Projeto: Vidas em Costura - Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista de André Hidalgo
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 23 de julho de 2023
Código da entrevista: VDC_HV009
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:31) P1 - ‘Bora’ lá!
R1 – ‘Bora’ lá!
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Projeto: Vidas em Costura - Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista de André Hidalgo
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 23 de julho de 2023
Código da entrevista: VDC_HV009
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:31) P1 - ‘Bora’ lá!
R1 – ‘Bora’ lá!
(00:33) P1 – Primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por ‘topar’ dividir um pouco da sua história. E, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R1 – Tá. Meu nome completo é André Hidalgo de Oliveira, embora me apresente como André Hidalgo, normalmente. Eu nasci em 16 de maio, numa cidade chamada Itararé, no interior de São Paulo.
(01:02) P1 – E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R1 – Não, não me contaram muito, não. Eu sei que foi um parto normal da minha mãe, cinco horas da manhã. Então isso eu sei porque foi bom pra determinar meu ascendente, (risos) embora não seja uma pessoa exatamente adepta, muito aprofundada sobre horóscopo e tudo o mais, mas é claro que a gente sempre vai atrás dessas coisas, informações. Às cinco da manhã, isso foi determinante pra determinar quem é meu ascendente, que é o mesmo, inclusive: eu sou touro com ascendente em touro. Enfim. E eu não sei muito mais informações. Naquele tempo, a gente não conversava muito sobre isso com os pais e eu fui criado pela minha avó, a minha infância toda, que minha avó morava sozinha. Quer dizer, ela morava com meu tio, mas ele era diretor de uma escola na cidade vizinha, então ela ficava o dia todo sozinha, então eu fui lá pra fazer companhia pra ela, enfim. Então, acabei sendo criado até, sei lá, uns sete, oito anos pela minha avó e foi muito inesquecível isso, porque minha avó me tratava (risos) com muitos mimos, digamos assim. Então, isso realmente foi fundamental na minha formação porque, sei lá, eu lembro, tenho memórias muito intensas, principalmente relacionadas com comida, porque eu acho que a maneira que essas pessoas de outras gerações têm de demonstrar amor é através da comida. Então, eu lembro que, sei lá, eu ia pra escola e quando eu chegava tinha um café da tarde posto, sabe, pela minha avó e ela sempre fazia um bolo, que um dia era de fubá, outro dia de laranja, então sempre aquele bolo fresquinho, te recebendo ali. E aí eu comia rapidinho, pra sair pra brincar, porque era o tempo que tinha… então isso foi uma coisa que me marcou muito na infância. Outra coisa que me marcou muito, que é uma coisa, enfim, boba, mas pra mim fazia muito... me trazia muita alegria, era ir pro clube nadar. Eu gostava muito de nadar. Então, o clube era de campo, que ficava um pouco longe da cidade, eu ia a pé, porque já fazia parte da experiência ir até esse clube pra nadar, principalmente no verão. Era uma experiência, também muito interessante, muito bacana na minha infância. E era uma infância, foi muito de subir em árvore, de pegar manga na árvore, que interior tem dessas coisas. Então, foi uma infância muito contextualizada, muito feliz. (risos) Eu lembro de sentar em frente à TV com a minha avó, pra assistir novela, sabe? Então, eram novelas, sei lá, de época, que me marcaram muito também. Foi uma infância muito bacana, muito rica e também acompanhada de estudo, embora na época, quando você é criança, você não tem ainda tanto interesse pelo estudo. Esse interesse veio cedo na minha vida, com treze, quatorze anos, que eu realmente me dediquei a estudar, mas até essa infância mais de sete, oito anos, primeira infância, digamos assim, eu só brincava, (risos) eu só aproveitei o privilégio de estar numa cidade que tinha todo esse verde, toda esse acolhimento que a cidade do interior traz, pro bem e pro mal, porque também tem muita fofoca, (risos) muita coisa engraçada que acontece numa cidade do interior, onde você conhece absolutamente todo mundo e todo mundo te conhece. Então, tem um pouco isso, também, mas eu saí de lá com treze anos, então eu saí no momento certo também. Eu vivi o que eu tinha que viver ali, que foi muito intenso, muito bacana. Mas eu cheguei em São Paulo num momento, realmente, que foi muito fundamental pra minha formação, porque, com treze anos, assim que eu cheguei já, na escola, me identifiquei com o grupo de teatro da escola, já entrei pro grupo de teatro, já comecei a ‘abrir a minha cabeça’ pra uma série de coisas e, sei lá, com quatorze, quinze anos eu já era militante da Convergência Socialista, sabe, (risos) que era um movimento que tinha, na época, que era muito político, muito intenso, muito forte e que estava permeando todas as universidades, escolas e isso era muito intenso, então tinha encontros estudantis. Então, eu comecei a ter uma formação política, ali, que foi muito fundamental também, pra mim. E de uma maneira muito espontânea, muito de acordo com as minhas, também, indagações, meus questionamentos, minha formação de visão de mundo, mas isso foi muito fundamental mesmo, porque me deu um olhar, me ampliou muito mais o olhar, numa fase muito, ainda, de formação, mesmo. Eu era muito jovem ainda e eu já tinha toda essa consciência e me divertia muito também. (risos) Enfim, porque na verdade foi também nesse processo que eu comecei a ter contato com a noite e eu, sendo um homem gay, já comecei a ter contato com esse universo logo cedo, porque obviamente eu busquei isso, então foi muito legal pra mim, porque ter essa parte de infância, da diversão faz muito sentido também pra mim, sempre fez. Então, eu sempre equilibrei essa parte mais militante com a de diversão também. Então, eu tive realmente essa fase da minha vida, foi muito bacana por isso, foi uma fase de descoberta. Não tem outra palavra: descoberta.
(07:40) P1 – Vou voltar um pouquinho, tá?
R1 – Sim. É que eu já fui pra frente, né? (risos)
(07:45) P1 – Eu queria saber qual o nome da sua avó.
R1 – Vó Cotinha. Ana Eugênia, mas vó Cotinha, como ela era conhecida.
(07:53) P1 – E tinha alguma atividade bem característica de vocês dois, que vocês gostavam de fazer juntos ou alguma conversa muito significativa pra você?
R1 – A minha avó não era muito de conversa. Ela demonstrava esses afetos, como eu te falei, através da comida. Ela gostava muito de ver TV e tinha uma coisa engraçada, porque talvez ela não enxergasse direito, então ela colocava duas cadeiras - tinha o sofá, mas ficava lá atrás - na verdade, três cadeiras, porque tinha uma menina que trabalhava com ela também, então ficava eu, ela e essa menina assistindo TV, novela, muito próxima, sabe? (risos) A TV aqui e a gente sentado aqui. Eu não entendia muito, na época, porque, mas acredito que é porque minha vó não enxergasse direito. Então, essa era uma atividade diária que a gente tinha, na nossa rotina, além do café da tarde maravilhoso. E não era só o café da tarde, era almoço, café da manhã, jantar, tudo. Quando eu ia dormir também, ela fazia um (risos) mingau de alho, porque fazia bem o alho, porque não dava gripe e, realmente, eu tive uma infância muito saudável nesse sentido, porque tinha essa coisa também da cura pela alimentação, que vem através dessa coisa também da avó, de ter esse conhecimento e de passar isso. Isso tem um componente também de carinho e de proteção muito grande, que você sente, recebe aquilo, por mais que eu não gostasse de mingau de alho, (risos) mas pra mim tinha esse componente muito de carinho, de acolhimento, mesmo, da minha vó. Então, a gente teve uma relação muito intensa, forte, mas onde ela me deixava muito livre pra eu fazer as coisas que eu queria fazer ou pensar as coisas que eu queria pensar. Eu nunca fui reprimido por nada por ela, ou nem mesmo pela minha mãe, também. Então, isso foi, também, fundamental nessa minha formação. Foi bacana.
(09:56) P1 – Você chegou a conhecer seu avô?
R1 – Meu avô não. Quando eu nasci ele já era falecido. Meus dois avôs, tanto de parte de pai, quanto de mãe. Eu não conheci nenhum dos avôs. A minha avó por parte de pai morreu quando eu tinha quatro anos, então eu não lembro dela, só tenho foto com ela, mas uma foto de aniversário de quatro anos, alguma coisa assim, que ela está na foto. E essa minha avó foi a única que eu tive, na verdade. Ela morreu quando eu tinha 25 anos. Então, foi a avó que realmente me acompanhou, que marcou por me criar até os sete, oito anos. Eu morei, vivi com ela. Então, essa parte da minha infância é muito mais ligado à minha avó do que minha mãe, por incrível que pareça, mas acho que é a história de muita gente também que já foi criada pela avó e tal. Isso, pra mim, não é problema nenhum.
(10:49) P1 – E qual que é a história dela? Ela nasceu em São Paulo?
R1 – Não. A minha vó, toda vida dela foi no interior. Ela nasceu numa cidade chamada Guareí (SP), que é super pequenininha, menor ainda que a cidade que a gente morava, e aí ela conheceu meu avô lá, eles se casaram e aí, por uma questão de trabalho eles vieram morar em Itararé (SP), onde ela teve quatro filhos: minha mãe e mais três filhos. E aí elas viveram a vida toda ali: minha mãe, minhas tias e meu tio. E minha mãe conheceu… (risos) meu pai tem uma história muito engraçada também, muito ‘louca’. Meu pai era motorista de caminhão e aí ele conheceu minha mãe indo, viajando pela cidade, indo atrás, trabalhar ali em Itararé. Eles se conheceram e aí eles se apaixonaram, casaram e aí meu pai começou a prosperar, (risos) era muito empreendedor, então ele montou primeiro uma loja de material de construção, depois ele montou uma metalúrgica, uma fábrica de baterias de carros. Meu pai era super... eu acho que eu peguei um pouco esse lado do meu pai, desse empreendedorismo, de ir atrás, embora a gente não tivesse uma ligação muito forte, que meu pai era mais distante, o clássico pai ausente. Ele realmente estava ali provendo, mas ele era muito distante, não só de mim, de todos os filhos, porque era, acho, a geração dele era mais dura mesmo, que não sabia muito lidar com essas questões, principalmente de criança, mas ele foi muito importante, porque eu via todo esse movimento dele de caminhoneiro pra dono de metalúrgica. Ele realmente teve uma ascensão financeira muito bacana nesse período e a gente era tudo criança, então (risos) meu pai tinha o carro do ano, era o único na cidade que tinha aquele carro, sabe? Ele chegou a ser vereador, teve uma atuação bastante intensa ali na cidade e então ele também foi muito importante nesse sentido, porque... pra você ter essa referência, embora nem tudo tenha sido maravilha, (risos) esses pais dessas gerações também tinham esses históricos desse distanciamento com a família mesmo, que isso, nesse sentido, a gente trabalha na terapia, mas que faz um pouco a diferença também na nossa formação, mas ele é uma referência, sim, pra mim, com certeza.
(13:33) P1 – E sua mãe?
R1 – A minha mãe é uma pessoa muito forte, muito guerreira. (risos) Sei lá, a minha mãe é minha mãe, um amor incondicional que você tem e que você recebe e não tem... só comparado, talvez, da minha avó, mas, mesmo assim, em escalas diferentes. Mas a minha mãe sempre foi uma pessoa muito batalhadora. Apesar dela ter uma condição econômica que ela não precisaria trabalhar, ela quis, cursou pedagogia, virou professora, foi professora a vida toda dela. Inclusive, quando eu entrei pro segundo ano do primário, eu caí na classe dela. (risos) E aí a gente teve que mudar, porque no primeiro dia de aula, eu falei: “Oi, mãe”. Então, não dava, os alunos me vendo chamando a professora de mãe. Mas isso foi engraçado. Realmente mudei de sala. Então, ela sempre teve essa atuação e quando minha mãe e meu pai se separaram, eu tinha, sei lá, acho que quatorze anos, a gente já estava em São Paulo, a minha mãe que tomou a frente de tudo, que cuidou da gente, que virou a provedora. Meu pai foi embora pro Mato Grosso e a gente ficou um tempo sem contato com ele. Então, minha mãe, nessa época, me marcou muito, porque realmente ela se colocou ali, como a pessoa que ia nos suprir daquilo, porque é muito difícil pra um adolescente lidar com separação de pais, por mais consciência que eu tivesse das coisas e de tudo mais e os motivos da separação, também, mas ela foi fundamental nesse processo. Ela foi muito guerreira, muito forte nesse período e em outras coisas que aconteceram na vida dela também, as perdas que ela teve, que foram muito grandes e isso também, pra mim, foi muito inspiracional, foi uma coisa muito que eu, hoje, (risos) tenho essa visão, porque na época, quando você é adolescente, você é meio revoltado com as coisas, você tem umas atitudes infantis, que por mais consciência que eu tivesse, eu também tinha esse lado adolescente, de não entender muito as coisas. Eu saí de casa muito cedo, acho que com dezessete, dezoito anos, porque eu já queria ter o meu espaço, a minha liberdade, não só pelo fato de ser gay, mas isso conta também, porque você tem uma... você precisa dessa liberdade pra poder colocar esse lado pra fora, que é um lado muito reprimido, mesmo pela família, mesmo que a família não diga nada, mas tem uma coisa subentendida ali que sempre existiu. Na verdade, eu só fui falar que eu era gay, mesmo, pra minha mãe, pra minha família, quando, sei lá, eu tinha mais de trinta anos, porque eu lembro que eu dei uma entrevista, não sei se foi pra Folha e ia sair isso na entrevista, aí eu falei: “Eu estou ligando só pra avisar, esqueci de avisar: estou falando, assumindo aqui, nessa entrevista, que eu sou gay, tá? Vocês já sabem disso, né?”. (risos) Claro que eles sabiam, porque... mas falado, mesmo, foi bem tarde. Engraçado isso, mas eu não sentia essa necessidade também, porque eu não era reprimido por isso, pela minha família, mas era um assunto que não se falava, porque era acho que a época, também. Sei lá, anos oitenta, noventa, era mais difícil falar sobre essas coisas ou menos comum do que hoje em dia, né? Então, mas a minha mãe sempre foi uma pessoa muito presente, muito forte na minha vida e é até hoje. (risos) Eu faço a Casa de Criadores há 26 anos e dá pra contar nos dedos quando ela não foi. Inclusive nessa última ela veio. Ela sempre prestigia, sempre vem e é muito legal, porque as pessoas a encontram e dão os parabéns, sabe? “Ai, o trabalho do seu filho é muito incrível”. (risos) E ela fica toda orgulhosa, sabe? Então, a gente tem uma relação muito bacana, apesar de conflitos que são normais, que todo mundo tem com família, enfim, mas que nunca foram graves e fortes o suficiente, pra gente se afastar. Ainda bem, né? (risos)
(18:08) P1 – Se você quiser contar como foi a sua ligação de falar: “Mãe, vai sair no jornal”, como foi pra você isso.
