Minha Casa, Minha Cara, Minha Vida - Cabine São Bernardo do Campo
Depoimento de Moisés Bispo dos Santos
Entrevistado por Márcia Trezza e Rosana Miziara
São Bernardo do Campo, 09/03/2014.
Realização Museu da Pessoa.
ASP_CB06_Moisés Bispo dos Santos
Transcrito por Iara Gobbo.
P/1 – Oi Moisés, você pode falar seu nome completo?
R – Moisés Bispo dos Santos.
P/1 – Qual que é o local de nascimento e a data?
R – É Ilhéus, eu nasci na cidade de Ilhéus, primeiro de janeiro de 1966.
P/1 – Nasceu no ano novo?
R – Isso. Dei trabalho pra minha mãe no ano novo. (risos)
P/1 – Seus pais são de Ilhéus, da Bahia?
R – São.
P/1 – Você ficou lá até quanto tempo?
R – Até os 22 anos.
P/1 – Você morou até 22 anos em ilhéus?
R – Isso.
P/1 – Que lugar de Ilhéus você morava?
R – Eu morava no Bairro Pontal.
P/1 – Como que era esse bairro, sua casa?
R – Uma casa simples, é um bairro bom. Eu gostava, mas eu vim em busca de serviço aqui pra São Paulo em 1987.
P/1 – Quantos irmãos você tem?
R – Eu tenho 11, falecido dois.
P/1 – E você moravam os 11 na mesma casa?
R – Ahã (sim)
P/1 – Como que era essa casa?
R – Era uma casa de quatro cômodos, um banheiro, quintal grande, que lá na Bahia nós temos quintal grande.
P/1 – E vocês dormiam como, nos quartos? Como que dividia?
R – A gente tinha beliche, um em cima do outro.
P/1 – E como é que é, seus pais faziam o quê? Seu pai trabalhava em quê?
R – Meu pai trabalhava na roça de cacau.
P/1 – E sua mãe?
R – Também.
P/1 – E você foi pra roça com eles?
R – Fui, trabalhei muito tempo na roça. A gente tinha um sítio, temos um sítio pequeno lá.
P/1 – Até hoje?
R – Até hoje.
P/1 – Com quantos anos você foi pra roça?
R – Eu fui com uns dez.
P/1 – O que que você fazia?
R – A gente trabalhava no cacau, né, colhia cacau, quebrava, secava.
P/1 – Como que é plantar, colher cacau? Como que faz?
R – (risos) Agora você me pegou. É porque a gente planta as mudas, planta as sementes no viveiro. Quando as mudas estão mais ou menos uns quatro centímetro, sei lá, um... Aí, a gente planta. Abre um buraco no chão, e coloca a muda, rasga aquela, o viveirinho, aquela... É um saquinho preto da Ceplac, que é um órgão que toma conta do cacau, a gente abre um buraco e planta o cacau no chão, aquelas mudinhas. É simples.
P/1 – Seus irmãos também iam?
R – Todos. Até as menina iam. São seis mulheres e cinco homem na nossa família.
P/1 – E sobrava tempo pra brincar?
R – Sobrava. A gente brincava na roça mesmo, nos rios, que lá tem muito rio. Fim de semana a gente ia na praia. Assim.
P/1 – Brincava do quê?
R – A gente brincava de tudo, brincava de ciranda, brincava de contar história, brincava de tudo, fazia aqueles balanços nos pés de cacau, nos pés de mangueira, jaqueira também, que lá tem muito. Era assim a nossa vida.
P/1 – Como que era na sua casa? Quem quer exercia autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Ah, os dois eram bem autoritários (risos). Os dois. Meu pai faleceu em 1999, não, 1989. Minha mãe ainda é viva, ainda. Inclusive a biblioteca tem o nome do meu pai, a Biblioteca Comunitária Antonio Bispo. Eu homenageei ele porque ele era muito guerreiro.
P/1 – E vocês tinham o costume de ler, na sua casa?
R – Não, não tinha.
P/1 – Com quantos anos você foi pra escola? Você entrou na escola, naquela época?
R – Vinte e dois anos.
P/1 – Ah, quando você era pequeno você não estudou?
