Projeto Conte Sua História
Depoimento de Lucas Durães
Entrevistado por Lucas Torigoi
Belo Horizonte, 12/09/2019
PCSH_HV814 _ rev.
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Beatriz Cunha
Revisado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Qual o seu nome inteiro, a cidade em que você nasceu e a data?
R — Lucas Augusto Barbosa Durães, nasci em 28 de novembro de 1988, aqui mesmo em Belo Horizonte.
P/1 – Você nasceu em que hospital aqui em Belo Horizonte?
R – Nasci no Mater Dei, de cesariana, porque minha mãe já tinha tido… Meu irmão já tinha tido que nascer de cesárea também, então ela precisou… Diz ela, não sei se isso é lenda hoje em dia, que depois que faz uma cesárea, todo mundo tem que ser cesárea. Mas ela aproveitou para marcar a data no dia 28 porque ela é devota de São Judas Tadeu, que é no dia 28 de outubro… Ela fala que se pudesse, teria me adiantado um mês para eu nascer no dia 28 de outubro, mas como não foi possível, ela marcou para o dia 28 de novembro.
P/1 – Entendi. Como é o nome inteiro do seu pai?
R – Meu pai é Marcelo Augusto Bahia Durães.
P/1 – E como é que é a família dele? Essa família do seu pai, qual é a história dela?
R – Bom, essa família onde todos os homens têm "Augusto" no nome, é uma família… Bom, meu avô se mudou do interior de Minas para Belo Horizonte muito jovem. Ele ficou órfão muito cedo e começou a… Aos 16 anos ele já precisava trabalhar, enfim. Ele buscou algum trabalho que não machucasse, teve um critério muito estranho. "Qual será minha profissão?" E ele não queria mexer com marcenaria, serralheria, ser pedreiro, não queria nada que tivesse o risco de se machucar. Ele pensou: "Bom, talvez costurando, o máximo que pode me acontecer é furar o dedo" (risos). Ele se tornou aprendiz de uma alfaiataria e isso é um fato muito importante, porque a família do meu pai acabou se gerando totalmente em volta da alfaiataria e depois, num segundo momento, da moda como um todo. O meu avô conheceu a minha avó ainda muito jovem. Minha avó era enfermeira, Irene, e eles tiveram cinco filhos. Uma família muito louca, muito festeira, com muito grito, muita comida, uma casa sempre muito confusa, com tudo misturado, trabalho misturado com a casa. Eles sempre tiveram essa coisa de fazer tudo no mesmo lugar, com os funcionários entrando, saindo e eles comendo. Só que também foi uma… Eu digo no passado assim, porque houve um período muito triste e de muitas mortes. O filho caçula, que assim como meu avô também se chamava Hermano, teve uma encefalite estranhíssima quando ele tinha 14 ou 15 anos de idade. Eles descobriram num dia e uma semana depois ele morreu.
P/1 – Seu tio?
R – É, meu tio, que era o irmão caçula do meu pai. Um ano depois, minha avó… Meu pai não fala muito. É engraçado, porque apesar dos meus pais terem se divorciado quando eu tinha apenas três anos, quem me conta mais as histórias da família do meu pai é a minha mãe, porque meu pai não consegue falar muito sobre esse passado. Minha mãe conta que minha avó morreu de desgosto, porque ela ficou tão, tão, tão triste com essa morte tão abrupta e tão estúpida do filho mais novo dela, que ela desenvolveu um câncer de mama letal e em um ano ela morreu. Alguns anos depois, um outro irmão do meu pai também deu uma "endoidada" com isso tudo e se suicidou. Então, a história da família do meu pai é uma história meio de uma tragédia grega - ou de uma comédia grega, não sei como dizer -, porque, realmente, é uma família muito feliz, muito unida, muito peculiar mesmo. A casa deles sempre foi ponto de encontro de toda a galera do bairro, mas, ao mesmo tempo, foi uma família marcada por muita dor, por muita perda e que eu não sei… A sensação que eu tenho, olhando para trás, parece que essas dores e perdas meio que retroalimentaram um pouco desse jeito de viver muito louco mesmo, muito permissivo, muito louco mesmo. É engraçado, porque eu tenho dois lados de família muito distintos. De um lado, a família do meu pai, que é essa família de alfaiates, costureiros e estilistas malucos; do outro, é super séria a família da minha mãe, de advogados, todo mundo muito estudioso e concentrado.
P/1 – E essa casa do seu avô, que você falou que tinha no bairro, onde era essa casa?