R1 – Olha, pra mim, na época, foi muito espontâneo, muito natural, porque era uma coisa que, como eu assumi a minha sexualidade pra mim, pelo menos, muito cedo, com sei lá, quinze, dezesseis anos, eu já sabia... na verdade, quem é gay sabe desde sempre que é, desde criança você já sabe. Eu me lembro de brincadeirinhas de beijar, desse tipo de coisa, com meninas, que meus irmãos iam lá e eu fugia. (risos) Isso com quatro, cinco anos. Então, você sabe, no fundo, no fundo, você só não tem isso formulado ainda. Obviamente você não tem essa consciência, mas você entende que você é diferente do seu irmão, porque você tem esse parâmetro - eu tenho três irmãos – pra comparar. Então, eu sempre soube, mas consciência mesmo a gente só tem um pouco mais tarde, mas eu tive mesmo essa consciência bem cedo, então eu também já deixei as coisas fluírem. Mas quando veio essa ligação, essa necessidade de ter essa ligação, eu falei: “Nossa, esqueci de contar pra minha mãe”. Ela foi muito natural, foi tão natural da minha parte, que não teve nenhuma reação, nenhum esboço da minha mãe: “Tá bom”, sabe? Tipo isso. Porque no fundo, no fundo é claro que ela sempre soube. Tive namorados, mas como eu saí de casa muito cedo, minha vida privada era muito restrita a mim mesmo, ao meu círculo ali, de amigos, que eu também formei um círculo de amigos muito forte, porque os amigos também são uma base de sustentação muito grande na sua vida, né? Então, nesses anos de militância e tal, eu fui formando uma rede de amigos também muito intensa, de pessoas muito conscientes, que tinham essas preocupações sociais e acho que isso tudo reflete no que eu faço hoje, que é a Casa de Criadores, que tem isso na sua base. Nunca foi algo que eu fiz planejando ser dessa forma, foi uma coisa orgânica mesmo que foi acontecendo ao longo dos anos do evento, mas que claro que sim, tem a base ali que a gente entende que vai permitindo que essas coisas apareçam, ‘abracem’ o outro. Acho que a Casa de Criadores é muito sobre ‘abraçar’ o outro também, sobre trazer, incorporar, ser plural. Então, acho que isso sempre esteve na base da minha educação mesmo, da minha formação, muito dela porque eu fui atrás, porque eu quis, me identifiquei com isso, porque a gente traz isso na gente, a gente é o reflexo da expressão do que a gente tem, sei lá, na nossa alma. (risos) Então, acho que foi um pouco isso.
(21:18) P1 – Você tem três irmãos?
R1 – Então, essa é uma história um pouco complexa. Eu tenho, sim, três irmãos, mas dois faleceram. Um faleceu num assalto, foi assaltado e faleceu desse assalto e o outro entrou num processo destrutivo por causa disso, começou a beber muito e morreu de cirrose. Então, pra minha mãe, principalmente, pra mim, eu já era... isso foi quando eu já tinha, sei lá, 25, 26 anos. Foi muito difícil, mas pra minha mãe foi extremamente doloroso, foi uma coisa muito pesada que ela teve que viver na vida dela, de perder dois filhos em um espaço de dois anos entre um e outro, porque o processo do meu irmão mais velho foi muito rápido depois que o meu outro irmão morreu, o que foi assaltado morreu e ele entrou num processo autodestrutivo irrefreável, que eu nunca vi na vida, sabe? Eu não sei, claro que teve uma ligação com isso também, mas talvez tenha a ver com outras questões dele também, porque ele sempre teve problema com bebida, mas quando aconteceu isso com meu irmão, aí foi um processo irreversível, que culminou com a morte dele, que foi uma coisa muito terrível pra minha mãe. Então, minha mãe (risos) é uma pessoa que eu sempre tento poupá-la muito de qualquer tipo de preocupação, de problema que eu possa evitar, justamente por ela ter tido esse histórico tão forte na vida dela, que a marcou muito e a gente, claro. E aí eu tenho um irmão, que é o Rodrigo, que inclusive é jornalista, trabalha na Band, é repórter, aparece no Jornal da Band, em reportagens e tal. Até costumo falar que ele é mais famoso que eu, porque a gente vai no restaurante, as pessoas o reconhecem. (risos) Que é fanático pelo Palmeiras, tem dois filhos, é casado, enfim. Então, é um irmão também com quem eu tenho um relacionamento muito intenso, por conta também desse histórico. É o meu irmão mais novo, dez anos mais novo que eu, mas é uma história muito forte da gente, também, porque nós fomos, acabamos sendo os que ficaram, enfim, depois dessa meio que tragédia familiar, porque não deixa de ser uma tragédia familiar o que aconteceu com a minha mãe, principalmente. Comigo também, mas acho que principalmente com minha mãe, porque acho que nenhuma mãe merece passar por isso. Então, isso é uma coisa que marcou muito a minha relação com a minha mãe a partir dali. Se eu, antes, tinha algum tipo de questão com a minha mãe, fosse ela qual fosse, isso deixou de acontecer imediatamente. Minha mãe é a pessoa que eu mais poupei na vida, que eu mais procurei... óbvio que a gente não é perfeito, mas é uma pessoa que eu protejo, que eu sempre tento fazer o melhor que eu posso por ela e meu irmão também tem essa postura, porque ela tem esse histórico que não se apaga, que fica. Minha mãe até que lida bem com isso, considerando tudo que ela passou, ela é uma pessoa que sai, que tem as amigas dela, elas vão dançar, vão pro baile da terceira idade. (risos) Ela tem uma vida social superintensa, vai pra academia, dirige, tem uma independência também muito forte, muito grande, muito... eu admiro muito a minha mãe, por ela ter passado por tudo isso e a maneira como ela encara a vida, pra mim é um exemplo. Acho que eu nunca falei isso pra ela. (risos) Vão mostrar, depois, pra ela, esse vídeo. Talvez eu nunca tenha falado com todas as letras isso pra ela, mas de fato é como eu a enxergo.
(25:21) P1 – Se você quiser contar um pouco, na infância, dessa relação com seus irmãos. Vocês moravam juntos, não?
R1 – Então, como até o sete anos eu morei só com a minha avó, então éramos eu, ela e meu tio, mas meu tio era diretor de uma escola em uma cidade chamada Itaberá (SP), que era próxima da cidade onde a gente morava, então ficava mais na convivência com a minha vó, mesmo. E aí, quando...
(25:50) P1 – Foi uma escolha sua?
R1 – Não minha, acho que foi da minha mãe e da minha avó, porque desde que eu me lembro eu morava com minha avó, mas acho que talvez eu tenha sido consultado: “Você quer morar com sua avó?”. E eu falei: “Quero”, porque as regalias que eu tinha ali... (risos) esse tipo de regalia, mas que é, nossa, muito bacana você ter. Mas aí eu fui conviver com os meus irmãos, mesmo depois dos oito, nove anos, que aí eu fui morar com a minha mãe e eles eram... um era dois anos mais velho do que eu, o outro era cinco anos, então a gente, por mais que a diferença seja pequena, eles já eram maiores do que eu, já tinha o círculo de amigos deles, então a gente nunca foi exatamente muito próximos no sentido de brincar junto, nada disso, mas a gente tinha aquela união de irmão, de coisa de família mesmo. Mas eu nunca tive uma convivência muito intensa com eles, não, até porque meu irmão mais velho, quando tinha quinze anos e eu tinha dez, ele veio pra São Paulo estudar, então a gente ficou uns dois, três anos, que depois eu vim pra São Paulo com treze anos, e a gente ficou três anos sem conviver, praticamente, que ele estava morando aqui, já, mas eu lembro que a gente tinha aqueles conflitos de irmãos, que o som da casa era dele, porque ele era o mais velho. Então, quando eu ia mexer, ele brigava comigo, mas os pais falavam: “O som é de vocês”, mas era dele, sabe? Então, esses conflitos de irmão, mesmo, que são normais, que hoje, quando você olha pra trás, fala: “Nossa, eu brigava tanto com meu irmão, por causa disso, que besteira!”, sabe? Mas que, na época, é o que se põe ali, é o que está... (risos) mas era uma convivência bacana, de qualquer forma. A gente, eu lembro, ia viajar, meu pai tinha muitos parentes no Paraná inteiro, em todas as cidades do Paraná, quase: em Foz de Iguaçu, em Curitiba, em Londrina, em Maringá, em Ponta Grossa. (risos) Meu avô teve quatorze filhos, pai do meu pai. Meu avô é espanhol, saiu fugido da Espanha, do Franquismo, então ele era um refugiado político (risos) e ele chegou a ter... o meu pai acho que nasceu aqui, mas metade desses filhos nasceram na Espanha e aí ele veio pra cá e era uma época que, enfim, era normal a pessoa ter quatorze filhos. Imagina, quatorze! Dois morreram no parto, essas coisas assim, mas aí, no fim, eram doze filhos. Então, eles se espalharam, ele chegou no Paraná e esses filhos foram se espalhando pelo Paraná. Então, na infância a gente ia muito pro Paraná, de férias. E era aquele tipo de férias de família, que o pai vai dirigindo o carro, que vai parando no posto de gasolina, na churrascaria pra comer, aí ele conhece as melhores churrascarias do caminho. Então a gente ia muito pra Foz do Iguaçu, que é uma cidade turística, pra ver as cataratas ou ia pra Curitiba. Era sempre, normalmente, pro Paraná. E aí, nisso, a gente também foi pro Paraguai, Argentina, mas sempre essas viagens me marcaram muito, porque eram de carro. Hoje em dia...
(29:14) P1 – Muito longas.
R1 – Longuíssimas, porque, se você for pensar, mas era parte da experiência, do processo da viagem, dormir no hotel, cada hora numa cidade diferente. Tudo era, nossa, você está ali, na estrada, então eu tenho uma relação muito bacana com estrada. Eu gosto muito de estrada. Hoje em dia é difícil você viajar... a menos que você vá, sei lá, pro litoral aqui de São Paulo, uma coisa mais próxima, você viaja na estrada, mas se você já vai pro Rio, você já vai de avião. Então, tanto essa experiência, embora eu tenha parentes, toda minha família saiu de Itararé e foi pra Jundiaí (SP), que é bem mais perto, aqui, então sempre que posso eu vou pra lá. E aí também tem essa experiência da estrada, mas eu gosto muito dessa experiência da estrada, de parar em um restaurante da estrada, sabe? É uma coisa que me marcou muito na infância, por isso que as minhas férias eram muito associadas a esse tipo de viagem. Então, isso também foi bacana. A gente está ali... essa cidade onde eu morava, Itararé, era divisa com o Paraná, inclusive. Era uma cidade muito próxima do Paraná. É a última cidade do estado, ali, na região sul do estado. Então, essas experiências todas me marcaram muito e a minha relação com os meus irmãos era muito tranquila também. O meu irmão mais novo, que foi assaltado... mais novo, não, o segundo, depois veio o mais novo, eu também tinha uma relação muito bacana com ele porque ele me defendia. Porque quando você é gay, na escola você sofre bullying, não tem jeito, (risos) desde muito cedo, porque parece que atrai, sabe? É ‘muito louco’ isso. O gay, na escola, é muito perseguido e isso sempre aconteceu comigo, talvez pelos trejeitos e tudo o mais, que você não sabe, não tem consciência que você tem, porque você não tem essa consciência, quando você é criança, né? Os outros é que te enxergam dessa maneira e te ‘abrem o olho’ pra esse seu comportamento, seu jeito de ser, que é o seu jeito de ser. Então, eu lembro que meu irmão me defendia muito quando os meninos faziam bullying. Eu não era mais... ele batia nos meninos. Então, (risos) eu era muito protegido, na escola ninguém mexia comigo, porque tinham medo dele, que ele era super brigão. Ele realmente me defendia. Então, essa é uma memória também que eu tenho muito forte dele, porque ele me defendia. Ele era um defensor mesmo. E aí, quando eu vim pra São Paulo, eu falei: “Agora eu vou me livrar desse escárnio, dessa associação de que eu sou gay, que já existia lá no interior. Nossa, vou estar livre disso!”. Imagina! Quando eu cheguei aqui, um mês depois, eu já era o gay da escola também, o apontado, que brincavam, ‘chuchavam’, quando eu estava andando no corredor, mas aí eu já comecei a aprender a me defender, aí entrei pro grupo de teatro, então já tinha uma atuação mais artística, mais: “Dane-se vocês’, (risos) eu estou aqui”. E, no fim das contas, quando você tem esse tipo de atuação na escola, você acaba sendo respeitado, porque as pessoas estão enxergando primeiro que você não está ligando pra aquilo, porque eu acho que é difícil você se livrar disso, mas quando você se livra é libertador, porque dane-se o que as pessoas pensam ao meu respeito, entendeu? E quando você passa isso, você passa a ser olhado de uma forma mais respeitosa mesmo. Então, eu fui conquistando isso. Aí virei militante, aí eu estava, sei lá, no Centro Acadêmico da escola, enfim, eu sempre estava atuando em alguma coisa, sempre estava ali, ‘agitando’ alguma coisa. Então, isso marcou muito a minha adolescência, né? Esse tipo de atuação. E aí os meus irmãos, a gente sempre foi muito próximo, mas esse tipo de relação mais de irmão mesmo. (risos)
(33:46) P1 – Queria saber, ainda na sua cidade, que você nasceu, se você, nessa época, novinho, pensava no que você queria ser quando crescesse. Você tinha esse sonho?
R1 – Não. Eu nunca pensei exatamente. Quando a gente é criança, a gente pensa em tudo, até em ser médico eu pensei. Obviamente que esse foi um pensamento muito rápido (risos) que aconteceu, mas aconteceu também, porque você fala, começa a admirar e valorizar as profissões, pelas suas características: então o médico cuida das pessoas, isso é uma coisa nobre; ou deveria ser, pelo menos. (risos) Então eu não pensava muito, não, mas eu, num determinado ponto, comecei a entender que eu ia fazer alguma coisa relacionada a Humanas e como meu irmão mais velho já fazia jornalismo, porque ele veio pra São Paulo pra estudar, pra fazer cursinho e tal, pra prestar pra jornalista. E aí eu fiquei muito com isso na cabeça. Tanto é que meu irmão mais novo também é jornalista. Eu, meu irmão mais velho e meu irmão mais novo. Então, acho que isso acabou influenciando, sim, minha decisão, de alguma forma, porque eu vi ali, comecei a conviver com esse ambiente de jornalista na época que os jornais tinham ‘peso’ super, porque, na verdade, era a forma de comunicação o jornal, a grande mídia era o jornal, não tinha ainda internet, foi bem pré-internet isso e eu lembro de uma redação, meu irmão trabalhava no Diário Popular, que ficava ali, naquela esquina da Augusta com a São Luís (NR: o antigo prédio do Diário Popular fica, na verdade, entre a Rua Martins Fontes e o Viaduto Nove de Julho), sabe, aquele prédio que hoje é um hotel, [o Hotel Novotel Jaraguá], mas era um prédio que tinha um relógio em cima, muito icônico da cidade e eu lembro que eu ia visitar lá meu irmão, na redação e tal e então aquilo foi me marcando muito e, de alguma forma, eu caminhei pra isso. E quando eu fui prestar vestibular, foi o primeiro que eu passei, pra jornalista. Embora eu tenha interrompido o curso, porque eu entrei em linguística, na USP, que eu queria muito fazer USP. (risos) Então, quando eu passei em linguística na USP, eu ‘tranquei’ o jornalismo, que eu fazia em outra faculdade, que era longe também, sabe, e aí eu fiquei fazendo linguística. E cheguei a ter um momento que eu fiz Cinema, (risos) mas só um semestre, foi na FAAP, mas aí eu vi que não era o que eu queria, aí eu voltei pro jornalismo.
(36:35) P1 – E na primeira escola da vida, que recordações tem? Algum professor muito marcante? Você comentou da sua mãe, mas não ‘virou’ professor, né?
