Depoimento de Sebastião Martins Vieira
Entrevistado por Ana Paula Soares e Márcia Ruiz
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 31 de outubro de 1994
Transcrita por Wilton Garcia
P - Bom dia, seu Sebastião.
R - Bom dia Márcia.
P - Eu gostaria que o senhor desse seu nome, data de nascimento e local de nascimento.
R - Bom, meu nome completo é Sebastião Martins Vieira. Data de nascimento: 14 de março de 1941, local de nascimento: São José da Bela Vista, é uma cidade entre Franca e Ribeirão Preto.
P - O nome de seus pais e seus avós, e local de nascimento.
R - Bom, aí você vai me complicar um pouco, mas vamos lá. Nome do papai: Custódio Vieira Filho, local de nascimento: São José da Bela Vista. Mamãe: Joaquina Fuentes Vieira, local de nascimento: Franca. Agora... posso dar o nome dos meus avós, infelizmente não o local de nascimento exato. Dos meus avós paternos: Custódio Vieira e Maria... não, desculpe, Tereza Vieira, eles são de São Paulo, são brasileiros, a cidade onde eles nasceram em São Paulo, francamente não sei. Os avós maternos que eram Antônio Martins Fuentes e Maria Fuentes Algarti, eram espanhóis, vieram da Espanha no início desse século.
P - Eu queria que o senhor descrevesse um pouco a cidade onde o senhor nasceu, a casa onde o senhor nasceu, onde o senhor passou a sua infância. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho a respeito disso.
R - Olha, infelizmente você não me leve a mal, vai ser um pouco difícil. Por quê? Porque papai... nós migramos do interior do estado para a capital quando eu tinha dois anos e meio de idade. Então eu não me recordo de onde nasci e, fora que, eu não vivi... durante um período, esse período pequeno da infância, no local de nascimento. Papai era capataz de uma fazenda, perto de... quase divisa de São Paulo com Minas. Então...
P - O motivo da vinda para São Paulo, da família do senhor foi por quê?
R - O motivo que ainda hoje ocorre, não só em...
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Entrevistado por Ana Paula Soares e Márcia Ruiz
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 31 de outubro de 1994
Transcrita por Wilton Garcia
P - Bom dia, seu Sebastião.
R - Bom dia Márcia.
P - Eu gostaria que o senhor desse seu nome, data de nascimento e local de nascimento.
R - Bom, meu nome completo é Sebastião Martins Vieira. Data de nascimento: 14 de março de 1941, local de nascimento: São José da Bela Vista, é uma cidade entre Franca e Ribeirão Preto.
P - O nome de seus pais e seus avós, e local de nascimento.
R - Bom, aí você vai me complicar um pouco, mas vamos lá. Nome do papai: Custódio Vieira Filho, local de nascimento: São José da Bela Vista. Mamãe: Joaquina Fuentes Vieira, local de nascimento: Franca. Agora... posso dar o nome dos meus avós, infelizmente não o local de nascimento exato. Dos meus avós paternos: Custódio Vieira e Maria... não, desculpe, Tereza Vieira, eles são de São Paulo, são brasileiros, a cidade onde eles nasceram em São Paulo, francamente não sei. Os avós maternos que eram Antônio Martins Fuentes e Maria Fuentes Algarti, eram espanhóis, vieram da Espanha no início desse século.
P - Eu queria que o senhor descrevesse um pouco a cidade onde o senhor nasceu, a casa onde o senhor nasceu, onde o senhor passou a sua infância. Eu queria que o senhor falasse um pouquinho a respeito disso.
R - Olha, infelizmente você não me leve a mal, vai ser um pouco difícil. Por quê? Porque papai... nós migramos do interior do estado para a capital quando eu tinha dois anos e meio de idade. Então eu não me recordo de onde nasci e, fora que, eu não vivi... durante um período, esse período pequeno da infância, no local de nascimento. Papai era capataz de uma fazenda, perto de... quase divisa de São Paulo com Minas. Então...
P - O motivo da vinda para São Paulo, da família do senhor foi por quê?
R - O motivo que ainda hoje ocorre, não só em São Paulo, não só no Brasil, ocorre em outros países do mundo, aquela migração interna em busca de novos horizontes ou, como poderia se dizer, atrás do eldorado, entendeu?
P - O senhor nos disse que o seu pai era capataz nessa fazenda, e quando ele veio para São Paulo ele começou a exercer que tipo de atividade?
R - Aí é que está. Papai era, tomava conta, era capataz desta fazenda que pertencia a um irmão de meu avô, quer dizer, por conseqüência, tio de papai, mas ele quando migrou, chegou como chega até hoje, o pessoal todo em São Paulo. Não tinha uma mão-de-obra, não tinha especialidade nenhuma. Então, quando ele chegou em São Paulo, foi procurar emprego e conseguiu trabalhar numa indústria de móveis, aqui inclusive no Bom Retiro, que se chamava Camas Patente.
P - E ele fazia o que nesta loja?
R - Ele trabalhou como ajudante geral, como ajudante de motorista em caminhão, fez muitas coisas lá.
P - E a mãe do senhor tinha alguma atividade?
R - Não, só dona de casa.
P - E os avós do senhor? O senhor disse que eles imigraram da Espanha no início do século. Eles vieram para o Brasil e foram fazer o que?
R - Olha, quando eles chegaram ao Brasil no início do século, imigrando da Espanha, foi num daqueles momentos, quando o Brasil recebeu uma imigração maciça da Europa e do Oriente. Você não se esqueça que uns anos antes, ou no final do século passado, foi promulgada a Lei Áurea, por conseqüência acabou a escravidão. Então, aquele pessoal, principalmente da região de Franca e Ribeirão Preto, toda aquela região da Alta Mogiana... a produção de café que era a principal riqueza exportada pelo Brasil necessitava de mão-de-obra. Então todo esse pessoal quando veio, foi diretamente para o interior do estado para trabalhar na lavoura.