R – Essa casa, foi comprada na década de 70 - na década não, no ano de 1970, cravado -, logo após ele ter vencido o prêmio "Tesoura de Ouro", que era um prêmio da época, reconhecido como o Oscar da alfaiataria. A alfaiataria era uma atividade que ainda era muito importante então, tinha premiações e tudo mais. Ele ganhou esse prêmio e foi super importante. Na época, ele realmente ficou muito famoso, saiu uma matéria grande sobre ele na Revista Vogue, que, na época, foi o auge. E ele começou a atender clientes como Presidente da República, governadores, senadores, os mais altos empresários de Minas Gerais… Ele sempre foi uma pessoa muito simples, acho que não terminou nem o ensino fundamental, ele era super autodidata, mas gostava muito de conversas com os clientes e fazia questão que os atendimentos fossem longos e lentos. Então, seja quando ele ia à casa dos clientes ou quando ou clientes iam no ateliê dele, no bairro Funcionários, eram duas ou três horas de atendimento e muita conversa. Ele gostava de mostrar que conseguia conversar com um cara importante ou com um cara rico, sabe? E essa casa se tornou uma lenda, sem tanto exagero. Claro que para mim, vai ser sempre um ponto de vista muito mais afetivo, mas, não sei, depois mais para frente na conversa, posso te contar. A casa, infelizmente, foi demolida no passado, mas antes dela ter sido demolida a gente fez um projeto de celebração da história da casa, em memória do meu avô, justamente porque ela era uma casa que articulava muita coisa. Na década de 80, ele e meu pai abriram uma segunda marca, que se chamava "Blade Runner", porque eles assistiram ao filme e ficaram completamente extasiados com aquela história daquele mundo apocalíptico. Eles abriram uma marca de jeans, que chamava "Blade Runner", num total ato de direitos autorais (risos), ou não sei como essas coisas funcionavam na época, só sei que a coisa existiu durante muito tempo. Os jeans e as camisas "Blade Runner" ficaram famosos no Brasil inteiro, eles chegaram a ter mais de 120 costureiras trabalhando dentro de casa, porque meu avô destelhou a casa, bateu uma laje, fez um galpão em cima da casa e uma escada lateral. Eles moravam embaixo, as costureiras chegavam de manhã e iam trabalhar nesse galpão, fazendo calça jeans para o país inteiro. Então, sempre foi essa casa muito emblemática. Mas, ao mesmo tempo, todo dia ,11 da manhã, o almoço estava na mesa; cinco da tarde, tinha que ter pão quente, comprado na padaria, e café com leite. Era um lugar em que qualquer pessoa podia chegar, sentar, puxar um prato e fazer, mas podia mesmo, não estou falando do clichê mineiro, era realmente um organismo muito vivo. Depois que meu avô morreu, minha família optou por vender a casa. A gente resolveu celebrar isso de uma outra forma, mas remetendo àquela vivacidade e àquilo tudo. A gente fez um projeto que se chama "Alfaiataria" - não tinha como ter outro nome - e foi um projeto onde a gente abriu as portas da casa para a cidade, a gente demoliu um muro e, realmente, entregamos a casa para a calçada e para a rua. Foi muito legal, eu acho que foi muito importante a gente ter feito. Enfim, eu dei um pulo, estou numa falta de linearidade temporal absurda (risos).
P/1 – Tranquilo, relaxa. Queria te perguntar como é que era essa casa, vamos dizer assim… Para uma pessoa que não conhece a casa, como é que era? Você estava na rua, entrava e como é que era?
R – A casa, originalmente, tinha um murinho muito baixinho com uma grade baixinha também. Esse é um dado super importante porque eu cresci escutando milhares de casos sobre a famosa "turma do murinho", que era a galera do bairro que se encontrava ali na frente da casa do meu avô para fumar maconha, jogar conversa fora e andar de moto no quarteirão - porque era essa época de moto. Então o pessoal encontrava e dizia: "Ai, deixa eu dar uma volta na sua". Atrás desse murinho, tinha um pequeno jardim e a casa era uma casa que tinha um… Aqui em Belo Horizonte é muito comum isso: são umas casas que têm um torreão, que, por sua vez, abrigava uma sala redonda do lado de dentro, que era o quarto de prova, que era o lugar para onde meu avô levava os clientes. Lá tinha os biombos e espelhos para poder tirar as medidas e tudo mais. Então, era uma casa pequena, simples, muito marcada por esse torreão cilíndrico e uma fachada com uma textura meio batida, não sei, meio… Não sei nem como é que descreve, mas era bonito. Tinha um alpendre, uma varanda que dava acesso à sala principal. Então, era isso. Eu olhava para ela e era uma casa bem com cara de casa de boneca, com esse torreão e essa varanda. Depois, eles desconfiguraram bastante, porque fizeram esse galpão no segundo andar, que tirou aquela informação do telhado, então virou um blocão.
P/1 – E tinha quarto lá? Cozinha… Como é que era?
R – Tinha, tinha. Acho que meu avô nunca deve ter contratado um arquiteto na vida dele. Ele era um construtor por natureza, então ele gostava dele próprio… Eu não sei te dizer se ele pegava papel e desenhava ou se ele já chamava os pedreiros e já ia falando: "Ah, vamos pôr uma parede aqui, uma parede lá e vamos fazer uma escada aqui". Ele sempre fez uma autoconstrução muito louca, da cabeça dele. Eu lembro que, ainda criança, ou seja, muito antes de me tornar um arquiteto, eu já ficava um pouco intrigado com os percursos e algumas coisas da casa, porque tinha algumas coisas muito estranhas, umas geometrias esquisitas, umas coisas um pouco fora de escala… Eu lembro que minhas duas tias explicavam: "Não, é porque aqui seu avô puxou uma laje, puxou uma parede aqui, fez um telhado por cima". Então, ele ia aumentando a casa e ocupando mais o terreno, de acordo com o humor, com a vontade. Ele era muito inventor de moda, todo mês ele já queria fazer alguma coisa diferente. Ele não podia parar quieto.
P/1 – Como era esse galpão? Seria lá também?
