Projeto Conte Sua História - Belo Horizonte Surpreendente
Depoimento de José Eduardo Silva Gonçalves
Entrevistado por Lucas Torigoe
Belo Horizonte, 11/09/2019
PCSH_HV813 _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina Ferreira
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual é o seu nome inteiro, onde você nasceu e em que dia?
R – José Eduardo Silva Gonçalves, nasci em São João del-Rei, região do Campo das Vertentes, Minas Gerais, 28 de novembro de 1957.
P/1 – Você sabe em que hospital você nasceu?
R – Na Santa Casa.
P/1 – De lá?
R – Na Santa Casa de São João del-Rei.
P/1 – Seu pai falou como foi, sua mãe... Como foi esse dia?
R – Olha, os partos eram todos naturais, minha mãe disse que teve partos bem difíceis, mas não foi, exatamente, o meu caso. Eu nasci às 11 horas da noite, sem muito problema, já nasci perto da noite, assim, animado. Não tem nada, eles nunca me contaram muitos detalhes não.
P/1 – Sei. Você tem irmãos?
R – Tenho sete irmãos. A família de cinco mulheres, três homens. Meu pai teve um primeiro casamento, ficou viúvo muito cedo, com duas meninas, e, naquela época, o homem não ficava sozinho com duas meninas, de jeito nenhum. Logo arrumou alguém para casar, encontrou a minha mãe e a vida seguiu.
P/1 – Como é você nessa escadinha?
R – Olha, tem mais dois depois de mim. Eu tenho minhas duas irmãs mais velhas, desse primeiro casamento, que para a gente não fez a menor diferença, são minhas irmãs, sempre as entendi assim, desde o começo. Depois vieram mais duas mulheres, depois o primeiro homem da família, aí eu acho que minha mãe já estava começando a ficar meio cansada, mas ainda me teve, depois teve o meu irmão, depois de alguns anos ela já, realmente, querendo parar essa fábrica e teve a caçulinha. Na verdade, meu pai muito católico, católico ortodoxo, aquela coisa, minha mãe precisou ir ao padre e pedir ao padre que pedisse a ele para usar preservativo, para que não nascesse mais criança, porque nem isso ele permitia. Então era um filho atrás do outro, era uma coisa difícil, uma coisa complicada, mas o padre pediu a ele, ele topou e aí parou.
P/1 – Quando era o quinto filho, ela...?
R – É, ela já estava cansada mesmo. Mas ele sempre foi muito católico, fervoroso, as minhas lembranças de infância têm muito essa marca da igreja, da presença dele, da fé dele e todos os dias... Aquele negócio de levar a gente à missa aos domingos, segurar na mão da gente. Quer dizer, eu tenho essa coisa, adoro procissão, adoro esses rituais religiosos, a religião não é meu forte não, mas eu adoro os rituais e muito por causa dele, por causa dessa coisa de fazer a gente participar daquilo. Em casa, as mulheres rezavam terço com as vizinhas, com as amigas, tinha aquela coisa de terço de dia de semana, sempre foi muito forte essa coisa de igreja, da coisa do catolicismo mesmo, sempre uma marca. Mas em uma cidade pequena, onde a igreja que a gente frequentava, ao lado dela, era a rua da Zona, então, assim... Convivia muito esse sacro e o profano, era do lado, não é? A igreja Largo do Carmo, que era a igreja que meu pai frequentava, pertencia à Diocese do Carmo - de um lado o cemitério, de outro é a zona, é o puteiro. Hoje não mais, hoje é uma rua cultural. Uma rua que foi incorporada pelas coisas da cultura, era uma rua proibida, a gente não podia passar, mas do lado da igreja, cara.
P/1 – Qual é o nome da rua?
R – Da rua?
P/1 – É.
R – Não. A gente conhecia como rua da Cachaça. Oficialmente acho que ela tem um nome, mas para a gente era rua da Cachaça, rua da Perdição, do Pecado, tal. Claro que a gente ficava doido para passar lá, doido para passar (risos). Mas não passava, a autoridade do pai era um negócio que a gente só vai começar a contestar mais tarde. Quando é criança, a gente não contestava isso, não é?
P/1 – E qual é o nome inteiro do seu pai?
R – Hélio Batista Gonçalves.
P/1 – Você sabe como é a história da família dele?
R – Ah, meu pai é de uma família muito pobre, muito pobre mesmo, pessoas que viviam no meio rural. Ele é de São Vicente, Minas, que é uma cidade próxima. Ele se alistou no Exército justamente porque o Exército era uma opção de uma certa ascensão, de uma possibilidade de ter uma vida melhor. Na verdade, ele foi ter o primeiro sapato próprio dele, quando ele entrou para o Exército. Ele era acostumado a andar descalço, a ter sapato emprestado, coisa que herdava dos outros, quer dizer, ele era de uma família muito pobre. Entrou para o Exército, tem batalhão, tem um quartel em São João del-Rei, que é o décimo primeiro, e lá ele começou a fazer a carreira dele. Mas ele nunca foi longe nessa carreira porque ele se recusou a mudar de cidade e, para crescer no Exército, você tem que aceitar esses deslocamentos, ser transferido de lugares e tal. Ele nunca aceitou, acabou ficando por lá. Ficou como tenente para o resto da vida, se aposentou como tenente, ele era conhecido na cidade como Tenente Hélio, tinha essa coisa então. Além de católico, um militar, um homem assim, boníssimo, incapaz de... Nunca deu um tapa em um filho, nunca o vi cometer um gesto, nunca o vi falando um palavrão, mas adorava o Exército, adorava o Exército. Ele se encontrou com a minha mãe, que já morava lá. Minha mãe é uma história assim: Leida - Leida Silva Gonçalves - filha de uma família que era bem de vida, meu avô Juca era um pequeno industrial, acostumada a receber as pessoas importantes em casa e tal, ele se meteu em um negócio com os irmãos dele e quebrou a cara - uma fábrica lá e os irmãos o executaram e ele perdeu tudo, tudo, tudo. A minha mãe ficou pobre de um dia para o outro. A família inteira ficou pobre, pobre mesmo, dele virar funcionário de Prefeitura, de trabalhar na questão de limpeza urbana da Prefeitura. Então, na vida dela, ela tinha essa marca dessa tragédia de quem perde. É mais comum a gente conhecer histórias de quem subiu, mas história de quem desceu é muito complicado. Então assim... Todo mundo parou de estudar, ela não, ela ainda conseguiu continuar, mas era uma menina que tinha aula de violino, de repente, eles tinham dificuldade para comer. Então, essas pessoas se encontraram: meu pai, que veio de uma família pobre; minha mãe, que vinha de uma família que teve uma derrocada, não sei o quê, e se encontraram. Aí construíram a história deles, uma história bacana, muito digna, muito honrada, são pessoas muito... Que eu tenho boas lembranças. Assim... De pessoas muito queridas na cidade. Meu pai, quando morreu, a cena que eu me lembro muito bem é dele... É muito comum no interior o caixão, o cortejo fúnebre passa pela cidade, todos os sinos, de todas as igrejas, tocaram para ele. Foi bem bonito. Assim... A reação. Porque ele fazia muito trabalho social, era muito envolvido com a comunidade, aquele troço todo, então ele era muito conhecido. Foi um belo exemplo de vida, mas é isso: católico fervoroso, militar, que na hora da refeição todo mundo tinha que comer junto, ele tinha que agradecer, então a gente agradecia a Deus, aí parava, e ele falava assim: “E ao glorioso Exército Nacional”. Aí tinha que agradecer ao glorioso. Agora, muitos anos depois, olha que bacana, muitos anos depois, um psiquiatra aqui de Belo Horizonte me contou, falou assim: “Você sabe do seu pai na Revolução?” Eu falei: “Não tenho a menor ideia. Meu pai era um defensor do movimento”. Ele falou assim: “Não. Ele era totalmente a favor das coisas do Exército, mas ele tirou gente demais da cadeia”. Um negócio que eu não sabia. Aí, esse homem me contou... Ele se empenhava pessoalmente, ele ia, fuçava, ele ia no quartel, ele se mobilizou muito, eu achei bonito porque era uma pessoa que não falava dessas coisas, de política, defendia bravamente o Exército, a gente sempre via os desfiles de 7 de setembro, ele tinha um orgulho danado da farda que ele tinha, das coisas todas. Mas a coisa da dignidade, ele nunca aceitar violência, essas coisas que vieram no pacote da Revolução de 1964, e só agora, muito recentemente, eu descobri que ele, naquele jeitão quieto dele, defendeu o que ele acreditava mais.
P/1 – 1964?
R – Nós estamos falando do movimento de 1964, eu sou de 1957, eu não lembro - sete anos de idade - não lembro assim, dessas coisas. Comecei a ter alguma consciência das coisas depois dos anos 70, mas antes desse período era só brincadeira, uma vida de interior.
P/1 – Vou perguntar da sua mãe, então. Como é que ela era ou é?
R – Bom, os dois já faleceram, não é? Minha mãe morreu tem... Meu pai morreu em 1991 e a minha mãe morreu há cinco anos, em 2014, morreu no Dia das Mães, ao meu lado, assim. Eles já morreram, mas minha mãe era brava, ela era a brava, ele tinha cara feia, assim, mas quem comandava, quem mandava, de fato, em casa, era minha mãe, com aqueles olhos claros que nenhum filho, nenhum neto conseguiu herdar. Eu acho que ela aprendeu muito cedo que tinha que ser muito guerreira, que tinha que dar conta das coisas e ela dava, ela dava conta das coisas. Então, a minha lembrança era daquela pessoa que era a última a dormir, que quando você precisava acordar seis e meia para ir para a escola o café estava pronto, a mesa estava pronta, porque ela já tinha arrumado tudo. Então, eu nunca vi a minha mãe tirar férias. Por duas vezes que ela... Uma vez, a família foi para o Rio, ela trabalhou o tempo inteiro no Rio de Janeiro, ficamos em um apartamento lá, que só depois também que eu fiquei sabendo que foi um amigo do papai que arrumou para ele. Então assim... A gente quando tirava férias, ela que trabalhava - trabalhava o tempo inteiro. O que eu lembro da minha mãe é uma pessoa muito forte, uma pessoa forte, uma pessoa que enfrentava as coisas, assim, firme, e, naturalmente, eu tive muitos conflitos com ela.
P/1 – É?
R – Ah, natural, porque também eu fui, talvez, o filho rebelde, o que deu mais dor de cabeça. E, ao mesmo tempo, eu acho que ela tinha um afeto especial por esse filho, porque era uma relação... Ao mesmo tempo em que eu contestava muito, eu sempre fui muito afetuoso, então a gente sempre construiu uma relação muito bacana. Mas ela, voltando nisso, era uma mulher brava, exigente, rigorosa, não tão religiosa como meu pai, eu lembro dela ir pouco à igreja. Em algum momento eu cheguei a duvidar se ela acreditava naquele troço todo, mas acho que ela acreditava. Mas ela ia pouco e o exemplo dela era dentro de casa, era aquela coisa onde ela atuava, cozinhava, cozinhava bem pra caramba e todos os meus amigos de infância, adolescência, todos gostavam de fazer trabalho em casa porque ela fazia pão de queijo, suco. Era uma casa em que ela recebia bem.
P/1 – O que você gostava que ela fazia para comer?
R – Eu adorava o empadão, adorava os pudins. Era tudo muito bom. Quer dizer, lá em casa... Matava o frango em casa, ainda tem esse cheiro daquela coisa de tirar a pena, eu nunca consegui, mas a minha mãe que matava. Ela preparava aquela comida, ainda tem o cheiro de como é que se prepara essa coisa em casa, então, o frango era maravilhoso, mas tudo muito exagerado. Eu lembro de uma casa muito exagerada, porque a gente vivia com simplicidade, nunca fomos pobres porque já era uma situação de classe média, classe média simples. Nunca tivemos carro em casa e nem casa própria, meus pais não conseguiram comprar casa, mas a gente vivia super bem e comia muito bem, comia muito, era muita comida. Então, essa fartura de comida não era uma fartura de uma casa simples, isso é uma coisa difícil de entender hoje, porque eu acho comida uma coisa cara. Ela era assim: se ela fizesse lombo e frango, aí você comia o lombo, ela falava: “Você não está gostando da minha comida, não é? Você não comeu o frango”. Você tinha que comer tudo, tudo você tinha que comer. Então, ela cozinhava muito, muito bem, a mesa sempre muito farta, muito rigorosa, muito firme. E também uma coisa de família grande do interior é que os irmãos mais velhos cuidavam dos menores.
P/1 – Como é que era?
R – Isso era muito comum. A minha irmã, Tereza Raquel, que mora no Rio, a Tetela, que é o apelido dela, ela cuidava de mim. As fotos que eu tenho de infância não são no colo da minha mãe, são no colo dela, ela que cuidava. Então, ia delegando para os filhos maiores cuidar dos outros, porque a mulher não dava conta, não dava conta do serviço inteiro e ainda cuidar dos filhos; então, dos menores eles iam cuidando. Eu lembro muito da minha irmã cuidando de mim, cuidando mesmo, uma relação muito bacana que a gente tem até hoje. Então, é uma lembrança de uma infância normal, de brincar na rua, de correr na rua, de ver aquela vida simples ali, sem luxo nenhum, mas com muita alegria, e, às vezes, indo na fazenda dos tios, nas férias, aquela convivência de família grande, porque os primos também eram muitos, os irmãos todos da minha mãe, não da família do meu pai que ninguém morava lá, mas da família da minha mãe, vários moravam lá. Sempre uma família muito grande, com muitos primos, muita coisa, aquela coisa sempre cheia, muito divertida, não é?
P/1 – Como é que era São João del-Rei nessa época?