R – Não. Estudava assim, a gente ia, ficava uns dia na escola, saía pra ir pra roça, que a gente ficava pouco tempo na rua, mais na roça. Então, não dava tempo de estudar. Aí, eu me alfabetizei aqui em São Paulo. Fui pra escola com 22 anos, estudei até a oitava série.
P/1 – Por que que você veio pra São Paulo?
R – Ah, porque eu tinha uma expectativa de vida melhor. Trabalhar pra ganhar o meu dinheiro, porque lá na Bahia a gente trabalhava, trabalhava era só pra comer mesmo. Não tinha um dinheiro no bolso, não tinha uma roupa legal. Por isso.
P/1 – Por que São Paulo? Você já conhecia alguém aqui?
R – Não, eu vim com uns conhecidos, mas não conhecia. No Rio tinha muito parente meu, irmão, mas eu não queria ir pro Rio, eu quis vir pra São Paulo.
P/1 – Aí, você chegou em São Paulo, você veio como, pra cá?
R – De ônibus.
P/1 – E qual foi sua impressão quando você chegou aqui?
R – Ah, de sei lá cidade grande, os prédios altos, a gente fica assim, admirando, no meio daqueles arranha-céus, principalmente quando eu ia lá pro centro de São Paulo ficava só olhando. Hoje não, hoje pra mim é normal.
P/1 – E você chegou, você foi morar em qual bairro?
R – É Vila Euclides.
P/1 – Por que você veio parar na Vila Euclides? Aqui em São Bernardo mesmo?
R – É porque a firma que a gente veio trabalhar, a obra, era lá na Vila Euclides, aquela Escola Barão de Mauá, não sei se você conhece.
P/1 – E que firma que era?
R – Era da Lisboa, o nome da firma.
P/1 – Então você já veio de lá da Bahia, com emprego aqui?
R – Ahã.
P/1 – Como que você arrumou?
R – Foi um amigo meu que vinha, aí me trouxe pra nós trabalharmos nessa firma.
P/1 – E nessa casa, na Vila Euclides, você foi morar onde?
R – No alojamento da obra. Naquela época tinha muito alojamento na obra. Hoje em dia não tem mais, mas hoje em dia eles alugam casa, mas naquela época a gente ficava na obra mesmo.
P/1 – Que ano foi isso?
R – É 1987.
P/1 – Era obra do quê?
R – Construção civil.
P/1 – Foi seu primeiro trabalho na construção civil?
R – Foi, carteira fichada.
P/1 – O que você fazia?
R – Ajudante.
P/1 – Você foi fichado a primeira vez?
R – É, primeira vez.
P/1 – Primeira vez que você usou sua carteira de trabalho.
R – Numa construtora chamada Jaci. Tem até hoje no mercado.
P/1 – E como que era no alojamento? Quantas pessoas moravam?
R – Ah, tinha bastante gente. Cada quarto tinha duas, três pessoas.
P/1 – Foi a primeira vez que você morou em alojamento?
R – A primeira vez.
P/1 – Você lembra de algum fato marcante que aconteceu lá, quando você morava lá ou que você trabalhava na obra?
R – Me lembro que um colega meu morreu. Chegou do Piauí, o irmão dele trouxe, é Gildésio, chegou o irmão dele, veio com 19 anos, chegou, com três dias morreu. O barranco despencou e matou ele. Foi uma coisa bem chocante, bem triste.
P/1 – E aí você trabalhava nessa obra, morava na obra. E o que que você fazia assim de sábado, de final de semana quando não tava trabalhando?
R – Aí, eu comecei a estudar, a gente ia muito pro teatro. Era aquela época que tinha muitas peças de teatro. Eu tinha um amigo meu que gostava muito de teatro, ele fazia teatro, e a gente ia assistir as peças. Era assim que a gente ia.
P/1 – E você começou a estudar?
R – Sim, na Escola Maria Adelaide, lá na Vila Euclides.
P/1 – O que que você mais gostava na escola?
R – Ah, de tudo (risos). A professora Zenaide que eu não esqueço até hoje. Eu estudei da primeira série até a quinta com a Zenaide. Muito legal.
P/1 – Você ia à noite?
R – À noite, é. Eu saía do serviço e ia pra escola.
P/1 – E foi aí que você começou a ler?