R – Esse galpão foi uma parte muito importante da minha infância, porque quando eu já devia ter meus seis ou sete anos de idade, a Blade Runner tinha falido, porque cresceu tão rápido e de forma tão violenta que eles não souberam administrar uma empresa daquele porte, a coisa ricocheteou e, realmente, acabou se tornando um prejuízo enorme. Então, nas primeiras memórias que tenho de infância, o galpão já era um lugar muito estranho, um lugar vazio, com muita tralha, e era um parque de diversões para mim e para a Irene, minha prima que morava na casa. A Irene é nossa única prima por parte de pai e morou lá a vida toda, então, eu passava muitos finais de semana lá com ela e a gente usava o galpão como um estúdio de filmagem: a gente gostava de fazer pequenos "filmetes". A gente tinha aquelas câmeras que gravavam naquelas fitinhas e a gente lia alguns livros, tipo "O menino maluquinho"... Tinha um outro, que não vou lembrar o nome agora, mas era muito engraçado, era de assassinato, meio Agatha Christie. A Irene era a roteirista e eu era cenógrafo. Não tinha videomaker, era a câmera apoiada em cima de uma cadeira e a gente encenava os livros. Então, a gente tinha aquele galpão enorme à nossa disposição, era um luxo. Só que saíamos pretos de lá, porque acho que ninguém limpava aquele lugar; então, era maravilhoso.
P/1 – Quem que encenava? Quem eram os atores?
R – Ah, não, nós mesmos. Na fase de pré-produção eu fazia o cenário e ela fazia o roteiro e o figurino. Depois a gente entrava em cena, chamávamos alguns amigos, mas tínhamos mania disso, era uma coisa que levávamos a sério mesmo. Tipo: "Então, daqui a três finais de semana nós vamos filmar O menino maluquinho. Tem que ir arrumar uma panela para pôr na cabeça". A gente realmente levava aquilo a sério. Então, uns dois ou três finais de semana eram para fazer o cenário e ensaiar, e, no quarto, a gente ia ensaiar. Era legal demais porque aquele galpão ali era um lugar nosso, ninguém ia entrar lá, então podia ir lá, montava um pouquinho, ensaiava, deixava… Uma semana depois, a gente voltava e estava tudo lá ainda, era muito legal.
P/1 – E como era o seu avô? Qual o nome completo dele e o endereço da casa?
R – O nome dele completo é Hermano do Carmo (risos). Não sei por que, mas é engraçado porque ele não tinha nem o "Augusto", nem o… Mentira, ele é Hermano Augusto do Carmo, é isso. É porque ele não tinha o Durães, mas a família era Durães e apesar dele não ter, depois ele foi colocando em todo mundo. O endereço é Santa Rita Durão. Esqueci o número. Nossa, esqueci mesmo o número.
P/1 – Se lembrar, depois você fala.
R – Eu só sei que a soma do número dava nove e meu pai era muito implicado com isso (risos). Alguém falou alguma vez para ele que quando a soma das coisas dá nove é perigoso e ele tinha pânico disso. Quando o meu avô morreu e meu pai e minhas tias decidiram vender a casa para uma construtora, eu fui muito contra. Eu e meu irmão tentamos convencê-los a não fazer isso. Eu lembro que meu pai falava... Quase falava: "Eu prefiro a casa sendo demolida porque o número dá nove" (risos). Em alguns momentos, tinha algumas falas meio absurdas assim, sabe?
P/1 – Como é que era o seu avô? Como ele falava e o que ele falava para você?
R – Meu avô, Nossa, era uma pessoa muito legal, muito peculiar. Ele era muito contador de história, mas era engraçado. Porque ao mesmo tempo tinha momentos em que ele ficava muito caladão, no canto dele, e tinha momentos em que ele queria lhe contar histórias e ficava duas ou três horas conversando com você; então, era meio brusca a relação. Ou ele ficava: "Oi, tudo bem?" e não falava mais nada, ou ele queria muito contar alguma coisa e ficar falando. Ele tinha uma risada muito particular, que reverbera na minha cabeça até hoje e que meu irmão meio que tem a mesma risada, o que é engraçado. Ele era um cara extremamente inteligente, extremamente autodidata. Esses dias mesmo meu pai estava falando: "Nossa, qualquer coisa que seu avô lia, ele não esquecia nunca mais". Como ele passou poucos anos na escola, ele comprava livros de História mesmo - livros didáticos, que se utiliza na escola - e lia. Ele aprendia tudo sobre a Segunda Guerra Mundial, decorava detalhes sórdidos e sabia contar aquilo para qualquer pessoa que perguntasse. Ele era super aficionado com tecnologia, acho que ele foi a primeira ou segunda pessoa a ter um carro importado em Belo Horizonte. Porém, ele não era rico, isso que é engraçado. Ele era excêntrico, meio despudorado. Acho que ele veio de uma infância tão pobre, que quando viu que, de repente, vendia ternos para milionários, ele falava: "Eu tenho que comer a mesma comida que esses caras comem, eu tenho que ver os mesmos filmes que eles veem, fazer as mesmas viagens que eles fazem, porque a gente tem que ter assunto". Ele tinha umas coisas assim. Ele, sei lá… Muita coisa eu vi pela primeira vez na vida na casa do meu avô. Eu lembro que eu era muito criança e ele tinha um carro que você abria com uma senha, sabe? Lá, ao lado da maçaneta, tinha uns números. Ele era louco por essas coisas, ele tinha uma televisão… Eu não esqueço disso. Ainda nem era televisão fina, era uma daquelas gordonas, que no controle remoto você já conseguia girar a televisão. Você já viu isso? Ele ficava mostrando para todo mundo que você apertava e a televisão girava, então, sei lá, se você estivesse na cama ou na poltrona, a televisão girava sozinha. Ele se deleitava com essas coisas, amava tecnologia, sempre tinha o último lançamento de tudo. Ele se endividava, comprava esses carros e depois o banco roubava o carro dele, porque ele parava de pagar as parcelas. Ele era assim, essa pessoa que viveu realmente sem se preocupar, ele vivia intensamente. Ele te vendia um terno, pegava o dinheiro, entrava num avião e ia para Nova York comprar mais tecido… E nisso, ele já gastou o dinheiro do terno que te vendeu (risos). Entendeu? Ele vivia de uma forma absolutamente livre.