R1 – Não. A minha professora do primeiro ano acho que ela tinha um apelido, um nome que todo mundo a chamava, que era muito engraçado, que era Dona Boneca. Todo mundo a conhecia na cidade como Dona Boneca e, na época, eu achava supernormal esse nome, porque todo mundo, minha mãe... ela era nossa vizinha, morava em frente à nossa casa, Dona Boneca. Aí hoje eu penso: “Nossa, de onde veio esse nome?”. Apelido, na verdade. Eu nem sei o nome dela, que a gente só a chamava de Dona Boneca, professora Boneca, e ela foi minha professora de primeiro ano, então marcou muito, que a professora do primeiro ano marca mesmo. E essas escolas do interior, que têm aquela arquitetura super antiga, com aqueles pés direitos super altos e aquelas janelonas de vidro, então tem uma memória... o pátio do recreio...muito bacana disso. E eu tenho uma outra memória muito legal também, que a minha mãe dava aula e quando ela começou a dar aula, não ‘de cara’, antes até de eu começar a estudar, foi dar aula numa escola rural, que no interior tem muito isso, que ficava, sei lá, a meia hora da cidade, mas ainda dentro da cidade, no interior da cidade, na área rural da cidade, e eram aquelas escolas super... engraçado que minha mãe dava aula numa sala pra primeira série, que era essa carteira; a segunda série, que era essa carteira; a terceira série; a quarta série. Então, ela tinha que dar a lição pra todas as séries e fazer a explicação pra todas as séries numa sala de aula única, porque, na verdade, tinha falta de professor, o espaço estava lá. Mas eu lembro que eu adorava ir com ela, eu ia com ela, eu ainda nem estava estudando e tinha aquela coisa da ‘tiazinha’ fazer a comida, aquela sopinha de fubá ou com macarrãozinho e carne e coisas que eram todas plantadas ali, na própria escola, na horta da escola, sabe? Então, o interior tem muito essa vivência, essa experiência, que foi muito marcante pra mim também, porque eu lembro da minha mãe também dirigindo carro, indo até a escola, dando aula, voltando, sabe? Então, eu já comecei a ter essa experiência com escola, com ensino muito cedo, antes até de eu realmente estudar. Mas quando eu comecei a estudar isso me marcou muito, a professora (risos) Boneca e toda a minha trajetória mesmo estudantil foi muito marcante. Quando eu estava na quinta série, eu tinha uma professora de Português… que eu sempre adorei escrever, acho que por isso também que eu fiz jornalismo, eu sempre adorei muito escrever e eu tinha uma facilidade muito grande pra escrever textos. E aí eu lembro que na quinta série a professora pediu um trabalho e era pra você contar uma história, criar uma história qualquer de ficção e aí eu criei uma história de um menino que tinha uma amiga de infância muito próxima, que nem era uma história [pessoal] minha, era uma história que eu inventei mesmo, que eram dois amigos que viveram a infância juntos e aí a menina foi embora da cidade, pra uma outra cidade e eles se encontram na praia e esse encontro é super bacana. Eu narrava como foi o encontro, o que eles fizeram juntos, eles foram ter banho de mar juntos e tudo mais e revivendo esse passado. Eu tirei oito nessa (risos) prova, redação. Eu fiquei muito indignado, porque eu falei: “Professora, por que eu tirei oito?”, porque eu sabia que eu tinha escrito um texto maravilhoso. (risos) E aí ela falou: “Porque tem ‘dedo de gato’ aí”. Ela insinuou que minha mãe, que era professora, tinha escrito o texto. Aquilo me marcou muito, porque os próximos textos que eu escrevi eram todos medíocres, porque eu falei: “Ela não vai valorizar meus textos, vai achar que minha mãe que escreveu”, então eu, deliberadamente, fazia textos bem medíocres. Isso, pensando hoje... quer dizer, hoje não, (risos) o dia que eu tive consciência disso, isso foi ruim pra mim, em um certo sentido, mas também foi um estímulo, porque eu quis, depois, provar que não, que eu era o autor daqueles textos. Mas infelizmente eu não fiz isso com ela, porque com ela eu só fiquei escrevendo textos medianos. Mas depois disso, eu falei: “Não, eu vou me impor e mostrar que eu gosto de escrever e que meu texto é bom, sim” e foi o que eu fiz, entendeu? E acho que por isso que eu fui desenvolvendo, também, esse gosto pela leitura, pela escrita, que também marcou muito a minha formação.
(41:48) P1 – Uhum. Você pequeno tinha diários, cadernos?
R1 – Eu tinha. Infelizmente eu não tenho acho que o registro desses diários mais, eles foram se perdendo com o tempo, mas eu tenho muitos recortes, muitos textos que eu escrevi, avulsos, sem ser no diário, mas textos mesmo, que eu escrevia poesias, tudo isso eu tenho. Eu nem olho muito, porque, obviamente, quando você olha, vai ler uma coisa que escreveu quando tinha treze, quatorze, quinze anos, você tem um olhar crítico pra aquilo, contextualiza, fala: “Sim, eu era criança quando eu escrevi isso”, mas tinha toda aquela idealização do amor, porque, pô, quando você descobre o amor, se apaixona, nossa, você fica – ainda mais na adolescência – muito bobo, né? (risos) No bom sentido.
(42:46) P1 – A mudança pra São Paulo, como que foi isso na vida da família como um todo?
R1 - Foi bacana. Primeiro que meu pai comprou uma casa maravilhosa, que era supergrande, um sobrado com muito espaço e mais uma vez eu morava em frente ao colégio também, o colégio era na frente. A minha casa era aqui e o colégio era em frente, era só atravessar a rua. Isso era muito bacana também. E foi em Osasco, não em São Paulo. O primeiro lugar que a gente veio foi Osasco e meu pai abriu uma fábrica de bateria de carro, então a gente foi pra lá primeiro, a gente ficou lá, sei lá, uns quatro anos, depois que a gente veio pra São Paulo mesmo. E foi muito bacana essa vinda, porque daí meu irmão mais velho veio morar com a gente, ele já estava aqui e aí a gente teve uma... talvez foi a ocasião que a gente mais conviveu junto como família mesmo, porque no interior eu morava com a minha avó um tempo, meu irmão veio embora pra São Paulo. Então, quando a gente foi conviver mesmo como família foi aí, entre, sei lá, os treze e os dezessete anos, que a gente viveu realmente bastante juntos e foi muito legal essa fase, muito bacana também. E meu irmão menor era pequeno, uma criança, então a gente tinha uma criança em casa, isso também é legal pra uma família. Na nossa família, as diferenças de idade eram grandes. Entre o meu irmão mais velho e o mais novo eram quinze anos de diferença. Então, isso é legal, porque você tem uma ‘escadinha’ (risos) dentro da família. Essa convivência foi muito legal também e era nessa época de descoberta minha, de descobrir as artes, todo esse processo de sexualidade também. Então, foi muito legal isso, foi bacana. Marcou muito a minha adolescência essa vinda pra São Paulo e de uma forma muito positiva. Isso, sem dúvida.
(44:57) P1 – Você lembra as primeiras impressões que você teve daqui?
R1 – Eu achava tudo muito grande, porque quem é do interior, onde não tinha prédio, na minha cidade… hoje tem, mas na época não tinha, a cidade [era] toda plana, sabe? Muito bacana, muito legal, muito bonita a estação de trem super antiga, dos anos vinte e o trem ainda funcionava. E tinha essas casas, essa arquitetura muito dos anos cinquenta, de casa dos anos cinquenta, principalmente, mas casas mais antigas também. A rua era de paralelepípedo e eu lembro que, no verão, sei lá, os besouros chegavam em bando e a gente andava com o carro passando em cima dos besouros. Era uma coisa horrorosa, (risos) porque eles não saíam da rua, eles ficavam nos paralelepípedos, então os carros passavam esmagando os besouros. (risos) Uma coisa até brutal, mas que era meio comum. Na infância você tem essas coisas meio comuns, que são brutais, mas que fazem parte, ali, especialmente na época da minha infância, que era uma época que as coisas tinham outros valores, outros significados, enfim. A gente não tinha a consciência que a gente tem hoje, de várias coisas, inclusive ambiental, de tudo isso, que a gente foi adquirindo, que o mundo foi adquirindo, tarde demais, inclusive, porque tem processos aí que a gente talvez não consiga mais reverter, mas, enfim, era uma época que isso era comum, digamos assim. Então, teve isso, essa coisa romântica mesmo, de morar no interior, de ter essa arquitetura toda permeando ali, a cidade e tudo o mais, mas teve esse rompimento de ir pra São Paulo, que é essa cidade super cinzenta, fria, com essa arquitetura brutalista. Nem brutalista. Brutalista é isso que a gente está, até é uma arquitetura bacana. A arquitetura de São Paulo é caótica, só que é um caótico que te seduz. Que, quando você chega, você se deslumbra com aquilo, nessa imensidão toda. Esse bando de prédio é muito contraponto do que você vivia até então e é uma promessa de uma vida nova, de conhecimento, que você vai ter acesso a uma série de coisas e, de fato, você tem. De fato, é uma promessa que se cumpre, que você percebe e isso São Paulo tem de bacana: ela te traz tudo de importante na sua formação, tudo de bacana, tudo de acesso, especialmente nessa época pré-internet, que o acesso era muito mais difícil, então dependia de espaços como esse, de bibliotecas, acesso mesmo à informação. São Paulo te proporciona muito isso. Hoje, com a internet, obviamente uma pessoa que está no interior, lá, do Pará tem, teoricamente, o mesmo acesso que você, porque... teoricamente, não, na prática tem mesmo, porque ela tem acesso às mesmas informações que você está tendo ali, porque a informação toda é coletada, hoje, via rede social, internet, enfim. Mas nessa época, por não ter isso, foi muito fundamental pra mim, pra minha formação. Então, vir pra São Paulo foi um bálsamo. Nossa, como eu fui feliz com essa vinda pra cá, sabe?
(48:45) P1 – Uhum. A família como um todo, você acha?
R1 – Acho que como um todo talvez não a minha mãe, que talvez preferiria estar no interior, porque ela tinha uma vida muito mais tranquila lá, muito mais calma, mas ela também entendeu que isso, pra gente, era importante. Eu comecei a trabalhar muito cedo, com quatorze,quinze anos. Quinze anos, porque atrás da minha casa era o Bradesco, a sede e eu fui trabalhar lá, trabalhei (risos) dois anos no Bradesco. Eu odiei com todas as minhas forças, porque eu tinha essa ‘veia artística’ e eu estava trabalhando num banco...
(49:29) P1 – O que você fazia?
R1 – Eu fazia, trabalhava em um departamento que fazia consulta de cadastro de pessoas. Então, sei lá, pra entender se você tinha protestos. Era uma coisa bem burocrática, bem chata e que eu só aguentei por dois anos. E aí, depois de dois anos, eu pedi demissão, porque eu falei: “Não aguento isso, não é pra mim” e aí, nisso, minha ‘veia’ artística e política estava aflorando. Então já teve um posicionamento político também nesse meu pedido de demissão, que eu falei: “Eu não vou ser conivente com isso”. (risos) E aí eu prestei um concurso na prefeitura, fui trabalhar na prefeitura e foi aí quando eu realmente saí de casa, porque daí, como eu já tinha... por isso que eu saí de casa cedo, porque eu já era independente, eu já tinha trabalhado no Bradesco, tinha passado em um concurso público, estava trabalhando na prefeitura, tinha um salário, condições de me manter. Claro que eu fui morar com três amigos, pra dividir despesas, mas quando você tem dezessete, dezoito anos isso era uma festa, minha vida. (risos) Inclusive eu fazia muita festa em casa, que a gente era os que moravam fora, os amigos que tinham seu próprio espaço e todo mundo... minha casa era o centro de tudo. Nessa época, realmente, foi muito bacana pra mim passar por isso. Foi uma experiência também de independência muito forte. Eu lembro que, na primeira semana, eu levei as roupas todas pra lavar na casa da minha mãe e minha mãe falou: “Ué, você não está morando fora? Então agora você vai lavar suas roupas na sua casa” e aquilo foi uma lição pra mim. Ela estava certíssima, né? Assumir seus ‘BOs’. Você não quer (risos) morar fora? Então, a gente percebeu que a gente tinha que comprar uma máquina de lavar. (risos) Mas foi muito libertador, inclusive como forma de expressão pessoal mesmo, como sexualidade, como tudo. Foi um momento de muita descoberta, de você ter esse espaço, de você poder exercitar isso, de ter essa liberdade e administrá-la, porque administrar a liberdade é muito difícil. Você tem que ter muita ‘cabeça’, pra fazer isso, senão muitas coisas... você tem acesso a muita coisa. Então, você tem que filtrar também tudo isso que está chegando pra você, de várias maneiras e eu digo de tudo, mesmo, até droga, tudo que você tem acesso é tudo muito fácil, então você tem que ter uma ‘cabeça’ muito bacana, muito forte, pra você lidar com tudo isso, entendeu? E isso eu acho que eu tive. Também tem a ver com a formação que eu tive, da minha família e tudo mais, de lidar com isso. Não estou falando de uma questão moralista, não, de você encarar isso de uma forma moral, com julgamento de valor, mas de você entender que isso faz parte da vida e que você pode absorver ou não algumas dessas coisas, que vão funcionar, ou não pra você, sem julgamento de valor, porque isso é uma coisa que também eu aprendi, nesse processo: que você não pode - e isso a internet, hoje, é terrível com isso – julgar as pessoas e é o que mais se faz hoje. Esse julgamento de pessoas se tornou muito mais comum agora com esse advento da internet, do que na minha época ali, de adolescência, onde a gente aprendia que o outro tem que ser livre, pra pensar o que ele quer. Inclusive até nas questões políticas também. Cada um tinha o seu posicionamento e ninguém impunha uma coisa pro outro. Claro, você convivia com pessoas mais da sua ‘bolha’, ali, pessoas que pensavam como você, mas não necessariamente você julgar. Eu lembro que eu não julgava ninguém por isso, entendeu? E hoje realmente é uma coisa que eu acho terrível, porque tem consequências muito nefastas, principalmente pra quem é muito jovem, pra quem está... as pessoas acho que ficam com traumas ali. Quando você sofre bullying na internet, é coletivo. [É] uma coisa que você tem que ter muita ‘cabeça’ pra lidar com aquilo, porque senão você ‘pira’. Então, isso, na minha época não tinha, mas claro que já tinha essa consciência toda e essa coisa do respeito ao outro, ao próximo, à opinião do outro. Isso foi muito fundamental pra minha formação e é uma coisa que eu sinto falta hoje nas pessoas, porque as pessoas não estão ‘nem aí’ pro que você pensa, na verdade, elas só querem saber do que elas pensam. A gente entrou numa ‘bolha’ muito individualista e o individualista que não soma, só separa as pessoas. Acho que a Casa de Criadores é também um pouco sobre isso: aglutinar, trazer. Por isso que, talvez, espaços como esse, da Casa de Criadores, do próprio lugar que a gente está, que é o Centro Cultural [São Paulo] (CCSP), que eu escolhi fazer essa entrevista aqui, por conta disso, por conta da gente ter feito uma edição aqui e fazer a próxima aqui também, que é um espaço que é a ‘cara’ da cidade de São Paulo, que tem essa coisa do acolhimento também, de ter várias linguagens acontecendo ao mesmo tempo, de ser aberto, gratuito pras pessoas, pra população. Os shows que têm aqui são gratuitos, tudo aqui é gratuito. Então, acho que isso tem muito a ver, também, com essa minha formação, com a forma como eu passei a encarar o mundo desde cedo. Isso foi muito fundamental pra mim, sem dúvida, e não me arrependo de nada.