R – Ahã, é que eu comecei a escrever poesia, comecei ler livro de poesia, aí pronto, me apaixonei. Eu gosto de ler, mas não sou muito, como que fala?
P/1 – Leitor?
R – Isso. Eu leio assim, quando eu vejo alguma coisa que me interessa, eu vou lá e leio, mas eu sou um pouco preguiçoso pra ler (risos).
P/2 – Você lembra quando você começou escrever? Você lembra dessa época?
R – Lembro. Eu estava na quinta série.
P/2 – Mas quando você começou a escrever as primeira palavras, assim, você lembra da sensação ainda? Não?
R – Lembro, me lembro bem.
P/2 – Porque você disse que queria muito saber e aprender a ler.
R – Isso.
P/2 – E aí quando você começou a escrever o nome assim...
R – É porque eu... Foi legal, porque a gente perdia muito ônibus, daqui que eu perguntava às pessoas onde passava, não sabia pegar o ônibus, tinha que tá pedindo às pessoas, falei: “Não, vou entrar na escola”. Aí, entrei na escola, aprendi, e graças a Deus que foi rapidinho, comecei pegar ônibus e pronto.
P/2 – Aprendeu rápido?
R – Aprendi rápido. Parei de perguntar às pessoas. Eu peguei muito ônibus errado, que as pessoas me ensinavam errado. Tem gente maldosa, né, que fala: “Ah, você pega esse aí”, você vai pra um canto que não tem nada a ver pra onde você ia. (risos)
P/1 – E você começou a escrever, você lembra das primeiras poesias que você escreveu?
R – Lembro.
P/1 – Sabe alguma de cor?
R – Ah, eu sei.
P/1 – Fala pra gente.
R – (risos) Eu tenho vergonha.
P/1 – Não precisa ter vergonha não.
R – Meu sabiá cantador, eu quero ouvir você cantar, no alto do ingazeiro, canta, canta sabiá. Que mistério tem a noite, que tu paras de cantar, quando o dia amanhecer, canta, canta sabiá. Ó meu doce sabiá, como é grande o meu penar, eu quero ter alegria pra cantar em parceria, com você, meu sabiá.
P/1 – Que lindo!
P/2 – Linda mesmo, muito bonita.
P/1 – Quantos anos você tinha quando você escreveu isso?
R – Eu tinha uns 29. Mas ainda ficou pra trás, não falei todo não, que ele é grande.
P/1 – Ah, fala mais um pedaço.
R – Deixa eu ver se eu consigo lembrar. Tenho outra também. Tem várias.
P/2 – Qual outra que você lembrou?
R – Deixa eu ver se eu consigo. Eu sou a noite eu sou o dia, eu sou o vento que sopra os cabelo da Maria, eu sou a lua, os carro que passa na rua. Eu sou a nuvem que passa, eu sou a fumaça, eu sou o sol que brilha, a estrela que pisca, alguém que grita. Por que gritar? Ouço a sereia cantar, sou areia, é o mar. Eu sou o amor, sou a flor, flor que brota no jardim, flor de jasmim, a mais cheirosa. Sou o cravo, sou a rosa, rosa vermelha, rosa amarela, rosa branca, o pranto, o encanto, a lágrima de uma criança, eu sou a lembrança. Eu sou eu, eu sou você, eu sou.
P/2 – Olha, linda mesmo.
R – Então, é uma das minhas poesias.
P/1 – Você pensou em publicar, já?
R – Elas estão registradas em cartório.
P/1 – Ah, que bacana.
R – Registrei elas.
P/2 – Mas alguma vez você juntou todas?
R – Lá quando eu trabalhava na Arteb, eles pegaram essa poesia e fez um jornalzinho com ela toda. Foi legal. Todo mundo passou, em mão de todo mundo lá na firma.
P/1 – E aí depois que você trabalhou lá nessa obra, ficou nesse alojamento, o que você fez? Logo que você chegou você foi pra essa obra na Vila Euclides, foi pra escola e aí, como que foi sendo sua vida depois disso?
R – Foi legal porque eu comecei fazer teatro, comecei estudar teatro. Fiz um curso oficina que na época tinha muitas oficinas de teatro. Aí, eu fiz o básico. Também eu fiz o básico no Emílio Fontana, lá no Sadi Cabral, não sei se você já ouviu falar.
