: “Sou. Porque se fosse eu que tivesse errado, ele não ia achar bom também. Como é que eu posso achar bom ele ter errado comigo? Não ter me respeitado?”. Estou dizendo pra vocês que eu sou muito boa, mas sou muito ruim, ignorante, sei lá como é a palavra. Eu sou assim.
P/1 – Aí a senhora ficou com as três filhas. Três e o menino.
R – Não, fiquei só com as duas e com a outra no bucho.
P/1 – E como a senhora fez pra nascer esta última?
R – Tinha um compadre meu, eu fui pra casa e ganhei na casa dele. Quando ele pensou que não eu queria a tesoura pra cortar o umbigo.
P/1 – E a senhora estava morando no seringal?
R – Eu estava morando nesse seringal.
P/1 – Aí depois saiu do seringal e foi morar onde?
R – Quando saí do seringal eu vim pra cá, pra estrada de ferro.
P/1 – E veio pra cá por quê?
R – Porque pra eu sair lá do seringal me juntei com um maranhense. Aí quando chegou em Porto Velho um tal de Newton convidou ele pra vir pra cá pra tomar conta de um serviço dele. Quando chegamos aí a Joana, minha filha, já tinha três anos, ainda não tinha os quatro completos. Quando chegou aí eu disse: “Olhe, seu Newton, eu vou ficar aqui por uns dias e vou arrumar dinheiro pra ir embora. Eu não vou ficar aqui porque a minha filha está doente e não vai morrer aqui não. Aqui não tem médico, aqui não tem ninguém que trate de ninguém”. “Não, dona Maria, o que é isto? Se acontecer alguma coisa a gente ajuda”. “Mas só pra enterrar eu não preciso. Eu quero que me ajude”. Eu passei quase cinco meses lá. Comecei a criar galinha, dentro de quatro meses eu arrumei 280 cabeças de galinha.
P/1 – Como?
R – Criando. Comprava milho pra criar galinha. E vendia ovos pras pessoas do rio que moravam perto de mim. E aí vendia pra dona Santinha, uma mulher que morava lá no Jirau; vendi pra ela, peguei o dinheiro. “Ah, Maria, eu vou tirar”. “Levar com o quê? Que o dinheiro fica todo pra cachaça”. Este outro bebia.
P/1 – Quanto tempo a senhora ficou com ele?
R – Fiquei seis anos, quase sete.
P/1 – E ele era infernal? Como ele era?
R – Ele era enjoado. Quando ele bebia só falava de me matar e beber meu sangue. “Beber o sangue daquela nega sem vergonha, que não soube te criar”. Um dia ele pegou a espingarda e não me matou porque a menina tirou o cartucho da espingarda”.
P/1 – Como foi isto, dona Maria?
R – Nós morávamos na BR e ele veio do bar com a cara cheia de cachaça. Chegou lá, entrou e pegou a espingarda. Aí a Maria disse: “Mãe – ela chamava ele de pai, mas não era pai dela – o pai vai com a espingarda”. Quando eu entrei na porta assim ele vinha saindo, engatilhou a espingarda. Quando ele bateu: teco! Aí eu corri em cima dele, peguei na espingarda, rodei assim, tomei da mão dele. Joguei pra um lado e pro outro. Fiquei só ocupando: "Vem nego, sem vergonha, do diabo. Tu vai encher o rabo de cachaça e vem querer me matar aqui. Vem que eu vou partir tua cabeça com este cano de espingarda". “Você é doida, mulher”. Eu digo: “doido é você”. Aí arrumei as minhas coisas e larguei ele lá. Ele vendeu o nosso terreno lá, nossa casa, a minha roça, o meu arroz. Por causa deste arroz que eu plantei lá, eu apanhei de um crente. Uma paulada com pau que virou um tumor deste tamanho. Por causa do meu suor, que eu plantava pra comer com as minhas filhas. E ele não saía do bar, este homem bebendo. Eu vim pra Porto Velho, passei 16 dias na delegacia. O delegado mandou o homem pra Ji-Paraná atrás de advogado pra ele me acusar que diz que eu roubava feijão na roça. Eu digo, eu já conhecia - “eu não gosto de feijão. Se eu gostasse de feijão, eu plantava como eu planto arroz e macaxeira”. Este homem veio me acusar. Por mim, ele ia lá pra chave, porque ele me bateu... Está lá meu arroz pra todo mundo ver.
P/1 – Por que ele bateu?
R – Meu arroz embuchando aí botou cinco anos pra capinar meu arroz lá, pra plantar o dele, que o terreno não é dele, é meu. E ele veio me chamar de galinha, de cachorra, de puta sem vergonha, pegou o pau e me bateu.