(55:01) P1 – (risos) Se você puder contar um pouquinho dessa descoberta da ‘veia artística’, talvez com teatro, não sei bem se foi por aí, mas essa trajetória, como foi, pra você ir se entendendo, se descobrindo e falando: “Aqui é meu lugar”.
R1 – Foi muito orgânico isso também. Logo que eu cheguei em São Paulo, como eu te falei, eu comecei a fazer parte do grupo de teatro da escola e a gente começou a fazer peças muito intensas, muito bacanas com uma conotação política e isso foi muito fundamental pra mim, porque me trouxe realmente uma visão de mundo muito mais ampla, numa época que você está aberto a isso, com quatorze, quinze, dezesseis anos você está muito aberto pro mundo, pra essas coisas. Você quer absorver, absorver, absorver. Então, isso realmente foi muito fundamental pra mim. Embora hoje a minha atuação na Casa de Criadores, é claro, eu faço a curadoria do evento, toda a direção artística, mas hoje essa minha atuação artística é até menor do que a atuação mais sem ser burocrática a palavra, mas é de captação de recurso pro evento acontecer, de fazer a produção pro evento acontecer, que é uma parte muito complexa: você fazer as conexões também com empresas, com parceiros. O evento acontece graças à iniciativa privada. E também, hoje em dia, graças à Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, que nos apoia e tudo mais. Mas tem essa parte mais complexa, digamos assim, que às vezes ‘asfixia’ um pouco a parte artística, mas que faz parte, que você também vai aprendendo a lidar com o tempo, porque, pra uma coisa acontecer, você precisa da outra. Pra você ser artista, você precisa de dinheiro, infelizmente, ou felizmente, não sei, enfim, é assim que as coisas acontecem. Então, essa minha formação foi muito importante nesse sentido, porque nesse começo a minha parte artística pôde fruir de uma maneira muito mais intensa, pra que eu vivesse essa experiência e absorvesse tudo que eu tinha que absorver dessa experiência, pra depois poder colocar isso em prática, quando eu fui fazer a Casa de Criadores. Tanto que eu trabalhei na Folha de São Paulo, meu primeiro... depois desse trabalho que eu tive, na prefeitura, eu fui trabalhar na Folha e eu trabalhei na Ilustrada, que na época o jornal Folha de São Paulo era uma outra história, tinha um outro contexto, era o grande veículo - não que não seja hoje, mas é que hoje a internet, realmente, se sobrepõe, pra muitas coisas – de informação. A maneira de informação, inclusive política, era através da Folha de São Paulo e ela tinha o caderno Ilustrada, que era um bálsamo, porque ele falava sobre arte, moda, todo aquele universo que a gente vivia e quando eu entrei começou a falar sobre a noite também, que era um universo muito... onde também, pra mim, foi muito fundamental essa atuação na noite, quando eu tive uma casa noturna, mas antes disso, sei lá, com quinze, dezesseis anos, eu já saía na noite, que eu adorava dançar. E a noite tem essa coisa de te dar um pertencimento, de você se enxergar, reconhecer os seus, especialmente quando você é gay. Então, você vai, sei lá, numa boate gay, você... a primeira vez que eu entrei numa boate gay, eu fiquei, nossa, deslumbradíssimo. Menti a idade, pra entrar, aquelas coisas, mas fiquei deslumbrado de ver outras pessoas como você, como eu era, como eu me enxergava. Então, sei lá, você vê dois homens se beijando livremente, isso tudo é muito fundamental pra um menino de quatorze, quinze anos. Então, tudo isso eu fui vivendo (risos) nessa época. Foi uma época realmente muito intensa, onde eu me ‘joguei’. E aí, nesse sentido, a minha família me dava muita liberdade, eu podia sair. Claro, tinha horário pra voltar, aquelas coisas todas, mas eu tinha uma liberdade pra expressar esse meu lado, entendeu? Então, isso foi realmente muito fundamental na minha formação. E aí, associado a esse lado artístico, veio a noite, que ia complementando e trazendo informação de moda, de música, tudo que a noite traz, porque a noite é muito complexa, muito rica. Eu amo a noite. Eu não saio mais tanto hoje, (risos) claro, nem muito à noite. Tanto que eu tive uma casa noturna, que foi o Clube Glória, que durou, sei lá, sete anos, que foi muito icônico, também, pra cidade e pra mim, principalmente onde eu pude ali também exercer um lado mais artístico, de fazer programação, conceber as noites. E isso eu fazia em paralelo, já, com a Casa de Criadores. Então foi fundamental isso, foi muito importante pra eu ter essa vivência, ter me ‘jogado’ na noite, em todos os sentidos, porque isso me fez crescer bastante também. Então, eu tenho uma relação muito de paixão com a noite. E com a moda. De paixão, mesmo. São coisas que me atraem muito, que sempre me impulsionaram, me estimularam e que me colocaram aqui, onde eu estou hoje. Eu tenho essa plena consciência que são duas coisas que foram muito importantes pra mim. E a Casa de Criadores nem preciso dizer, porque é o que eu faço há 26 anos. Tive essa atuação na Folha de São Paulo, que foi muito fundamental, onde eu pude escrever, eu fazia crítica de cinema também. Claro que tinha o crítico de cinema, que era o Inácio Araújo, que era um nome... que, na época, os críticos, também, de jornais, principalmente, eram muito referência. O que um crítico falava era... nossa! Se um crítico ‘destruía’ um disco... eu lembro que tinha as polêmicas de um crítico que falou mal do Caetano Veloso. Imagina que absurdo falar mal do Caetano! E tudo isso virava uma polêmica, repercutia muito, porque o jornal, realmente, tinha essa força, esse poder, essa penetração. Todo mundo assinava a Folha. Então, eu trabalhei quatro anos lá. Foi muito bacana, também, na minha formação, mas eu saí, porque eu comecei a ter necessidade de, apesar de eu ser touro e touro ser terra, (risos) ‘reza a lenda’ que quem é terra é muito com raízes fincadas, mas nesse meu começo eu ‘pulava’ muito, eu não tinha medo de experimentar. Imagina, ‘abrir mão’ de um emprego na Folha de São Paulo! Mas aí eu fui fazer a Casa de Criadores, que, pra mim, foi... antes teve um pequeno período que eu fui promoter de um bar, que era um bar gay também, que fez um super sucesso, na época, chamava Paparazzi e eu resolvi criar a Casa de Criadores junto com quatro outros... quatro, não, acho que com cinco estilistas. A gente resolveu criar a Casa de Criadores, que chamava Semana de Moda, era um nome super genérico, mas que seria um espaço pra experimentação, pra quem está começando, porque, como eu saía muito na noite, eu comecei a notar que tinham vários estilistas, várias marcas surgindo, nesse cenário, que eram estilistas que faziam roupas pra eles saírem pra dançar e pros seus amigos; e aí isso começou a virar um movimento e no momento em que a moda brasileira tinha muito a fama de copiar e de fato copiava. Era muito comum os estilistas brasileiros, de renome, inclusive, irem pra Paris, na Semana de Moda de Paris, isso também era pré-internet, e copiavam tudo que estava acontecendo lá. Então, tinham nomes como Helmut Lang, superfortes na moda internacional, que ditavam tendências, na época que as tendências eram muito fortes também, muito referência e eles iam lá, copiavam as roupas. Copiavam mesmo. Compravam a roupa, a desmontavam toda, copiavam a modelagem, faziam igual. Como não tinha internet, então era difícil o acesso. Você via imagens porque você viu uma crítica na Folha, com algumas fotos. Era difícil você ter esse acesso. Então, isso era mais fácil, copiar, ter essa cultura da cópia, mas era uma cultura reconhecida e que as pessoas começaram a questionar, esses jovens estilistas: “ ‘Pô’, a gente tem um monte de ideia, a gente é brasileiro, muito criativo, não precisa copiar o que está sendo feito em Paris, que tem outro clima, outra história, toda uma outra história mesmo, por trás, que não tem a ver com a nossa história. Então vamos criar a nossa própria identidade” e aí foi isso que começou a acontecer. Eu comecei a perceber esse movimento e aí eu chamei alguns estilistas, pra gente fazer a primeira edição da Casa de Criadores, que aconteceu em 1997 e que foi um sucesso. Pra você ter uma ideia, a Gisele Bündchen desfilou nessa primeira edição, quando ela era new face. Eu tenho um vídeo, ela passa, ninguém nem olha pra ela, porque em seguida ela já foi pra Nova Iorque, pros Estados Unidos e lá ela já fez história. Então, foi uma primeira edição que foi muito bem-sucedida em termos de crítica, numa época que as pessoas tinham o Phytoervas Fashion, tinha começado a ter eventos dedicados à moda, especialmente à moda autoral brasileira e que começaram a fazer bastante... ter muita repercussão. E aí o Estadão, a Folha, todos esses jornais, todos esses ‘veículos’ cobriam, então começou a ter... porque isso foi identificado como um movimento, mesmo, de renovação da moda brasileira. E aí a gente começou a fazer e a nossa pretensão era fazer uma edição só: “Vamos fazer uma edição aqui, pra vocês terem esse espaço, pra mostrar o trabalho de vocês”. Mas fez tanto sucesso, que a gente animou, falou: “Vamos”. Só que a primeira edição não tinha dinheiro nenhum, a gente não conseguiu nem ‘levantar’ patrocínio: foi amigo maquiador, amiga modelo, todo mundo fazendo meio que na... o espaço a gente conseguiu, que era, ali, no Fundo de Solidariedade do governo do estado, que é onde ficava a primeira-dama. Na época, era a Lila Covas e ela cedeu espaço, que é aquele casarão que tem dentro do Parque da Água Branca. A primeira edição do evento aconteceu lá. E foi um sucesso, superbacana. Eu lembro que a gente conseguiu até champagne pras pessoas, as pessoas eram recebidas com champagne, em tacinhas, quando chegavam. Então, o sucesso foi tão grande que a gente foi querendo fazer mais e aí a gente foi aprendendo que a gente precisava captar dinheiro pra fazer, porque não dá pra fazer de graça sempre, foi só a primeira edição mesmo que a gente se deu a esse luxo. Ainda sim, a gente teve trinta mil reais de aporte de uma empresa acho que chamava Schwarzkopf, que é uma empresa... na verdade, é uma marca de beleza, então não foi totalmente do zero, teve esse investimento deles, que a gente pagou, ali, algumas coisas de estrutura, que precisava: som, luz, essas coisas, mas aí a gente foi aprendendo a captar e a gente foi crescendo com o evento de uma maneira também muito orgânica e nesse crescimento e com esse escopo de ser um evento voltado pra jovens talentos, novas ideias, pro frescor da moda, veio trazendo uma série de questões, ao longo dos anos, todas essas questões que hoje fazem parte do universo da moda, que já foram absorvidas. Então, os pretos na moda, as trans na moda, tudo isso que hoje a moda discute, os corpos diferentes que habitam esse universo, não só o da moda, (risos) mas o mundo, que a moda nada mais é do que o reflexo do que está acontecendo no mundo, tudo isso surgiu ali, foi surgindo de uma maneira muito orgânica. Então, quando a gente se deu conta, a gente era o evento que mais tinha estilista preto, modelo preta, modelo trans, a gente sempre foi muito aberto e isso tem, sim, um pouco a ver com a minha formação também, que estou ali, à frente, estive sempre à frente da curadoria do evento, tudo o mais, e da direção artística, mas a gente nunca teve: “Vamos agora...”. Hoje a gente até tem mais esse pensamento de ser mais aberto, por exemplo, a corpos como os indígenas, então a gente tem estilistas indígenas. A gente começou a ir atrás disso, mas isso é recente, na verdade, na nossa história, porque foi acontecendo de uma forma muito orgânica e foi se transformando quase que num movimento que renovou a moda brasileira mesmo, porque os outros eventos também tiveram que absorver isso. Não só os outros eventos, mas as outras marcas tiveram que entender que essa multiplicidade de corpos que a gente tem no Brasil e no mundo precisa estar refletida, precisa estar representada ali, na moda. Você tem que olhar pra aquilo e se reconhecer de alguma forma e não, ai, a modelo magra, alta. Tudo bem que está lá, também, mas que não é o que representa ser brasileiro, enfim. Então, a gente tem que ter essa multiplicidade, que faz parte, é a nossa grande riqueza, essa. E você ter um evento, um espaço que celebra isso, que promove isso, é muito difícil. É muito legal, mas é muito difícil colocar isso em pé, porque é muito difícil hoje. Claro que a gente tem a percepção do mercado, da importância do evento, mas nem sempre foi assim: a gente teve muita dificuldade no começo, pra captar recursos, pras pessoas entenderem o que a gente estava fazendo ali. Quem são essas pessoas? Quem é esse bando de gente ‘louca’ que está falando sobre moda de uma outra perspectiva, com um outro olhar e trazendo toda essa carga histórica que tem? Tudo isso, que esses trabalhos, que esses estilistas, que essas pessoas... e não são só os estilistas, é todo mundo que está no entorno. Tem os maquiadores, as modelos, os técnicos, todos os profissionais. A Casa de Criadores, hoje, é um evento que, no backstage, movimenta quinhentas a seiscentas pessoas por dia. Não é nem por edição, porque os modelos mudam, um monte de gente, os maquiadores mudam, a gente tem equipes que vão transitando e a gente abre espaço profissional pra todas essas pessoas. Isso é muito importante. No momento que a gente está, nesse momento de recuperação econômica, falando de hoje, isso é muito fundamental e é muito difícil, realmente, colocar tudo isso em pé. Então, por isso que a gente valoriza muito os nossos parceiros. A gente valoriza muito o Poder Público por valorizar a gente, por estar enxergando a gente, finalmente, porque também nem sempre foi assim e por estar abrindo esse espaço pra gente, que isso é muito importante. Então, a gente estar aqui, nesse lugar, é reflexo, muito, desse trabalho que foi feito, desenvolvido ao longo dos anos e o reconhecimento desse trabalho, que pra gente é muito fundamental, porque a gente está aqui pra ser reconhecido também, pra multiplicar isso e, de fato, a gente multiplica, porque a gente tem vários coletivos dentro da Casa de Criadores, que são formados por estilistas. Por exemplo, a gente tem a Vicenta Perrotta, que é uma estilista trans, que começou a fazer um trabalho muito forte, muito sério, de upcycling, que ela nem chama de upcycling, ela chama de transmutação têxtil, que eu acho um nome muito mais adequado, inclusive, mas é reaproveitamento de materiais, que a moda está nesse momento, ela precisa rever esses conceitos também e tem feito isso, mas através de iniciativas como a da Vicenta, que começou a ir no Brás e descobrir que vários tecidos eram jogados... vários retalhos eram jogados fora, ao fim do dia, seis horas da tarde essas tecelagens colocavam todos esses retalhos no lixo, naqueles lixos imensos, ela começou a recolher isso e começou a costurar, aprender a costurar e tudo o mais. E mais do que isso, ela passou a multiplicar isso, ensinando outros corpos, especialmente os trans, mas não só, a fazer esse tipo de trabalho. Então, nesse processo, ela deu sentido e significado pra muita gente que estava... especialmente esses corpos trans, que são marginalizados, que têm uma vida muito dura, muito difícil, então eles começaram a ressignificar suas existências através disso, desse acesso a essa informação, aprender a costurar, a desenvolver. Hoje a gente tem, sei lá, umas dez estilistas trans que participam da Casa, sempre reforçando, de uma forma que foi sempre muito orgânica, mas é claro que, num determinando momento, a gente foi absorvendo sim trabalhos que tinham a ver com a gente e a gente entendendo o lugar que a gente estava, de proporcionar esse espaço pra essas pessoas, que não teriam outra forma, porque a moda é muito excludente, ainda é um espaço muito fechado. A moda, em geral, mundial, nem só do Brasil, ainda é muito fechada e ela vive de evoluções e retrocessos, o tempo inteiro. Então, ela evolui numa série de questões, de coisas e quando você vai ver vai ter um retrocesso. Então, se a gente for olhar as últimas temporadas internacionais, as modelos voltaram, todas, a ser super magras, super aquele padrão de beleza clássico, digamos assim, que é um retrocesso mesmo, porque a gente já tinha conquistado essa amplitude de corpos, isso já estava se refletindo nos desfiles e tal, mas aí a moda vai lá de novo e tem isso. Então, por isso que um espaço como a Casa de Criadores é muito importante, porque ele está sempre reforçando isso, está sempre abrindo, cada vez mais. Muito pelo contrário: não existe um padrão de beleza que eu possa reconhecer como sendo característico da Casa de Criadores; a não ser essa multiplicidade. Aí sim, porque você vai ver todos os corpos ali, todos mesmo. E isso é uma percepção que as pessoas têm, que o público tem, que a imprensa tem e esse é o grande ativo, um dos grandes ativos do evento é esse, inclusive: ser esse espaço. Então, hoje em dia... e isso, no começo, nem sempre eu tive essa consciência e muito menos, não só não ter consciência, eu não tinha... eu era... não é tímido a palavra, mas talvez eu era modesto, sabe? (risos) Eu não reconhecia a importância, pelo menos no discurso. Eu entendia onde eu estava, sempre entendi onde eu estava, mas eu não tinha esse discurso que hoje eu tenho, que os anos de experiência também me trouxeram, aqui, de reconhecer e de entender essa importância e saber o quanto ela foi transformadora, o quanto ela revolucionou mesmo esse universo. E mais do que isso, ampliou, porque hoje a gente fala sobre arte, várias linguagens, não só sobre moda, são várias linguagens associadas à Casa de Criadores. Então, é um espaço, um lugar que eu gosto muito de estar, que eu não me vejo (risos) fazendo outra coisa. Eu sempre questiono: “Ai, que horas eu vou parar? Quando eu vou parar?”, não vejo isso acontecendo. Mas eu entendo que, enquanto fizer sentido, enquanto a gente estiver sendo esse espaço de respiro e de liberdade mesmo a gente vai estar cumprindo nosso papel. Então, isso me alimenta até hoje, com certeza.