R – Ah, era completamente diferente. Na verdade, a gente quando imagina a infância também, a gente idealiza muito, a gente cria uma coisa fantasiosa, eu sei que é fantasiosa porque eu tinha uma dimensão da igreja, da igreja do Carmo, que tinha a imagem de dois anjos assim na lateral da sacristia, que aqueles santos eram enormes, enormes aqueles santos e já adulto, um dia, eu entrei naquela igreja, eu me dei conta de que não eram tão grandes assim. Então, é um negócio assim, que as coisas têm outra dimensão, a igreja para mim era enorme, a minha irmã era Verônica, na Semana Santa, aquilo para mim era um negócio, ela cantava, aquela coisa dramática, aquele troço todo. Meu pai também saía toda Semana Santa, então essas festas eram muito fortes lá em casa, de Semana Santa. Agora, com esse rigor do meu pai, as minhas irmãs não podiam brincar o Carnaval, isso eu lembro. Elas não brincavam o Carnaval, a gente via desfile, mas elas não saíam como os outros, com lança-perfume, que era liberado na época, jogando nos outros. A gente via os desfiles, os desfiles eram maravilhosos, desfiles de rua. São João del-Rei tinha uma tradição de desfiles de rua, de samba, da mesma forma que a Semana Santa é muito forte, a coisa popular também é. Então, tinha muito desfile, riquíssimo, adorava, adorava a Semana Santa pela coisa barroca e adorava o Carnaval pelo pecado, pela licenciosidade, tudo era possível no Carnaval. Então, desde pequeno, se aprendia que no Carnaval valia tudo. E São João del-Rei tinha essa coisa: todo mundo se conhecia. Os vizinhos se conheciam, você era o filho do tenente Hélio e da dona Leida, era aquilo ali. São João del-Rei tem uma coisa que foi uma cidade de tradição cultural muito forte, foi uma cidade até cogitada, na época, para ser a Capital do estado, mas uma cidade que teve muito teatro, muito cinema, teve a primeira biblioteca pública de Minas Gerais, muitos intelectuais passaram por ali, uma parte importante da Inconfidência Mineira aconteceu ali, famílias tradicionais, tipo os Neves, o Tancredo, essa coisa toda. Então, é uma cidade assim, vamos dizer, uma cidade onde a coisa da Literatura, dos livros, sempre foi muito presente. Da imprensa. É uma cidade em que - hoje abriga uma baita de uma universidade, não tinha -, essa coisa da cultura sempre foi muito forte, sempre teve muito teatro, tinha muitas casas de teatro, muita casa de espetáculo, tinha muitos jornais. Uma coisa interessante, uma cidade um pouco diferente de outras cidades coloniais do período, minha lembrança é uma lembrança muito gostosa dessa época, porque sem querer pular, mas eu só saí dessa cidade para estudar Jornalismo, não é?
P/1 – Deixa eu lhe perguntar: você saiu com quantos anos de lá?
R – Eu saí com 18. 17, 18, quando eu concluí o ensino...
P/1 – Ensino médio, não é? Que chama.
R – Na época, ensino Científico. Eu concluí o Científico e não tinha faculdade. E eu era decidido já a fazer Jornalismo.
P/1 – Só um pouquinho antes, você se lembra de alguma história que você viveu no Carnaval, que você ouviu sobre o Carnaval de lá?
R – Não, no Carnaval, o seguinte: o meu pai... A família do meu pai tinha vínculos aqui em Belo Horizonte e, na época de Carnaval... Por exemplo, tinha um bloco caricato aqui de BH, que era do bairro da Floresta, chamava Lumumba, esse bloco desfilava lá. E alguns parentes do meu pai, que frequentavam, iam para lá. Carnaval, a minha casa, que era de dez pessoas, passava a ter 30, 40, com gente dormindo no chão, todos os cômodos com gente no chão, porque a casa ficava lotada com esse povo que chegava para brincar o Carnaval; então eu me lembro muito dessa coisa de Carnaval. Eu me lembro muito dessa coisa de Carnaval, muita serpentina, muita coisa, as pessoas pintando as ruas, a cara toda pintada de preto, roupa preto e branco, listrada. Eu me lembro deles lá se preparando, eu tinha uma meia prima lá que eu era louco por ela, ela participava desse bloco, era a musa desse bloco, era a prima de Belo Horizonte, quando ia para lá. A gente não tinha aquela coisa, por causa do rigor do meu pai, a gente não tinha aquela coisa de poder brincar demais, a gente era espectador um pouco daquela festa e não tinha jeito, a festa invadia. Você saía à rua, os mascarados, os gatinhos, que eram os mascarados com fronha na cabeça, aquela coisa, fazendo uma figura do gatinho, que era muito tradicional, que jogava água nas pessoas ou lança- perfume, ficava ali o tempo inteiro. Então assim... A festa te invadia totalmente, não tinha como não participar. Os desfiles eram muito bonitos, o Jota D’ângelo, que é um dramaturgo e teatrólogo de lá, também com uma presença forte aqui em Belo Horizonte, o Jota D’ângelo fazia desfiles maravilhosos, ele também mantinha um teatro, um grupo de teatro experimental também maravilhoso. Então, essa coisa era muito forte. Carnaval era forte, Semana Santa forte. Eu, pessoalmente, nunca... Quer dizer, só na adolescência que eu comecei a querer também desfrutar do Carnaval. Aí eu já ia, já...
P/1 – Paquerava?
R – Já bebia todas. Eu já era meio rebelde, eu já não queria ser aquele menino comportado, não é?
P/1 – Por que você acha que não queria?
R – Eu não queria, queria ser diferente, eu era tímido, muito tímido, tinha uma timidez grande, que venci na marra. Eu queria namorar as meninas, no Carnaval então que estava cheio de carioca e cheio daquelas meninas bonitas que você via o ano inteiro, e você dizia: “No Carnaval vai dar, no Carnaval eu chego nela” (risos). E tinha muito baile de Carnaval. Isso eu lembro. Na adolescência... Demais. Os clubes faziam bailes, então se tinha desde o baile infantil, até os bailes adultos à noite, principalmente no Atletic e no Minas, que são os dois grandes clubes - hoje o Minas quase desapareceu, o Atletic é um grande clube ainda. Os bailes eram sensacionais, com aquelas orquestras, aquelas bandas, aí era muito bom. A música de Carnaval era muito boa e a gente namorava para caramba, era muito bom.
P/1 – Como é que era, vamos dizer assim, você pensar... Você acordava, falava: “Hoje eu vou ao baile?” Como era a programação?
R – Ah, hoje eu vou ao baile.
P/1 – Mas você fazia o quê? Comia, ia lá?
R – Fazia... Ah, teve uma fase aí de dezesseis, dezessete que já... Dezesseis, dezessete, que a gente começa a experimentar tudo, não é? E São João del-Rei sempre teve uma coisa, uma liberalidade para bebida e droga, uma coisa muito fácil. Eu embarquei em todas, chapava, razoavelmente, desde muito jovem sim. Eu tive um contato com bebida e com outras coisas muito jovem, muito jovem.
P/1 – Mas você então... Vocês iam lá e como é que era esse baile?
R – Ah, baile você toma um pouco para ficar corajoso, vai e todo mundo dança ali. Poxa, hoje eu não teria a menor coragem de fazer um troço daquele, você puxa menina para dançar, pular, beijar e já começava... Se deu, deu, se não deu, parte para outra. Era muito bacana, era muito leve, sabe? E também era outro tempo, que essas questões de assédio não tem, não tinha, não existia essa coisa. Acho que a gente vai melhorando com o tempo, possivelmente tive comportamentos que hoje eu não teria. Mas eu venci a minha timidez e fiquei muito namorador. Demorei demais a dar o primeiro beijo em uma mulher, em uma menina, demorei demais, devo ter sido um dos últimos da minha turma, eu tinha pânico de não conseguir enfrentar aquele negócio. Mas depois, foi uma farra, assim... Porque eu vi que era tão fácil, era tão bom, era tão gostoso. Então assim... Acho que a minha fase final em São João já foi essa fase onde eu já estava me transformando em outro, porque eu sempre fui um aluno exemplar, eu era o xodó dos professores, eu aprendia fácil, já tinha facilidade para escrever desde pequeno, fazia redações com notas ótimas, super-elogiadas. Então assim... Era um bom menino, fui escoteiro, fui lobinho, fui escoteiro. Eu vivi grande parte da minha vida em apartamento, meus pais alugavam apartamento e a gente vivia cinco em um apartamento no Edifício Galo, lembro disso até hoje. Então eu tinha muita necessidade de coisa de rua.
P/1 – Mas isso já aqui em Belo Horizonte?
R – Não, lá. Lá mesmo. Depois meus pais mudaram para casa - uma casa - mas na minha infância toda foi em apartamento, eu me lembro de apartamento, porque quando eles mudaram para apartamento, eu nasci, antes não era. Depois, ao longo da minha vida, lá em São João, quase toda foi nesse edifício, no Edifício Galo. Aí eu tinha a necessidade da rua, porque a rua era onde a gente brincava, onde a gente brigava, brincava, jogava bola, jogava finca, jogava aquelas coisas, meu pai fazia muito a bola de meia. Domingo ia ao campo ver o jogo do Atletic, aqueles programas, estação de trem que a gente brincava de esconder, esse trem que hoje faz sucesso fazendo São João del-Rei e Tiradentes, eu brincava muito ali. Mas era uma vida, assim, normal ali, de apartamento, mas ainda ali eu passei essa passagem da criança, vamos dizer, do menino para o jovem, que já começou a não querer obedecer as coisas.
P/1 – Vocês ouviam muita coisa lá? LP, rádio, como é que era?
R – Nossa, LP direto. Bom, rádio. Rádio minha mãe gostava, e gostou até o final da vida, do programa de domingo que tinha, do Roberto Carlos. Então assim... Essa coisa de Roberto Carlos era direto. Roberto Carlos, Nelson Gonçalves, Orlando Silva, essas coisas tocavam muito em rádio. Eu lembro de rádio de duas coisas: porque rádio transmitia a rádio Globo, do Rio, então todo mundo de São João del-Rei torce para time do Rio, essa coisa de torcer para Atlético, Cruzeiro vem de uns 20 anos para cá, não existia. Até hoje você tem muito mais torcedores de São João del-Rei do Flamengo, do Vasco, Botafogo, Fluminense, do que de Cruzeiro e Atlético. Meus irmãos mais velhos são muito mais torcedores de time carioca do que... Influência da rádio Globo, que era a rádio que chegava, então a gente escutava jogos, meu pai era do Vasco da Gama, time de portugueses. Lembro que só comecei a torcer pelo Cruzeiro em 1966, eu era muito pequeno quando foi a primeira vez que eu vi televisão, que foi a transmissão da decisão do Santos com o Cruzeiro, preto e branco, uma televisão que não era lá em casa, e que o Cruzeiro, do Tostão, ganhou do Santos, do Pelé. Aí eu descobri que tinha um time em Minas Gerais, que chamava Cruzeiro e tal, e ficou meu time. Eu sou o único da minha família que torce por um time de Minas. Incrível, não é? A minha família inteira ou é flamenguista ou é vascaína. Então, o rádio tinha essa coisa forte, mesmo porque a televisão chegou tarde. Então rádio - você perguntou sobre rádio - rádio era a rádio local, bom... A rádio foi importante, o Jornal do Poste foi importante, que era um jornal que era fixado diariamente nos postes da cidade. Isso era uma coisa inédita nos anos 60, 70. Esse jornal existe até hoje; hoje existem vários jornais que são fixados em postes, mas esse era o Jornal do Poste, acho que desde pequenininho eu gostei dessa coisa de jornal, de rádio, essa influência desse tipo de mídia. E meu pai e minha mãe liam, o que é uma coisa rara. A foto mais bonita que eu acho, do meu pai, que eu tenho, é dele lendo jornal. A foto mais bonita que eu tenho. Que eu tirei dele uma vez. Ele lia com o corpo para frente assim, jornal aberto, era um gesto típico dele de ler jornal. Ele lia jornal, ele lia jornal, ele lia O Globo, Estado de Minas, era Globo, em casa sempre, assim... Era Globo que assinava, que era o jornal importante. A minha mãe gostava de livro e as minhas irmãs foram apaixonadas por livro e me aplicaram com a história do livro porque, hoje em dia, você dá um livro de presente para uma criança, ela torce o nariz. Mas eu adorava ganhar livro, então elas me davam livros de presente, me davam livros de presente de aniversário, de tudo. Outro dia eu achei em casa um livro que eu ganhei, nove anos de idade - Um longo inverno, é o nome do livro - e eu procurei na Estante Virtual, existe: Laura Ingrid Alguma Coisa, uma autora assim. Lembro da capa, era uma série, lembro demais desse. Eu gostava de ganhar livro, então era uma casa que tinha livro, meu pai lia a bíblia e lia jornal e a minha mãe gostava de ler revistas, até o final da vida ela leu. E alguns livros ela também lia, e as minhas irmãs liam muito. Então, tinha essa coisa de uma influência de livro em casa, também era bem perceptível.
P/1 – Elas liam o quê? E o que você lia?
R – Ah, elas liam... Os livros eram da Coleção Menina Moça, uma coleção, acredito, bem conservadora, liam as famosas fotonovelas, que tinha bastante em casa. O meu irmão mais velho era leitor também ávido e ele lia muito gibi, ele colecionava gibi e livros de bolso, livros de faroeste, lia e passava para mim. Ele lia muito, ele ainda lê muito, ainda lê muito, então eu fui herdando esse gosto pela leitura, dos irmãos, das leituras que eles faziam e, às vezes uma leitura, vamos dizer, entre aspas, talvez, até de segunda categoria, mas o hábito de leitura, de pegar livro, de ter livro, aquela coisa foi sendo cultivada em casa.
P/1 – Você se lembra alguns que você mesmo quis ler nessa época?
R – Não, eu lembro do primeiro livro que eu comprei, mas aí já era 1973, 1974. Eu não sei por que eu tive dinheiro para comprar, ainda morava lá, porque eu saí de lá em 1976, mas em 1974 eu comprei. Os três primeiros livros da minha vida, eu os tenho até hoje, os três primeiros que eu comprei. Um, eu não sei como é que eu comprei porque lá não tinha livraria exatamente nessa época, tinha uma agência de jornais e revistas, que era de uma imigrante italiana, família todos de imigrantes que foram para lá e quase todos trabalhavam em lavoura. A imigração italiana foi muito forte lá em São João del-Rei, mas essa família especificamente abriu uma agência de jornais, então trazia jornal do Brasil inteiro, ali que eu comecei a... Eu lembro de domingo pegar a edição dominical do Estadão, que pesava, de tão grande. Trazia tudo e vendia livro. Eu já era leitor porque, com dezesseis anos, ninguém compra os livros que eu comprei. Eu comprei uma edição portuguesa, chamava A metamorfose e outros contos, do Kafka. Comprei o primeiro livro do Júlio Cortazar, que chama Bestiário e comprei os contos do Hemingway. Esses três livros eu tenho até hoje, são os meus livros favoritos - Kafka é meu autor favorito. Quando eu casei pela segunda vez, eu arrumei a lua de mel em Praga porque, no fundo, eu queria fazer o caminho todo do Kafka lá em Praga, então esses três livros me acompanham até hoje e foram definidores na minha formação, mas eu comprei lá na agência. Nessa agência que, atualmente, eu não vejo livros lá, eu ainda vou com frequência em São João del-Rei, tenho irmãos lá, a agência continua, a família continua, uma senhora que eu esqueci o nome continua lá, os filhos e tal, e está lá a agência. Esses foram os três livros que eu comprei. Agora, que eu ganhei da minha irmã, eu tenho esse primeiro livro, esse O longo inverno.