P/1 – Você achava as roupas e o que ele fazia bonitas?
R – São maravilhosas. Eu tive a honra de ter tido um terno feito por ele, mas foi uma burrice porque eu ainda era criança, então pouco tempo depois eu não conseguia mais entrar no terno. Era impecável, era impecável você vê-lo quando ele esticava o tecido sobre a mesa para começar a fazer o trabalho de modelagem. Ele praticamente não precisava usar a fita métrica ou a régua, era muito impressionante. Ele, realmente, tinha… Vinha, lhe media, anotava todas as suas medidas, analisava seu corpo, via se tinha algum vício de postura ou algo do tipo, ia para a sala dele, abria o tecido, riscava… Depois ele vinha com aquela tesoura gigante e pesada, cortava, costurava aqueles pedaços todos que você não entendia nada e, de repente, punha em você e ficava perfeito. Era realmente impressionante, como a pessoa conseguiu desenvolver uma coisa de… Ele realmente esculpia, quase a olho nu, no tecido, era muito impressionante. Quando ele começou a trabalhar nessa alfaiataria, aos 16 anos, ele entrou como assistente e em muito pouco tempo ele já era responsável por um setor lá dentro e começou, realmente, a crescer e ter uma clientela própria. Como hoje em dia, quando você vai numa barbearia e vê que tem o tal barbeiro que já tem os clientes que são dele. Meu avô era essa pessoa dentro da alfaiataria. Era uma alfaiataria grande, com vários alfaiates, mas ele tinha os clientes dele. Até que uma hora ele percebeu que dava conta de sair e fazer carreira solo, digamos assim. Foi junto do prêmio que ele ganhou, em 1970, da "Tesoura de Ouro"... Acho que talvez tenha sido uma das atitudes mais inteligentes que ele tomou na vida porque, nessa época, ele começou a perceber que a alfaiataria ia cair em desuso, porque estavam começando a chegar os grandes magazines em Belo Horizonte. Ele começou a ver o produto que ele fazia, pendurado na arara da loja. E falou: "Isso aqui vai dar errado, eles estão industrializando meu saber". Mas ele pensou: "Mas não vai acabar por completo, a alfaiataria vai continuar existindo mas vai se tornar algo de nicho, e portanto, infelizmente, de luxo, porque o mercado vai diminuir a ponto de que o preço vai subir por uma questão econômica, de escala mesmo". Ele viu isso antes de todo mundo, tanto que ele foi e comprou essa casa na rua Santa Rita Durão, que era um bairro super nobre, para poder abrir a primeira boutique de luxo masculina de Belo Horizonte. Então, ele próprio se posicionou como "luxo" antes de todo mundo, porque ele entendeu... E se você olhar o mercado de alfaiataria hoje, é um mercado essencialmente de luxo. Você não consegue ver garçons indo fazer seus ternos para trabalhar, no alfaiate. Seguranças, bancários… São só realmente pessoas que podem gastar muita grana com aquilo, porque quase não existem mais alfaiates. Então ele sacou isso, sei lá, 30 anos antes de todo mundo, se posicionou dessa forma e deu muito certo. Porém, ele morreu costurando, não parou de trabalhar um minuto, porque como ele vivia desse jeito, sem se preocupar com o futuro, ele, realmente, não pôde parar de trabalhar nunca. Ele precisou trabalhar até morrer.
P/1 – Com quantos anos ele morreu?
R – Ele morreu em 2013, ele tinha… Ah, ele não chegou nem a fazer 80 anos. Ele tinha 70 e muitos. Eu não sou muito bom de gravar números, como você já pôde perceber (risos).
P/1 – Bem, e a sua avó?