(01:16:03) P1 – Você consegue dizer quando você teve essa ‘virada’, tomada de consciência da potência desse...
R1 – Não necessariamente. Acho que teve alguns momentos que, quando eu comecei a perceber que a gente estava tendo discursos políticos muito fortes dentro do evento, especialmente vindos do movimento preto, desse novo cenário, desse novo espaço, porque antes a gente começou abrindo espaço pra corpos de modelos distintos, mas depois a gente entendeu e também veio de uma forma, no começo, orgânica, que a gente tinha que absorver todos os outros profissionais também: não só modelo preta tem que estar no evento, estilista preto tem que estar no evento também. Não só modelo trans, a estilista trans também, o estilista trans, se for um trans masculino. Enfim, então a gente foi entendendo que a gente precisava... que a gente tinha um espaço muito único na mão mesmo. Isso eu percebi num discurso que teve, num discurso mesmo. Uma menina, a Ig, fazendo um discurso muito forte, muito contundente, falando: “Olha, está tendo uma revolução aqui, no camarim. Aqui atrás, no backstage, está acontecendo uma revolução”. Era esse o começo do texto dela. E, de fato, ali ‘caiu a minha ficha’, sabe? Eu falei: “Nossa, realmente a gente está vivendo um momento muito único” e isso, no pré-bolsonarismo, digamos assim. Então, era um momento que a gente estava vivendo muita liberdade, as pessoas estavam podendo se expressar livremente, como nunca tinha acontecido até então e isso foi muito importante. Então, ali eu percebi, falei: “Opa, a gente está com um espaço muito importante na mão, que não pode acabar, que tem que permanecer e não só, tem que frutificar, crescer”. Tanto que a gente cresceu criando um instituto, que é o Instituto Casa de Criadores, que é voltado pra educação gratuita, pra pessoas do Brasil inteiro. A gente já fez um curso chamado Qual Moda, pra Qual Mundo?, que durava seis meses e que era voltado pra trezentos alunos do Brasil inteiro, onde a gente fez uma seleção com esse recorte socioeconômico. Ou seja, a gente priorizava em pontuação mesmo. Uma pessoa preta era mais pontuada do que uma pessoa branca, por exemplo. Uma pessoa preta trans era mais pontuada ainda e assim por diante. Então, a gente conseguiu, com isso, selecionar e atingir pessoas que não têm acesso normalmente a esse sistema de moda que é fechado, excludente. Então, a gente conseguiu ampliar e esse curso foi tão maravilhoso, que ele tinha Sílvio de Almeida como professor, tinha Jota Mombaça, Neon Cunha, Karlla Girotto, Carol Barreto, que são pessoas muito importantes nesse cenário, principalmente da educação e que estavam ali trocando com esses alunos. Eu assisti também a todas as aulas, que aconteciam às quintas-feiras e aos sábados, foram seis meses muito intensos, as aulas duravam três horas e tinha dias que as pessoas choravam, porque a gente estava na pandemia, essas aulas eram on-line, todo mundo de câmera aberta, porque a gente pedia pras pessoas ficarem de câmera aberta e tinha momentos de catarse mesmo, de choro, porque a gente, sei lá, tinha uma pessoa do candomblé, uma equede falando sobre esse universo e sobre a moda no universo do candomblé, então muitas daquelas pessoas se identificavam com aquele discurso, ao mesmo tempo que a gente tinha uma Jota Mombaça falando coisas tão intensas, fortes, que até hoje reverberam ainda pra todas essas pessoas. Eu encontro os alunos, as pessoas ainda estão maravilhadas com esse resultado. Ao mesmo tempo que a gente tinha um Silvio de Almeida falando quanto foi importante o pai dele dar o primeiro terno da vida dele, que era super bem cortado, que fez toda a diferença pra ele na hora dele procurar emprego e tudo o mais, que o pai sempre fez o maior sacrifício pra dar esse terno pra ele, mas que pra uma pessoa preta, no lugar onde ele estava, aquilo fez toda a diferença na vida dele. Então, ele também fez uma associação com moda num momento da vida dele e passou isso pras pessoas e isso foi só um exemplo do que ele falou, que ele falou muitas coisas, mas isso também marcou muito. Então, toda essa trajetória da gente nos colocou nesse lugar também, foi natural a gente ir pra educação, mas hoje a gente é bem mais do que isso, a gente é uma coisa (risos) muito mais ampla. E fazer aqui no Centro Cultural foi fundamental, porque aqui a gente pôde ter um crescimento e essa... como se fala?... ‘conversa’ com a cidade de São Paulo. O diretor do Centro Cultural passando ali, me dando tchauzinho, (risos) que é um lugar que já é quase a minha casa, né? (risos) Por isso que eu realmente escolhi fazer [a entrevista] aqui, porque pra gente é uma assinatura importante ter esse aval da cidade de São Paulo, do Centro Cultural de São Paulo, da população mesmo, que ‘abraçou’ o evento. Foi incrível fazer aqui. A gente, pela primeira vez, teve quatro salas de desfile, a gente ocupou o espaço mesmo, de uma forma muito contextualizada e pras apresentações isso foi muito fundamental. Então, eu lembro, sei lá, de um coletivo trans fazendo uma super performance muito política aqui, nessa passarela, enfim. Então, tudo que aconteceu aqui marcou muito também e é um pouco o reflexo de todos esses anos de trajetória, tudo isso que a gente foi construindo aí, ao longo desses 26 anos, que isso realmente foi muito importante pra gente. Está sendo, ainda.
(01:22:25) P1 – Não sei se você consegue dizer assim tão facilmente, mas [tem algum] evento muito marcante da Casa de Criadores, ao longo desses anos?
R1 – Nossa, é difícil mesmo, porque a gente sempre procurou ter um diálogo muito forte com a cidade de São Paulo, então a gente sempre fez em lugares meio icônicos: a gente já montou passarela embaixo do Viaduto do Chá, quando até então ninguém tinha feito nada lá; a gente fez, sei lá, no Estádio do Pacaembu; ou em galpões, era muito comum a gente fazer em galpões, fábricas desativadas. Então a gente fazia as pessoas transitarem pela cidade, irem em bairros que elas não costumavam ir e tudo o mais e descobrir espaços que eram super emblemáticos e icônicos da cidade. Nós fizemos na Praça das Artes, em lugares muito bacanas e que cada um teve a sua história. Então é muito engraçado isso, porque toda última edição sempre parece ser a mais importante, a melhor ou a maior, embora essa, realmente, foi a maior que a gente fez, essa aqui, no Centro Cultural, porque nunca a gente tinha feito quatro passarelas. A gente sempre, normalmente, fazia uma só. Mas sempre a gente tem essa tendência de achar que a última foi a mais importante. Então, eu ressaltaria essa última, claro, por a gente ter feito aqui, por todas essas razões que eu já falei que foram, realmente, muito importantes, mas me lembro também de edições históricas como essa, embaixo do Viaduto do Chá. A gente fez acho que duas ou três edições e ‘conversavam’ muito diretamente com a cidade de São Paulo, com o Centro de São Paulo, numa época que o Centro ainda não estava tão abandonado quanto está hoje. Realmente virou um lugar inóspito, infelizmente, porque eu tenho um carinho muito grande pelo Centro de São Paulo, mas a gente fez ali, numa época que estava tendo movimento de recuperação do Centro, inclusive do Poder Público, nesse sentido e a gente apoiou muito isso. Então, a gente fez no Shopping Light também uma edição lá, a gente sempre teve uma ligação muito grande com o Centro de São Paulo. Então, eu ressaltaria essa última edição do Centro Cultural, que a gente fez embaixo do Viaduto do Chá e as primeiras edições a gente fez até na Bienal, no prédio da Bienal. A terceira edição foi lá. Enfim, eu lembro praticamente de todas as edições. Claro que algumas eu tenho que ‘puxar’ na memória, mas eu lembro que a gente fez edições muito bacanas e que, mais do que o lugar, o que acontecia, na passarela, foi muito forte, foi marcando essa movimentação toda pra essa renovação da moda brasileira, como eu já falei e tudo o mais. Então, isso tudo, desfiles históricos que a gente teve, que eu não esqueço: desfiles, sei lá, do João Pimenta, da Isaac Silva, do Rober Dognani, que está com a gente há vinte anos, que é o estilista que mais tempo tem com a gente e tem um trabalho fantástico, maravilhoso, super rico. Eu o considero hoje o principal nome da moda brasileira. Eu não tenho o menor problema em falar isso, eu considero mesmo, porque ele é genial. Ele tem um trabalho com tecido, com técnica, muito forte, muito grande e reflete isso no trabalho dele. Temos a Vicenta Perrotta; a Day Molina, que é uma estilista indígena, que tem a Nalimo, que faz um trabalho também muito forte, que trouxe xamãs pra essa última edição, que fizeram uma reza no final do desfile dela, que foi muito emocionante. Temos a Mônica Anjos, que é uma estilista baiana. Mas porque a Casa de Criadores não é um evento da cidade de São Paulo, só. Dos estilistas e de marcas de São Paulo. É um evento da moda brasileira. Então, a gente tem estilistas de Goiás, da Bahia, do sul, de todos os lugares do Brasil. Claro que a maior parte acaba sendo daqui de São Paulo, mas a gente tem representantes aí do Brasil inteiro e a Mônica Anjos é um desses nomes, assim como Sougê, que é um menino que é artista, de vinte e poucos anos, que estreou na última edição, que também é de Salvador e que tem um trabalho muito rico também, mais até voltado pra arte do que pra moda, necessariamente, embora, claro, as duas linguagens estão ali contempladas. Então, a gente é um pouco o reflexo disso também, de abrir espaço pras pessoas do Brasil inteiro, pra mostrarem seu trabalho, se expressarem. Então, isso é muito característica de São Paulo, também, de ser essa cidade aberta. São Paulo é uma cidade feita de pessoas do Brasil inteiro e essa que é a grande riqueza, inclusive, da cidade. E isso se reflete aqui também, na passarela da Casa de Criadores. Então, eu acho que todas essas características fazem com que cada edição tenha sua importância, sua relevância, sua história. Então, pra mim é muito difícil escolher, embora tenha citado aqui algumas, ‘aquela’ edição, sabe? Se eu fosse escolher ‘aquela’ edição, foi essa última.
(01:28:03) P1 – Como surgiu na sua vida... você estava contando que foi observando as noites, mas começou mesmo, aí, seu interesse ou...
R1 – É, começou aí. Claro, quando você começa a sair na noite, o grande... uma das coisas mais legais é você se ‘montar’, se vestir pra noite. Ainda mais que tem um componente... tem vários componentes: o da sedução, de você se sentir bem, querer estar bonito, se arrumar, é uma coisa bacana. Então, acho que esse talvez tenha sido o primeiro pontapé pra eu me interessar por moda. Na hora de você se arrumar, que eu acho que todo mundo passa por isso, né, de você querer se arrumar, pra sair e a noite, como a noite de São Paulo é muito rica também e até hoje a noite de São Paulo é incrível, você acaba tendo que fazer um exercício de criatividade muito grande, muito maior até, do que pra qualquer outra coisa. Então, a ‘montação’ é esse momento de fruição, de você colocar pra fora a sua criatividade. Então isso foi aflorando em mim, por conta da noite. E aí, quando você chega na noite, você se depara com outras pessoas iguais a você e essa identificação é imediata e pessoas também querendo buscar esse diferencial, serem diferentes, se expressarem ali, através da roupa, porque a roupa é uma forma de expressão poderosíssima, que ‘diz’ muito e aí você começa a perceber isso e aí, em paralelo, você começa a perceber que vários estilistas, vários novos movimentos estão surgindo dali, com essa preocupação, com essa estética, com esse olhar. Então foi uma coisa meio natural. E eu trabalhando na Folha, como tinha acesso a pessoas muito bacanas: tinha a Erika Palomino, que começou a falar sobre moda e sobre [a] noite. Ela tinha uma coluna na Ilustrada, que chamava Noite Ilustrada, que era uma coluna que formou muitas gerações, aí, de pessoas, tanto da moda, quanto da noite, que foi muito referência, que trazia pro jornal esse universo e essas fotos. Imagina! Uma foto de uma pessoa ‘montada’, com uma roupa toda feita de chupeta, sabe assim? (risos) Era muito icônico isso, muito diferente do que as pessoas estavam habituadas. Então, isso começou a me chamar atenção de uma forma muito forte ali, na noite mesmo. E percebendo esses trabalhos que estavam surgindo ali, foi natural eu começar a me envolver com moda, a trabalhar com moda, a me aprofundar nesse universo. Agora, o mais curioso de tudo é que eu nunca me interessei muito pela moda internacional. É claro que eu acompanho até hoje, sei de tudo que está acontecendo nesse universo da moda internacional, mas ela nunca me interessou muito. Me interessei sempre pelo que era feito aqui. Tanto que, quando a gente foi criar o nome, de fato, da Casa de Criadores, a primeira coisa que eu pensei, eu falei: “Tem que ser um nome que não pode ter fashion no meio. Tem que ser um nome brasileiro, em português, que expressa o que ele é: uma casa, um lugar que abriga criação, moda autoral brasileira”. O nome, eu fui muito feliz quando pensei nele e foi meio por acaso, mas uma coisa eu sabia: que ele tinha que ter o nome em português. Assim como quando eu tive o Clube Glória eu também pensei isso, falei: “Eu não quero chamar The alguma coisa. Eu quero chamar um nome que seja em português”. E como o Glória aconteceu? Foi montado em uma igreja, era uma igreja não católica, acho que protestante, mas ele tinha uma fachada de igreja e estava escrito Casa de Oração pra todos os Povos, então a gente falou: “A gente está indo ocupar uma igreja, pra fazer uma casa noturna, tem que ter um nome que faça alguma menção a isso, de alguma forma, então Glória, porque glória a Deus nas alturas, (risos) enfim”. Embora a gente não tenha uma ligação muito grande... eu não tenho, com o catolicismo, mas minha formação foi católica na minha infância, sim, claro, fui até coroinha, (risos) mas eu nunca tive essa ligação muito grande com religião, de uma maneira geral, embora tenha as minhas crenças, mas quando a gente se deparou com esse lugar, esse Clube Glória, com esse espaço, foi muito legal e foram sete anos muito intensos da minha vida, também, onde a gente trouxe Amanda Lepore, muitas atrações bacanas, que têm a ver com esse universo clubber, na época a gente chamava de clubber, mas que tinha um pouco essa estética também... então, foi uma fase também muito legal da minha vida...