P/1 – E você se lembra...
R – Ah, eu lembro de uma coleção maravilhosa também que tinha lá em casa, maravilhosa, que era uma coleção de grandes clássicos reescritos por autores brasileiros, de forma condensada. Então, por exemplo, Moby Dick, que é um calhamaço de 600 páginas, uma edição condensada dele. Robin Hood, Moby Dick, Os Três Mosqueteiros, A Ilha do Tesouro, esses livros todos eu li. Todos esses livros, esses clássicos, em uma versão condensada. Depois, fiquei sabendo – muito depois - depois que o Cony, por exemplo, o Carlos Heitor Cony, fazia algumas dessas versões condensadas. Moby Dick é um dos meus livros favoritos da vida inteira, eu li em uma versão condensada, ainda adolescente, isso era adolescente mesmo. Infelizmente eu não tenho nenhum desses livros mais, eles se perderam porque depois eu saí de lá, nasceram os sobrinhos, esses livros foram sendo doados, doados, eu tenho muita vontade de... Eu costumo procurar em sebo, mas ainda não encontrei, assim. Eu vou continuar procurando, gostaria de refazer essa coleção, foi fundamental para mim. Então, é isso. Era um menino que gostava de ler, fui lobinho, fui escoteiro, fui um bom rapaz, fui um bom menino, zeloso, que, de repente, saiu da linha, quis sair da linha e eles achavam que eu ia ser ou que eu deveria fazer um concurso para o Banco do Brasil, porque era o emprego da época, o grande emprego da época era o Banco do Brasil. Eu não quis fazer. “Não vou fazer, vou seguir meu caminho e tal”. Fui embora. Fiz um caminho diferente.
P/1 – Você estava falando que você está com 62, 61.
R – Estou com 61.
P/1 – E a infância está perdendo a...
R – É incrível quando a gente fala de infância, adolescência, a gente vê como isso é decisivo e como isso é formador para o resto da vida. O que você aprendeu, a experiência que você teve com amigos, experiências de escola. Então, hoje, quando a gente fala em preconceito e tudo... Eu lembro que fiz escola pública, não é? Então as coisas, hoje, ganham outra conotação. Eu lembro como a professora perseguia uma coleguinha negra que a gente tinha, uma coisa impressionante, como é que é a vida.
P/1 – Isso que eu ia perguntar. Tem histórias da sua escola, de amigos, assim, dessa época de São João del-Rei, que lhe marcaram? Você acha? Você lembra de alguma coisa assim?
R – Ah, de escola...
P/1 – De um professor.
R – Incrível como as minhas duas primeiras professoras continuam vivas e a gente se reconhece quando se encontra: a dona Elza, a minha primeira professora, e a dona Nilza Alvarenga. Continuam vivas. Bom, a minha lembrança é a seguinte: eu tenho dois amigos em São João del-Rei que são amigos que eu falo que de berçário; eles entraram comigo no maternal e são meus amigos até hoje. E a gente cursou junto, fez jardim de infância, fez primário, fez científico, fez tudo, tudo junto. Hoje, uma é professora universitária, outro é produtor cultural, foi ator em São Paulo, foi político em São João del-Rei, quer dizer, a gente continua amigo, com diferença de poucos meses. Então, isso é muito forte. Assim... Quando você tem construção, vamos dizer, de cumplicidade tão antiga a gente pode ficar um tempão, mas a gente sabe, exatamente, como é que o outro está, se está bem, se não está, acompanha, vira cúmplice mesmo dessas coisas. Eu lembro de escola, assim, de primário, coisa que eu gostava era de fazer redação, eu lembro das imagens que a professora colocava para, em cima daquelas imagens, construir textos, era um exercício gostoso de fazer. Eu lembro de uma turma grande, lembro que essa coisa de escola pública... Tive colega que era filho de sapateira; tinha a Vera - essa menina negra - que devia ser de uma família ainda bem mais humilde que a nossa e que a professora perseguia para caramba. São coisas que tenho muito claro hoje, como ela puxava a orelha dessa menina, coisa que ninguém nunca encostou a mão em mim, professor nenhum. Mas, naquele tempo, ainda tinha certa liberalidade para punir aluno, professor ainda tinha essa autonomia. Lembro dessa coisa, me lembro das gincanas, são coisas gostosas, lembro das gincanas, das festas, e depois primeiros namoricos com aquela turma já de adolescente; eu não tenho um dia especial, assim, de escola, um dia que seja. Lembro de uma coisa que me marcou muito, que é muito engraçada. Eu também desenhava muito bem, quer dizer, eu desenhava muito bem e tinha aulas de desenho e tudo. E, um dia, teve um concurso de desenho e eu fiz um desenho sensacional, da Igreja do São Francisco, que é a igreja famosa lá, muito detalhado, um desenho maravilhoso e esse meu amigo de berço, que eu falo que é amigo de berço, ele fez uma árvore com um passarinho. E ele ganhou o primeiro lugar. Um negócio que até hoje a gente zoa um com o outro, porque eu fiz uma igreja perfeita, cheia de detalhes e ele fez uma arvorezinha mixuruca, com um passarinho em cima do tronco e ele ganhou o primeiro lugar, não sei, acho que eles queriam premiar a infância, a leveza e tal, e eu fui querer ser muito sofisticado. Mas eu desenhava muito bem, eu desenho para os meus filhos até hoje, eu desenhava muito bem e tenho esses cadernos de desenho com dez, com onze anos de idade, eu tenho esses cadernos até hoje.
P/1 – Você desenhava o quê?
R – Perfil, paisagem, desenhava pessoas, desenhava paisagens. Mas eu tive um trauma com desenho. Eu tinha onze anos e a professora, dona Guigui... Não sei por que, ou de quem foi essa ideia, eu resolvi fazer um desenho da minha mãe, que era uma foto dela. Minha mãe foi uma mulher muito bonita, a foto é linda, eu tenho essa foto também, devia ter trazido tudo, eu tenho essa foto. Eu tentei desenhar minha mãe, mas era um menino de onze anos e o desenho não dava, não conseguia fazer, eu não conseguia fazer... Eu não conseguia captar minha mãe nesse desenho, mas, enfim, esse desenho eu dei de presente para ela, eu dei de presente para ela, mas aquilo me marcou para o resto da vida, o fracasso de ter tentado desenhar a minha mãe (risos). Depois quando eu lancei o meu primeiro livro, que é um livro de contos, eu traduzi essa coisa em uma história, sabe? Em certo acerto de contas com a minha mãe, assim, daquele desenho incompleto. E parei, parei de estudar desenho, acho que esse troço me marcou muito. Mas eu gostava de desenhar, a minha primeira irmã quando casou, eu dei para ela de presente - ela tem na casa dela até hoje - um quadro que eu fiz, que era a casa mais antiga de São João del-Rei, eu desenhei essa casa, fiz um quadro lindo com ela, com desenho crayon e está lá na casa dela até hoje. Muitos anos atrás, quando eu passei, ela estava fazendo uma reforma na casa dela em Oliveira, eu não vi esse quadro lá, fiquei sentido, depois eu vi que ela voltou com o quadro (risos). Mas eu gostava de desenhar, então eu lembro disso também de desenho, que foi uma coisa forte que eu estudei e que foi legal. Eu já tinha essa coisa com a Arte, assim... Uma certa sensibilidade para me expressar desse jeito. Como eu era muito caladão, tímido, eu gostava de escrever, desenhar, acho que nunca fui um menino brigão. Na verdade, a única briga para a qual eu fui convocado, eu fugi dela, tenho uma vergonha disso até hoje, Nossa Senhora, eu tenho uma vergonha desse troço.
P/1 – Você quer falar o que aconteceu?
R – Nossa, eu não sei, esse cara, eu lembro dele, ele é meu conhecido até hoje, a gente se encontra, se abraça, claro, somos dois adultos, dois senhores (risos). Não sei nem se ele lembra desse episódio, mas, para mim, foi um negócio horroroso porque eu sabia que eu era franzino, sempre fui magrinho, franzino, o cara era forte para diabo, não sei o que aconteceu lá no colégio estadual e tinha esse negócio de chamar para a briga, te espero lá fora (risos). E você sabe que eu fugi dessa briga? Que horror, que vergonha, cara, confessar isso. Mas eu fugi daquela briga porque sabia que ia apanhar muito, eu tive medo de apanhar, tive medo de chegar em casa... Eu caí fora. Ele me chamou para brigar e eu caí fora. O Aroldo, e depois o Aroldo virou companheirão da minha mãe, visitava a minha mãe, há poucos meses estive em São João com ele, encontrei com ele, conversamos muito, mas nós nunca falamos desse episódio, nós nunca falamos desse acontecido que para ele... Talvez ele nem lembre, porque ele era bem brigador, ele deve ter brigado com gente para caramba, mas com o Zé Eduardo que fugiu do pau, eu fugi mesmo, uma vergonha, um troço inconfessável (risos). Eu podia contar uma história valorosa aqui, mas foi horrível, horrível.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Ah, sei lá, 14 anos no máximo, no máximo. 13... Tinha muito essa coisa de cospe aqui, cuspia no chão, o que é que tem, tal, vamos marcar briga lá fora. Porque não podia brigar na escola, porque na escola você era punido, tinha punição. Então, as brigas eram fora da escola, enfim. Caramba, como eu tinha esquecido desse episódio que revivi aqui, agora.
P/1 – Vocês compravam muito LP na época, então?
R – Comprava, tinha muito LP lá em casa e quando meu irmão mais velho começou com essa história de rock, aí ele comprava muito, ele comprava os Stones, que eram LPS, e tinha muito compacto, aquela bolachinha pequena, tinha muito disco lá em casa, tinha muito disco. Meu irmão tinha uma coleção fabulosa, que acabou doando quase inteira. Um dia, ele resolveu doar, devia ter doado para mim, porque eu ainda tenho muito LP, eu não tenho mais aparelho, mas eu ainda tenho muito e eu não consigo desligar dele, mas ele escutava demais. Eu lembro dele, eu não lembro das minhas irmãs, eu lembro dele ouvindo e com ele eu aprendi a gostar de rock, essa coisa de rock veio com ele. Mas já na adolescência, com dezesseis e dezessete, eu fiz a minha turma, aí a nossa turma era bem mais pesada. A gente tinha as nossas sessões para escutar os discos que saíam; se fosse do Led Zeppelin então, era uma coisa maravilhosa. 1973, Nossa, a gente fechava dentro de um quarto escuro e mandava ver. A cabeça era bem calibrada, fumava bastante e escutava muito rock, mas no talo, mas em uma altura, cara. Agora, eu não sei como é que a gente ia para a casa de um amigo chamado Adílson e os pais ficavam lá e a gente dentro do quarto, mandando ver. E era só os meninos, quando a gente levava as meninas para ouvir era muito ruim porque elas conversavam, a gente ouvia em silêncio, a gente não falava uma palavra. Então quando chegava disco novo - Yes, Led Zeppelin, Deep Purple, Jethro Tull - a gente colocava no talo, no escuro, e as meninas conversavam, aí não dava para ouvir com elas, era clube do Bolinha mesmo (risos). Eu passei a ter a minha coleção, a minha coleção de disco, mas aí nós já estamos em 1974, 1973, 1974, antes era o pai que escolhia a roupa, era horrível, cara, eu lembro de cada roupa horrorosa, aquelas roupas, aquela moda de calça pantalona, aquele negócio de boca de sino, um negócio horrível. Pai e mãe era ruim. Meu pai não, mas a minha mãe escolhia umas roupas que eram bem esquisitas, até você conseguir opinar. Para você ver, a coisa era tanto assim que meu pai obedecia muito a igreja, publicava toda semana uma nota classificativa dos filmes, tinha lá na parede, os filmes que podia ver, os filmes que não podia e as minhas irmãs mais velhas tinham que seguir isso. E elas aplicavam isso com a gente também. Eu lembro que o quando “O planeta dos macacos”, o primeiro filme, a primeira versão chegou em São João del-Rei, 70 e pouquinho, eu fiquei louco, alucinado, eu estava pronto para ir para o Cine Glória, que era o Cine que passava, enorme, não existe mais cinema daquele tamanho hoje. E a minha irmã Margarida, simplesmente, falou que eu não podia ir e eu perdi o filme, eu só fui ver muito tempo depois. Eu falo para ela até hoje: você não deixou eu ver “O planeta dos Macacos”, cara. “O planeta dos macacos”. Então assim... Tinha essa coisa de obedecer certas coisas, não é? Aí também, depois, a gente começa a subornar o porteiro, a querer ver filme que não podia, aí tinha isso também, não é? Primeiro filme que eu vi que tinha uma mulher pelada, como é que chamava? Não sei que tem, nua, uma cena ridícula, hoje deve passar às duas da tarde, mas passou lá no Cine Arthur Azevedo, não sei, tinha muito cinema, tinha cine Glória, Cine Arthur Azevedo, então eu lembro que esse negócio de cinema era muito divertido, muito divertido, porque ia todo mundo para o cinema no final de semana, lotava, tinha o lanterninha, que era o Tripa, então a gente distribuía, a turma espalhava, e quando apagava a luz, alguém gritava: “Tripa”. E o Tripa ficava furioso, ficava lá tentando achar e outro gritava do outro lado, era uma zona absoluta. Então tinha essa coisa de formação de cinema. Eu passei a anotar todos os filmes que eu vi, eu tenho essa caderneta de 1970 em diante, eu acho, até hoje, foi até, sei lá, 1984, eu tenho isso anotado, todos os filmes. Era três vezes por semana, uma quantidade de filme... Então teve esse negócio de cinema também, que foi bem legal. A gente ia bastante ao cinema também, era divertido, acho que era uma vida divertida, leve, não tinha uma grande tragédia na família, eu só entendi a tragédia da família da minha mãe depois, já adulto, eu não entendia quando eu era pequeno, que ela tinha passado pelo que ela passou, eu não entendia. Só depois, muito para frente, que as histórias começam a ser narradas em casa, aí você vai entender a origem de certas coisas, mas quando pequeno não, quando pequeno era uma vida leve, saudável, não tinha nenhuma história de violência familiar, não tinha brutalidade, era uma vida carinhosa, realmente era uma vida bem carinhosa e legal. As minhas lembranças podem ser um pouco com tempo, ter um verniz assim mais romântico, mas, realmente, eu não sou saudosista como são meus irmãos, todos: “Ah, aquele tempo”. A gente tem um grupo de família, é um tal de mandar naquele tempo e música naquele tempo, filme daquele tempo, eu passo batido, nem olho, não sou saudosista, mas eu tenho saudade de boas coisas. Mas não acho que aquele tempo foi o melhor, acho que o melhor tempo é o de hoje. Mas foram bons tempos, legais, e acho que meus pais foram ótimos pais, com defeitos também, tipo essa coisa muito rigorosa na moral, não é? Esse cerceamento das minhas irmãs, então eu imagino a dificuldade das minhas irmãs para namorar, todas casaram com o primeiro namorado, poxa, isso é um negócio inconcebível, mas elas endeusam “Ah, nossos pais foram os melhores”. Eu fico olhando: “Poxa, vocês não tiveram nem oportunidade para conhecer”. Então, às vezes, as coisas dão certo, às vezes não dão.