P/1 – E o que o delegado fez?
R – Nada. Não fez nada. Ele disse: “olhe, você vai dar dinheiro pra dona Maria se tratar”. Eu digo: “eu não quero um centavo, seu Edgard. O dinheiro que ele vai me dar vai ficar de esmola pra ele. Eu vou ver ele daqui com três meses puxando uma cachorrinha”. Foi dito e feito, minha filha. Tinha uma casa de dois andares, ele desceu pra baixo, fechou o restaurante dele. Com três meses, ele andava com uma camisinha e uma sacolinha na mão.
P/1 – Que boca!
R – Ele merecia. Pra que ele foi fazer aquilo comigo. Eu disse pra ele. “Seu João, quando ele tirar este arroz daí, se o senhor quiser plantar o seu pode plantar, que eu plantei isto aí por causa da terra, limpa, bonita”. “Você é uma galinha, você é uma vaca, você não vale nada!”. Pegou o pau. A minha filha se lembra tudinho disto. Bateu o pau e eu caí no chão. O rapaz que me trouxe pra Porto Velho foi um cara do quinto. Ele disse: “eu vou lhe entregar lá na delegacia logo. Eu digo: ”não, me deixa por aqui mesmo”. Peguei, deixei minhas filhas na casa da irmã dela e vim pra Porto Velho. Passei 16 dias esperando por este delegado de Ariclenes pra trazer este homem. Daí me acusaram de roubar feijão da roça. Ai, até hoje eu tenho ódio daquele homem. Não sei nem se ele já morreu. Lá pra Ariclenes, pra lá e ficou. Eu vim embora. A minha vida foi triste. Mas graças a Deus estou viva. Quero que Deus me dê mais uns anos de vida pra eu ver mais coisas ainda.
P/1 – Aí ali da delegacia a senhora ficou em Porto Velho mesmo?
R – Fiquei em Porto Velho.
P/1 – Como a senhora arrumou uma casa em Porto Velho?
R – Não, tinha conhecida minha lá. Eu fiquei só naquela hora. Depois me levaram lá na delegacia.
P/1 – Mas depois a senhora mudou pra Porto Velho?
R – Ish, custou muito pra eu mudar.
P/1 – A senhora voltou pra terra.
R – Voltei. Custei muito. Depois disso eu larguei ele, esse marido, ele disse que eu ia morrer de fome. Eu digo: “não morri aqui, porque quem trabalha aqui sou eu, não é tu”. “Ah, você tá muito orgulhosa vai deixar rastro. Pisa em cima do capim pra não deixar rastro. Você está muito orgulhosa”. Eu digo: “tenho fé em Deus, não em você”. E ele vendeu lá, quando chegou em Porto Velho deixaram ele com a roupa do corpo. Minha filha, hoje eu tava dizendo, tem um homem que alugou a minha casa, saiu e não pagou o aluguel. Eu digo: “ele ainda vai vir de joelho pedir esmola pra mim”. Pra largar de ser sem vergonha. Não está doido, não.
P/1 – E aí, dona Maria, depois disso o que aconteceu?
R – Aconteceu muita coisa. Aquela que vem ali que é a minha filha.
P/1 – Aquela magrinha ali?
R – Vem cá, Joana! Arrumou um bucho, foi lá pra casa dele, teve o filho lá e, quando tava com quatro meses, largou o filho lá na cama e foi embora e ele ficou cuidando do filho. Ela dizendo que era filho dele. Comigo ele inteirou seis mulheres, nunca teve um filho! Não era então com esta ‘noiada’ que ia ter um filho.
P/1 – E ele ficou criando.
R – Ficou criando. Aí, quando eu soube que ele tinha morrido, fui lá. Aí o homem que a mulher dele ficou cuidando do menino disse assim: “dona Maria, se os documentos dele baterem com a certidão de casamento que a senhora tem a gente vai já pro juiz pra dividir o que ele deixou. Que tudinho que era dele ficou pro menino, vamos dividir com a senhora”. Mas infelizmente quando ele foi roubado, que ele tirou outro documento, ele tirou com outro sobrenome. Aí não bateu com a certidão de casamento.
P/1 – Dona Maria, depois a senhora foi morar quanto tempo em Porto Velho?
R – Eu morei 16 anos em Porto Velho.
P/1 – E por que a senhora foi pra cidade?