R – Eu não a conheci. Isso é uma das grandes, grandes, grandes tristezas da minha vida, porque aquela memória… Eu sempre ouço falar dela de uma forma incrível. Ela se chamava Irene, assim como minha prima, porque quando minha tia ficou grávida da minha prima, quis fazer essa homenagem à minha avó, então, eu tenho duas Irenes na mesma casa. Ela era uma pessoa… Todo mundo fala que ela era a única pessoa no mundo que conseguia colocar limite no meu avô, mesmo. É por isso que meu pai não consegue falar do passado, porque toda vez que ele fala do passado ele lembra da mãe e o olho dele enche d'água em um segundo. Ele não consegue. A memória que ele tem da mãe é uma coisa tão profunda e tão louca que ele não consegue falar do passado. Eu tento, falo: "Pai, me conta como era tal coisa". E ele não fala. Minha mãe conta... Minha mãe sempre veio falando, pode contar casos o dia inteiro. Ela fala que a relação que o meu pai tinha com a mãe dele era uma coisa de outro planeta, e meu pai é o filho mais velho, então, ele logo foi colocado para ajudar nas tarefas da casa e da alfaiataria. Ele começou a dirigir aos 11 anos de idade pela cidade afora e era uma época, obviamente, muito diferente. Quando os policiais o pegavam dirigindo, levavam para a delegacia e o delegado dizia: "Não, é filho do Hermano, pode deixar". É porque ele tinha que ajudar a minha avó, então ele pegava o carro para comprar linha, comprar tecido, comprar botão… Minha avó que ficava coordenando isso e ainda ficava cuidando de cinco filhos e era enfermeira. Ela não deixava o meu avô fazer bobagem com o dinheiro. Minha mãe conta muito que quando minha avó morreu - porque ela morreu com quarenta e poucos anos de idade, morreu muito jovem -, meu avô despirocou e perdeu o limite, sabe? Porque era ela… Era engraçado, porque ele era mais baixo, e ela era muito alta e muito gorda, então, minha mãe conta que era muito engraçada a cena daquela mulher gigante que, realmente, conseguia segurar e controlar um homem muito talentoso e muito indisciplinado. Ela conseguia e dizem que ele abaixava a cabeça para qualquer coisa que ela falasse. Ele respeitava e fazia, porque era completamente apaixonado e louco por ela, então ele realmente "aquietava o facho" para ela.
P/1 – E o seu pai virou alfaiate também?
R – Não. Meu pai tem uma alfaiataria e ele sempre, sempre, sempre como eu disse, desde os 11 anos de idade, ele trabalha com isso mesmo. Meu pai não fez nem Faculdade, nem nada, de tanto que ele já estava engrenado nisso, mas ele não sabe costurar. A única pessoa que costumava, efetivamente, na família era o meu avô. Ele já tentou um pouco e uma tia minha tentou, mas não… É difícil demais. Eu tentei, eu fiz um curso de alfaiataria por mais de um ano e é muito difícil, mas é muito difícil mesmo. É uma coisa, que eu diria que você tem quase que dedicar sua vida. Não sei te explicar o tanto que é complexo, é muito louco. Então, meu pai tem os alfaiates que trabalham com ele, mas vamos dizer assim, ele é estilista. Meu pai é estilista e artista. Ele sabe tirar as medidas, óbvio, ele sabe tudo, menos costurar. Ele faz toda a mise-en-scène, venda, ajudar o cliente a decidir e tudo mais, mas na hora H, de riscar, cortar e costurar, ele tem a turma dele, que são uns velhinhos. Eu fico sempre conversando com ele, falo: "Pai, como é que você vai fazer? Daqui a pouco esses velhinhos vão morrer". Mas ele não fala nada, ele tem uma capacidade assombrosa de mudar de assunto. Minha avó brinca - a mãe da minha mãe -, ela fala: "Seu pai faz uma pergunta e não quer nem ouvir a resposta, de tão rápido que ele muda de assunto". Ela brinca que ele muda o próprio assunto que ele começa, então, imagina quando ele não está a fim de conversar sobre um assunto que ele acha chato, aí que ele muda de assunto mesmo. Então, na hora em que eu falo que os alfaiates vão morrer, pensa, e aí? Ele não sabe o que vai fazer, então, ele não quer conversar sobre isso. Ele prefere viver o dia de hoje. Amanhã é amanhã e nós pensamos como é que vai ser.
P/1 – E a sua mãe, qual é o nome inteiro dela?
R – Minha mãe... Bom, ela voltou para o nome de solteiro dela, que é Liliana Di Ferreira Barbosa. Ela é dois anos mais nova que o meu pai, meu pai nasceu em 1960 e ela nasceu em 1962. Ela tem uma história, assim… Ela nasceu numa família muito conservadora, como eu estava dizendo, e foi o primeiro e único caso da família de ter engravidado solteira, o que, na época, foi um escândalo. Ela conheceu meu pai quando tinha 16 anos e meu pai tinha 18, e eles começaram a namorar. Quando ela tinha uns 19 ou 20 anos, diz ela que ainda era virgem, que meu pai ficou muito em cima e ela com aquela história da família na cabeça... "Não, precisa casar para perder a virgindade", um belo dia disse: "Chega, não aguento mais segurar". E engravidou. Quando ela foi contar aos meus avós foi um drama absurdo. Minha avó obrigou-a a se casar na sala de casa, porque estava realmente envergonhada de fazer uma festa e de que as pessoas comentassem que ela estava casando grávida. Minha avó ficou tão brava, tão chateada da minha mãe ter engravidado, que foi uma festa minúscula, para pouquíssimas pessoas, e minha avó fez questão de descer as escadas de cabelo molhado, para poder mostrar o tanto que ela estava achando ruim mesmo estar passando por aquela situação na vida dela (risos). Minha mãe, nessa época, já estava na UFMG cursando Direito e saiu da Faculdade momentaneamente para poder amamentar, enfim, para criar meu irmão. Ela falou assim: "Semestre que vem, eu volto", "Semestre que vem, eu volto", "Semestre que vem, eu volto", e não voltou nunca. Nesse meio tempo, ela acabou começando a trabalhar com o meu pai, só que ela se juntou com algumas amigas e abriu a sua própria fábrica, que, no caso, era de roupas infantis. Foi engraçado, porque eu realmente nasci nesse mundo da moda: minha mãe tinha uma fábrica de roupa infantil, meu pai tinha uma alfaiataria e eu era modelo da fábrica da minha mãe. Tem umas fotos engraçadas, que eu ia lá fazer as campanhas das coleções. Minha mãe foi nessa, até quando eu tinha uns 10, 12 anos, não me lembro ao certo. Até que, um dia, ela desistiu e fechou a fábrica. Ela não chegou a falir, ela cansou e voltou a prestar vestibular. Eu lembro que era muito engraçado, eu virava para os meus amigos e falava: "Minha mãe está fazendo vestibular e tal". Ela voltou para a escola de Direito e se formou quando tinha quase uns 40 anos, acho. Hoje em dia, ela é super caretona, advogada… Ela, realmente, deixou passar aquele mundo da moda e aquela história toda para trás.