P/1 – Você lembra de como era a capa daquele livro que você falou, daquela coleção?
R – Lembro demais. Dos livros, lembro de todos. Lembro da coleção desses livros, a coleção eram livros amarelos, de capa amarela, sempre com uma ilustração muito forte na capa - de Moby Dick era o Capitão Ahab com um harpão. Moby Dick; Último Moicano, aquele índio; Os três mosqueteiros, tudo. Acho que sou capaz de lembrar de cada uma das capas, cada uma das capas, uma coleção muito bacana. E essa outra coleção, que é a de capa azul, essa que teve Um longo inverno e que teve uma série - Uma casa na floresta. Um longo inverno. Eu lembro do Um longo inverno porque há poucos anos eu encontrei esse livro lá em casa, na casa da minha mãe - ela estava viva ainda quando nós encontramos esse livro lá. Mas eu lembro direitinho da capa desses livros.
P/1 – Agora, você falou que queria ser jornalista já, é isso? Nessa época você queria?
R – Eu queria escrever, não é? Eu escrevia muito, já fazia ótimas redações, fui descobrindo que eu gostava de escrever, acho que isso em... Aí já no Cientifico - o chamado Cientifico - eu tive jornais na cidade, eu mantive jornal no colégio, eu tive um jornal que tinha um nome que para mim é inexplicável: “Broquetes e cantasias”. Eu não sei o que é isso, de onde eu tirei isso, que era mimeografado e que, às vezes... E o terceiro ano, eu não sei por que o estadual onde eu estudava fechou, e nós todos fomos absorvidos no segundo ano pelo Santo Antônio e depois nós fomos para o colégio Nossa Senhora das Dores, que era uma escola que até então era só de mulheres. E nós chegamos, nós fomos a primeira turma mista dessa escola. Você imagina como eu nadei de braçada? Em 1975, em um colégio onde só tinha uma turma mista, o resto todo era de mulher, lá eu tive um jornal, tive um jornal bem legal, mas aí eu já estava... Eu realmente gostava de escrever e já tinha claro para mim que eu tinha que fazer alguma coisa ligada a isso e comecei a namorar essa história de fazer Jornalismo, de querer fazer Jornalismo, querer fazer. Não tinha a menor condição de ficar em São João del-Rei, eu tinha que sair para fazer alguma coisa, não é? Ou fazia um concurso público ou ia fazer uma coisa para o Banco do Brasil, que era o sonho das famílias, uma coisa na área pública ou saia para escolher uma faculdade. E eu não gostava de Matemática, não gostava de nada de número, tinha muita dificuldade com isso. Eu só passei no vestibular porque eu colei a minha prova de Matemática inteira, só passei no vestibular por isso, passei bem, mas a prova de Matemática foi uma coisa horrorosa, eu tive que prometer três LP’s para o fiscal, eu não lembro mais quais eram. Teve isso na minha vida, eu corrompi um fiscal na hora de fazer a prova, que eu vi que ia levar um pau absurdo. Ele me pegou colando do colega do lado e me chamou para ir ao banheiro, eu fui ao banheiro, ele falou: “Cara, eu estou te vendo”. Eu falei: “Não faz isso comigo que eu preciso passar” (risos). Ele falou assim: “O que você faz?” “Cara, eu não tenho nada, não tenho nada, só tenho LP”. “Tem LP?”. “Tenho”. Eu não lembro mais quais foram os LP’s, eu tive que dar três LP’s meus, da minha coleção, eu não sei o que era. Aí o sujeito me passou umas respostas, me deixou colar, eu passei no talo, ele me deixou pouca coisa, só o suficiente, mas olha que história, eu tinha esquecido desse negócio, cara. Eu estou fazendo cada confissão horrorosa, cara: eu fugi da briga para não apanhar do Aroldo; eu corrompi um fiscal de provas para passar no vestibular; o resto eu fiz brilhante, assim... História, Português, que era o que valia mais para o curso de Comunicação. Mas a Matemática, foi um horror. Realmente, esse cara me salvou. Graças ao fiscal e a uma conversa de banheiro, em que ele aceitou três LP’s - não me lembro mais, ainda bem que não me lembro, ainda bem que eu não me lembro quais foram os LP’s, mas deve ter sido coisa muito boa porque eu tinha uma coleção de rock maravilhosa. Tinha tudo que era do Yes, do Emerson, Lake & Palmer, do Deep Purple, Led Zeppelin. Tinha tudo, tudo, tudo. King Crimson, tudo que era rock progressivo, rock pesado, eu tinha tudo. Esse cara me levou três discos, não lembro mais. Foi assim que eu entrei, mas eu tinha certeza de que a minha vocação era essa porque já fazia jornal. Quando eu mudei para Belo Horizonte continuei fazendo, eu fiz jornal na cidade, eu fiz vários jornais, eu já colaborava com a imprensa lá, já mandava coisas, eu já escrevia, já tinha uma facilidade para a escrita. A escrita me salvou em vários momentos na vida, uma hora eu te conto.
P/1 – Seus pais ficaram como, de você ir para Belo Horizonte?
R – Eles ficaram... Eles sabiam que não tinha jeito porque eu era muito firme. Eu não discutia muito não, eu peitava. Eles sabiam que era o melhor para mim, que eu estava fazendo a opção certa, sabe? Nunca houve um: “Você não vai fazer”. Então nunca houve assim... Eles queriam o melhor, porque como quem já tinha sofrido muito, eles tinham medo da gente não acertar ali, acabou que eu acertei muito, sabe? Eu acho que eu me dei bem naquilo que eu sei fazer na vida, eu construí a minha vida em cima de coisas que eu acredito o tempo inteiro, fiz a minha trajetória fazendo aquilo que eu quis fazer, então foi bacana, foi uma opção que eles viram que estava correta, que eu tinha feito aquilo que eu queria fazer, apesar dos problemas que eu já dava lá, porque os jornais que eu fazia lá, tinha época que o quartel recolhia.
P/1 – Lá?
R – Lá. Então eu já tinha problemas com polícia, já naquela época a coisa já estava começando a ver que eu ia sair um pouco da rota. Então, várias vezes recolhiam o jornal da gente. Eu fiz dois jornais depois desse: um chamava Frutos de louco, para você ver, devia ser uma influência de Serge, que é bem forte, e depois chamou-se O beco. O beco foi muito bacana e já era uma transição aqui no primeiro ano, já em Belo Horizonte, e já sob a influência da Universidade, que muda tudo, muda sua cabeça inteira, seus amigos, muda sua vida inteira. Mas aí eu já tinha problema, assim, já tinha problema com jornal e tudo.
P/1 – O que você escrevia que dava problema?
R – Ah, eu descia o cacete porque, em 1975, quando eu decidi que queria ser jornalista... Isso para mim é inesquecível. Em novembro de 1975, quando eu entrei na agência de jornais, tinha um jornal alternativo, naquela época tinha Movimento, Opinião, tinha vários jornais alternativos de esquerda contra a ditadura militar, que já estava começando a dar sinais de que não ia longe, mas eles estavam... A linha dura militar estava no auge e foi quando mataram o Herzog. Eu já consumia esse tipo de notícia lá em São João, então, quando eu entrei na agência, tinha um jornal que chamava Ex, E, X, que foi um jornal super combativo - eu tenho esse jornal também até hoje, isso tudo que estou te falando, eu tenho imagem. E o jornal trazia na capa, ou na última capa, a foto do suicídio, entre aspas, do Herzog. Cara, quando eu peguei aquele jornal, eu falei assim: “Eu não quero fazer outra coisa na vida”. Ainda quero fazer em jornal, quero trabalhar com essa coisa. Mas eu já tinha decidido ali que eu queria ser, eu já tinha decidido que eu queria escrever, escrevia cartas, escrevia discurso para os outros, fazia um monte de coisas. Mas quando eu vi aquele troço, aquilo ali foi decisivo para mim, mexeu na minha alma completamente, é isso que eu quero mesmo. E não tinha outra forma a não ser vir para Belo Horizonte, não é? Era ir para BH para estudar, fazer cursinho e tentar a Universidade. A minha irmã mais velha, que já tinha saído de casa antes, que é solteira até hoje, tinha ido para Brasília, ela sempre ajudou os irmãos. Eu acho que foi ela quem pagou o meu cursinho, tenho quase certeza de que foi ela quem pagou meu cursinho no Pitágoras - eu fiz esse cursinho e resolvi, para treinar, fazer esse vestibular da PUC e passei, não é? Porque a Matemática... Porque eu dei um show na Matemática, aí passei no vestibular e minha irmã falou... Não, eu falei: “Eu quero fazer”. Eu nem tentei a Federal, eu fiz uma escola paga, sem ter condição de pagar, mas essa minha irmã ajudou para caramba.
P/1 – O que foi nessa notícia que você viu do Vladimir Herzog que fez você olhar o jornalismo...
R – Foi a coragem. Foi a coragem daqueles caras de peitar, não é? Porque a capa era: “Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. Linda, com esses versos lindos, que é um poema, não é? Eu falei: “Caramba, esses caras estão fazendo isso”. Então tinha aquele sentimento, assim, de um jovem de 17 anos, indignado com as coisas e com o que a gente sabia que estava acontecendo, com a violência, essas coisas marcam muito. Então, eu tinha certeza de que eu queria ser jornalista para isso, para poder ter também aquela coragem, que, vamos dizer assim, aquela coragem que eu não tinha do ponto de vista físico, de enfrentar os meninos mais fortes, mas que eu sabia que com a palavra eu podia ter, que eu podia, que eu podia prevalecer, que eu podia ser melhor em alguma coisa. Tem isso, eu não era o mais forte, não é? Não era o mais rico, não era o mais forte, não era o mais conquistador, mas eu podia ser... O meu poder de sedução estava um pouco nisso de saber usar bem as palavras, ter um jeito com isso, que as minhas professoras falavam: “Nossa, escrevia tão bem”. Que até hoje lembram: “Ah, você escrevia tão bem, seu Português era tão bom”. Eu gostava de ler, não é? Eu acho que é isso que faz a diferença, a leitura. Então eu achava que tinha que fazer Jornalismo mesmo. Foi isso. E o empurrão final foi essa notícia da morte do Herzog, que é como você fala no 11 de setembro de 2001, todo mundo sabe o que estava fazendo no 11, eu sei o que eu estava fazendo lá, em novembro de 1975. Setenta e cinco foi um ano decisivo para mim, foi um ano em que eu tive a primeira, enorme, grande, brutal decepção amorosa. Foi o ano em que eu decidi que precisava fumar muita maconha, porque era importante fumar muita maconha naquela época, até para esquecer da namorada que me deu um pé na bunda, e que eu precisava escrever muito. Então foi um ano assim... E que esses livros que eu estava lendo, Kafka, tudo estava embaralhando na minha cabeça e aquela cidade já não me cabia mais, não tinha jeito de eu ficar ali mais, não tinha espaço mais para mim naquela casa, afetiva, mas pequena para a minha ambição, com as minhas irmãs carolas e também casando, com aquela coisa pequena da cidade pequena, eu vi que não cabia mais, sabe? Não tinha mais jeito, eu tinha que ir embora dali, eu tinha que ir embora para poder voltar até a gostar daquilo, porque tem um período que você quer negar aquilo e quer ir embora mesmo. Então, para aprender até a gostar mais de pai e de mãe e de família, você tem que sair. Eu tive que cortar essa coisa para poder, distante, poder olhar para aquilo e entender que eu podia gostar daquilo também. Mas não precisava ficar preso. A minha mãe era tão autoritária, aquela coisa, assim, que até ela morrer ela sabia da vida de todos os meus irmãos, tudo, tudo, tudo, todo mundo ligava para ela e contava, qualquer probleminha, ela sabia, ela perguntava, ela te encostava na parede, é um negócio, e eu me recusava a contar. Eu fui criando meu jeito de resistir a ela, resistir a essa invasão da minha mãe, que invadiu a vida dos meus irmãos dessa forma não consciente, mas de querer tomar conta de tudo, e eu não permitia. Então foi isso, eu queria ficar longe deles e não queria contar. Então, quando eu ligava, eu não contava.
P/1 – Você, quando veio para cá, você foi morar aonde?
R – Eu vim para cá... O meu primeiro endereço... Eu morei em vários lugares, mas meu primeiro endereço em Belo Horizonte foi um hotel pousada, um hotel de gente do interior que vinha para Belo Horizonte, que ficava ali na rua Tupinambá, no centro da cidade, chama... É... Caramba, eu preciso lembrar o nome desse hotel porque ele existe ainda, está lá na esquina de Tupinambá com Rio de Janeiro, está até hoje lá. Eu fiquei alguns meses ali e era um hotel que recebia pessoas do interior que vinham fazer exames médicos, fazer não sei o quê, e o meu pai me colocou ali nesse hotel, que era a um quarteirão da Praça VII, que é o centro de Belo Horizonte, onde aí eu conheci uma cidade enorme, que eu conhecia pouquíssimo. Já tinha vindo a Belo Horizonte pouquíssimas vezes, a gente não viajava muito, já tinha ido ao Rio de Janeiro, conhecia Belo Horizonte e uns lugarezinhos pequenos. Aí eu caio logo ali na Praça VII, naquele mundo, naquela boêmia danada, aquele mundo maluco de perversão, de tudo. Aquela noite, caio ali. Cai ali na Praça VII, era muito divertido ali, naquele quarto de... Ainda vou lembrar o nome desse hotel, tenho que lembrar o nome desse hotel, porque ele é muito importante, foi o primeiro lugar em que eu morei. Depois eu morei em pensão... Eu morei nesses agrupamentos de estudantes.
P/1 – Repúblicas.