(01:33:23) P2 – Você estava falando da estética clubber e aí apareceu... se você quiser retomar...
R1 – É. E aí, esse lugar, pra mim, representou muito também, dessa estética clubber mesmo, da ‘montação’. Era um lugar voltado pra isso, né, pra você se divertir com a roupa, com a ‘montação’, mas ao mesmo tempo, também, sempre teve esse componente de liberdade, de você poder ir do jeito que você quiser. Se quisesse ir de bermuda e camiseta, você ia. Não era uma regra, não tinha esse dress code, embora algumas festas tinham dress code sim. A gente fazia, sei lá, a Noite da Peruca, que era uma noite que o Alexandre Herchcovitch fazia com o Sommer, que era superengraçada. A gente tinha também uma noite que chamava Alelux, que era do Alexandre Herchcovitch com o Johnny Luxo, que tocava, como DJ. Então, sempre teve também uma ‘pegada’ muito forte com a moda, com nomes que eram expressivos da moda, ali, naquele momento. Então, era uma casa voltada pra esse ‘universo’ também, que já era um reflexo do que a gente fazia na Casa de Criadores, porque o Glória aconteceu junto com a Casa de Criadores. Então, foi um momento também de muita diversão na minha vida, que eu quase enlouqueci, porque eu tinha que ir à noite no Glória e de dia eu tinha que fazer a Casa de Criadores, então ao mesmo tempo que eu estava ali, ‘curtindo’ a noite, eu tinha também reunião com patrocinadores no dia seguinte, então era... apesar que eu ia mais no final de semana, mas mesmo assim era super desgastante. Mas foi um momento que eu tinha energia pra isso e ‘curtia’, claro. Não sei se eu teria essa energia hoje, mas foi muito marcante também na minha vida e na vida de muita gente que passou por ali, que tocou como DJ, que fez festa, que ‘curtiu’ a festa. Era um lugar que lotava sempre, era muito bacana. Eu lembro, sei lá, um show que a gente fez, da Marina Lima, que foi muito legal. Não, teve momentos icônicos muito intensos, ao longo desses anos todos. Teve noites memoráveis, onde a gente fez, nossa, tanta coisa! Eu tenho tanta lembrança desse tempo, também. Depois eu vou selecionar fotos também desse período, porque eu acho importante, legal. A gente tem esse registro porque aí, nisso, o Gloria surgiu em 2008 e já estava o advento da internet começando... começando não, já tinha esse movimento, o que não tinha ainda tão forte eram as redes sociais. O Glória durou de 2008 a 2013. Em algum desses momentos, surgiu o Instagram com força, já, desde o começo, porque eu lembro que antes a gente tinha um blog, que chamava, acho que blog, tinha o Orkut, mas tinha os blogs, que a gente tinha um blog do Glória, que tinha o registro de todas as festas. Depois a gente migrou isso pro Instagram, porque daí ‘virou’ o grande ‘lance’ quando ele surgiu, ali, e é até hoje, inclusive, claro. Mas hoje a gente tem, talvez, uma visão e uma percepção mais... menos deslumbrada, digamos assim, com as redes sociais, porque elas massacram muito também, né? Todas elas. E a gente também foi aprendendo a lidar com isso. Eu, teve uma época que era viciado em TikTok, sabe? (risos) Eu gosto do TikTok ainda, também, claro, mas acho que tudo você tem que ter um certo controle ali, senão não faz sentido você viver refém dessa linguagem, porque é só uma linguagem também. Claro que é uma linguagem que é muito importante. Quando tem a Casa de Criadores, por exemplo, que ali é um contato que você tem, muito rápido, com seu público, que as pessoas que não estão acompanhando o evento presencialmente acompanham pela internet e através do site, das redes sociais, do YouTube, que transmite todos os desfiles, então a gente tem essa conexão muito forte com a internet e com rede social, mas hoje eu tenho uma visão mais crítica, digamos assim. E claro que a gente pega o que tem de bom nisso, mas a gente entende que a gente também não pode virar refém desse formato, porque não é o único e acho que a Casa de Criadores é um pouco sobre isso também, essa mistura de linguagens e de formatos que estão abertos aí a todos, todo mundo.
(01:38:18) P1 – Eu queria saber: existe uma separação pra você, de pessoa jurídica e pessoa física?
R1 – Não tem. Infelizmente essa é uma crítica que eu faço a mim. Tanto é que às vezes eu falo na primeira pessoa quando eu falo na Casa de Criadores e (risos) isso é ruim, porque na verdade a Casa de Criadores não é feita só por mim, tem outras pessoas por trás. Tem o Dudx, que é nosso diretor criativo; tem a Alzira, que é nossa produtora executiva; tem todos os estilistas, todo mundo que fez parte dessa história. A gente lançou aí, ao longo de 26 anos, já fez mais de mil desfiles, já lançou quase mil marcas no mercado, muitas delas muito bem-sucedidas, que estão muito bem colocadas, enfim. Então, a gente tem aí uma história muito forte, muito intensa, ao longo de todos esses anos. É um evento que é feito por e para essas pessoas. Eu, às vezes, tenho esse ato falho de falar na primeira pessoa, mas é um evento que, muito pelo contrário, eu sempre imagino que, quando eu parar de fazer, eu vou parar, mas a Casa de Criadores vai continuar, porque eu vou deixar esse legado pra alguém ou pra esse coletivo de estilistas. Eu não quero que acabe, porque é uma história que é de todo mundo que participa, que participou. Eu gosto e quero que todo mundo tenha o seu reconhecimento, a sua participação reconhecida ali, entendeu? Porque realmente é tanta gente envolvida e nessa última edição isso ficou muito claro pra mim: um bando de gente trabalhando e com garra, com vontade, com amor. Isso é muito forte, muito poderoso. Por mais que a gente tenha um monte de problemas pra administrar, porque o crescimento traz também um crescimento, é exponencial, tudo vem junto, os problemas também vêm junto, em quantidade maior, mas administrar isso é muito fácil quando você tem toda essa força, essa energia te alimentando, te impulsionando. Então, a Casa de Criadores é um coletivo, não é... embora eu não separe, muitas vezes, a pessoa física da jurídica, ela é, na verdade, um coletivo mesmo, ela nunca foi sobre mim. Ela é sobre todo mundo que usa esse espaço da maneira como quer, como acha importante, como quer se expressar e isso eu posso afirmar: todo mundo pôde se expressar como quis na Casa de Criadores. Nunca teve um movimento parecido com censura, nunca mesmo, embora a gente já tenha sido acusado disso também, porque na verdade você está lidando com ser humano, com pessoas e as pessoas são complexas, têm interpretações diferentes das coisas, então, claro, crescimento traz tudo isso e é um espaço muito cobiçado, muito desejado, muito exposto, em um certo sentido. Então, claro que a gente vai estar exposto a todas essas energias, interpretações e tudo bem, porque você vai lá e discute quando a pessoa abre um espaço pra você discutir, você argumenta, ouve, é ouvido, então tudo isso faz parte do processo também. Uma coisa que eu sempre soube é que a gente não queria ser uma unanimidade, porque a unanimidade é burra, então é até bom que todos esses movimentos aconteçam, a gente não é os donos da verdade. É óbvio que a gente tenta ser o mais amplo e aberto possível e absorver todos esses corpos, todos esses desejos, todas essas histórias, todas essas formas de expressão, tudo isso, o máximo possível e fazer com que as pessoas realmente saiam daqui com a sensação de que puderam mostrar seu trabalho da melhor forma possível. Nem sempre a gente consegue agradar todo mundo, ser unânime, mas eu acho que isso faz parte, isso também é um processo de aprendizado que a gente vai tendo aí, ao longo dos anos e que tudo bem, entendeu? Porque, no final das contas, a gente sempre... bom, eu sempre deito a minha cabecinha no travesseiro e falo: “Ufa, papel cumprido, cumprimos nosso papel”.
(01:43:18) P1 – Era isso que eu queria te perguntar: como é, depois de um grande evento, chegar em casa...
R1 – É cansativo. (risos)
(01:43:27) P1 – E como você se sente?
R1 – Eu me sinto muito cansado, mesmo fisicamente. Hoje em dia isso ‘pesa’ bastante, porque imagina: são cinco dias mega intensos que, por exemplo, quando a gente fez aqui, eu chegava aqui oito horas da manhã, saía daqui meia-noite, todos os dias, andando por esse espaço imenso pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, uma loucura, porque eu ensaio os desfiles, dirijo os desfiles também, então é muito, muito intenso e lidar com todas as complexidades, com todos os dramas que acontecem no backstage e que são muitos, mas que são, todos, obviamente, administráveis, mas quando eu chego em casa eu fico muito feliz, eu vou dormir cansado e feliz, porque eu entendo o papel que a gente cumpriu, o espaço que a gente proporcionou, o quanto - eu sempre valorizo muito também – foi difícil pra gente colocar a equipe toda muito empenhada, o quanto foi difícil pra todo mundo colocar aquilo em pé, entregar aquilo daquela forma, da melhor forma possível. E pra quem está assistindo, as pessoas percebem isso, essa entrega, toda a complexidade que envolve uma produção dessa, então eu fico sempre muito feliz. Dificilmente... claro, poxa, hoje aconteceu uma coisa chata, que não poderia ter acontecido, mas aconteceu, porque isso acontece, tem coisas que fogem ao seu controle, você está lidando com seres humanos. Imagina quinhentos seres humanos no backstage de um lugar, interagindo, com as suas expectativas, com suas vontades, com seus desejos, com suas histórias, com suas complexidades, com as suas subjetividades e isso desde o estilista até a camareira, até o segurança, até todo mundo que está ali fazendo parte desse processo. Realmente, fazer evento, todo mundo que faz evento acho que é um pouco isso, mas quando você faz um evento, se você faz um festival de música e você cobrou ingresso das pessoas é uma coisa, tem um relacionamento talvez um pouco mais técnico com tudo aquilo, mas quando você movimenta um evento como a Casa de Criadores, que tem essas preocupações sociais, que tem todo esse escopo e que traz todos esses corpos, essas histórias, essas expectativas, claro que isso ‘bate’ de uma forma muito mais intensa, porque você não pode ter um comportamento robótico, de manual. A gente tem o manual do estilista, mas você não pode, nunca vai conseguir cumprir aquilo 100%, porque as adversidades acontecem, as complexidades vêm à tona e elas não estão previstas no manual, então você tem que lidar com aquilo na hora que surge e resolver e a gente sempre resolve, porque a gente é muito aberto a conversa, ao diálogo. Então, não digo que a gente foi sempre perfeito mesmo, a gente pode ter cometido erros... aliás, pode não, a gente certamente cometeu erros aí, ao longo dessa trajetória, mas eu te garanto que os acertos foram muito maiores e os erros serviram pra gente só repensar e mudar, na verdade, é a grande palavra que faz parte da Casa de Criadores, essa transformação que faz com que o evento tenha 26 anos e seja sempre um lugar de renovação, um espaço pro novo, porque acho que esse é um grande segredo: como é que você mantém uma coisa fresh por tanto tempo? Porque ela se alimenta, se retroalimenta disso o tempo inteiro, de todas essas pessoas, de todas as expectativas, de todas essas histórias que vão surgindo. Então, quando a gente começou a fazer a realidade do Brasil e do mundo era uma e agora é completamente outra, e isso foi se refletindo na história, nos trabalhos, na forma de apresentação. Então, isso, realmente, em termos de imagem, principalmente, é muito rico, a gente tem imagens belíssimas, impactantes, que refletem o momento, a história daquelas pessoas, principalmente daquela pessoa que fez aquele trabalho, que pôde dar vida àquele trabalho, sendo modelo, enfim. Então, é muito interessante, (risos) é muito forte, pra dizer o mínimo, né?
(01:48:27) (risos) Estou te ouvindo [falar sobre] arte e política o tempo todo. Não sei se você quer comentar alguma coisa. Você comentou da militância mais novo, rapidamente, mas não sei se...