P - E depois eles adquiriram algumas terras ou não? Eles vieram... eles ficaram naquela região? Porque, pelo o que eu entendi, o senhor ficava no interior de São Paulo.
R - Justamente, mas veja bem. Nós falamos de interior de São Paulo, não do interior de São Paulo de hoje, com estradas fáceis e uma série grande de facilidades. Nós falamos de um interior de São Paulo de início de século, aonde, no mundo inteiro, não só problema de São Paulo ou Brasil, era completamente diferente do que é hoje, com os aviões a jato, com televisão, com "n" coisas.
P - Me diz uma coisa, quando o senhor veio pra São Paulo, vocês foram morar em que bairro?
R - É um bairro que eu ainda resido até hoje, na Casa Verde.
P - Eu queria que o senhor falasse um pouco desse bairro, que o senhor descrevesse um pouco a casa em que o senhor morou...
R - Bom, ali, a casa onde eu morei ainda existe, quando nós viemos do interior de São Paulo, essa casa ainda existe e hoje quem mora lá é um primo meu que acabou, depois de anos, comprando essa casa. Ele mora lá, numa rua chamada Rua Galiléia. E depois dali moramos em vários outros locais até que papai, que havia no início dos anos 50 comprado um terreno, nós acabamos construindo.
P - E como é que era viver nesse bairro, quais eram as atividades, que é que o senhor fazia quando criança?
R - Olha, é por isso que eu hoje, quando vejo essa criançada sem espaço para brincar, tendo que jogar futebol nas ruas correndo o risco de vida e vendo, naquele meu tempo, as ruas toda de terra batida, aqueles espaços, terrenos vazios, aonde você colocava dois pedaços de pau, um de cada lado e fazia dali traves, e fazia campinho e podia empinar, que naquele tempo a gente chamava de barrelete, hoje chamam de pipas, sem muito perigo de enroscar em fios elétricos e muitos passarinhos, qual foi... como garoto, sempre de estilingue na mão, caçando passarinho, entrando (tosse) nos terrenos vizinhos pra roubar frutas, entende?, chegava e entrava pra roubar laranja, roubar jabuticaba. Era bem diferente tudo perante o que é hoje.
P - Quais eram as brincadeiras mais comuns que o senhor fazia na infância?
R - As brincadeiras mais comuns que a gente tinha era justamente essa: futebol, à noite brincar de pega, coisas assim.
P - Sempre na rua?
R - Sempre na rua.
P - Me diz uma coisa, como é que era a relação do senhor, o senhor tinha irmãos e como é que era a relação com esses irmãos e com o pai e a mãe do senhor?
R - Olha, as relações eram boas, como continuam sendo até hoje. Eu sou o mais velho, então sempre procurei ou tive que cuidar dos meus irmãos.
P - Vocês eram em quantos irmãos?
R - Nós somos em sete irmãos, que dizer, tem eu e mais seis irmãos.
P - E me diz uma coisa, e no período escolar, o senhor falou das suas atividades enquanto criança. O senhor estudava em que horário?
R - Olha, aí é que está, eu estudava... naquele tempo era tudo um pouco diferente do que é hoje, o ensino. Eu estudava do meio-dia daquela época das 11 horas da manhã até 2 horas da tarde, 3 horas da tarde. E depois, na parte da manhã, das 8 às 11, quando foi meu último ano, naquele tempo chamado quarto ano primário. Houve uma modificação, posteriormente, naquela época você tinha que fazer os primeiros quatro anos de primário, depois durante o ano você tinha que fazer um ano de admissão para, posteriormente, conseguir entrar no ginásio.
P - O senhor lembra de algum sonho do seu pai nessa época, de fazer alguma coisa com o comércio, mexer com alguma coisa com o comércio... Qual era o sonho dele em termos de atividade?
R - Olha, fica um pouco difícil dizer a você qual era o sonho dele. Ele chegou a trabalhar, uma das atividades dele na vida ele trabalhou como mascate, chegou a vender roupas, chegou mesmo a vender, isso nos anos 40, vender inclusive peixe nas ruas.
P - Ele mascateava em que região?
R - Aquela região da Casa Verde, Casa Verde Alta.
P - E o senhor começou a trabalhar em que época?
R - Eu comecei a trabalhar no dia 16 de junho de 1954.
P; O senhor tinha quantos anos?
R - 13 anos.
P - E naquela época era permitido trabalhar, a legislação permitia que uma criança de 13 anos trabalhasse?
R - Não, a legislação não permitia. O trabalho era permitido só dos 14 anos para cima, tanto é que, para poder trabalhar, eu tive que conseguir uma autorização do Juizado de Menores.
P - E onde foi esse seu emprego?
R - Bom, o meu primeiro e único emprego foi na Ravil Canetas e Lapiseiras, uma loja tradicional, uma das mais completas lojas de caneta do mundo. Não é falsa modéstia mas com certeza a maior loja do Brasil em instrumentos de escrita. E trabalhei, foi o meu primeiro e único emprego. Que eu comecei a trabalhar lá naquele junho de 54 e até que em 1986, quando eu tinha 32 anos de empresa, acabei ficando com a loja.
P - E o senhor começou a trabalhar, o senhor começou a fazer que atividade na loja?
R - Olha, eu comecei como office-boy, fazendo serviço de rua, aprendendo também a consertar canetas e coisas assim, quer dizer, uma espécie de faz de tudo.
P - Me diz uma coisa, o que mais impressionava na loja, naquela época, pro senhor?