R – Repúblicas. Depois eu fui para República, depois eu também tive um período na casa da minha irmã, que morava aqui, que era gerente do Banco do Brasil, foi uma das poucas mulheres que chegou a ser gerente. Ela trabalhava no Banco do Brasil, morei um tempo com ela. Foi assim, pulando de galho em galho até eu fazer as minhas besteiras todas, e eu casei com 20 anos. Eu era muito jovem quando eu casei e tive que dar conta, sozinho, porque eu engravidei uma colega minha de escola, foi uma história complicada. Mas eu caí ali no centro de Belo Horizonte, eu pegava ônibus para ir lá para... Não, eu estudava ali mesmo, no Pitágoras, que era um curso muito bom, aprovava muita gente no vestibular, foi bem.
P/1 – E como é que era essa boêmia de que você falou? A que bares você ia lá?
R – Não lembro de nome de bar, mas no começo quando eu ainda fazia esse cursinho, eu ainda ia para São João nos finais de semana, porque eu não tinha turma aqui, a família do meu pai, esse pessoal que morava na Floresta, eu gostava deles, mas não tanto porque meu tio era muito violento, eu sabia das histórias dele, como é que ele era com os filhos, eu não aceitava aquele jeito dele, ele foi meu padrinho de crisma, mas eu convivia muito com eles, eu gostava muito deles, eles tinham um filho que eu chamava de primo, que ficou doente muito pequenininho, eu fui o grande amigo dele, mas eu voltava para São João. Isso era uma coisa que tinha muito aqui naquela época, o pessoal do interior tinha dificuldade para se fixar na cidade, então era sempre: “Ah, a minha cidade é a melhor cidade”. E voltava. Quando eu passei no vestibular, eu decidi que não ia voltar, porque eu queria fazer minha turma aqui, eu não queria ficar voltando. Meu irmão depois de mim veio para cá - ele ficava indo e voltando - hoje ele mora em São João, eu não queria, eu queria fazer a minha turma aqui. Aí sim, na universidade, eu descobri minha turma, mas enquanto esses seis meses de cursinho, eu não tinha turma, não é? Todo mundo de todos os lugares, do interior inteiro e de Belo Horizonte, tentando encontrar uma vaga, aquela disputa feroz. Aí, depois que você passa no vestibular, você encontra a sua turma, encontrei a minha turma na escola de Comunicação. Aí foi outra coisa, a vida mudou completamente, realmente eu virei outro. Eu acho que virei outro sem ter deixado de ser aquilo que eu fui, mas eu virei outra pessoa.
P/1 – Por quê?
R – Ah, porque, não sei, acho que eu tinha ambição mesmo de ter uma vida aqui, de ter sucesso aqui, de ter uma carreira aqui, de dar conta sozinho, de não precisar de pai e mãe, de mostrar para eles que eu já tinha dado um pouquinho de trabalho, ainda daria outros, mas que eu ainda seria motivo de orgulho para eles. Então eu tinha umas coisas assim que foram decisivas para mim, eu sempre fui muito obstinado com trabalho, eu tenho uma capacidade de trabalho enorme, de fazer coisas, de trabalhar muito, de ter ideias, de levar a coisa a fundo, de realmente fazer a coisa acontecer, sabe? Eu tenho essa coisa comigo de fazer a coisa acontecer, da coisa dar certo. Eu achei que eu tinha talento, que eu tinha algum talento ali para disputar alguma vaga nesse mercado. A vida era muito mais divertida na cidade, você tinha pessoas muito inteligentes, você tinha muita troca, você tinha uma cultura que chegava, você tinha professores maravilhosos com os quais você tinha aula de Linguística, você tinha aula de Sociologia, de Economia, poxa, era um negócio, a minha vida mudou completamente, porque era outra história. Para quem vinha de um colégio, no último ano em um colégio Nossa Senhora das Dores, um colégio de madre, um colégio de madre, e cai na PUC, que, na época, a gente chamava de Universidade Católica, que era uma escola rebelde, completamente diferente das outras escolas que havia, as universidades todas caretas, a nossa, eram todas pintadas as paredes; os professores; muito malucão; muita gente doida; muita coisa bacana; cinema; informação; jornal; laboratório; era uma vida maravilhosa. Eu, que só gostava de rock, descobri que tinha Clube da Esquina, que também era muito bom, os caras eram muito bons, os caras eram, musicalmente, muito bons. Então assim... É um mundo muito bacana, muito forte, em que as meninas são mais liberais do que aquelas meninas do interior. As festas são muito divertidas, é tudo muito bom, tudo era muito bom, tudo era muito em excesso, não é? Era muita dedicação, muita coisa, muita farra em excesso também, participação em DCE e movimento político na universidade. Vai para rua, no Congresso da UNE, em 1977, apanha de cacetete na rua. Mas era parte dessa coisa, dessa vida nova, não é? Era muito bacana. Você tinha professores que tinham sido torturados. Então assim... Eram histórias que você não... A história estava ali na sua frente acontecendo, não é? Não estava chegando lá na agência de jornal, entendeu? Não era aquela coisa que estava chegando, você estava vivendo, você tinha uma sensação de que você estava vivendo a história, você estava fazendo parte da história, isso é muito forte. Foi uma época em que eu escrevia muito, eu escrevia muito, tanto que escrevia coisas ficcionais, escrevia na escola, nos jornais e escrevia mantendo meu jornal em São João del-Rei, e muito politizado, muito até chato, aquela coisa muito politizada e tudo. Mas foi decisivo, porque eu acho que a escola de Comunicação abriu a minha cabeça de um jeito para a vida inteira.
P/1 – Quais professores você tinha lá? O que lhe marcou mais?
R – Olha, marcaram alguns professores: o Lélio Fabiano dos Santos, que foi um dos fundadores da PUC e que foi um cara importante na imprensa alternativa do Brasil, ex-seminarista, e, olha o que é a vida, cara: ano passado ele lançou um livro dele, me pediu para eu ler o livro dele, para fazer a revisão do livro dele, falou que me admirava muito, eu que o admirava, o Lélio foi... (emoção). Tinha um uruguaio... Não, boliviano, não sei, que foi um cara sensacional, que eu esqueci o nome dele agora, esqueci. Tinha o Delfim Afonso Junior também. Tinha esse povo de Linguística, povo de imprensa, Delfim, Lélio... Eu sou ruim... Zé Milton. Lembro de vários professores, assim. Eu sou péssimo de memória, péssimo. Mas tem esse professor que era um professor de Semiótica, que eu esqueci agora, que pena, cara, eu reencontrei no facebook há pouco tempo. Esse cara foi muito importante porque, em 1977, eu fui preso por causa de maconha, em São João del-Rei, por causa de um cigarro de maconha, em 1977. Eu posso contar porque é história pública. A gente se encontrou na Semana Santa - eu e cinco amigos, cada um morando em um lugar, a gente se encontrou lá na Semana Santa, resolvemos comemorar, acendemos um cigarro e fomos presos em flagrante e liberados naquela mesma noite, mas foi instaurado um processo. A gente voltou e quando começou o segundo semestre letivo na PUC, em 1977, eu recebi um comunicado, um telegrama, que era para me apresentar em São João del-Rei, para prestar um depoimento. Eu vim, fui para São João del-Rei prestar um depoimento e do depoimento eu fui direto para a cadeia. Eles instauraram, por causa de uma briga entre o promotor e o juiz, não sei o que é que tem, eles resolveram levantar esse caso, que era envolvendo seis jovens de classe média, de famílias conhecidas em São João, todos nós seis. E resolveram fazer desse caso um caso emblemático da cidade. Eu fiquei preso três meses, em uma cadeia, com presos comuns, com estuprador, com assassino, vendo as piores coisas do mundo. E, nesse período, os professores mandavam as provas para mim e eu fazia, eu estudava de dentro da cadeia, eu fui excelente aluno, excelente aluno nesse período. Eu falei desse professor porque quando eu voltei, eles fizeram uma festa para mim, e com esse professor: Jorge Posada, lembrei agora. Jorge Posada. Eles fizeram uma sala cheia de balão, não sei o que tem, eu não perdi o ano, eu fui brilhante porque eu tinha muito tempo para estudar, ficava o tempo inteiro na cadeia. Esse professor foi muito importante, aquele período todo que eles me apoiaram foi muito bacana. Essa é uma dessas histórias que meus pais tiveram que enfrentar, do filho que arrumou muita confusão na vida. Isso foi em 1977, cara. Em 1977 eu já estava lá, mas eu fui para São João, eu fiquei esse período, esses três meses que foram terríveis, os meus amigos também - éramos eu e mais três homens, todos meninos, éramos seis, todos espalhados assim.
P/1 – Mesma cela?
R – Não. Espalhados. Tinha dois por dois, tal. Ali eu pude viver o que é uma coisa, mesmo em uma cidade do interior, não é? Eu fico imaginando o que é uma prisão de uma grande cidade, o que é essa loucura, porque ali eu... E ali eu me salvei também pela escrita, porque os presos descobriram que eu escrevia muito bem e eu virei o escrevinhador de cartas para as famílias, para os advogados, eu escrevia carta todo dia para filhos, para pais, para amante, para advogado e foi ótimo, eles me adoravam. Eu escapei das duas facções que tinha lá dentro, que disputavam o controle de tudo, das drogas que entravam, da bebida, do sexo, de tudo, de tudo que tinha dentro lá e eu me dava bem com as coisas, porque eu fui útil. Minha família foi muito útil também porque eles deixavam entrar, meus pais levavam as frutas, era tal, e meu irmão mandava muita revista de sacanagem, eu distribuía para os colegas de cela, aí era uma festa. Então, me dei muito bem lá, apesar de ter vivido coisas que é melhor não narrar. Isso foi em 1977, aí a escola me recebeu de um jeito que você vê que faz a diferença. Eu nunca fui hostilizado, a direção nunca me chamou e falou assim: “Você teve um comportamento indigno. Nós vamos te expulsar”. Nunca. Eu fui recebido com festa pelos meus colegas e pelo professor. E fiz uma carreira, uma trajetória muito brilhante, dos professores todos lembrarem de mim, oferecerem emprego quando eu saí, quer dizer, eu tive uma coisa bacana na escola: a PUC foi muito importante para a minha formação como cidadão, como pessoa política; esse aprendizado com os movimentos sociais, que eram fortes e tal, foi bem bacana.
P/1 – Onde é a PUC, aqui em Belo Horizonte?
R – No bairro Coração Eucarístico, é o campus principal, mas tem outros. Tem em São Gabriel, depois eu voltei lá como professor, eu estive um ano lá como professor, mas eu vi que professor não era a minha praia, já fiz parte de grupos de ex-alunos com atividades lá, junto com professores, já tive uma atividade bacana lá. Eu adoro a escola, mas...
P/1 – Mas você ficava em qual campus?
R – Só tinha esse na época, que era no Coração Eucarístico, nessa época. Eu ia de ônibus para a escola, é divertido. Mas também em 1978 eu me casei. Casei-me com 20 anos, casei ainda na escola, para você ver. Eu me formei em 1980, casei em 1978.
P/1 – O que aconteceu? Você quer falar?
P/1 – Queria saber como é que você fazia? Você ia de ônibus para a PUC?