P/1 – Você estava falando da sua mãe. Mas como é a família dela? Você falou que é conservadora, mas como é isso? Como é sua avó, seu avô, seus tios?
R – É super conservadora. Porque, por exemplo, pensa que a minha avó… O pai dela foi magistrado e chegou a ser presidente do Tribunal, então minha avó nasceu nessa família em que o pai dela era extremamente sério e rígido, dizem que ele era a pessoa mais certinha do mundo. Então, a minha avó traz uma carga muito forte disso, e se casou com meu avô que, também por sua vez, é um cara extremamente sério, ele era até mal humorado, bravo, e também advogado. Então, eu digo isso pelos costumes e pelas dinâmicas do dia a dia. Minha avó e meu avô tiveram cinco filhos, minha mãe é a segunda mais nova. É uma família assim… [Não sei por que estou falando os "trens" no passado, essa parte vai ter que editar depois]. É a primeira vez que falo isso, hein, estou bem (risos)... A família da minha mãe é uma família que, realmente, foi criada um pouco enquadrada nesse mundo muito sério e muito… Como posso dizer? Eu acho que…
P/1 ‐ Puritano.
R – É, eu acho que com tudo muito rígido e estabelecido. Na casa da minha mãe foram cinco filhos, sendo quatro mulheres e um homem, que era o caçula. Eu acho que todas essas… Minha mãe fala muito isso e minha avó fala muito também que, realmente, as mulheres tinham muito mais regras para seguir, socialmente, e em todos os sentidos. Então, eu acho que nessa casa com muitas mulheres, era mais regrado ainda, porque havia, realmente, uma necessidade de pôr ordem. Minha mãe foi a única que chutou o balde e ficou grávida do nada, casou de barriga e não sei o quê. Então, eu acho interessante, porque quando eu olho para trás, a sensação que tenho é de que minha mãe era muito mais louca e meu pai era muito mais sério, e acho que eles se encontraram nesse momento da vida deles. Os anos foram passando, minha mãe foi ficando muito mais careta e meu pai, hoje em dia, é muito mais louco. Por isso que acho que minha mãe não deu muito conta dele, porque quando eu vejo foto, meu pai era mais… Parecia mais certinho, digamos assim. Hoje em dia... Agora que ele está com… Ele vai fazer 60 anos daqui a pouco. Ele aquietou um pouco o facho, mas até poucos anos meu pai saía de casa de saia todos os dias de manhã, pegava um lápis e desenhava um bigode como se fosse o Dali. Tatuou os dedos, saía de cartola e tudo. Então ele, realmente, se tornou um artista 24 horas, coisa que ele não fazia na época da minha mãe, é isso que estou querendo dizer (risos). Foi engraçado, porque minha mãe, quando tinha os seus 20 e poucos anos, estava raspando cabelo com meu pai. Hoje em dia, ela é toda certinha e se casou de novo, com o Zé Guilherme, que também é um cara super certinho. E meu pai, saindo de casa de saia, cartola e rabiscando o rosto.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram? Eles já contaram essa história para você?
R – Eles se conheceram… Ah, tem um caso de um amigo de não sei quem que apresentou numa festinha, mas não é um caso muito emocionante, não. Eles dizem que se apaixonaram fulminantemente e, realmente, foi um fogo mesmo, mas o encontro deles não teve nada de especial, até onde eu saiba.
P/1 ‐ Agora, quais são as suas primeiras lembranças que você pode falar, que você lembre assim…
R – Desse âmbito familiar? Do que você está falando?
P/1 – Não, das suas primeiras lembranças mesmo enquanto criança. O que você legenda como a primeira coisa que você lembra da sua vida?