R - Olha, o que impressionava, veja bem, São Paulo era completamente diferente. Aonde está a loja até hoje, no Edifício Martinelli, naquela época, no antigo centro como é chamado hoje, era o coração de São Paulo. Estavam ali todos os bancos, estava a Bolsa de Valores, Bolsa de Mercadorias, tudo funcionava no centro de São Paulo, principalmente naquela região onde eu estou, que era o centro financeiro de São Paulo.
P - E como é que eram expostas as mercadorias dentro da loja?
R - As canetas eram expostas como são até hoje, dentro de vitrines com vidros de correr. Porque, lamentavelmente, mesmo naquele tempo é como hoje, se você deixar alguma coisa exposta, some, não é? Nós tivemos um caso, uma ocasião, isso já foi em 1956, se não me falha a memória, eu voltei de um daqueles trabalhos que tinha que fazer como office-boy, quase não parava na loja, era o dia inteiro, de um lado para o outro, vai aqui, vai ali, vai fazer serviço de banco, vai buscar uma peça em um distribuidor, vai levar uma peça para algum cliente. E lá no prédio Martinelli tinha que, posteriormente com a reforma que foi feita no edifício mudou muito. Então tinha uma parte onde você descia umas escadas e aonde ficava uma pequena sala, onde ficava o senhor Urbano, que era o eletricista, e o Frederico, um alemão que era o encanador. Então quando você precisava de alguma coisa no prédio era eles que cuidavam, porque eles estavam ali desde o início da construção. E indo para ver alguma coisa lá na sala do senhor Urbano, vi um expositor jogado no chão, porque quando você descia a escada para ir nessa sala, tinha uma pequena área onde normalmente se colocava o lixo, se colocavam os sacos de lixo. E aí encontrei lá um expositor, inclusive com o preço. E quando eu vi o expositor e o preço eu sabia do que era, era de umas esferográficas alemãs (Fenk?), que era uma marca tradicional de quatro cores que tinha sido furtado lá na loja sem ninguém perceber, e de uma vitrine que tinha o vidro alto, você tinha que puxar aquele vidro e ficava alto aquele expositor, o alto que eu digo estava mais ou menos a um metro e meio de altura. E tiraram aquele expositor, era uma peça grande, tiraram aquele expositor com as canetas. Então, até hoje, e caneta é um objeto pequeno, você vê que, se você está demonstrando essa peça e quem está vendo está agindo de má fé, ou uma outra pessoa que esteja dentro da loja está agindo de má fé, vai acabar pegando, coloca no bolso e você nem vê. É a mesma coisa que o pessoal tem cuidado numa joalheria, ou quem vende relógios. Porque são peças que às vezes a pessoa... nós mesmos, eu mesmo já tive caso de pedir ao cliente o favor de devolver a caneta. Já teve casos, o sujeito tal, aí ele coloca no bolso pra ver como é que fica no bolso e começa a conversar daqui, dali, aí te agradece. Você diz: "Por favor não se incomode, o senhor vai levar a caneta?" Aí: "Ah, sim, desculpe, eu esqueci."
P - E falando em vitrine, o senhor montava a vitrine também, na época em que começou a trabalhar?
R - Olha, na época em que comecei a trabalhar ajudei em montagem de vitrine. A primeira vitrine da loja foi em 54, ano do quarto centenário. Então foi uma vitrine em homenagem a São Paulo. Então nós tínhamos naquela vitrine, e eu tenho até hoje, que o antigo proprietário da Ravil me deu de presente, um abajur. Então nós tínhamos na vitrine esse abajur que queria representar os lampiões de gás, tínhamos um pergaminho com um tinteiro de louça ou de gesso imitando um tinteiro de louça, uma pena de ganso. E nesse pergaminho estava escrito: "A pena de ganso escreveu no passado, no presente e futuro canetas Ravil." Dessa vitrine eu não participei, que foi a vitrine da inauguração da loja. A segunda vitrine que foi feita, foi feita de uma forma um pouco diferente. Tinha um alemão, o Fritz, decorador, não sei se está vivo ainda, está morando em Brasília desde o início, quando Brasília começou a ser construído, ele fez uma... colocou areia no fundo, colocou uma rede de pescar, colocou algumas conchas, nós tínhamos um amigo em Belo Horizonte que fabricava botões de madrepérola e usava essas conchas, e foi colocado algumas conchas e foi feito uma vitrine assim: a rede representando a rede de pesca e a areia e depois disso, então, sempre só ajudava. Quer dizer, limpava vidro, limpava mercadoria, até que por volta de 1960 comecei eu mesmo a fazer as decorações de vitrines. Eu inclusive espero agora nesse final de ano repetir uma vitrine de 1968, quando eu peguei uma peça de madeira e fiz uma espécie de árvore de natal, então você olhando essa vitrine, com os vidros intercalados, embaixo um vidro maior, e eles vão diminuindo. Então você vê o formato de uma árvore.
P - Havia algum critério para fazer as vitrines?
R - Não, não havia, era só... Olha, precisamos... Agora não, mas normalmente nós fazíamos, há anos atrás, nos anos 60 até nos anos 70, nós tínhamos uma vitrine muito grande que perdemos depois com a reforma do prédio, porque aquela vitrine que nós tínhamos estava irregular, ela avançava na calçada. Com a reforma do prédio nós perdemos aquela vitrine e hoje é uma vitrine bem menor. Tínhamos uma vitrine que ficou durante anos e esse ano eu mudei, eu fiz um pouco maior, que vai me permitir que faça esse tipo de decoração. Mas como eu estava dizendo, desculpe, avancei. Nós estávamos por volta de 60, até metade dos anos 70, fazíamos vitrine a quatro vezes por ano, Dia dos Namorados, coisas assim...