R – Eu ia de ônibus para a PUC, lendo, estudando no ônibus, isso durou pouco porque eu comecei a namorar a Fátima, que era uma colega minha de curso de Comunicação. Os primeiros períodos juntavam Relações Públicas, Publicidade e Jornalismo, ela fazia Relações Públicas, eu fazia Jornalismo, a gente estudava junto, eu comecei a namorar essa colega e com pouco tempo de namoro, 1977, ela engravidou. Era um negócio pesado naquela época, sabe? Essa coisa de engravidar uma menina, assim. Era uma coisa completamente diferente, ela engravidou e a gente ficou naquele troço, as famílias começaram a pressionar. E eu falei: “Tá bom, eu não vou fugir do pau, eu assumo, tudo”, “Ah, então vamos casar esses dois”. Olha que loucura, eu nunca faria isso com meu filho. “Vamos casar”. “Vamos”. E eu adorava novidade, falei: “Ah, que ótimo, vou casar”. E pronto. Só que ela perdeu com dois meses e o casamento já estava marcado. Meu sogro, que era médico, chegou para mim e falou: “Olha, tudo bem, vocês não precisavam casar mais. Só que se você não casar, você nunca mais vai vê-la”. Eu falei: “Não, eu sou homem de palavra, eu vou cumprir”. E foi a coisa mais esquisita, porque nessas condições, quando casou, a família dela de um lado, a minha de outro, tinha pouca pega. Mas você sabe que foi bacana? Foi muito bacana, foi uma experiência legal, a gente ficou dez anos casados, muito legal, muito divertido, a gente tinha muita afinidade, foi muito legal, a gente morava em um quartinho de fundo de um sujeito lá na Serra, dono de uma padaria, a gente morava em um quartinho lá no fundo, a nossa casinha era muito bonitinha, aí eu tinha que trabalhar mesmo, comecei a trabalhar para valer. Ela tinha um fusquinha vermelho, que era o Júnior, aí a gente ia para a escola no Júnior, voltava com oito pessoas em cima, não tinha esse negócio de cinto de segurança, era aquela confusão e fumava dentro do carro, então era uma farra, foi bem divertido, a gente viveu bacana. Casei com 20, aos 30 separei, mas com 26 a gente teve o Lucas, não é? Foi isso, com uma colega que eu tive que amadurecer na marra, muito rapidamente, muito. Daí eu comecei a trabalhar mesmo e trabalhar. Meu primeiro emprego foi de bancário, bancário no Banco de Crédito Real, que nem existe mais, meu sogro que me arrumou lá o trabalho. Mas aí depois eu comecei a arrumar emprego na área de Comunicação, teve período em que eu tinha três trabalhos: trabalhava de manhã, em uma revista da Federação das Indústrias - chamava Vida Industrial - onde eu aprendi para caramba com o editor da revista; meio dia eu entrava no banco, saia às seis horas. Seis, seis e pouco fazia um lanche, às sete horas eu entrava na sucursal do Globo e ficava até meia-noite. Aí, à meia-noite eu tinha que sair correndo porque tinha um ônibus que subia para a Serra, onde a gente morava. Se eu perdesse esse ônibus, era meia- noite e meia, uma hora. Aí eu trabalhava três jornadas. Três jornadas. Mas já fazendo textos para uma revista de manhã, e, à noite, trabalhando nessa sucursal, porque à noite a atividade era muito menor. Mas final de semana a redação era pequena, aí eu fazia reportagem. Também comecei a fazer “freelas”, assim, para jornais. Tentei. Uma vez eu fui para o Estado de Minas, durei um mês só, porque me mandaram fazer uma cobertura, o Arrudas, que era o rio que cortava a cidade, hoje está coberto, o Arrudas transbordou. O editor me mandou fazer uma matéria, o editor olhou a matéria, falou assim: “Cara, isso é matéria para o caderno de cultura, isso não é matéria para o caderno de cidade. Você faz a matéria como se estivesse boiando com a dona Maria aqui, você tem um jeito de narrar, você não funciona aqui não, você tem que ir para o caderno de cultura, aqui não vai dar não”. Também comecei a descobrir ali qual era a minha praia, meu tipo de texto que eu gostava de fazer. Foi bem bacana e eu fui aprendendo e tudo; foi nesse período que a gente tinha jornal na escola e que também os professores, que depois vão ser seus contratantes lá fora, lhe conhecem. Então é muito bacana essa experiência de escola, acho que eu saí da escola, assim, com uma fama, um nome legal. “Esse cara sabe escrever. Esse moço aí é bacana”. O pessoal ficava de olho. Eu queria mesmo ter feito uma trajetória em jornal, que eu não fiz, acabei não fazendo; eu não fiz porque eu casei muito novo e já com muita responsabilidade da coisa, do casamento, e logo que eu me formei, que eu já estava com esses três empregos, trabalhando... Eu estava doido para pular para a turma do O Globo. A redação do O Globo era muito grande e muito boa, feras do jornalismo, tinha uma turma muito boa. Eu estava doido para sair do plantão e trabalhar com qualquer outro jornalista. Aí eu... Nesse meio tempo, a minha mulher foi buscar emprego com um ex-professor nosso, Demóstenes Romano, que tinha sido editor da Veja, um cara assim. E o Demóstenes, na época, chefiava a comunicação da construtora Andrade Gutierrez, que era uma baita de uma empresa. Aí ela foi pedir emprego para ele, ele falou assim: “Não, para você não tem não, mas tem para o seu marido, pede para ele me procurar”. Aí eu fui lá e ele falou assim: “Olha, eu quero fazer uma revista aqui”, Eu falei: “Tô, tô trabalhando”. Ele falou assim: “Quanto você ganha?”. Eu falei: “Somando o banco, os “freelas” de manhã, e à noite no Globo, eu ganho x”. Que eu não lembro. Ele falou: “Te pago esse x, mais y, para você vir trabalhar comigo”. Pô, era um dinheiro que não tinha... Aí eu fui falar com meu chefe no O Globo, ele falou assim:“Cara, eu não posso lhe segurar, mas eu vou lhe falar o seguinte: a primeira vaga que eu tenho aqui é sua, se você quiser ficar na redação, você aguenta o tranco que eu vou lhe subir. Agora, deixa eu falar uma coisa: se você sair do jornal e for para Assessoria, você nunca mais volta para o jornal”. Cara, olha o dilema, passei a minha vida, a minha juventude querendo trabalhar em jornal; de repente, eu recebo uma proposta financeira que me cobria os três empregos que eu tinha, que eu tinha cinco horas para dormir. Eu falei: “Ah, pô, vou trabalhar nesse troço”. E fui. Fui para a Andrade Gutierrez fazer uma revista lá e fiquei muito tempo lá, porque esse cara foi um grande professor, um tirano, mas um grande professor. Para você ter ideia, eu tinha fama de ter texto bom, o primeiro texto que ele me mandou fazer, que eu entreguei para ele, ele falou assim: “Está muito bom, mas precisa mexer no não sei o quê”. Segunda versão: “Está muito bom, mas precisa mexer no não sei o quê”. Ele me fez fazer dezesseis vezes um texto enorme. Ele me torturou, a vida inteira ele me exigia um troço, mas ele, de certa forma, me formou também. Então eu aprendi para caramba com ele, mas eu tenho consciência, realmente, eu nunca mais voltei para a imprensa diária. Eu fiz revista, eu fiz muita coisa, mas aquela coisa... Virei um especialista em comunicação empresarial, com aquele negócio, ganhei prêmios da Aberji, vários - Melhor Assessoria de Imprensa do Brasil. Um prêmio que ganhei foi lidando com o sequestro dos engenheiros brasileiros na Colômbia e que eu fiz parte de um grupo de cinco pessoas que cuidava desse sequestro, internacionalmente. A gente obedecia a uma empresa inglesa, especializada em sequestro. Então éramos eu e mais quatro pessoas, a gente fazia parte desse grupo, porque eles exigiam uma pessoa de Comunicação. Foi uma pancada lidar com isso, porque as negociações eram muito complicadas: a gente não sabia fazer aquilo, mas esses ingleses sabiam. A pressão da imprensa, os caras ameaçando matar os engenheiros e os caras falando: “Vocês não podem, vocês têm que esticar essa corda”. E vai esticando a corda. E você não sabe se os caras vão sobreviver. E reuniões. As reuniões eram marcadas assim: de repente, você recebia um recado, que vinha de uma determinada forma, e falava: “A reunião é hoje, às três horas da tarde, no lugar x”. Aí, eu tinha que virar para a minha secretária, lá na construtora, e falar: “Eu tenho uma consulta médica, às três horas”. E o outro cara também falava, e o advogado, todo mundo, aí a gente entrava em determinado local, tinha determinada reunião onde se decidiam as coisas, depois rasgava tudo, queimava, e a gente voltava para os nossos lugares. E eu tinha que aguentar a pressão da imprensa o tempo inteiro, querendo saber da vida dos caras, e as famílias pressionando. As famílias chorando e exigindo, tal. Então assim... Foi uma experiência de lidar com essa situação de risco muito grande e isso aí me deu um prêmio nacional, competindo com Petrobrás, com Coca Cola, com não o que tem. Então assim... Me dei bem nessa profissão. Me dei bem nessa profissão. No paralelo, eu continuava escrevendo, participando de iniciativas editoriais de amigos e tudo. Sempre sonhando com o jornal, com a experiência de jornal que eu queria ter tido, mas já sabendo que eu estava trilhando uma outra coisa, pela qual eu estava sendo reconhecido e recebendo, vivendo razoavelmente, ganhando mais que meus colegas que trabalhavam em jornal, aprendendo, virando uma referência do meio de comunicação empresarial, virei uma referência dessa coisa de fazer comunicação de empresas. Sucedi Demóstenes na chefia, virei chefe desse negócio, conheci um mundo que eu tinha que viajar, conheci a América Latina inteira, porque tinha escritório em todos os lugares.
P/1 – De que ano até que ano você ficou lá?
R – Fiquei muito tempo, fiquei duas décadas lá, duas décadas da minha vida e continuando sendo um cara doido, fazendo as coisas malucas, não dá para narrar, mas eu continuei mantendo um certo lado meu, que precisava manter vivo. Mas eu viajava para todo o lado, eu viajava para a Bolívia, para a Colômbia, para o Peru, para o Equador, viajava para tudo quanto é lugar, para o mundo inteiro. Conheci lugares incríveis, passei um mês na África. Quando o Tancredo morreu, eu estava no Congo, tendo experiências maravilhosas, viajando com piloto russo bêbado, sobrevoando, e, depois, entrando no meio da selva sozinho, porque eu queria conhecer e fui. E uma tribo de pigmeus me pegou, eu virei para o cara que estava comigo e falei: “Me filma aí porque eu não sei se volto”. Mas eu queria fazer as coisas que ninguém... O engenheiro falava comigo e com o fotógrafo “Vocês não podem passar de determinada área”. Eu falava: “Aham”. E ia justamente para a área que não podia ir.
P/1 – Que história é essa dos pigmeus?
R – É uma história legal assim, o Congo foi bacana, a África. Os pigmeus eram um povo que era contratado onde as máquinas não entravam, porque era pantanoso. Pigmeu um pouco proscrito lá, como de certa forma os índios são aqui, marginalizados, um povo nômade, tal. Então eles trabalhavam nessas áreas de frente da floresta - que lá tem uma baita de uma floresta, a estrada era uma floresta. Um dia, lá no final de semana eu resolvi que ia até o final e eles pegaram a gente, um grupo pegou a gente. Assim... pegou, puxou mesmo e levou a gente lá para o lugar onde eles eram... E, realmente, eu não sabia o que ia acontecer. Cara, não aconteceu nada, foi divertido. Foi muito divertido. Eu me lembro de uma cena, de uma criança no balancinho, eu balançando os meninos. A única coisa que eles me pediram foi um relógio. Aquele povo mais baixinho, não era anão, não era anão, era diferente, era um povo baixo. Mas então foi legal. Assim... A gente viveu, eu vivi muitas coisas legais no Congo, como eu vivi em outros lugares experiências sensacionais. Então eu tive oportunidade de viajar pelo mundo, de conhecer muitas culturas, muita gente nova, muita cultura diferente. Resolvi muita crise, crises, assim, que tinha que lidar com imprensa durante 15 dias. Imagina, na Bolívia, 15 dias? Farra total na hora de ir embora. Mas trabalhando sério, ganhando prêmio, virando um profissional. Então assim... Eu sempre mantive, eu sabia que eu tinha que cuidar da minha carreira e cuidei bem Fui crescendo, virei chefe, virei essa coisa toda, só que isso foi cansando, foi uma hora em que eu falei assim: “Cara, eu não posso ficar a vida inteira trabalhando para empreiteiro”. Vendo essas coisas que estão acontecendo, vendo histórias muito bonitas de valor, de gente e vendo situações assim de muita luta, construindo estrada nos Andes, na Floresta Tropical. Cara, vi situações incríveis, mas eu não queria aquilo, já estava querendo outra. Aí eu comecei, no paralelo, a fazer outras coisas. Escrever, escrever mesmo. Meu primeiro livro ainda estava lá, a revista Palavra, que eu fiz em 1999, ainda estava lá. Ziraldo juntou dez pessoas aqui em Minas: “Vamos lançar uma revista”. Eu estava nesse grupo e a gente fez uma revista que, na época, era para concorrer com a Bravo. A gente fez uma revista linda, linda, e ali eu fazia matérias maravilhosas, do jeito que eu queria, matéria de Literatura, matéria de Cultura. Eu comecei como colaborador, como fundador da revista e responsável por uns trechos de perfil e terminei a revista como diretor de redação. Eu fui o único nome que está em todas as edições da revista, então assim... Eu fiz uma carreira legal. O que eu colocava a mão para fazer, eu fazia bem, fazia bem-feito, tinha um texto bom, sempre foi um texto legal. Fiz coisas bem legais, eu vi que tinha que caminhar um pouco. Essa experiência na Comunicação, eu não renego essa experiência na Comunicação empresarial de jeito nenhum, eu conheci um outro mundo, o mundo da Aberji, São Paulo, colegas que faziam trabalho seríssimo nas empresas, muito sério, pessoas bacanas, pessoas que vinham de redação e que já estavam em outra... As empresas estavam descobrindo a necessidade de conversar com o mercado, de prestar contas dos seus atos. Então, incrível, você começou a viver com uma pressão da opinião pública que você não tinha antes, então eu aprendi para caramba nesse negócio de Comunicação de empresa, até ficar inteiramente enfadado, hoje não tenho a menor paciência. Mas eu tenho muitos amigos dessa época ainda, aprendi muito e virei um nome bacana nisso. Fui vice-presidente da Aberji, depois o presidente saiu eu virei presidente durante um período, foi muito legal assim, aprendi o suficiente para saber que também não era o que eu queria, que eu podia continuar comodamente ali, tendo ótimo salário, e um dia joguei tudo para o alto. Joguei tudo para o alto para começar o meu escritório, minha vida, começar do zero.
P/1 – Em que ano foi isso?
R – Isso foi de 2000 para 2001. Tinha 20 anos de empresa, consolidado, assim, empregão, invejado: “Ah, aquele cara de uma das maiores empresas do Brasil”. Bom, era um ótimo salário para Comunicação, não é? Nem se comparava com salário de engenheiros, a turma que ganhava horrores, não é? Mas era bem melhor do que a turma de redação. Mas eu larguei tudo. Realmente, quando eu vivi a experiência da revista Palavra, de editar uma revista, cara, com aquela força, uma revista nacional e que eu podia fazer as minhas pautas, que eu podia ir visitar Hilda Hilst, uma escritora que eu admiro, passar o dia com ela, depois escrever sobre ela. Sabe, assim? Aquilo mudou completamente a minha vida, completamente. Convivendo ali com Ziraldo, com aqueles craques. Aí, quando a revista acabou, a revista acabou, acabou a namorada que eu tinha na época, acabei tudo. Falei assim: “Agora vou começar diferente. Vou começar diferente, vou fazer minha coisa, vou viver do que eu produzir, cada dia eu saio de casa para ver o que eu vou fazer”. Como eu tinha um certo nome bacana, quando eu comecei, eu comecei ainda herdando, fazendo trabalho de assessoria para empresas, ainda fiz muita coisa para empresa, porque eu deixei uma marca boa e faço até hoje livros de empresas. Uma das coisas que eu faço, que é uma especialidade minha, são esses livros institucionais que as empresas dão de presente, que não vão para o mercado, livros caríssimos, lindos. Eu fiz muito livro de empresas, várias, grandes: Fiat, Dom Cabral, Usiminas, Globo. Quer dizer, eu fiz muita coisa nessa área de Comunicação ainda, mas já dono do meu escritório, onde eu queria desenvolver os meus projetos e focado, principalmente, na área que sempre foi a minha paixão da vida inteira, que foi a área de cultura, não é? Que aí quis me dedicar a ela mesmo, para valer, e foi o que eu fiz depois de 2000. Acho que demorei muito para decidir sair, preso por uma situação econômica, não é? Confortável. Demorei a tomar a decisão de sair, mas quando saí, saí definitivo e rompendo com tudo que eu tinha para começar.
P/1 – Na Palavra, o que você mais gostou de escrever?
R – Eu fazia os perfis, então eu escrevia sobre as pessoas. Eu lembro assim... Carla Camurati; lembro desse da Hilda Hilst, que foi maravilhoso. Fazia perfis de escritores, depois passei a editar revista, fazia pautas e editava matéria dos outros, reescrevia, editava, titulava, quer dizer, se pegar as duas últimas edições, eu coloquei título em todas, eu montei a capa, aqueles títulos são todos meus, o editorial de despedida é meu, não é assinado por mim. Eu também sempre fui um escritor, tenho essa faceta que não aparece, que sou um ghost writer, escrevo para muita gente, escrevo para muita gente, hoje bem menos, mas eu escrevia para muito empresário, muito político, fiz coisas demais de discursos, livros, coisas que são assinadas por outros, mas que eu fazia. Descobri que tinha um filão aí, sabe? Interessante. De produção de texto, bem legal. Então eu fiz muita coisa que não me envaidece, mas também não me desonra, textos em que meu nome não aparece, fiz muita coisa disso também. Mas A Palavra foi a experiência de fazer uma revista mensal, de jornalismo cultural, uma revista que circulava no Brasil inteiro, com a pretensão de falar do Brasil inteiro e não só de Rio e São Paulo. O lema era uma revista fora do eixo, uma revista colorida, pulsante. Na mesma época, o Ziraldo, maluco, inventou uma outra chamada Bundas, então ele criou as duas e a Bundas atrapalhava a captação de verba para Palavra. “Ah, aquele cara que fez aquela revista”. Então assim... A gente foi minguando com a publicidade até não ter mais como continuar, não é? Mas assim... Essa revista é disputada hoje por colecionador, uma belíssima experiência editorial. Isso foi em 1999, 2000, a revista durou dezesseis edições.