P/1 – Já.
R – Aí, eu fiz um ano.
P/1 – De Emílio Fontana?
R – É, Emílio Fontana.
P/1 – Lá na Amaral Gurgel, no centro?
R – Lá, na época era Santa Cecília. Na Avenida Angélica. Aí a gente começou fazer. Eu parei porque minhas filhas nasceram, as gêmeas aí eu não tive condições de conciliar duas coisas. A mãe já tinha já duas crianças, e aí mais duas, quatro pequenas, aí já eu parei. Eu parei em 96.
P/1 – Você queria ser ator?
R – Ah, não, eu não queria ser ator. Eu queria, eu gostava mesmo de teatro. Inclusive eu escrevi duas história de teatro. Uma foi encenada, “Lua sem Mel”, em parceria mais um colega meu, o Rogério, de Santo André, e nós encenamos ela. Ficou seis meses em cartaz, aqui de São Bernardo. É isso.
P/1 – Aí, você casou...
R – Aí, eu casei, teve minha primeira filha, depois vieram as gêmeas, aí eu parei de fazer teatro.
P/1 – E você é casado até hoje?
R – Não, sou separado. Eu não casei, ajuntei com a menina, entendeu? Aí, nós vivemos 15 anos, aí separamos.
P/1 – Bastante.
R – É.
P/1 – E aí você foi trocando de trabalhos...
R – Troquei de trabalho, eu fui pra fábrica, depois voltei pra obra de novo. Fiquei trabalhando no comércio um bocado de ano, agora tô trabalhando na obra de novo. Aqui na obra do CEU.
P/1 – Sempre como ajudante geral?
R – Isso. Na fábrica não, na fábrica era operador de máquina.
P/1 – E como é que você veio parar no alojamento aqui?
R – É que a gente morava lá na favela lá em baixo, lá no caveirinha, chama Cavoca. Aí, teve uma enchente, aí eles trouxeram a gente pro alojamento, a administração passada. Foi o Dib, na administração do Dib.
P/1 – Como é que era no Cavoca? Como que era essa favela?
R – A favela era bem, eram pequenos os barraco. O meu barraco era grande, mas a favela era pequena. Passava um rio, não era legal morar lá.
P/1 – Como que era a convivência com os moradores? Como que era morar lá?
R – Era bom. Era melhor do que aqui nos prédios. Lá na favela o pessoal era mais amoroso, era mais compreensível, aqui meu Deus do céu.
P/1 – Como que era o cotidiano, a convivência? Vocês se reuniam?
R – É porque na época a gente ia mais pra igreja, né, Assembleia de Deus. Era pertinho de casa, aí que a gente ficava lá.
P/2 – Como é que você começou a participar da igreja?
R – Porque meu pai era evangélico. Mas eu não era evangélico, meu pai que era, mas sempre eu ia pra igreja com ele e minhas irmãs. E eu criei minhas filhas na igreja, até hoje elas são da igreja. Eu saí, elas continuam.
P/2 – E por que que você saiu?
R – Ah, eu saí porque fiquei solteiro, comecei andar pras balada, aí eu saí. A luz não mistura com as trevas, tem que ficar ou um ou outro.
P/1 – E tem algum fato marcante que aconteceu com você quando você morava lá nessa favela?
R – Tem a enchente, que foi triste.
P/1 – Como foi? Quando foi?
R – Foi em 2005, porque de 2006, no final, no início de 2006 nós viemos pra aqui. Foi em 2006, que foi no fim de 2006 que nós viemos pro alojamento. Então, foi lá pro dia... Foi no mês de dezembro a enchente. No início do ano, no fim do ano.
P/1 – Você tava na sua casa, no barraco?
R – Tava.
P/1 – Como é que é?
R – As minha filha eram todas pequenas. A gente colocou elas em cima da mesa. Aí, foi alagando, foi alagando. Aí, a minha amiga, ela tinha uma casa no alto, que era construída, aí pegou as crianças, botou tudo pra lá até a água abaixar. No outro dia tava tudo os barracos tudo desmanchado. Aí, nós viemos pro alojamento.
P/1 – E você trouxe o que pro alojamento? Do seu barraco o que que sobrou?