P - Esses produtos que na época eram vendidos, as canetas, as lapiseiras, elas eram todas importadas?
R - Olha, no início sim. Nós praticamente não tínhamos uma indústria de instrumentos de escrita no Brasil. A primeira, o primeiro instrumento de escrita, a primeira caneta a ser feita no Brasil foi uma esferográfica chamava se Kira, foi fabricada por um húngaro aqui na Barra Funda. E quando eu entrei no ramo, era tudo importado, até que em 1955 começaram a aparecer as primeiras fábricas de instrumentos de escrita no Brasil. O caso da Companhia de Canetas Compacto, que está hoje sediada no Rio de Janeiro, a Pilot Pen, uma empresa japonesa que veio para o mercado brasileiro, tinha fábrica aqui, era uma das mais vendidas canetas nos anos 50 e no início dos anos 60. Tivemos também a Sheaffer, que foi a primeira grande marca internacional a fabricar no Brasil, tivemos também, depois no início dos anos 60, a Parker. Nós, no final dos anos 50, início dos anos 60, o Brasil era um dos maiores produtores do mundo de instrumentos de escrita, pelo menos em número de fábricas. Nós tínhamos no Brasil seis ou sete empresas fabricantes de instrumentos de escrever, enquanto que os Estados Unidos estava só com Cross, o Sheaffer, o Parker, a França também só tinha (Vater Manjif e a Reinaulds?), a Inglaterra tinha pouca fábrica. Nós éramos, nós tínhamos mais fábricas de instrumentos de escrita no Brasil do que no próprio Japão.
P - Me diz uma coisa, senhor Sebastião, essas canetas que vinham importadas na ocasião, qual foi a caneta, a marca e modelo de caneta, que o senhor achava mais bonito nesta época e a mais cara?
R - Olha, caneta nessa época nós tínhamos essas marcas tradicionais que você encontra no mercado ainda hoje como Parker, que dominava o mercado brasileiro. A marca Parker dominou durante muitos e muitos anos o mercado internacional, principalmente o mercado brasileiro. Então nós tínhamos a Parker, nós tínhamos a Sheaffer, tínhamos a Pelikan, tínhamos o (Lamin?) que vinha para o Brasil com o nome de Lincoln, tínhamos a Âncora, Aurora, a (Evershap?). Então o Brasil tinha uma grande diversidade de canetas importadas. E canetas que me marcaram época que eu gostava. Gostava de todas! Parece que era minha sina ficar trabalhando com canetas, até o momento de me aposentar. Tinham várias canetas muito bonitas como ainda existem até hoje. Tinha duas canetas que de fato eu gostava, era uma caneta alemã que chamava-se Rodur, era uma belíssima caneta e também um modelo de Monblanc, que saiu de linha ainda no final dos anos 50, que era o modelo 342. Eu, todas às vezes que mexia naquelas canetas ou tinha que limpar, ficava de queixo... ficava embevecido, ficava de uma maneira... é difícil explicar como eu ficava quando eu pegava aquelas canetas nas mãos, por quê? Porque eu gostava das canetas, mas não podia comprar. (riso) Porque uma caneta daquela representava metade do salário que eu ganhava naquele tempo.
P - E me diz uma coisa, senhor sebastião, qual era a caneta mais cara naquela época?
R - A caneta mais cara naquela época era a Monblanc, esse modelo que é um grande sucesso hoje, o 149 modelo (Mr. Stoock?). Porque, enquanto um jogo de Parker 51 americano, todo folheado a ouro, modelo Insígnia, custava 2.500 cruzeiros, esses 2.500 cruzeiros eram... o salário mínimo era 2.300 naquela época, só a caneta tinteiro Monblanc era 1.800 cruzeiros! Então era a mais cara caneta, fora que naquele tempo também já existiam canetas de ouro maciço, não é?
P - Me diz uma coisa, como é que eram compradas essas canetas na loja? Era com cheques, tinha prazo, eram vendidas a prazo, não era. Como é que era... como é que a loja lidava com o cliente na forma de pagamento? Tinha cartão de crédito...?
R - Não, naquela época, no início das atividades da loja, nos anos 50, 60 ou 70, o cartão de crédito não era tão usado ou tão divulgado como é hoje. Poucas pessoas tinham cartão de crédito, apesar que existia no Brasil empresas de cartão de crédito. Assim como o cheque, quase ninguém tinha cheque, e mesmo naquele tempo, recusava-se muito pagamento em cheque. Então o mais forte mesmo era o dinheiro ou para alguns clientes especiais, como não tinha inflação, podia-se parcelar o pagamento, ou o cliente levava a caneta e pagava depois, ou ele comprava, dava um sinal, dava metade, metade dava em 30 dias, dividia em duas ou três vezes.
P - Me diz uma coisa, senhor Sebastião, pelo que eu estou sentindo, o seu conhecimento é muito profundo e eu acredito que a experiência deu muito dessa base. Agora, eu queria saber o seguinte, o senhor fez algum curso de especialização em relação a isso? Como é que essa formação só foi profissional ou o senhor teve algum embasamento teórico ou algum curso?
R - Não, francamente que não. Seria mentira minha se eu dissesse que fiz. Eu posso (fim da fita 027 / 01-A) dizer que o que aprendi, aprendi, graças a Deus, na melhor escola do mundo que é a escola da vida, procurando sempre assimilar e ver as coisas, ver os fatos, ver o lado bom e o lado ruim seja das coisas, seja dos fatos, ou seja, das pessoas. E, mais uma vez repito, faculdade, escola melhor do que a vida não existe.