R – Porque eu sozinha – quando minha filha casou, fiquei sozinha – aí fui no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) pra mim tirar um terreno o Incra disse que não podia me dar um terreno porque eu não tinha um filho pra trabalhar comigo. Aí como eu ia ficar? O genro que eu morava na casa dele já tava querendo vender lá pra vir embora. Aí tive que vir embora com ele. Ela já tinha vindo aqui pra Jaci.
P/1 – E a senhora ficou fazendo o que lá?
R – Ela morava em Itapoá, com o marido dela. E eu morava com a outra, mais velha. Aí o pessoal de Porto Velho dizia: “vem, vem que aqui tu arruma um serviço, um emprego pra ti”. O fato é que arrumei mesmo um emprego. Só de lavagem de roupa, eu tinha 13 lavagens de roupa.
P/1 – A senhora ficou trabalhando de lavar roupa?
R – Fiquei de lavar roupa. Aí fiz uma casinha e tudo. Lá em Porto Velho.
P/1 – E foi bom morar lá?
R – Foi, pra mim foi bom. Era muito agitado, mas graças a Deus comigo nunca ninguém deveu. Nunca!
P/1 – E a senhora ficou vivendo disto?
R – De lavar roupa.
P/1 – Quem que veio aqui pra Jaci, pra senhora vir pra cá?
R – Ela.
P/1 – Aí a senhora decidiu vir.
R – Aí eu vim. Eu peguei e vendi a minha casa em Porto Velho pra comprar aqui.
P/1 – E aqui a senhora comprou e está vivendo com que dinheiro?
R – Com dinheiro do amparo. Que eu não sou aposentada, eu recebo um amparo do Governo Federal. Não é aposentadoria.
P/1 – Por que não é aposentadoria?
R – Não sei. Eu fui no INSS, fiz todo o encaminhamento, quando apareceram com este amparo do governo federal. Diz que é porque eu não tinha pagado previdência. Não sei se uma pessoa que nasce e se cria na roça, no mato, vai saber o que é previdência, analfabeto que nem eu. Vai saber o que é previdência? Só se tivesse uma pessoa que explicasse e ensinasse o que era e o que deixava de ser.
P/1 – Há quanto tempo a senhora veio pra cá?
R – Ela veio na frente, ela está com 18 anos ou mais, 19 que mora aqui em Jaci.
P/1 – E a senhora?
R – Vai fazer sete anos.
P/1 – O que a senhora está achando daqui?
R – Se ninguém brigar comigo, ninguém me expulsar, todo canto eu moro.
P/1 – Mas a senhora vai ter que se mudar por causa da barragem.
R – Não. Se eu me mudar, todo mundo se muda. A casa dela, que eu moro, é lá em frente ao colégio Coralina.
P/1 – A senhora acha que já se mudou muito depois que começou a história da usina?
R – De perversidade, eu acho.
P/1 – O que aconteceu?
R – Tá acontecendo tanta coisa. É morte, é gente ‘noiada’ aí, gente roubando aí.
P/1 – Isso foi depois que chegou o pessoal de fora?
R – É, porque antes de ter este pessoal aqui, esta minha filha deixava o varal de roupa na cara do poço dela, passava dois, três dias em frente do poço e não roubavam. Agora até chinelo se deixar fora, roubam. Só pode se desconfiar dos que chegam.
P/1 – Mudou muito então. Quais mais problemas que apareceram?
R – Sabe que eu quase nem sei. Porque não ando e não gosto de estar conversando. Depois destes problemas comigo, eu quase nem ando por aí. Só mesmo isto porque eu escuto o pessoal falar: “não, fulano roubou”. Um dia desses entraram na casa do homem lá, pra lá do colégio Coralina, bem na esquina, entraram lá. A valência dele é que o filho dele estava lá dentro e viu o pessoal. Se escondeu lá, escutando. Quando ele viu que eles estavam com revólver e outro pegando as coisas, ele ‘pá’ pra polícia no celular. A polícia pegou os caras em flagrante. E fez ele entregar tudinho e levar. Por isto eu tenho medo. Tenho medo de ficar só na casa dela, que na casa dela é bicicleta, é moto, é carro, é tudo.
P/1 – Dona Ninita, qual é o seu sonho agora?
R – É que Deus me dê muitas alegrias e saúde pra mim viver até o dia que ele quiser. Eu não tenho vontade de ficar rica, não tenho vontade de luxo com isto, com aquilo outro, não. Meu sonho, minha vontade é que Deus me dê vida e saúde e que eu viva. Que eu sozinha moro em todo canto. Não tenho filho pra andar atrás de mim chorando nem mexendo em nada de ninguém.
P/1 – Tá bom, obrigada dona Ninita.
R – Também, obrigada.
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