R – Nada. Sobrou só a televisão que nós pegamos, colocou na vizinha. Aí, bem pouca coisa que sobrou.
P/2 – Roupa...
R – Roupa foi tudo embora. Depois nós compramo tudo de novo. Eu tava trabalhando na ___00’17”50’”__
P/2 – E coisa assim, que você gostava, tinha alguma coisa quer você gostava muito e que acabou perdendo?
R – É documento, foto da minha família, algumas coisas assim.
P/2 – Foi também embora?
R – Documento nós fizemos outros.
P/2 – E no alojamento?
R – Então, aí nós chegamos no alojamento no dia 18 de dezembro de 2006 e saímos... O alojamento acabou agora 2012, ficamos seis anos no alojamento.
P/1 – Seis anos?
R – Seis anos.
P/1 – Como é que era o alojamento?
R – Ah, era um pavio de pólvora. Não era muito bom não. A favela era bem melhor do que o alojamento. Porque tinha muita coisa, era muito conflito com polícia, bandido, tiro pra lá, tiro pra cá, e era muito perigoso. Inclusive nós passamos por uma enchente e sofremos um incêndio. Eu tinha um armazém de produto de limpeza, queimou tudo. Eu tinha um forno de assar pão, perdi. Comprei por três mil o forno de assar pão. Perdi tudo, tudo. Eu tinha mais de três mil reais de produtos de limpeza, queimou tudo.
P/1 – Como que foi esse incêndio?
R – Dizem eles que foi um curto, numa tomada na casa de uma senhora, por nome Gorete. Aí pegou, consumiu o prédio inteirinho, que o alojamento era um prédio de dois andares. Era a parte de baixo e a parte de cima. Aí, esse prédio foi todo consumido. Vocês não viram essa história?
P/2 – Não, não lembro.
R – Foi daí que nós começamos se movimentar, arrumamos a liderança, eu e a Nil, nós começamos denunciar, que ninguém tinha coragem de denunciar o prefeito. Aquela moradia que não era digna de um ser humano. Aí, nós começamos colocar na internet, começamos fazer frase, colocar no alojamento, dizendo que ali era uma obra de habitação da atual administração na época. Eles acordaram pra vida e começaram trabalhar. Foi a época que o Marinho entrou e melhorou um pouco.
P/1 – E quando começou essa ideia de você fazer a biblioteca?
R – A ideia? Desde quando eu morava na obra que eu tinha bastante livro, que eu gostava de ler poesia. Aí, eu fui juntando esses livros, aí quando foi um dia falei com a minha filha: “Tem muito livro aqui dentro de casa. Vamos criar uma biblioteca?”, “Vamos”. Aí, quando foi 2010, nós montamos essa biblioteca. Nós colocamos na internet, aí foi chegando livros, foi chegando.
P/1 – Você colocou na internet o quê? Pedindo doação?
R – Doação de livros, é. A gente fazia, escrevia e entregava às pessoas, com endereço, aí foi chegando livro.
P/1 – Chegava pelo correio?
R – Não, o pessoal trazia. A gente dava o endereço, chegava duas, três caixas de livro. E a gente foi montando a biblioteca.
P/1 – Como que você organizava ela?
R – A gente catalogava tudo bonitinho por... A ideia do livro, cada... História é história, poesia e teatro. Todas catalogadas bonitinho, muito bom. Aí, ganhamos oito computadores. Nós fizemos uma lan housinha, só que não tinha internet, entendeu? Mas a criançada ia lá brincar com o computador, era muito bom. Acabaram com tudo, né?
P/2 – Mas ficava aonde, em que lugar?
R – Ficava dentro de um alojamento, aí o pessoal tinha saído uma família, como a sede nossa era pequena, aí saiu uma família e nós usamos o alojamento daquela família e nós fizemos a biblioteca. Eles reformaram, a prefeitura reformou o alojamento todo, colocou madeira nova, fez bonitinho, e nós catalogamos, ficou bonito.
P/2 – O prédio era de madeira?
R – Era de madeira, de madeirit.
P/2 – E como que vocês se organizavam essa convivência, que a Rô perguntou? Tinha assim alguém que administrava, como era?