P - Como é que foi passando, o senhor depois que entrou na loja, que trabalhou como office-boy, depois o senhor foi ajudando a montar as vitrines e tal. Como é que se deu esse processo todo dentro da loja em termos de trabalho, como é que o senhor acabou adquirindo a Ravil?
R - Bom, como eu disse anteriormente, comecei como office-boy e depois fui fazer todos os serviços também, vitrine, consertos e "n" coisas. Eu acredito que existe alguma coisa, uma força superior ou o chamado destino: que as coisas estão escritas e que isso estava escrito para mim, um garoto com 13 anos que necessitava trabalhar porque tinha que ajudar meus pais e tinha irmãos menores, é... tive sorte de entrar para trabalhar numa empresa, que a Ravil, recém-fundada, cujos donos eram imigrantes europeus que tinham sofrido aquele problema de guerra, como costuma dizer doutor Vilone, que graças a Deus ainda está vivo, que para mim é um segundo pai, é como se fosse meu pai, e dona Helena, a esposa dele, sempre foram pessoas muito humanas. Tanto é que eu comecei a trabalhar lá em junho de 54, quando foi no dia 13 de fevereiro de 1955, eles casaram a Gabriela, que é a filha mais velha, a Gabi tinha 18 anos e eles me convidaram para o casamento. Então, com menos de 14 anos, menos de um ano de empresa, eu fui no casamento da filha do patrão, que hoje talvez seja um fato mais ou menos corriqueiro, talvez, mas é muito difícil. Só que naquela época era uma coisa de louco, ser alguém, o empregado convidado para um tipo de evento desses. Então isso significa que desde o início, as relações... como eu era um garoto selvagem ainda, uma pedra bruta, uma pedra bruta que começou a ser lapidada. Então foi indo, foi ficando, fui continuando na loja, fui me tornando uma pessoa de confiança, fui sendo tratado como se fosse um filho, um filho... os anos foram passando e na vida você nunca fica como aquela... a Carolina do Chico Buarque: o tempo passou na janela e só a Carolina não viu. Então você acaba na vida, você pode analisar, quando você olha os anos se passaram. E foi o que aconteceu comigo, fui ficando, fui ficando até que numa ocasião, numa conversa com doutor Vilone, eu precisei de um dinheiro emprestado, então fizemos um acordo e ele só me pediu uma coisa, que enquanto ele e dona Helena estivessem vivos, ou estivessem com a loja, e se um dia fosse parar de trabalhar na Ravil, que eu não iria trabalhar em outra loja de canetas, ou seja, em algum concorrente. Eu disse a ele que ele podia ficar descansado que se um dia eu saísse da Ravil para fazer qualquer outra atividade na vida, que logicamente eu não iria trabalhar com instrumentos de escrita ou numa loja de canetas. Isso foi em 1963. Mas o tempo foi passando e eu fui ficando... O que é que aconteceu? Aconteceu que o tempo foi passando para mim, passando para ele, foi chegando a idade e ele já... Dona Helena tinha tido problemas... três pontes de safena, pra quem já não tem um rim desde 1957, já não queria, não podia trabalhar, como trabalhava normalmente das 7 da manhã às 7 da noite. Então eu fui ficando com a loja, tomando conta da loja, ele começou a viajar muito. Eu passei a dirigir a loja. Logicamente tinha que me reportar a ele, ou mesmo quando estava aquele que tomava conta. Mas ele tinha tanta confiança que ele viajava (tosse) e deixava tudo em mãos, cheques assinados em branco. Tudo, tudo para eu fazer o que bem quisesse. Então ele me deu essa confiança, essa responsabilidade e logicamente que quando, em 1986, ele, que já estava completando 60 anos de trabalho, em 1986 resolveu se aposentar definitivamente. Ele já estava com 76 anos de idade, 75 para 76, e não queria mais trabalhar e acabamos fazendo negócio, um negócio de pai para filho e eu acabei me tornando dono da Ravil.
P - O senhor casou em que época?
R - Eu casei em setembro de 71... setembro não, perdão, em março de 71.
P - E como é o nome da esposa do senhor?
R - Arnelice.
P - E ela trabalha com o senhor, ela tem alguma atividade?
R - Não, não, ela é só dona de casa.
P - E o senhor tem filhos?
R - Duas filhas.
P - Os nomes delas.
R - A primeira se chama Helena, a segunda se chama Heloísa.
P - E as duas fazem o quê? Quais são as atividades delas?
R - As duas trabalham na Ravil, são sócias da Ravil. A Helena trabalha e gerencia a Ravil Jardins, que é uma loja que eu inaugurei em junho do ano passado; e a Heloísa trabalha comigo na loja do centro, na Avenida São João.
P - Me diz uma coisa, senhor Sebastião, o senhor acha que o cliente mudou da época quando o senhor começou com o cliente de hoje?
R - Uma boa pergunta. Não, o cliente não mudou muito, porque quem gosta de um instrumento de escrita, gosta de um bom instrumento de escrita ou gosta de escrever, continua praticamente o mesmo. O cliente continua o mesmo. Houve de fato uma série de mudanças, que o mercado hoje é muito maior do que o mercado naquele tempo por causa da população. Só que, naquele tempo, você só tinha a caneta e a lapiseira para escrever. A esferográfica ainda estava engatinhando. Então naquele tempo o consumo era maior, o número de clientes eram maiores do que hoje, principalmente, você veja bem, a abertura da Ravil em maio de 54 foi considerada uma loucura. Porque naquele momento São Paulo era uma das cidades do mundo, ou talvez a cidade no mundo, com maior número de lojas só em instrumentos de escrita. Tinha uma série de lojas já tradicionais trabalhando só com instrumentos de escrita. Quer dizer, então a Ravil foi mais uma naquele momento que muita gente achou uma loucura.
P - E, me diz uma coisa, as embalagens, o senhor acha que teve alguma mudança nas embalagens?