P/1 – Quem estava nela, que você falou? Tinha dez pessoas, não é?
R – Eram dez pessoas, o Ziraldo era o mais conhecido, ele era o bam-bam-bam. Mas a gente tinha ____ ____ [01:51:01]; Bob Wolfenson fotografou; o Mauro Santayana tinha uma coluna, muita gente bacana escreveu. Escreveu nessa revista, que foi... A gente fazia matérias especiais: “Ah, vamos fazer uma matéria sobre barro, como é que é a cultura do barro, do artesão do barro, aí punha gente para viajar pelo interior do Piauí, do Ceará, de Minas Gerais, ficava dois meses fazendo matéria, sabe? Umas coisas assim, muito legais, muito legal, uma experiência fabulosa, invejável, que, na época, foi muito bacana, todo mundo respeitou, muito legal. Mas em 1998 eu já tinha lançado um livro meu, então eu já estava começando a me desligar, buscando outra forma de me expressar que eu acho que sempre foi pela escrita. Eu queria ser reconhecido como um sujeito do texto.
P/1 – Mas de ficção, você diz?
R – De ficção também. Mas alguém com um texto com qualidade - eu sempre gostei de texto bom, sempre gostei de ler gente com texto bom e sempre gostei de escrever. Então, uma das coisas que mais me dá prazer é quando eu coloco um texto no facebook e vem aquele monte de gente: “Poxa, que texto bacana, que texto bom”. Eu gosto dessa coisa do texto, da palavra. Então, acho que isso eu consegui, consegui firmar também uma carreira nessa área da cultura, descobri, também, que havia um mercado, que era o mercado de Belo Horizonte, e que eu não queria mudar para São Paulo. Porque mais jovem, isso me passou pela cabeça. Onde tudo acontecia era São Paulo, quem queria se projetar no jornalismo, na imprensa, tinha que ir para São Paulo. Muitos mineiros foram, a geração de Humberto Werneck toda foi para São Paulo, depois as outras gerações foram diminuindo essa migração para São Paulo, uma verdadeira diáspora de mineiros. Eu já sou da geração que ficou e fez a vida aqui. Aí eu fui descobrindo que eu podia ter ideias também para ocupar esse mercado, essa coisa... Em 2002, eu comecei a pensar em uma coleção de livros voltada para Belo Horizonte. Até então, eu só fazia projetos para terceiros, livros para terceiros e tal. Aí eu saquei duas coisas: primeiro, que o belo-horizontino falava mal demais da cidade, isso é uma coisa que me irritava, porque eu não acho que é a cidade mais bonita do mundo, longe de ser, mas foi a cidade que me acolheu e onde eu me reconheci, cresci e fiz a minha vida, onde eu fiz o meu nome. Aí sempre fiquei irritado com isso, o pessoal descendo o cacete na cidade. O pessoal também do interior, que não se adaptava, eu comecei a ver que tinha um mal-estar em relação à cidade, que não era legal, que eu não concordava com aquilo porque eu fui bem recebido aqui, eu vivi em vários bairros, eu fiz grandes amigos, eu namorei muitas mulheres muito bacanas, que me ensinaram muito, mulheres muito bacanas, eu tive casamento, eu tive filho aqui. Poxa, eu reconheço nessa cidade o meu território, sabe? Então eu tenho um carinho enorme por Belo Horizonte, e também quando o Lucas, meu filho, foi fazer um intercâmbio, ele falou: “Pai, tem que levar alguma coisa da cidade”. Pô, fui procurar, não tinha nada. Não tinha livro de Belo Horizonte, não tinha nada para levar, é difícil encontrar postal da cidade. Eu falei: “Pô, tem mercado, deve ter algum mercado para falar da cidade”. Aí assim... Eu sempre gostei de levar uma ideia a cabo, de ter uma ideia e levar. Aí, comecei a pensar nessa coisa de ter uma coleção de livro, coleção de livros, e veio essa coisa porque eu tinha visto, no Rio de Janeiro, uma coleção de livros pequenos dedicados à cidade, que tinha durado pouquíssimo, não tinha ido para frente - chamava Cantos do Rio. Pô, mas o Rio é uma cidade do mundo, você pode chamar o Millôr Fernandes para escrever sobre o Méier, Aldir Blanc para falar sobre Vila Isabel, você põe só fera, aí é um negócio diferente. Mas eu resolvi assim mesmo, aí eu tinha chamado a Sílvia Rubião, que também é neta de escritor, Murilo Rubião, para ser minha sócia. Falei: “Vamos fazer um projeto editorial”. Aí a gente criou essa coleção. A gente foi desenvolvendo, desenvolvendo, até lançar a coleção, em 2004, que foi um achado precioso - chama “BH, Cidade de cada um”, uma coleção dedicada aos bairros e lugares da cidade, uma coleção de memória afetiva. Muito certo, que deu certo de um jeito que a gente está completando 15 anos de vida com essa ideia e que a cidade adotou, hoje é um sucesso. Assim... As pessoas procuram, a coleção vende bem, é conhecida, quer dizer, antes eu tinha que catar os meus autores, hoje as pessoas me procuram querendo escrever, “Eu quero fazer parte. Me deixa fazer parte. Deixa eu escrever sobre tal lugar”. Então, hoje, eu tenho fila de possíveis lugares. Foi uma coisa muito legal, que deu muito certo, é um dos orgulhos que eu tenho de ter feito.
P/1 – Qual foi o primeiro?
R – Lagoinha. Foram três: Lagoinha, Mercado Central e Estádio Independência - os três autores já falecidos. O Wander Piroli, que fez o Lagoinha, ele já tinha tido AVC, ele já não estava escrevendo, mas a gente conseguiu dele uma autorização, ele falava com dificuldade. O Wander foi um jornalista importantíssimo em Belo Horizonte, um escritor também, principalmente de literatura infantil - muito importante. A gente decidiu começar a coleção com ele, ele autorizou a pegar textos que ele já tinha escrito sobre a Lagoinha e nunca tinham sido publicados, textos que tinham sido crônicas de rádio, então, a gente fez esse primeiro livro, que é um livro diferente de todos os outros, são crônicas mesmo, ficcionais, mas com personagens da Lagoinha. Aí chamei o Fernando Brant, que eu já conhecia, para escrever sobre o Mercado Central. E chamei o Jairo Anatólio Lima, que era locutor esportivo, que tinha começado a carreira quando o Estádio Independência foi inaugurado, na Copa de 1950, em Belo Horizonte. O Jairo começou ali, na Copa, em 1950. Esses três livros foram um sucesso total de vendas, os três autores já morreram, vários autores já morreram, mas os três eu tenho muito carinho, que foi esse começo da coleção. O projeto continua o mesmo, editorial, livros simples, barato, pequeno, para ser vendido baratinho. Logo identifiquei que já existiam as leis de incentivo, que era um projeto que ia agradar essas leis, um projeto bacana, um projeto de cunho bacana, inovador e tudo, com muita distribuição de livro para escola, biblioteca, tal. Então sempre foi fácil captar via lei de incentivo. Quando eu não consigo captar, eu faço. Mas a maior parte dos livros eu tenho apoio tranquilo de lei, então a coleção foi amadurecendo. Mas ela continua a mesma, com a mesma pegada: um livro de memória afetiva, escrito por alguém comprometido com aquela história que ele está contando; a pessoa tem que ter vivido aquela história, ou nasceu naquele bairro, ou viveu naquele bairro, ou estudou naquele colégio, tem que ter propriedade, tem que ser dono daquilo ali, aquilo tem que ser reconhecido pelos outros do bairro, “Opa, aquele cara pode falar desse bairro”. “Esse aí pode falar porque ele viveu lá, tal”. É incrível, porque tem gente que já não mora aqui há muito tempo. O editor do Globo Rural, que escreveu para a gente o livro do Carlos Prates, texto maravilhoso, quer dizer, já não morava aqui, mas a memória dele, do bairro Carlos Prates, é tão vívida, tão maravilhosa, que ele fez um livro belíssimo, que você começa a ler a primeira frase, você não consegue parar mais, você não consegue. Juro! Você não consegue parar mais, um livro maravilhoso, de um bairro menor, pouco conhecido, sem atrativo, e assim vão, as histórias estão vindo aí. É uma coleção que eu acho que não tem fim. Quando me perguntam quando é que ela vai parar, não vai parar. Enquanto eu estiver vivo, tiver folego e essas coisas, estiver com vontade, com pique - eu acho que eu não vou perder esse pique tão cedo - essa coleção vai continuar. Porque os lugares são muitos e a vontade das pessoas, de contar histórias, também é muito grande; e a gente vai contando essas histórias infindáveis. Montei um site em que as pessoas podiam entrar e contar as histórias delas daquele lugar, então o Fernando Brant contou aquela, mas se você quiser contar a sua história do Mercado Central, você entra lá e conta. Os fotógrafos amigos começaram a mandar fotos de Belo Horizonte, a gente foi montando o acervo de fotos, ficou bem legal, eu faço isso com maior prazer até hoje, junto de outros milhões de coisas que eu inventei depois dessa. Mas essa continua, ininterruptamente, 15 anos fazendo.
P/1 – Você chegou a escrever? Você?
R – Não, nem farei isso. Não, não vou fazer.
P/1 – Por quê?
R – Não, eu vou só editar, não acho que deva entrar. Nem eu, nem a Sílvia. Acho que a gente não deve entrar, a gente tem que ter esse poder de decidir, ajudar as pessoas a contar do melhor jeito, ajudar a editar essa história, mapear essas histórias, identificar as pessoas legais para fazer, saber separar o joio do trigo, separar as propostas que chegam e que não são legais, saber procurar e encontrar as pessoas certas para escrever a coisa certa, mas eu acho... Eu... Não é para mim, não é para eu escrever, é para convidar as pessoas para escrever. Mas eu quero ser lembrado por essa coleção, eu quero ser lembrado por ela, porque eu acho que estou fazendo uma coisa única, sério, não vejo esse exemplo em São Paulo, não vejo no Rio, não vejo em nenhuma outra cidade uma coisa tão consistente, longeva, perene, com essa qualidade. Acontecem coisas incríveis, não é? Está aí o Colégio Municipal. Chega aqui, um dia, um senhor e fala: “Estudei no Colégio Municipal”. Eu falei: “Colégio Municipal lá da Lagoinha?” “Não, o que existiu no Parque Municipal”. Eu falei: “Como que existiu? No Parque Municipal tinha outro colégio, que era o Imaco”. Ele falou assim: “Antes do Imaco”. Eu falei: “Caramba”. Porque o Colégio Estadual do Imaco já tem um autor que escreveu, que era filho do zelador do colégio que tinha dentro do Parque Municipal. Aí chega um senhor para mim e diz assim: “Eu estudei no Colégio Municipal que existia lá dentro, antes do Imaco”. E me traz a foto, que acabou virando a foto de capa. “Eu sou esse aqui, esse menino que está aqui; eu estudei ali”. Depois, essa escola foi para... Mas foi a primeira escola pública de Belo Horizonte. Eu falei: “Cara, eu quero essa história. Claro que eu quero essa história”. Além disso, o sujeito é pai dos meninos do Tia Anastácia. Eu falei: “Caramba, legal, pai dos meninos do Tia Anastácia, estudou no Municipal”. Ninguém tem essa história para contar, só ele. Os colegas todos já morreram, só ele tem essa história e os meus leitores e o público, na medida em que eu torno essa história pública, então eu acho que essa responsabilidade de tornar pública uma história que está em um ambiente da memória familiar, da memória particular, acho que isso é uma baita de uma responsabilidade, sabe? Não é uma coisa assim: “Ah, vou publicar isso”. Não, você está tornando pública uma história, uma memória, ao mesmo tempo em que você está ajudando, de certa forma, a preservar uma história que vem sendo muito destruída. A cidade de Belo Horizonte não tem o menor respeito pela história, todos os dias essa cidade muda, vários lugares em que eu morei já não existem mais, vários lugares onde moraram pessoas importantes também estão sendo jogados fora, difícil você encontrar uma rua que ainda preserve um certo encanto, de uma certa época, que é importante para você se localizar. Claro que a cidade tem que se desenvolver, tudo, mas uma cidade muito maltratada pelo poder público, pelas construtoras imobiliárias, que fizeram essas cidades, às vezes, lugares muito mal-feitos. Então, quando você guarda uma certa história de alguns lugares, eu acho que você está cumprindo uma função bacana, sabe? Eu tenho a consciência desse papel que essa coleção tem, o tanto que ela agrega, que ela mobiliza pessoas, sentimentos. Quando eu faço oficinas, sou convidado para contar como é que é trabalhar com isso, como é que as pessoas se inspiram também para contar as histórias dos seus bairros. Eu tenho vontade de fazer isso na minha cidade, São João del-Rei, contar histórias de lá, histórias do Carnaval, do futebol, ainda vou fazer isso, preciso encontrar parceiros lá.
P/1 – Se você pudesse...
[problema de áudio]
R – Cara, o Márcio fez um posfácio para mim. Resolveu meu problema. Eu tenho um livro que é mais comportado e tenho o posfácio, que fala dessa vibração da música. Então o editor tem isso de buscar...
P/1 – De resolver, não é?
R – É, de resolver a história. Tem que resolver de algum jeito.
P/1 – O que eu ia lhe perguntar: se você pudesse fazer um livro de um bairro, de um lugar, o que você escolheria?