R – Não, pra gente se organizar, a gente criou uma associação com o nome Esperança em Viver Melhor. Aí, tinha a nossa liderança, era eu, a Nil, a Claudete, que não sei se vocês conhecem a Claudete, a dona Luzia, a Meire, o Ângelo, o Zulu... Quem mais, meu Deus? A Maria, a outra Maria, duas Maria, né? E era assim, a gente se organizava, a gente fazia festa, a gente fazia protesto também, muitas vezes. A gente, essa avenida foi palco dos nossos protestos. E fechava a rua, parava os carros. Era assim que a gente fazia pra poder acordar a administração. Brincadeira as crianças não tinham, porque o pátio era pequeno e quando as criança estavam brincando, a polícia entrava atirando pra pegar os traficante. Os pequenininhos, né, os peixinhos pequenos, porque os grande eles não vão atrás. Era assim.
P/1 – Que festa vocês faziam lá?
R – A gente fazia quermesse, fazia festa junina, a gente fazia bingos, arrecadar dinheiro pra poder nós irmos correr atrás de poder público, a gente ir atrás do Ministério Público, pra gente ia na prefeitura. Então, assim que a gente organizava pra poder ter dinheiro pra poder correr atrás dos nossos ideais. Era assim que a gente se organizava.
P/1 – E como é que passou de lá, aqui pro conjunto habitacional? Como que foi essa história?
R – Passou do alojamento pra o conjunto?
P/1 – É.
R – A gente ficou um ano no aluguel, na bolsa aluguel. Aí, quando terminaram de fazer os prédio nós retornamos pras unidades habitacionais.
P/1 – Quanto tempo você já tá lá?
R – Eu mudei no dia 12 de agosto de 2012.
P/1 – Você lembra como foi seu primeiro dia, sua chegada?
R – Ah, lembro, foi legal.
P/1 – Como foi?
R – Ah, uma mudança normal. Foi legal, a gente sente assim “Poxa, agora a gente tá naquela casinha”, né? Não foi acabada, mas a gente trabalha um pouco e termina.
P/2 – Você mudou com suas filhas?
R – Mudei com minhas filhas. Sempre eu crio minhas filhas, as três. Porque quando eu separei da mãe delas, elas ficaram comigo, não quiseram ir com a mãe. Eu ia ter uma netinha também. A família tá aumentando um pouquinho (risos).
P/1 – Quem cuidava delas? Você trabalhava?
R – Então, tinha uma senhora que tomava conta delas, muito tempo. Aí, quando nós mudamos pro alojamento, aí eu parei de trabalhar, criei meu negócio, meu comércio, né? Aí, pronto, eu não saía mais pra trabalhar fora.
P/1 – Comércio do quê?
R – Eu vendia tudo. Eu vendia roupa, vendia produto de limpeza, vendia cerveja, vendia tudo que eu pudesse vender eu tava vendendo. Era assim. Eu fiz um barraco, uma pessoa mudou, deixou uma garagem. Aí, eu usei aquela garagem, montei o comércio.
P/1 – Você tem até hoje?
R – Tenho até hoje. Aí, eles construíram o prédio, aí me deu minha unidade.
P/1 – E fala uma coisa, qual foi a principal mudança na sua vida desde que você mudou pro conjunto habitacional?
R – A principal mudança? Ah, porque você sai de um barraco de madeira e vai morar numa casa construída é melhor, né? Aí, volta uma sensação lá da Bahia de novo, porque a nossa casa na Bahia é boa, né? Então, volta mesmo aquela sensação. Morar em barraco é ruim, viu? Barata, rato, lesma, tudo o que é ruim tem no barraco e na casa não tem nada disso, no apartamento.
P/1 – E como que é a convivência entre os moradores?
R – Terrível. O pessoal não se respeita, som alto. Se a pessoa tá ouvindo uma música evangélica, não pode ouvir, outro coloca um funk, ouvindo aqueles palavrões, você é obrigado a tá ouvindo. O carro alto, esse tipo de coisa, pessoa não respeita o seu espaço, não é legal não.
P/2 – Vocês continuaram com a associação aí no condomínio?