R - Ah, indiscutivelmente. Com esse progresso, com o avanço da tecnologia, do plástico, as embalagens, hoje, são muito melhores e muito mais bonitas que as embalagens de 30, 40 anos atrás.
P - Como é que eram as embalagens de 30, 40 anos atrás?
R - Olha, o plástico é uma coisa que começou a caminhar nos anos 50. Então, embalagem de plástico você esquece. O que é que tinha? Tinha era embalagens de metal, revestidas, tinha também, embalagem de madeira, revestida em veludo, revestida em seda, estojos de couro, você não tinha essa variedade que você tem hoje na produção ou nas embalagens de canetas. Não sei se vocês conhecem aquele estojo cilíndrico da Aurora, do modelo (Rastill) da Aurora. É um estojo, não é recente, é um estojo dos anos 70, mas é uma embalagem toda em alumínio escovado, belíssimo! Existe hoje... o (Áteman?) saiu, por exemplo, saiu com uma linha nova de produtos chamada (Fontane Blue?) revestida de madeira, de roseira, o estojo é de madeira maciço, belíssimo estojo! O estojo, não o estojo que vem embalado a caneta. O estojo que é para você colocar a caneta dentro para guardar na bolsa. Por exemplo, no caso de uma senhora, uma moça, uma mulher, usando a caneta, ela pode colocar a caneta dentro daquele estojo na bolsa.
P - Me diz uma coisa, tem alguma feira internacional, anual, de instrumentos de escrita?
R - Existe sim, existe no início do ano na Alemanha, inclusive no ano de 95 essa feira começa no sábado, dia 28 de janeiro e termina no dia primeiro, quarta-feira, dia primeiro de fevereiro. Na Alemanha é chamada a primeira feira, primeiro (messer?), como eles chamam feira na Alemanha. Existe em Frankfurt um lugar, um espaço especial para a feira, como se fosse o nosso Anhembi, então todo mês você encontra uma feira na Alemanha. Começa com essa onde vai o pessoal de, seja de instrumento de escrita ou de papelaria e outros setores também. Para você ter uma idéia do tamanho, nessa feira existem 12 pavilhões, o pavilhão onde se realiza a feira de canetas, onde estão expostas as canetas, é maior do que o pavilhão principal do Anhembi. O pavilhão dez, só para instrumentos de escrita, aonde está e inclusive aonde sai os novos lançamentos. Todos os lançamentos que vão sair em instrumentos de escrita são lançados, os protótipos são lançados na feira de Frankfurt.
P - E essa feira é anual?
R - Essa feira é anual.
P- E no Brasil existe alguma feira similar ou alguma coisa ligada a esse ramo?
R - Não, existe a feira de brindes, existe a feira de papelaria, papelarias e afins aonde esse pessoal, os importadores e fabricantes, apesar que hoje nós praticamente não temos mais fábricas de instrumento de escrita no Brasil, a não ser a Faber, em São Carlos, a Compacto, no Rio de Janeiro, e também a Ilasa que fabrica alguma coisa, que saiu aqui de São Paulo, está indo pra Manaus, o restante é tudo mercadoria importada. Mas nessas feiras normalmente você encontra muitos instrumentos de escrita também.
P - O senhor disse que na década de 60 o Brasil teve a maior quantidade de fábrica de instrumentos de escrita e o hoje pelo que o senhor está me dizendo elas não existem mais...
R - É, hoje, infelizmente não existe mais uma fábrica de instrumentos de escrita no Brasil, como existiu há 30 anos atrás.
P - E o senhor acredita... por que, por que isso ocorreu?
R - Olha, um dos motivos foi que devido ao avanço da esferográfica nos anos 60, principalmente do Cross que dominou o mercado internacional, a partir da segunda metade da década de 60, até o início da década de 80, o uso de caneta tinteiro caiu praticamente a nível zero o consumo. E esferográfica, todo mundo queria a Cross, ninguém queria outra marca de esferográfica, e logicamente que isso forçou as indústrias a pararem. Porque não adiantava, raramente alguém queria uma Parker, raramente alguém queria uma Sheaffer, raramente alguém pedia uma caneta de outra marca a não ser Cross. Isso levou as fábricas a uma insolvência, quer dizer, não insolvência, porque as fábricas continuaram; a Pilot existe, a Faber Castell existe, existem várias e várias empresas. Mas em si pararam completamente. A Pilot hoje fabrica artigos de escritório; a Faber em São Carlos, o grande sempre foi lápis de cores; a Compacto no Rio ainda fabrica caneta. A Parker fechou aqui também, e isso... a esferográfica fez com que as fábricas diminuíssem o ritmo até pararem de produzir instrumentos de escrita.
P - Em que momento o senhor começou a vender as esferográficas?
R - Olha, as primeiras esferográficas já começaram a aparecer no Brasil em 1955. Começaram primeiro a aparecer essas esferográficas não descartáveis, porque tinha carga de reposição. Começaram a aparecer umas esferográficas americanas. Inclusive numa dessas fotografias tem lá, na nossa vitrine, naquele tempo se vendia a 50 cruzeiros uma esferográfica, e depois começou a aparecer a Parker até a modelo Jotter, quando eles saíram com a primeira, começaram a aparecer as primeiras Cross no mercado brasileiro e começaram, as grandes fábricas começaram a sair com esferográficas: o Parker, o Sheaffer, o Monblanc, o (Pelikan?), começaram a sair com as esferográficas. As esferográficas começaram a dominar o mercado de escrita internacional. Então, caneta e lapiseira foi um negócio que foi ficando em desuso.