R – Nossa, difícil essa pergunta. Bom, as primeiras lembranças que eu tenho... Que difícil essa pergunta. Eu tenho lembranças muito difusas. É engraçado, eu tenho muitas lembranças mesmo da escola onde eu estudei, quando era criança. Minha mãe me colocou lá e eu devia ter um ano ou um ano e meio, foi bem cedinho. Era O Instituto da Criança, que é uma escola muito pertinho da casa onde eu morei até os meus 20 e poucos anos, ou mais até. Eu amava aquela escola, amava, amava, amava, era um lugar que fazia muito sentido na minha cabeça e foi muito importante na minha infância, tanto que quando… A escola só ia até a quarta série e nós fizemos um abaixo-assinado para eles criarem a quinta, mas claro que eles não fariam isso. Eu fui obrigado a sair de lá e fui para o colégio Loyola, que é da Rede Jesuíta e eu odiei quando entrei lá, achei a pior coisa do mundo, tanto que fiz questão de tomar bomba na primeira… Eu entrei e tomei bomba. Eu me relatava, sabe? Enfim, pulei 11 anos. Eu tenho muitas memórias dessa escola e tenho muita memória também… Engraçado, acho que eu fui uma criança muito solitária. Tem um caso muito engraçado, que um tio meu sempre… Ele já morreu faz alguns anos, mas ele sempre zoava a minha mãe por causa disso. Teve uma vez que alguém ligou para casa, eu era muito criança - deveria ter uns seis, sete anos -, atendi o telefone e a pessoa, do outro lado, não interessa quem seja, perguntou: "Oi, de onde fala?" Eu falei: "É da casa da Aparecida". E Aparecida era o nome da empregada. Como o meu pai e minha mãe se divorciaram quando eu tinha três anos, eu não tenho memória dos dois juntos. A diferença de idade de mim para o meu irmão é de seis anos, então, quando eu tinha cinco, meu irmão tinha onze, o que faz muita diferença nessa época. Então eu ficava muito por minha conta mesmo e a Aparecida ficava… Era naquela época em que era muito comum as empregadas dormirem em casa, então, ela era minha super companheira. Nessa época, minha mãe tinha ainda a fábrica de roupa infantil e tinha um costume assim... Ela sempre foi de dormir muito tarde e acordar muito tarde, sempre foi mais noturna. Ela ia trabalhar ao meio-dia e chegava em casa às vezes 10, 11 horas da noite e eu já estava dormindo; então, eu morava na casa da Aparecida. Eu lembro que eu era completamente aficionado com lego, eu tenho muita memória desse meu mundo, das coisas que eu ficava construindo na minha cabeça, e lembro que tenho até um certo trauma, porque eu sofri muito bullying do meu próprio irmão. Ele virava para mim e falava sempre assim: "Você não tem amigos, você tem que ter amigos. Você vai para a escola mas nunca vai para a casa de ninguém e nunca traz ninguém para cá". E eu ficava com muita raiva quando ele falava isso, porque eu me sentia cobrado por algo que eu não tinha vontade de fazer. Eu sempre tive muito contato com os meus filhos , [??] sempre fui conectado a eles, não sei se eu me sentia à vontade. Eu, realmente, só fui começar a ter amigos e construir relações de amizade sem ser com a família, quando eu tinha uns 12 anos. Até os 12 anos eu fui uma criança realmente muito solitária. Pode falar.
P/1 – Como é que era essa escola, esse Instituto?
R – Nossa, essa escola é maravilhosa, tanto que meu irmão tem uma filha, a Gabriela, que tem quatro e vai fazer cinco anos agora, e desde que ela nasceu eu comecei a falar com ele: "Pelo amor de Deus, você tem que colocá-la lá". Meu irmão não estudou lá, só eu estudei, então eu tenho essa memória. Nem meu irmão e nem minha ex-cunhada estudaram lá. Claro, é uma decisão que cabe aos pais, mas eu insisti muito com eles, eu falava: "Vocês têm que colocar ela lá, porque tenho certeza de que vai ser muito bom para a vida dela e para a pessoa que ela vai se tornar". Porque é uma escola incrível, eles têm um terreno muito grande, muito arborizado, que, na nossa visão de criança, falávamos que eram florestas, nós realmente dávamos nome, parecia um mini mundo mesmo, com tudo que você pudesse imaginar. Porém, era uma escola super simples, claro, uma escola particular, se alguma burguesia embutida nessa história, mas zero afetações. Você via os meninos indo embora completamente imundos de lama. Isso que eu achava o máximo: era uma escola em que a gente ficava super solto. Tinha muito bicho, uns cabritos que ficavam andando pela escola. Acho que hoje em dia isso parece mais óbvio, mas naquela época não era. Naquela época, era muito engraçado. A gente ficava na lama com os bichos, tinha horta, aula de Artes todo dia… Então, é uma escola que acho que foi super importante e que acho que já fazia, intuitivamente, um jeito de ensinar que hoje eu vejo que a gente tem mais uma elaboração em cima disso, mas que, na época, eles já faziam de uma forma extremamente espontânea. Fico muito feliz da minha sobrinha estudar lá, porque eu vejo o tanto que isso é importante. Você viu, tanto que quando você perguntou qual a minha primeira memória… Eu tenho muita memória da escola, mas assim... Muita mesmo.