R – Não, que agora a prefeitura eles criaram esse negócio de APPA foi pra acabar a associação. Aí, não existe mais comissão de bairro, aí não existe. Aí, o que que eles fizeram? Eles falaram assim: “Ah, vamos fazer um núcleo...”, como que fala? “Um grupo gestante de moradores”. Aí, pegaram todos os síndicos e os subs, fez um grupo, mas é uma porcaria, entendeu? Ninguém respeita as ideias. A pessoa que nem seu Luis, jogou a nossa história fora. “Cadê as fotos, seu Luis?” “Ah, Moisés, era a sua história”, falei: “Não era a minha história, era a nossa história, a história do alojamento”. Ele pegou e jogou fora. Fazer o quê? A gente vai brigar, vai ficar xingando as pessoas? Pra mim é falta de respeito, você não tá respeitando, como é que fala? Um patrimônio da pessoa, porque isso é um patrimônio, é uma história, é um documentário. Destruiu. Agora a gente tem que correr atrás de outras. É um pouco triste, né?
P/2 – E você é síndico?
R – Sou sub.
P/2 – Sub?
R – É, do meu prédio.
P/2 – E como é ser subsíndico do prédio?
R – No meu prédio o pessoal é legal. Aí, quando eles querem vem falar comigo, falam com a Audrey. Falam mais com a Audrey do que comigo porque ela é a nossa chefe, eu ajudo ela, mas é legal. Só tem uma pessoa que dá um pouco trabalho, mas o restante, as 19 pessoas são legais.
P/1 – E vocês têm festas aí como tinha no alojamento?
R – Não, não tem. A única coisa que a gente tem é o nosso filme, o nosso cinema, a sessão Fala Viela, do Núcleo de Comunicação Marginal e o Brincar também, que é do nosso projeto em parceria com o Projeto Meninos e Meninas de Rua. É segunda... Não, é terça e quarta-feira o dia inteiro.
P/1 – Onde que acontece?
R – Lá dentro do salão condominial, na quadra três. Aí, as crianças vêm, brinca, toma lanche, vai embora. À tarde vem outra turma, que a gente faz dois horários porque as que estuda de manhã vem de tarde, entendeu?
P/1 – E como que é esse projeto de cinema?
R – Não, esse é de brincar. As crianças brinca com vários tipos de brincadeiras, cantam, leem livros, depois lancha e vai embora.
P/2 – E o de cinema?
R – O de cinema, a gente escolhe um filme de acordo com as comunidades e roda o filme. Pipoca, refrigerante quando tá quente e quando tá frio a gente dá bolacha com chocolate. Isso é eu que faço sozinho, sem patrocínio de ninguém, entendeu? Eu vou lá e compro as coisa. Alguns vizinhos falam: “Ah, Moisés, toma aqui um pacote de chocolate. Toma um refrigerante”, aí a gente vai ajuntando e a criançada gosta.
P/1 – E quem que escolhe os filmes?
R – Eu e minha filha.
P/1 – E você arruma os filmes onde?
R – A gente compra nas banca, na feira.
P/2 – Você falou: “Escolho conforme a comunidade”. Como assim?
R – É assim, filme que fala de comunidade, fala de favela, fala de periferia, entendeu? Que tem história do Brasil também. A gente passa esse tipo de filme. A gente não passa... A gente primeiro assiste o filme, vê que não tem palavras fortes, é com criança que vai assistir, né? Depois a gente exibe o filme.
P/2 – O último que vocês passaram?
R – O último foi “Lula O Filho do Brasil”.
P/2 – Esse Núcleo de Comunicação Marginal, né, que você falou?
R – Isso.
P/2 – É o que? É uma ONG?
R – É uma ONG. Foi criada pelo Leo Duarte, Leonardo. Não sei se vocês conhecem. Ele é do Conselho Tutelar. Você conhece ele?
P/2 – Aqui de São Bernardo?
R – É, aqui. Ele é daqui de São Bernardo. Ele que foi o primeiro presidente. Fomos nós que criamos.
P/1 – E você tem planos de atuação aqui no conjunto? Planos futuros?
R – Tem, que agora eu tô correndo atrás de um curso de teatro pra criançada aí. O Marinaldo, não sei se vocês conhecem Marinaldo.
P/2 – Não.