R – Ótima pergunta. Se eu pudesse fazer um livro, eu acho que o período que eu vivi no Horto, vivi na Floresta, eu tenho ótimas experiências, ótimas lembranças da minha passagem na Floresta. Vivi no Luxemburgo, vivi no Santo Antônio, vivi em cada um em um momento da vida. Em alguns eu estava casado; em outros eu estava solteiro, farreando; em outros eu estava começando a vida, quer dizer, vivi vários momentos. O Centro para mim é muito forte, por causa do Hotel Turista e da minha experiência com aquela noite no Centro. Foi a primeira vez que um carro me parou de noite, um homem abriu a janela do carro, me abordou e falou assim: “Ô, rapaz, quer fazer alguma coisa?” Uma abordagem, cara, isso não existia, eu nunca tinha visto uma coisa dessa, entendeu? Essa coisa que o Centro te coloca diante de tudo. Daquelas casas que ainda tinha, de prostituição, dos bares, daquela vida, aquela coisa intensa e eu começando a vida de estudante ali, então o Centro para mim, apesar de eu não ser um conhecedor do Centro, não conheço o Centro assim, profundamente, o Centro eu falaria de bom grado. E a Serra, porque a Serra eu tive essa experiência do meu primeiro casamento, no período que eu também vivi com a minha irmã em um apartamento que ela tinha lá na Serra, que foi bem legal, e o meu filho nasceu lá, na Serra, o meu primeiro filho - porque depois eu tive outros, o Lucas nasceu lá. Então, eu tenho um carinho pela Serra bem bacana, eu gosto daquele bairro e um período em que eu morei em um apartamento que era muito próximo da favela e que meu filho ainda podia brincar na porta e os meninos da favela brincavam na porta com ele. Eu tenho uma foto dele brincando com um menino de rua, coisa hoje inimaginável.
P/1 – O que você gostava na Serra?
R – Eu gostava dessa certa coisa que tinha um pouco de interior também, de mercearia, padaria, tudo perto e de alguém que estava querendo crescer na vida. Então eu lembro da Serra assim, eu lembro da Serra do meu primeiro canto próprio que eu tive, dessa minha casinha lá no fundo da padaria, que era minúscula, mas muito bonitinha. Eu achava a casa mais linda do mundo e quando um amigo meu, de São João, foi lá visitar e falou: “Nossa, que casa é essa?”, eu rompi com ele para o resto da vida, não entendia como é que ele não podia achar aquilo bonito, aquela casinha simples, mas construída, assim, decorada, era um troço. Como é o nome dessas coisas? Não sei se existe hoje, fundo de casa.
P/1 – Barracão.
R – Barracão, era um barracão. Eram conjugados, tinha dois, um do lado do outro e o meu barracão era muito jeitoso, muito bacana, muito arrumadinho. Então eu lembro da Serra sempre com esse carinho, mas se falasse assim: “Você voltaria a morar na Serra hoje?”. Não tenho a menor vontade, eu não consigo olhar, assim... Hoje eu gosto da Savassi, porque eu aqui trabalho; aqui estão as livrarias de rua; aqui estão os lugares, os redutos nos quais eu me divertia nos anos 90, estão nessa região; a Casa dos Contos ainda existe; o Heaven foi o grande bar dos anos 90, onde eu ia todas as madrugas, todas, mesmo já trabalhando em uma empresa séria. Quando eu viajava, eu já vinha direto do aeroporto, com a mala, de terno, e ia para o bar, a gente ficava lá até de manhã, era uma boêmia assim. Eu tenho essa coisa do Funcionários e da Savassi, que foi um lugar legal. Mas eu não tenho laços familiares, por isso que eu acho difícil assim falar de um. Se eu pudesse contar de um lugar, eu contaria desse Dancing Bar que existiu durante dois anos só e que foi uma grande loucura esse bar, maravilhoso, onde eu comemorei aniversário, onde eu reunia os amigos, onde tinha um pessoal muito divertido e muito bacana, foi um bar incrível. Também ia no Lulu, em outros lugares, para terminar a noite. Mas esse Heaven era um lugar bacana, esse aí ninguém vai contar essa história.
P/1 – Como é que era esse bar?
R – É bom não contar, porque também não me lembro mais, eu ficava bem... (risos). Quando eu terminava a noite já não estava em condição de lembrar não. A música era muito boa, o lugar era pequeno, a música era excelente, era o lugar que o Tim Maia, quando vinha dar show em Belo Horizonte, ia para lá. A gente sentava na mesa com o Tim Maia, dá para imaginar, não é? O que é você passar uma noite com Tim Maia! Era esse o lugar que as pessoas vinham dar show, iam para lá. Tinha o Cabaré Mineiro, era muito legal, mas assim... Era um lugar pequeno, onde iam as mulheres mais bonitas, a música era maravilhosa, o clima era de muita alegria e você tinha lá jornalistas... Roberto Drummond frequentava muito, o pessoal estava fazendo... Todo mundo ia para lá, juntava lá de noite o pessoal da publicidade, do teatro, você tinha lá o Pedro Paulo Cava, que ia para lá junto com o pessoal do Galpão. Aí você tinha os músicos, tinha todo mundo que se juntava lá e ficava nesses lugares, conversando, comemorando, celebrando a vida, com muita alegria, então acho que o encanto era a possibilidade de se encontrar, essa coisa gostosa, você ia para um lugar que você sabia que você ia ser bem recebido. Esse lugar durou dois anos - 1993, 1994. Em 2004, outro dia eu fui em uma pizzaria, em Belo Horizonte, e sou recebido na porta por um moreno, alto, forte, falou: “Zé Du” (risos). “Você aqui”. Eu olhei para ele, era o vigilante do Heaven, o sujeito que olhava para aquela fila enorme, lotada, olhava para mim e falava: “Pode entrar”. Porque era disputado, eu era quase que o dono do lugar. Ele: “Você pode entrar”. Ele assim: “Cara, você era demais” (risos), “No, mas como você, no, Zé Du?”. “Eu estou aqui, casado, com meus filhos” (risos). O cara te conhece 20 anos depois, pô, bacana demais, muito divertido. Luís, era o vigilante lá. Mas não tinha problema não, lotava de gente querendo entrar, mas não tinha brigas. Lá dentro era muito bom, talvez eu contasse um pouco dessas histórias, mas as minhas histórias em Belo Horizonte são assim picadas. História na PUC foi legal; a história na Palavra foi uma experiência maravilhosa; a história desse bar foi bacana; são histórias de vários momentos e tudo. Talvez eu pudesse compor a minha história de Belo Horizonte, no geral, assim: o que é que essa cidade me traz e como é que ela me formou. E como é que ela me ajudou a formar essa coisa com a preocupação com a memória e trabalhar nisso de um jeito profissional, enxergar nisso uma possibilidade de fazer uma coisa que as pessoas ainda não faziam. Aí depois eu criei essa outra coleção, que é de perfis BH, também ligada para valorizar personagens da cidade. E vou nessa toada e também fazendo muitos eventos literários: comecei a fazer muita curadoria; criei muitos projetos; criei um projeto que durou nove anos, que se chamou Oficio da palavra. Agora eu tenho um projeto, que já está há quatro anos, chama-se Letra ensina, projeto de Literatura, faço curadoria e criei... Ajudei a criar o Festival de Livro na Rua. Então assim... Eu fui criando coisa e continuo criando um monte de coisa. Lançamos, ano passado, uma revista literária que se chama Olímpio, nós estamos fazendo agora o segundo número, que é uma revista nacional que publica gente do mundo inteiro. Acabei de fazer uma entrevista com Airton (Karanak?), que vai ser o nosso entrevistado, seis horas de entrevista com ele. Então assim... Eu continuo inventando moda, sabe, de certa forma eu sinto que essas coisas me mantêm vivo, me mantêm uma certa juventude, esse pique para continuar trabalhando, enxergando coisa e querendo fazer coisa, querendo criar projeto. As pessoas me chamam e eu vou fazendo coisa. Eu fui presidente da Rádio Inconfidência, fui presidente da Rede Minas. Então assim... Eu fui acumulando um tanto de coisa, que se eu for somando assim, eu falo: “Cara...”. Desde que eu saí da Andrade Gutierrez, eu resolvi realmente cair no mundo, fazendo um monte de coisa. Descobri que eu tenho também uma facilidade de fazer gestão de pessoas, fiz uma gestão muito legal na rádio, em 2006, 2007, as pessoas até hoje lá, eu sou recebido com muito carinho, com enorme carinho...
P/1 – Você estava listando, eu não queria lhe cortar, mas eu ia lhe perguntar: como é que começou esse negócio, só... Uma das últimas perguntas, como é que começou essa coisa com memória, o que lhe chamou a atenção, a memória das pessoas, da cidade, você já se imaginou entrando nessa...?
R – Eu não sei quando é que começou exatamente essa história da coleção BH. Começou com essa história de memória, eu sempre gostei de ouvir histórias e acho importante guardar essas coisas, acho fundamental você ter acervo de histórias, você ter documento, acho que a gente precisa aprender a conhecer a história. O próprio Museu da Pessoa foi uma experiência que eu conheci, que eu admirei desde o começo, essa coisa de colecionar histórias de anônimos, pessoas não famosas, eu acho isso sensacional e comecei a fazer história de família também. Eu fiz alguns livros de história de família, fui vendo que era uma coisa boa, que eu gostava de fazer e que as pessoas gostam de contar. Eu vi que tinha jeito para isso e que isso tinha uma importância, cada vez tem mais importância, porque eu acho que é um país muito descuidado nessa questão de memória. Eu assessorei durante muito tempo o Instituto Cultural Flávio Gutierrez, que já não era Andrade Gutierrez, mas era da ngela Gutierrez, que ajudei a implantar o Museu do Oratório, Museu de Artes e Ofícios, eu participei da concepção desses museus, então eu trabalhei muito com historiador, com pesquisador, eu vi como essas coisas são cuidadosas, mas a minha pegada sempre foi mais literária, então, eu queria fazer alguma coisa que juntasse História com Literatura. Como a minha carreira ficcional é pequena, porque eu lancei um livro em 1998, um livro de contos, aí depois, em 2004, 2003, eu lancei um romance pela editora Record, porque eu tinha entrevistado, na revista Palavra, a editora da revista e tinha dado um livro para ela, ela falou assim: “Cara, quando você for publicar um livro, me manda? Eu quero ser a primeira a ler”. Eu mandei um livro para ela, ela publicou, um livro ininteligível (risos), quase ninguém conseguiu ler, mas ela adorou e publicou. Isso foi em 2004. Depois, em 2006, eu fiz um livrinho pequenininho, uma tipografia muito legal, uma edição tipográfica, e depois eu só organizei um livro de entrevistas, de depoimentos de escritores - foi em 2015 - e agora pretendo voltar a publicar ficção. Mas aí eu dei um tempo na ficção para cuidar das histórias dos outros, achei que era importante ocupar esse espaço, até profissionalmente ocupar esse espaço e ajudar a amadurecer esse formato. Acho que eu dei uma contribuição legal, essa história dos perfis, acho que era um negócio assim, a gente que trabalha, quanto mais você trabalha, mais você gosta. Eu acho que as coisas... Quanto mais você está ocupado, mais você faz. Sério, eu sinto isso, assim, eu vejo, às vezes, amigos que aposentam ou que param e que têm muita dificuldade para desenvolver uma coisa, eu toco várias ao mesmo tempo, eu toco com muita facilidade, eu tenho muita facilidade de tocar vários projetos. E também eu casei de novo, tive filho, tive gêmeos, eu preciso trabalhar, então tem uma coisa assim: “Eu preciso trabalhar”. E eu não quero trabalhar mais com coisa de que eu não gosto, eu quero trabalhar com o que eu gosto, mesmo que não ganhe muito. Eu quero trabalhar com o que eu acho que faço de melhor, aí eu acho que eu faço de melhor é nessa coisa da Literatura, onde eu acabei, pelos projetos, conhecendo escritores do Brasil inteiro. Então, eu hoje posso pegar o telefone e ligar para qualquer um desses caras que eles me atendem. Eu faço projetos aqui, faço projetos em São João del-Rei, porque acho que ainda quero manter um vínculo lá, apesar dos meus pais já terem falecido, é uma cidade importante para mim, então quero dar alguma contribuição lá. Eu mantenho, faço curadoria lá desde 2010, de um evento literário, e faço aqui em Belo Horizonte. Sou chamado para várias coisas; continuo fazendo livros de empresa; livros da minha coleção; curadoria literária; oficinas de Literatura; oficinas de escrita faço também várias; e agora inventei de fazer essa revista, que dá um trabalho do cão. E cada hora chega um projeto novo. Eu tenho muito pique para trabalhar, eu gosto de trabalhar, porque eu trabalho com aquilo que gosto, acho que isso é muito importante, a gente trabalhar com o que gosta, ter uma autoridade naquilo, acho que é muito legal, e ser reconhecido por isso, por esse trabalho, acho que é isso. Acho que é uma trajetória que eu gosto, gostei de contar.
P/1 – Como foi contar, foi bom?
R – É bom, teria ainda uns quilômetros de história para contar, mas eu acho que foi bacana, a maioria dos projetos foram bem-sucedidos, teve coisa que não deu certo, coisa que você faz com namorada maluca, inventa um projeto e ela é mais doida do que você e a coisa não funciona, tem essas coisas também. Mas é legal também as coisas que não dão certo, mas, no geral, as coisas deram muito certo para mim. Eu acho que ainda tenho um débito comigo mesmo na questão ficcional, da Literatura, acho que de tanto escrever para os outros como ghost writer, de tanto fazer livro para os outros, a minha literatura ficcional ficou à margem, então eu tenho escrito, mas não tenho publicado. Mas tenho vontade de voltar a publicar porque... Então... Se eu estiver fazendo isso e mais os meus livros da minha coleção, eu estou feliz, estou muito feliz, de verdade. Acho que eu gostaria que meu pai tivesse visto isso, que ele não chegou a ver, não é? Ele não chegou a ver esse pulo, essa coisa. Minha mãe ainda chegou a ver e viu que eu tinha feito uma escolha certa, bacana.
P/1 – Foi bom contar sua história hoje?
R – Muito bom, porque a gente se reavalia também, não é? Eu sou muito duro comigo mesmo, na minha autocrítica, mas é bom quando você conta e vê que aquilo tem algum significado, que essa história me pertence e só a mim, e que eu posso compartilhar, não é? Porque eu fiz essa história, que ela pode ter algum sentido para alguém, bacana, muito legal a gente revisitar a gente mesmo, tanto mexer na memória dos outros, mexer com a gente é muito bom, é forte e tenho certeza de que vou lembrar de 500 mil histórias depois, mas é assim mesmo. Trabalho de editor é esse, é deixar histórias de fora. Quais são as histórias que você deixa de fora? Esse é o trabalho cruel do editor de qualquer coisa - de jornal, de mídia, de livro. Assim... Quais são as histórias que você vai deixar de fora? Porque você tem que fazer uma seleção de tudo que vem ao mundo, você tem que fazer uma seleção, então, certamente, eu me editei aqui, devo ter deixado algumas histórias de fora, mas foi bem legal.
P/1 – Obrigado.
R – Agradeço a oportunidade de ter contato essa história.
P/1 – Imagina, obrigado a você!
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