P - E quando é que surgiu essa caneta esferográfica descartável? A famosa Bic? (riso)
R - A Bic surgiu por volta, no mercado internacional, por volta de 55, 56. No Brasil a fábrica veio ainda no final, no início dos anos 60, foi quando começou a fabricar a Bic no Brasil. Como eu disse no início, nós tivemos aqui a primeira fábrica de esferográfica descartável que chamava-se Kira, a segunda fábrica de esferográfica que nós tivemos no Brasil foi feita pela Arteb, Arteb de Pedro Eberhardt, do Sindipeças, o falecido pai dele, o senhor Artur e um tio dele, Gustavo Eberhardt, que gostava muito de canetas. Então eles fizeram a Artpen, na José Antônio Coelho, ali na Vila Mariana, foi quando eles tiveram ali a primeira fábrica. Então a Artpen foi a primeira esferográfica de qualidade a ser fabricada no Brasil, em 1956. Era um sonho do falecido Gustavo, eles trouxeram, o senhor Artur trouxe o (Luztk?), um técnico argentino que trabalhava para um dos inventores da esferográfica, o Biro, na Argentina, porque a Argentina foi a primeira fábrica de esferográficas de toda América Latina, foi na Argentina, a Birone. Tanto é que o argentino demorou muito a perder esse costume, porque o argentino quando queria uma esferográfica, ele não pedia uma esferográfica, ele chegava: "Tienes una Birone Parker? Não é esferográfica Parker?". Perguntava se tinha devido ao fato da Birone. E eles trouxeram tecnologia da Birone, o (Luztk?) e começaram a fazer as primeiras esferográficas no mercado brasileiro.
P - E como que o consumidor que estava acostumado a adquirir um produto que, vamos dizer assim, ele era permanente, ele passava a ter um produto que é descartável. Como é essa mudança de mentalidade, como é que o senhor vê isso, o cliente sentiu isso, foi fácil do cliente assimilar ou não?
R - Olha, foi e continua sendo mais ou menos fácil o cliente assimilar isso tudo. Você veja bem, naquele momento, eu disse a você qual era o preço de uma esferográfica, mais ou menos descartável, americana (tosse) nos anos 50. Mas 50, se você levar em conta que 50 cruzeiros uma esferográfica, ela era um pouco cara devido ao fato que o salário mínimo de menor, naquela época, era 1.150 cruzeiros, o salário mínimo de maior era 2.300 cruzeiros. E 50 cruzeiros representava muito dinheiro. Vou te dar um exemplo, você, com uma nota de 20 cruzeiros, no final de semana você ia num restaurante, ia ao cinema e ainda te sobrava dinheiro, entende? Você podia, com 20 cruzeiros no bolso, alias você podia, dependendo do restaurante que você fosse, você podia passar o sábado e o domingo no restaurante, jantar, ir ao cinema e na segunda-feira você ainda tinha algum trocado no bolso, pelo menos pra pegar o ônibus que, naquele tempo, era um cruzeiro e 50.
P - Me diz uma coisa, seu Sebastião. O senhor, além da atividade na Ravil, o senhor tem alguma outra atividade?
R - Não, não.
P - Nem pro lazer, nem nada?
R - Olha, o meu lazer, o meu lazer é o trabalho. Eu acho que me viciei nisso. Então eu gosto de ficar na loja, naquele dia-a-dia conversando com as pessoas, e também, para não dizer que não, eu tenho um sítio em Atibaia, onde eu vou todo final de semana e sempre fico fazendo uma coisa ou outra e tal, inclusive vendo, vendo, como eu sempre digo, brinco lá com o pessoal, o barulho do vento e dos pássaros. (risos)
P - Tem alguma plantação, o senhor tem alguma plantação no sítio?
R - Tem, nesse eu cultivo uva, estou cultivando pêssegos e uma coisa deste ano, como eu coloquei irrigação numa parte, aproveitando o local onde estão plantadas as videiras. Você já viu uma plantação de uva? A uva, esse tipo de uva que plantamos que é essa de consumo, a niágara, ela é plantada num espaço e aquilo se chama ruas, então são intercaladas e nesses espaço que está essa chamada rua vou começar, como eu coloquei irrigação nesse ano, vou começar a plantar também feijão para tentar conseguir pegar três safras ao ano de feijão.
P - O senhor comercializa esses produtos?
R - A uva eu comercializo sim, o pêssego ainda não, e o feijão, a partir do próximo ano eu vou começar a comercializar.
P - Me diz uma coisa, eu queria fazer umas duas ou três perguntas ao senhor. Eu queria saber o seguinte: se o senhor pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida o que o senhor mudaria?
R - O que eu mudaria? O que eu mudaria se eu pudesse mudar a minha trajetória de vida? Eu mudaria o calendário para começar na Ravil, junto com a Ravil, quer dizer, o porquê a Ravil foi inaugurada no dia 7 de maio de 54 e eu fui trabalhar na Ravil no dia 16 de junho de 54. E se pudesse, quer dizer, voltaria esses 39 dias para começar junto.
P - Eu gostaria de fazer uma outra pergunta com relação... o que é que o senhor acha que poderia mudar no comércio hoje? Pela sua experiência toda, essa trajetória toda que o senhor tem, que é que o senhor acha interessante mudar no comércio hoje?
R - Você diz no meu comércio, ou você generaliza, no comércio em geral?
P - Não, eu digo no seu comércio?
R - Olha, no meu comércio é difícil conseguir mudar alguma coisa porque não dependeria de mim todas essas mudanças. Logicamente que uma das coisas que procuraria, se pudesse poder fazer, é fazer com que os instrumentos de escrita tivessem a mesma qualidade, o mesmo material de 40, 50 anos atrás.
P - Uma coisa, o senhor disse que com o advento da esferográfica, alguns tipos de canetas entraram em desuso. E com o advento da máquina de escrever e do computador, isso também ocorreu?