R – Ele é do poder público também. Ele tá tentando arrumar um professor pra poder nós fazermos um curso de teatro aí. E tem mais, tem nosso projeto que nós queremos ampliar. O cinema, o Brincar, que nós não vamos parar mesmo. Cada dia vai chegando mais criança e é legal.
P/2 – Você tem ideia assim de... Você falou que no alojamento a convivência era mais tranquila, era mais harmoniosa do que aqui. Você disse que às vezes um não respeita o outro.
R – Não.
P/2 – No alojamento era mais tranquilo?
R – Era mais tranquilo lá no alojamento.
P/2 – O que eu ia perguntar é assim. O que você acha que daria pra fazer, pra melhorar essa convivência? Tem alguma coisa?
R – Eu acho que deve, se as pessoas participassem de reuniões educativas, melhoraria muito. Porque as pessoas quando vai fazer reunião, não se respeitam. Lá mesmo tem uma senhora, junto com o senhor Luis, eles... Que é um grupo, a pessoa não pode tomar decisões sozinha, tem que ser as 19 pessoas. E eu acho pouca gente 19 pessoas, que é 19 famílias, né, tomar decisões por 180 famílias. Não é legal, porque eles tomam decisões e não comunicam as pessoas. Tem um grupo aqui, que nem nós. Nós estamos aqui, nós decidimos o que nós vamos fazemos e nós passamos pro povo em assembleia pra ver o que a pessoa decide, não é verdade? Eles não, é o que decidiu ali mesmo. Eu não acho correto isso. Que nem, a gente tem um projeto da prefeitura por um Protege, o comitê tá sendo lá na nossa sede e foi no dia 13 a primeira reunião do ano e no dia 27. A do dia 27 foi uma luta pra mim pegar a chave, pra limpar. O pessoal da obra tava usando o salão, tava os banheiros sujos. Como ia receber o pessoal com o salão imundo? Não queriam me dar a chave. Aí, como tem aula de capoeira lá, o professor da capoeira me deu a chave, eu fui à noite limpar o salão. Era meia noite, eu mais minhas filhas estávamos limpando o salão, meia noite, pra no outro dia tá limpo. Que a reunião começa das oito e meia ao meio dia e meia, e foi uma luta pra mim pegar essa chave. Então, eu acho que tá faltando comunicação, entendeu? Tá faltando... Como que fala, meu Deus? Tá faltando tudo, né? Tá faltando as pessoas se respeitarem, que eles não têm respeito um pelo outro. Tem uma tal de Michele lá que pelo amor de Deus, só Deus mesmo pra ter misericórdia, viu? Essa Michele, ela quer tomar decisões, ela fala: “Eu não quero, Moisés eu não quero os livro aqui dentro. Você decide os seus livros, os livros são seus, você tem que tomar atitude com eles, senão nós vamos jogar na caçamba de lixo.”
P/1 – Onde estão guardados os livros, hoje?
R – Tá numa sala. Aí eu falei assim: “Se você colocar as suas patas nesses livro, vou te processar”, eu falei mesmo assim, porque eu sou um pouco também, na hora quando trata daqueles livros, eu fico uma fera. Eu falei assim: “Se vocês me ajudarem a escolher uma ONG pra nós doarmos os livros, aí tudo bem, mas jogar fora não vai não. Não vai não”. Eu viro bicho se falar que vai jogar aqueles livro fora. Eu quero que ele vão pra um lugar onde vão ser usados, entendeu? A gente vai tirar um pouco pra deixar lá, pras crianças, e o resto a gente vai doar, mas jogar fora não. A não ser aqueles que tão danificados, porque no resto não vai não.
P/1 – Moisés, quais são os seus maiores sonhos hoje?
R – De voltar pra Bahia (risos). Tá muito cansado aqui em São Paulo. É bom a gente voltar pra nossa origem.
P/1 – O que que você achou da experiência de contar sua história aqui, pro Museu da Pessoa?
R – É legal.
P/1 – Um pedaço da sua história?
R – Fico um pouco... que eu não gosto de falar muito, que eu tropeço nas palavras, fico nervoso, suado. Tem que voltar ao teatro pra me soltar mais um pouco.
P/1 – Tá ótimo. Eu queria agradecer a entrevista. Obrigada.
R – Obrigado eu.
FINAL DA ENTREVISTA
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