R1 – Não. Acho que isso tudo que a Casa de Criadores é. Claro que a minha formação política teve uma influência muito grande no sentido… nem de transformar esse espaço num espaço político, mas de permitir que ele se transformasse sozinho, sem que eu precisasse fazer nada por isso, entendeu? Então, nesse sentido, eu tenho muito cuidado em não ser sempre essa pessoa falando na primeira pessoa, (risos) embora, claro, isso está presente, está posto, não tem como não estar, mas é um pouco o reflexo disso: “Viva e deixe viver, deixa as coisas acontecerem naturalmente, as coisas virem, fluírem e principalmente refletir no seu tempo e, se a gente conseguir - e a gente consegue isso - ser esse espaço e ter essa abertura, esse entendimento, pro bem e pro mal, porque às vezes a gente pode apresentar coisas e trabalhos aqui que incomodam as pessoas e eu acho que é um pouco esse o papel, também. E podem me incomodar também, mas eu jamais vou expressar isso pra um estilista, jamais vou dizer, fazer qualquer tipo de observação. Eu só vejo as roupas quando elas estão sendo desfiladas. Eu não faço essa curadoria. Faço a curadoria pra entrar, mas uma vez que entrou pro line up, você tem liberdade total pra apresentar o que você quiser. Se você quiser fazer um desfile só com pessoas nuas, como até já teve, (risos) você vai fazer isso, vai usar esse espaço pra expressar o que você quer naquele momento da sua vida também, porque tem isso, a gente está sempre evoluindo. Então, os estilistas também vão mudando, vão aproveitando esse espaço, de formas distintas, diferentes, da maneira como naquele momento faz sentido pra aquela pessoa, ou às vezes nem faz, às vezes a pessoa está fazendo no automático, mas aí, quando a gente percebe isso, a gente procura conversar e entender também, porque às vezes é o processo da pessoa, que ela está vivendo, porque a gente, mais do que marcas, são pessoas que estão por trás dessas marcas. E essa expressão artística é muito presente na Casa de Criadores, então claro que a gente sempre está falando da pessoa, não da instituição marca, mas da pessoa que está por trás, ela que está ‘dando aquele tom’ de tudo, movimentando, usando aquele espaço como ela acha que ela tem que usar. Então, nesse sentido, a gente, realmente, é muito aberto e não interfere e acho que essa é uma das grandes riquezas, também, do projeto, porque é isso: ame, ou odeie, ou seja indiferente, você vai passar por tudo. Talvez menos a indiferença. (risos) Talvez a menor sensação que você vai ter é a indiferença de tudo aquilo que está acontecendo, porque é muito intenso e você percebe essa intensidade, o que cada um se dedicou pra estar ali, o que cada um teve que passar pra estar ali, cada estilista, cada marca, cada pessoa que está ali está dando o seu melhor, ou está dando o que consegue dar, naquele momento, mas está ali, se colocando. Então, acho que isso é muito importante. Por si só ser esse espaço eu acho que já justifica a existência do evento de uma forma muito absurda. Que a gente nem chama mais de evento, é uma plataforma mesmo, que envolve tudo isso. O evento, na verdade, é a concretização disso tudo, mas é um trabalho que a gente faz o ano inteiro, o tempo todo, em cima de muita conversa, muito diálogo, muita abertura. Então, a gente faz com que os estilistas participem do processo de concepção, da edição, como vai ser. Essa edição a gente chamou de Processos Revelados, porque foi uma sugestão até da Tulipa Ruiz, que é uma cantora superbacana - que tem uma marca, que é a Brocal, que desfila na Casa de Criadores -, que sugeriu esse tema, que a gente nem trabalha com o tema, mas essa edição a gente teve isso na base, Processos Revelados, onde você tem essa liberdade, realmente, de falar sobre o seu processo, porque o processo é muito importante. Às vezes o processo é mais importante do que o resultado, do que é apresentado, mas você chegar naquilo teve todo esse processo, que é realmente muito impactante na vida de cada uma dessas marcas, cada uma dessas pessoas que estão dedicadas ali. Você tem que ver, até os estagiários de faculdade de moda que participam ficam... saem transformados, porque é uma experiência muito forte. Tem uma palavra do teatro, que eu esqueci, mas depois eu me lembro, talvez. Mas muito transformadora.
(01:54:03) P1 – O que a moda e a Casa de Criadores representam pra você, hoje?
R1 – Ai, eu não sei se eu queria falar isso, mas acho que é minha vida. Hoje em dia, é isso. Não sei se eu queria falar, porque às vezes pode parecer muito... que você está limitando a sua vida àquilo, mas na verdade é uma coisa que me alimenta tanto, que me enriquece tanto, que me traz tanto, com a qual eu ainda aprendo muito e vou só crescendo, que é impossível eu não ter essa... aí, mais uma vez, a gente [vai] misturando a [pessoa] física com a jurídica, mas é isso, a minha vida mesmo é isso. Pro bem e pro mal. Quantas coisas eu já não tive que ‘abrir mão’ na minha vida por conta desse evento, dessa plataforma? De muitas coisas. E não me arrependo. Isso é uma coisa pra gente trabalhar na terapia, mas é uma catarse mesmo. Acho que era essa palavra que eu estava (risos) buscando. É uma coisa catártica, que eu sempre saio fortalecido, porque o dia que estiver me sugando, de alguma forma, embora sugue, sim, bastante, em vários aspectos, mas no final das contas, no ‘frigir dos ovos’, é muito mais transformador pra mim, muito mais enriquecedor pra mim do que o contrário. Então, é disso que eu me alimento. É a minha vida. É o que realmente me alimenta, que me impulsiona. Tudo que eu faço, eu faço pensando nisso, me dedico demais até, mais do que eu deveria, mas isso é uma coisa que eu já me conformei. Então, eu emagreci sete quilos. Eu já sou uma pessoa magra. Emagreci sete quilos nessa última edição. Eu estava fazendo ginástica, um super regime pra ganhar peso, consegui a duras penas ganhar cinco quilos, e aí, dois meses antes do evento, eu tive que parar de fazer musculação e aí parei com alimentação especial que eu estava e emagreci. Perdi os cinco e mais dois. Então, perdi sete quilos em dois meses. Vou recuperar, (risos) porque aí, agora, até é uma fase que eu consigo voltar pra ginástica, mas é uma coisa que eu também já entendi que faz parte da minha dinâmica, que vai fazendo assim: uma hora você está, outra hora você não está, uma hora você está mais dedicado a isso, outra hora mais dedicado àquilo e é assim que a gente vai vivendo e levando as coisas. Não é nem porque eu não consigo ser regrado, eu consigo, mas é porque chega uma hora que não dá, que você tem que fazer escolhas, (risos) a vida é feita de escolhas e a minha escolha sempre vai ser pela Casa de Criadores. Tem sido assim, pelo menos. Então, é uma coisa que realmente me dá muita alegria mesmo, muita felicidade, muito problema também, não é só o lado bom, tem o lado de problemas muito grandes e muitos sérios, às vezes, que eu tenho que lidar, que faz parte, infelizmente, porque fazer arte e moda no Brasil não é fácil, você não tem o apoio que você deveria ter ou que mereceria ter, é muito difícil isso, é uma luta constante que a gente tem pra ‘botar’ tudo isso em pé. Não é fácil mesmo. Quem vê, aí, chega aqui e vê tudo montado, lindo e acha que foi assim, que brotou uma sala de desfile aqui, outra ali; não é, teve todo um envolvimento, um investimento por trás, difícil de se conseguir, ainda mais com a economia como está hoje. A gente não pode esquecer que a gente está no Brasil, embora a gente esteja num momento de crescimento, que as coisas, as perspectivas são mais interessantes e mais promissoras, a gente ainda vive uma crise mundial, a gente vive uma guerra mundial, a gente vive consequências de uma pandemia, que foi muito... talvez essa ‘ficha’ ainda não ‘caiu’ pra gente, como coletividade mesmo, porque a gente saiu adoecido dessa história, a gente não saiu bem, as nossas relações não são mais as mesmas e isso eu percebi na própria Casa de Criadores, aqui, a complexidade que é lidar com tanta gente junta, que não estava acostumada mais a conviver tão junta, tanta gente, tanto tempo. Então, imagina: das oito da manhã à meia-noite seiscentas pessoas convivendo juntas: maquiando, não sei o que, lalalá, limpando o lugar. É tanta complexidade envolvendo tudo, tantas atividades acontecendo em paralelo, tantas expectativas, tantos desejos, que às vezes é complicado lidar com tudo isso e pra gente, que está na ‘linha de frente’, é complexo, porque você tem toda uma carga de energia vindo em cima de você, que você tem que lidar e não pode deixar isso... acho que por isso que eu comecei a usar muito branco, inclusive nessa última edição eu usei muito branco, pra também dar uma ‘aliviada’, digamos assim, porque a carga é muito forte, muito grande. Eu saio alimentado, com tudo isso que eu falei, mas você também sai com toda essa carga, com tudo isso que vem em cima de você e todas essas expectativas. Imagina você lidar com [a] expectativa de tanta gente! É complexo. Você tem que ter uma... e isso eu acho que eu consigo ter um pouco, de ter esse equilíbrio e uma postura que seja... é claro que é pretensão você achar que você é justo o tempo inteiro, mas que você tem essa preocupação, esse olhar sobre o outro, de tentar ser justo, de tentar entender os outros lados, de todas as pessoas, de todas essas expectativas que existem mesmo. Imagina! A pessoa, o estilista passa seis meses planejando aquilo! Um desfile dura dez minutos. Você ficou seis meses trabalhando naquilo, desenvolvendo aquela coleção, tendo um super trabalho intelectual, manual, técnico, em todos os sentidos. Além disso, fazendo sozinho, às vezes, muitas das vezes. Tem estilista que costura sua própria roupa, que não terceiriza isso. Ao passo que eu tenho estilistas que têm equipes e tudo o mais, investimento. Então, é lidar com universos muito distintos também, muito diferentes, realidades muito diferentes e você [tem que] entender que precisa conduzir isso de uma forma onde todos se sintam representados, contemplados, ouvidos. Isso que é o principal. Tudo o que as pessoas querem é serem ouvidas. Então, eu acho que o que acontece na passarela é um pouco isso: “Oi, me vejam, me ouçam, olha o que eu tenho pra dizer. Eu não tenho pouco pra dizer, eu tenho muito pra dizer, porque eu tenho uma história”. É um pouco a história (risos) do Museu, né? A história da pessoa. Cada pessoa tem a sua história, as suas subjetividades, as suas particularidades e muitas das vezes, principalmente essas pessoas que têm essa expressão mais artística, querem compartilhar isso com você e elas querem que você compreenda, ou que você minimamente compreenda o que ela quer dizer. Ou que pelo menos você saiba da existência dela. “Oi, estou aqui”. Isso é muito importante. Só ser esse espaço de: “Oi, estou aqui, você pode não me entender, não concordar comigo, mas eu estou aqui tanto quanto você, mas eu estou aqui, então me veja, esse é o meu momento, entenda que eu tenho tanta coisa pra falar” e que está entalado na garganta, muitas das vezes, porque a gente lida com realidades, realmente, muito diferentes. A gente lida com, sei lá, estilista que foi difícil chegar até aqui literalmente, pagar o transporte pra chegar aqui. Tem estilista de fora de São Paulo que tem que juntar um dinheiro pra comprar a passagem, porque a gente não consegue dar ainda esse tipo de apoio. A gente dá todo apoio possível, o evento é todo gratuito pra quem participa. A gente oferece beleza, tudo, a estrutura, assessoria de imprensa, tudo, mas a gente não consegue bancar a produção, claro, a estilista e essas coisas, porque é muito difícil ‘levantar’ dinheiro, mesmo, pra fazer tudo. Então, a gente está lidando aí com pessoas que chegaram aqui e pagaram um preço pra estar aqui e não só o preço econômico, não só o investimento econômico, mas também o investimento intelectual, de seu tempo, de tudo que elas dedicaram pra estar ali. Então, o mínimo que essa pessoa tem que sair daqui é com a sensação de que ela foi ouvida ou que ela, pelo menos, foi vista e por isso que é importante o registro em vídeo, em foto, pra que a pessoa tente perpetuar aquele momento, que é o momento da vida dela também, onde ela quis dizer muita coisa e pôde dizer. Então, acho que é sobre isso a Casa de Criadores, sobre ser esse espaço. Então, por isso que não é só um evento de moda. Ela traz, no seu escopo, na sua base, uma coisa muito forte, muito poderosa, muito transformadora mesmo, que é uma outra palavra que eu gosto muito: transformar, porque a gente transforma a vida das pessoas, tanto das que estão participando, quanto das que estão assistindo. Acho que essa é a grande força motriz de tudo, esse poder de transformação que a gente espera ter, de fato, e a gente sabe que tem.
(02:04:51) P1 – E você tem um tempinho pra lazer, relaxar?
R1 – Tenho. Eu tento me ‘policiar’ um pouco com relação a isso. Claro que meu tempo maior é todo dedicado ao trabalho, mas eu gosto muito de sair ainda com os amigos, sei lá, almoçar fora, beber, adoro beber. Não bebo tanto quanto eu gostaria, (risos) mas adoro beber, adoro sair pra beber, ir em barzinhos e tal. Não saio mais, tanto, na noite, mas eu tenho sim esse cuidado de ter momentos de lazer. Com a pandemia, isso, obviamente, ficou prejudicado e a gente ainda sofre as consequências, um pouco, disso. Então, claro que hoje eu saio menos do que eu saía antes e eu lembro que a última noite, antes de começar, de sair no fim de semana, no sábado e que todo mundo já sabia que na segunda-feira ia começar o lockdown. A gente já sabia: segunda-feira todo mundo fica em casa. E eu lembro que eu saí no sábado e eu fui em uns barzinhos ali, em Santa Cecília, que estavam lotados. Tem uma rua ali que eu esqueci o nome, que é lotada de barzinhos, - Canuto do Val, eu acho – botecos e nesse dia, especialmente, estava lotada, muita gente na rua e muita gente conhecida, que eu encontrei ali e que eu tive essa sensação, eu falei: “‘Meu’, a gente não vai mais viver isso tão cedo, isso aqui é uma despedida mesmo”. Eu tive um pouco essa sensação de estar dando um tchau, ali, pra um estilo de vida que não voltaria e, de fato, não voltou, porque mesmo que eu tenha voltado nessa rua e que ela esteja lotada ainda, parece que o espírito já não é mais o mesmo. A gente tinha ali uma liberdade... o outro não era... quando o outro passa a ser uma ameaça pra você, por conta de uma pandemia... porque o outro era uma ameaça. Eu lembro que eu fui em um supermercado, uma mulher tossiu do meu lado e eu fiquei: “Ahhhhhh, peguei covid”. Depois eu peguei covid, (risos) mas não foi essa mulher que me passou, mas eu lembro que eu falei: “Nossa, como o outro virou uma ameaça pra você! Que loucura isso! Isso vai ter um efeito nas nossas vidas, daqui pra frente, uma consequência inconsciente coletiva, sei lá, mas vai ter” e teve e está tendo ainda, porque acho que a gente ainda não se libertou totalmente de tudo aquilo que a gente viveu nesses dois, três anos, que foram muito intensos. Imagina, eu lembro de meses eu trancado dentro de casa, só saindo pra ir no supermercado e ainda passando por esse tipo de situação, (risos) que foi muito ruim. O evento, nessa época, foi todo virtual. A gente fez acho que três ou quatro edições virtuais, que não é a mesma coisa, que claro que foi bacana ter feito também, foi uma experiência, a gente teve que produzir fashion films e, inclusive, a gente produziu uma edição aqui, no Centro Cultural, que estava fechado, então eles disponibilizaram o espaço todo pra gente também poder gravar. Então foi gravação, não tinha público. A gente gravou vídeos aqui. Inclusive, a gente gravou antes do evento, depois editou e apresentou isso como uma apresentação única, foi muito bacana essa experiência, também, mas era isso e todo mundo tinha que testar teste de covid, todo mundo tinha que estar de máscara, só as modelos tiravam a máscara, na hora de fazer gravação. Mesmo assim, algumas também continuavam de máscara, na gravação. Então, foi muito intenso aquilo também e é uma coisa que a gente, ainda, realmente acho que essa ‘ficha’... por isso que eu acho que essa última edição foi tão intensa, porque essa convivência que a gente tem com grande número de pessoas é uma coisa que a gente, realmente, perdeu com a pandemia, que está recuperando agora, está voltando agora, mas sequelas com certeza ficaram. Com certeza.
(02:09:01) P1 – E quais são seus sonhos?