R - Não. Uma das coisas que o ser humano nunca vai deixar de fazer é usar o instrumento de escrita. Pode ser uma esferográfica descartável tipo Bic, pode ser uma coisa mais sofisticada. Mas o instrumento de escrita faz parte do dia-a-dia, ou faz parte da história do ser humano. Aliás, se não fosse pela arte de escrever a humanidade não teria história!
P - Eu gostaria de fazer mais uma pergunta para o senhor. O que o senhor gostaria de realizar ainda?
R - Olha, o que eu gostaria de realizar, eu gostaria de poder, isso depende muito de alguém bem superior à minha vontade, a nossa, de poder viver mais dez anos, para completar no dia 16 de junho de 2004, 50 anos de trabalho e aí me aposentar.
P - Eu queria fazer uma última pergunta, alias na realidade duas, primeiro eu gostaria que o senhor contasse quando o senhor começou o trabalho, a que horas mais ou menos o senhor entrava e saía e se o senhor tinha que ir à escola depois do trabalho. Porque o senhor tinha 12, 13 anos, não era?
R - Bom, eu quando comecei o trabalho, eu comecei o trabalho, eu entrava às 7 horas da manhã e saía às 18:30, não tinha esse problema de escola, devido ao fato que no final de 53 eu terminei o quarto ano primário. Então, no decorrer do ano de 54, eu tinha que fazer o curso de admissão para poder entrar no ginásio e continuar os estudos. Mas infelizmente nós éramos de uma família pobre e papai era o único que trabalhava e não tinha condições de pagar os estudos. Então eu não pude estudar, não tive condições de prosseguir os estudos. Pra você ver como era difícil a situação é que um curso de admissão naquela época custava 14 cruzeiros, e só existia um livro. Não é como hoje que você vê uma criança, parece mais uma mula de carga de tanto livro que ele tem que levar na escola, porque hoje é livro de matemática, é livro de ciências, é livro de física, é livro... e um monte de caderno. Quando naquele tempo o estudo era bem mais fácil. Um professor só que lecionava tudo, ele te ensinava história, te ensinava geografia, ensinava matemática, ensinava ciências, ele fazia tudo. E com um livro só, ou um livro de história, um livro de geografia, existia um livro que englobava tudo isso. O estudo era muito mais fácil. A criança se cansava menos naquela época. E eu tinha já um livro que ensinava, que era um livro para um curso de admissão, o livro eu já tinha de uma troca que eu tinha feito com o colega, que tinha feito admissão e ele tinha aquele livro disponível. E eu tinha uma, não me lembro em que base ficou aquela troca, eu fiquei com um livro dele e dei para ele um outro livro. O livro eu tinha, mas papai não tinha [Fim Lado A - Fita 027/02A] os 14 cruzeiros para pagar o curso, então dali eu comecei a trabalhar. Depois voltei, depois de alguns anos, voltei novamente, aí (tosse) começou num grupo aonde eu tinha me formado, tinha tirado o diploma do quarto ano primário, eles foram fazer a série ginasial. Então foi feito um exame como se fosse um concurso para quem quisesse voltar a estudar, fazer esse exame para tentar novamente o ginásio, tentar novamente significa, ou seja, aquele pessoal que tinha se afastado como eu, tinha ficado sem estudar, assim como aquele pessoal que estava no quarto ano. Então eu fui e fiz esse exame e consegui entrar no ginásio. Mas infelizmente não pude continuar devido ao fato que eu saía da loja e entrava, teria que entrar no ginásio, na sala, às 18:40, e eu saía da loja normalmente 5, 5 e meia da tarde. Então não dava tempo. O problema de condução e de chegar no ginásio e pegar a primeira aula. A primeira aula normalmente era latim, ou trabalhos manuais. E também devido a esse fato de levantar cedo todo dia pra começar a trabalhar às 7 horas da manhã, isso foi me desgastando, fora que eu estava mal acostumado. Já queria ficar com os amigos batendo papo. Apesar que era menor de idade, e a lei não permitia. Mas também jogavam bilhar e tudo... já tinha bailinhos, namoradas, aí acabei repetindo de ano mais por causa de falta, repeti em algumas matérias. Mas eu tinha um número excessivo de faltas e esse número excessivo não permitiu que eu fizesse segunda época, porque, como eu disse, a primeira aula era difícil, difícil de conseguir assistir a primeira aula. Isso foi em 1958.
P - Pra encerrar, nós gostaríamos de fazer a última pergunta. O que significou para o senhor a oportunidade de dar esse depoimento para o Museu da Pessoa?
R - Olha, dizer que eu não tenho palavras seria uma mentira. Um fato que eu posso classificar até o presente momento maior da minha vida porque, para quem começou aquele trabalho naquele dia com 13 anos, entrando numa loja como a Ravil, o primeiro emprego, com um sapato marrom, o paletó de casimira azul-marinho, o terno, o paletó de uma cor, a calça da outra, por quê?, porque normalmente era a calça que mais se usava, então era um azul-marinho, mas um azul era azul e outro azul era meio marrom. E sem poder imaginar, que depois de 40 anos de trabalho, chegar a receber um convite desses. Então eu posso considerar pessoalmente como o maior fato, até o momento, da minha vida de poder fazer uma coisa dessa. É difícil descrever isso daí, muito, muito difícil de descrever ou poder dizer a vocês o que eu sinto internamente com um fato desse, ou como já me senti quando a Ana Paula ligou convidando para fazer esse... e você ainda também ligou para fazer esse depoimento.
P - A gente agradece, pra gente foi muito importante o seu depoimento.
R - Muito obrigado, quem agradece muito sou eu.
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