R1 – Ai, meu Deus, essa é uma pergunta complexa, né, porque as pessoas sempre ficam esperando, talvez, uma resposta: “Meu sonho é...”. Eu não tenho exatamente um sonho. Se eu for dizer que eu tenho um sonho é continuar fazendo a Casa de Criadores. Isso eu posso dizer que é um sonho, porque, pelas suas complexidades, dificuldade que tem em realizar, fazer eu não tenho plena certeza até quando eu vou conseguir fazer. Essa certeza a gente nunca tem. Então, se for um sonho, é continuar fazendo, sim. E fazer com que ela continue tendo a relevância que ela tem e não só continue tendo, mas que até amplie isso, que até aumente, que é o que tem acontecido, mas acho que é esse o grande sonho. Não tem um sonho de grandes conquistas, ou talvez a gente partir pra uma internacionalização também, que eu acho que é um modelo que a gente tem de projeto, que é inovador. Mesmo pra fora do país, eu nunca escutei falar de algum outro evento que seja parecido ou similar à Casa de Criadores. Claro, tem a Semana de Moda de Londres, que tem essa vocação de ser um espaço mais pra moda autoral mesmo, mas dentro de toda uma estrutura, que é uma semana de moda oficial da Inglaterra, que acontece lá, que tem esse investimento e tudo o mais, então é um pouco diferente do que acontece aqui. Então, como a Casa de Criadores mesmo, que é esse espaço super democrático, superaberto e coletivo, feito dessa maneira coletiva, porque é feito dessa forma, eu não tenho conhecimento de que tenha em nenhum outro lugar do mundo, então eu acho que essa é uma tecnologia que a gente pode exportar, digamos assim, que eu acho que talvez o mundo da moda internacional precise descobrir isso, sabe, ter contato com isso pra se renovar também. E nesse aspecto eu posso até estar sendo pretensioso, mas eu não tenho essa... eu tenho um senso crítico também, muito grande. Então, eu sei que eu não estou falando algo que é muito pretensioso, porque eu entendo a importância desse espaço, desse lugar e eu sei o quanto ele pode contribuir com a moda brasileira e não só, internacional e, de fato, já contribui, porque os nomes que a gente lança, que estão aí no mercado hoje e que surgiram na Casa de Criadores, estão aí pra provar isso. A gente tem um legado muito forte, muito grande. E esse legado nos pertence, que é nosso e que a gente pode compartilhar com outras pessoas. Então, talvez um sonho, sim, de internacionalização também, da gente poder levar isso pra outros ‘universos’, pra outros países, pra outras necessidades, que eu acho que isso é muito saudável, que isso vai, pode promover uma renovação muito grande na moda do mundo, mesmo, porque acho que é isso que vai - eu acredito nessa força – fazer com que a moda se mantenha relevante, porque moda é uma coisa muito cíclica também, é muito daquele momento e é uma coisa que você pressupõe que ela vá estar sempre em evolução. Nem sempre isso acontece, é um paradoxo, (risos) porque nem sempre acontece essa evolução. Deveria ser, é o que se espera de um ‘universo’ como esse, mas às vezes ela vai retrocedendo. Então, eu acho que por isso a importância desse espaço, da gente fazer o que a gente faz. Então, eu acho que isso a gente pode compartilhar com outras pessoas, sim. Então, esse sonho da internacionalização também, a gente já teve essa experiência algumas vezes, a gente já fez uma participação na Semana de Moda – era off – de Nova Iorque, a gente levou uma delegação aqui, da Casa de Criadores, pra desfilar lá, através de um programa da Apex Brasil, que é uma agência de exportação do governo brasileiro. Isso foi em 2012. A gente fez também participação na Colombiatex, que é a maior feira têxtil da América Latina, que acontece em Medellín, na Colômbia. Por seis anos seguidos a gente também levou estilistas nossos lá, que desfilavam - como é uma feira têxtil – roupas feitas com tecidos de tecelagens brasileiras, pra apresentar o produto brasileiro pro mercado internacional e foi muito bem-sucedido também, foi um projeto muito bacana. Então, a gente também tem já uma experiência com essa internacionalização e talvez nossa vocação agora seja caminhar nesse sentido. Claro que não é fácil. Se já é difícil fazer aqui, imagina fora daqui, mas a gente entende que a gente tem know how pra isso e não só, a gente tem material pra isso, uma base muito forte, feita por todas essas pessoas que estão no entorno da Casa de Criadores, desses estilistas, desses profissionais todos, que a gente consegue - uma tecnologia mesmo – exportar. Então, esse seria um sonho, com certeza.
(02:14:29) P1 – A gente está caminhando pro fim, queria te perguntar se você gostaria de contar alguma passagem da vida, alguma história que eu não tenha te perguntado, algum momento.
R1 – Não sei. (risos) Acho que eu falei bastante, mas claro que isso nem é um desabafo, porque, na verdade, são coisas que são muito bem trabalhadas por mim, mas é o quanto pra um projeto, pra uma coisa dar certo realmente precisa não só de dedicação, mas de ‘abrir mão’. Eu ‘abri mão’ de muita coisa na minha vida pra estar aqui, pra fazer tudo isso, pra deixar esse legado que eu, hoje, realmente, não tenho pudor em falar isso, porque é um legado, eu sei que é, de todo mundo, desse coletivo todo, super importante, de pessoas, mas que tem um componente muito forte meu e eu ‘abri mão’ de muita coisa pra isso e se eu pudesse voltar no tempo talvez eu mudasse algumas coisas, sim, talvez eu olhasse um pouco mais pra mim nesse processo, porque é uma coisa simbiótica, que você se mistura com aquilo de uma forma que, às vezes, você se confunde e nem sempre isso é um processo muito saudável, porque às vezes você ‘abre mão’, realmente, de muita coisa, se sacrifica pra fazer aquilo e, se você faz isso pensando em reconhecimento, esqueça, porque não é isso que deveria te alimentar. Você pode até ter esse reconhecimento e muitas das vezes eu tenho esse reconhecimento, sim, mas não é isso que vai te alimentar, você tem que se alimentar de outras coisas, você tem que ter a sua vida pessoal, cultural. Em vários aspectos, você tem que continuar levando a sua vida, independente do que você faça. Isso é uma coisa que eu talvez não consegui tanto assim, pro bem e pro mal também, então quando eu falo, pode notar que eu falo com muita paixão, com muita propriedade sobre isso, mas porque teve essa imersão tão grande da minha parte que nem sempre, realmente, foi saudável. Então, se eu pudesse mudar alguma coisa seria, talvez, eu não ter essa ligação tão forte assim, mas eu também não sei se o evento seria o que é, se não tivesse tido isso, toda essa dedicação, todo esse sacrifício pra fazer o negócio acontecer. Então, é uma coisa que me marcou muito, que se a gente for dizer quem é o André, quem eu sou tem muito a ver com isso tudo, com essa força que eu imprimi pra esse projeto e que o fez crescer e chegar onde ele chegou, mas que eu tive que ‘abrir mão’, realmente, de muita coisa. Então, isso é uma coisa que eu sempre penso, sempre questiono, sempre fico imaginando como poderia ter sido diferente a minha vida, mas eu acho que todo mundo passa por esse processo. Quer dizer, todo mundo que está ficando mais velho, como eu, né? (risos) Que aí você vai olhando pra trás e vai falando: “O que eu poderia ter mudado? O que eu mudaria?”. Mas, no final das contas, é um pensamento também que não te leva muito a lugar algum, porque você não vai voltar e mudar. Você pode usar como experiência pra daqui pra frente, aí sim eu acho que a gente pode fazer esse exercício e talvez seja um exercício que eu esteja começando a fazer agora e que seja importante pra mim, nessa fase da minha vida. Até porque eu já tenho a certeza do que eu realizei, do que está posto, não tem o que... nesse processo todo, nossa, eu vivi tantas coisas complexas! Eu já tive várias pessoas tentando me roubar esse evento, empresas patrocinadoras que já tentaram se apropriar e não foi uma, ou duas, foram várias. Então, eu já tive processos muito complexos nessa história toda e que eu tive que lidar com isso, mas eu também entendi que eu estava em um lugar e que o evento estava num lugar que era cobiçado, desejado, entendeu? E tive que lidar com isso, de formas as mais complexas e difíceis que você possa imaginar, mas eu sobrevivi. (risos) Estamos aqui, vivos, depois de 26 anos de muita luta, de muita história. Então, isso, por si só, pra mim também tem um componente de realização muito forte. Ao mesmo tempo que eu posso questionar que poderia ter sido diferente, talvez eu não deveria ter me dedicado tanto, por outro lado eu sei as conquistas que eu e que o próprio evento tivemos com essa dedicação. Então, isso também me reconforta, não me deixa uma sensação de arrependimento, nada do tipo, entendeu? É como eu falei: está posto, é isso, é o que é. Cheguei aqui dessa forma, o evento chegou aqui dessa forma. O que eu vou fazer daqui pra frente, obviamente eu vou ter que entender e decidir, mas não consigo ver minha vida sem isso. (risos) Eu sou um pouco isso. É o reflexo do que eu sou: uma pessoa que consegue se dedicar, ser focada, embora eu não seja tão focado assim quanto eu gostaria de ser, não. Às vezes eu disperso, eu tenho meus momentos, também, de complexidade, de crise, como todo mundo, mas a Casa de Criadores está sempre permeando a minha vida, está sempre ali, em volta e eu não consigo imaginar de outra forma. Então, eu acho que eu tenho que agradecer a mim por isso, por ter tido essa dedicação, por eu ter me esforçado tanto pra estar aqui, porque isso também diz muito sobre mim. Então, quando eu penso nisso, é um pensamento também que me reconforta muito, que dá força, que me engrandece aos meus olhos e que é muito importante, porque a gente sempre tem a tendência de se diminuir. A gente sempre se acha, principalmente quando a gente se compara com o outro, inferior. A gente tem um pouco esse exercício, essa mania. Eu procuro não fazer mais isso. Muito pelo contrário, eu procuro sempre me valorizar e entender o meu valor, mesmo. E acho que isso é um exercício, também, que o tempo traz, mas insegurança, todo mundo é um pouco inseguro. Ninguém tem plena certeza de nada, ainda mais nos dias de hoje, no mundo de hoje. Mas no cômputo geral eu acho que eu me sinto muito vitorioso nesse sentido pessoal. Posso ter ‘aberto mão’ de um monte de coisas e tudo o mais, mas as conquistas que eu tenho hoje em dia eu me orgulho. Acho que é isso.
(02:22:24) P1 – Qual é a sua primeira lembrança da vida?
R1 – Nossa, a minha primeira lembrança da vida? (risos) Meu Deus! Minha primeira lembrança da vida talvez seja um aniversário meu, que minha mãe foi viajar com meu pai e eu acho que eu ia fazer três anos e eles trouxeram um carrinho. Eu fiquei muito magoado com essa viagem deles, porque eles ficaram, sei lá, quinze dias fora, eles foram pro Paraguai visitar esses parentes e saíram, foram pra Argentina, pro Paraguai, não lembro direito e aí eles me trouxeram um carrinho elétrico, que tinha controle. Isso pra uma criança de três anos, na minha época, era tipo, nossa, muito raro, muito difícil, uma coisa que só eu tinha na cidade. Só eu tinha não, porque a hora que ela me deu o carrinho, que ele ligou e começou a andar, eu peguei o carrinho e joguei pela janela, porque eu estava com raiva dela ter me abandonado. Raiva, assim, de uma criança, né? Estava chateado, magoado, por ela ter me abandonado nesses quinze dias, então eu joguei o carrinho, não hesitei e quebrou o carrinho. O carrinho que andava sozinho, que praticamente nem andou, que eu peguei e joguei pela janela. Não houve, eu não tive arrependimento nenhum, porque uma criança de três anos não tem esse tipo de sentimento, óbvio, ainda, mas hoje, quando eu lembro, eu falo: “Nossa, como eu fui louco de jogar um carrinho que eu ganhei, supercaro, não sei o que, pela janela”, mas eu lembro disso, dessa mágoa de ter sido abandonado pela minha mãe, sabe? Então, é uma das primeiras lembranças que eu tenho, mesmo porque eu tinha três anos, era o meu aniversário de três anos, então me marcou aquilo, assim como me marcou também as brincadeirinhas de criança que eu tinha, com as amiguinhas, quando eu tinha quatro anos, que é essa coisa de beijar, que eu não queria beijar as meninas. Não é que eu queria beijar os meninos, mas eu não queria beijar as meninas. Então, isso, pra mim também foi muito determinante pra eu entender hoje, né, claro, (risos) a minha sexualidade, o quanto eu realmente nasci assim. Um gay tem muita propriedade pra falar que ele nasceu assim. Ele sabe que nasceu assim, não é essa discussão que nem existe mais, tanto, hoje, mas ainda existe, a gente retrocedeu nos últimos anos, um pouco, nessas questões, nessas discussões, mas desde que eu me entendo por gente, eu me entendo como gay, entendeu? É claro, isso é muito fácil de um gay perceber. Então, acho que isso também foi uma coisa que me marcou muito. E essa história com a minha avó, que cuidou de mim até os sete anos e tal, então isso também foi muito impactante na minha formação.
(02:25:25) P1 – Pra gente finalizar, como foi dividir um pouco da sua história, voltando desde a infância até os dias de hoje?
R1 – Eu adorei essa experiência. Na verdade, eu estava com um pouco de medo de, talvez, ficar muito emocionado com isso, porque a gente vai trazendo um resgate de histórias que você, às vezes, muitas vezes, esqueceu, deixou pra trás, não se deu conta e a hora que você precisa fazer esse exercício de falar, você vai ‘puxando’ isso na memória e as coisas vão vindo de uma forma meio aleatória, mas que tem, obviamente, um sentido, por estar lembrando determinadas coisas em detrimento de outras, porque é claro que tem várias outras lembranças também, que não estão contempladas aqui, mas eu acho que as principais, talvez, estejam e você se deparar com isso e constatar isso é muito bacana, muito revelador, porque te faz lembrar quem você é, porque a gente esquece quem a gente é no dia a dia. Está ali, tão envolvido, tão enlouquecido com outras coisas, que você acaba não se dando conta. Então, foi muito... está sendo (risos) muito intenso, muito bacana, mas eu hoje tenho essa maturidade de falar sobre essas coisas sem que isso seja um processo doloroso, porque eu entendo que isso faz parte da minha vida, que isso me transformou na pessoa que eu sou, que é a minha história e, por mais que ela possa ser difícil, ela tem que ser valorizada e eu é que tenho que valorizar isso, não é ninguém que vai valorizar, embora eu espero que as pessoas que vejam isso, (risos) esse material valorizem e entendam, pelo menos compreendam um pouco sobre quem eu sou. É muita pretensão a gente achar que a gente mesmo se compreende, porque a gente não se compreende, mas eu acho que foi muito importante por isso, por proporcionar esse espaço e essa escuta. Você ser ouvido é muito importante. Você ter essa oportunidade de falar sobre você, quase num processo terapêutico mesmo, que é um pouco isso, é importante pra você se lembrar de quem você é, pra você estar retomando isso, usando isso pro seu bem, mesmo, pra você lembrar quem você é, isso é muito importante. Então, agradeço a você, ao Museu, por essa oportunidade, porque pra mim está sendo uma experiência muito bacana lembrar dessa história toda e você mesmo poder se ouvir falando sobre isso, se ouvir refletindo sobre isso e tendo que refletir sobre isso e às vezes são coisas que a gente não pensa, no dia a dia, que a vida é essa loucura que você só vai vivendo. Então, obrigado!
(02:28:39) P1 – Querido, obrigada eu! Que aula, que presente, que gostoso, ‘de coração’. Muito bom te ouvir contando, mesmo, com paixão nos olhos. Muito, muito, muito obrigada!
R1 – Obrigado! Obrigado, mesmo, por você também ter tido essa percepção, porque pra mim foi muito legal, mesmo e acho que é isso, acho que viver é um pouco isso: você estar tendo a oportunidade de ter essas experiências. Essa é uma experiência que eu não vou esquecer, com certeza, que vai fazer parte aqui, da minha história também, porque é a oportunidade, uma das poucas oportunidades que você tem, de contar sua história também, então pode ter certeza que eu não vou esquecer também. Obrigado!
(02:29:25) P1 – Oba! Que gostoso!
R1 – (risos)Recolher