P/1 – Mas de quê? De algum... Tipo que aconteceu com você, de como era…
R – Ah, de tanta coisa. Eu lembro que… Eu tenho muita memória dessa parte meio floresta e de coisas de Arte. Bom, eu não falei ainda que eu sou arquiteto, mas eu realmente comecei a desenvolver dentro da escola esse gosto. Outra coisa, eu acho que também era uma ambiente que… Claro que eu sofria algum bullying por ser gay, ainda lá no Instituto da Criança. Mas eu lembro que depois que eu fui para o Instituto Loyola, a coisa era tão terrível, tão massacrante e tão pesada, que eu acho que hoje em dia é impossível que a minha memória não seja enviesada pela comparação. É quase como se você… Você lembra de dois momentos muito antagônicos que você teve na sua vida e um foi tão melhor que o outro que eu acho que aquilo ali, naturalmente, se torna uma memória muito afetiva. Eu também não sei te dizer até que ponto eu tenho uma memória seletiva e que me protege um pouco. Então eu tenho mais memórias dessa época em que eu conseguia me ver ainda como criança livre, verdadeiro e solto, do que do momento que vem depois, que eu sinto que era um momento onde eu me reprimi de forma absurda e onde era muito pesado para mim. Então, não sei, quando você pergunta de infância, às vezes eu acho até que posso ter anulado um pouco uma parte que me faz mal de lembrar.
P/1 – Você ficou, então, de que ano até que ano, mais ou menos?
R – Até os dez anos de idade. Depois, eu escolhi ir para o Loyola, porque minha família inteira estudou lá e eu achava bonito estudar na mesma escola que todo mundo tinha estudado.
P/1 – No Instituto, você tinha professores que você lembra que você gostava ou alguma matéria já?
R – Ah, não, eu não era muito… Não é essa a memória que eu tenho, entendeu? Lembro de alguns professores, lembro de matérias, mas, por exemplo, eu fui o último aluno da turma a aprender a ler. Eu lembro que, na época, a professora da escola ficou desesperada, porque eu não lia de jeito nenhum. Eles tiveram que chamar minha mãe lá algumas vezes para ver o que podia fazer, porque eu não lia. Eu acho muito engraçado, porque não lembro disso, minha mãe que me conta desse trem de eu não ler, e hoje em dia eu sou completamente obsessivo com essa coisa de escrita. Quando eu entrei no Loyola, que no começo eu não estudava, estava meio de saco cheio e fazendo birra, eu ia muito melhor em Português do que os meninos que estavam passando de ano. É engraçado isso, não é? Hoje em dia eu tenho fama, entre os meu amigos, de ser o chato que fica corrigindo todo mundo. Por que estou contando isso? Porque acho muito engraçado pensar que, num primeiro momento, eu fui a última pessoa a aprender a ler numa turma, de sei lá, 30 crianças. E o que isso interessa? Azar, não sei, eu fico pensando muito sobre isso. Acho interessante observar que hoje, em 2019, a gente vê, finalmente, muita mudança nessa abordagem da educação infantil, porque acho que a gente acaba gerando uma frustração nas crianças por tentar impor a mesma…
P/1 – Ritmo.
R – … É, o mesmo ritmo para todo mundo. Às vezes isso tem um impacto mil vezes mais negativo do que a vantagem que o sistema busca. Então, acho que era isso. Eu acho que não sabia se era aula de Matemática ou de outra coisa. Eu estava tão embebido naquilo, que estava muito no meu ritmo. Depois dos dez anos, que eu acho que a vida me jogou um balde de água fria, onde eu fiquei realmente… Não sei, uma coisa que eu achava muito legal no Instituto da Criança é que era uma professora só. Até os meus dez anos, era uma. De repente, eu entrei no Loyola e eram dez professoras e você tinha que mudar de sala a toda hora, então, era tudo muito parecendo uma fábrica, sabe? Aquilo me incomodou profundamente.
P/1 – Você se lembra do seu primeiro dia lá?
R – Ah, eu tenho flashes. Eu lembro sempre de estar com muito medo no primeiro dia de aula e odiando muito ter que ir para lá.
P/1 – Você morava onde nessa época?
R – Morei até os meus 25 ou 26 anos no Santa Lúcia, pertinho do Instituto da Criança. Depois, quando eu fui para o Loyola, foi quando comecei a andar de ônibus e essa era a parte que eu mais amava. Eu adorava saber que podia sair de casa a hora que eu quisesse, e se eu agradasse, era culpa minha, eu amava isso. Depois, isso foi ter bastante significado na minha carreira, porque quando eu me formei na escola de arquitetura, eu fiz um trabalho sobre mobilidade urbana, um trabalho meio anti automóvel particular. É isso, eu gostava mais do ônibus do que da escola (risos).
P/1 – Como é que era esse trajeto?
R – Ah, era um trajeto pequeno. Na época, eu achava que estava indo para o outro lado do planeta, porque eu tive uma infância muito no bairro, mas é muito engraçado lembrar dessas coisas. Hoje em dia, se eu for ver, eu ficava dez minutos no ônibus, sabe? Porém, era legal, eu tinha uma amiga que morava no meio do caminho. A gente sabia direitinho a hora que o ônibus passava, para pegar o mesmo, para poder ir junto. Ah, mas não sei, eu tenho tantas memórias traumáticas desse período de Loyola, de bullying, que te juro que parece que eu apago algumas coisas na minha mente, você acredita?
P/1 – Acredito. Você falou de você saber ser gay desde muito pequeno, é isso? Como é que era isso?
R – Eu lembro que eu sabia disso desde muito pequeno. Eu não vou saber te falar: "Ah, foi com seis anos e não sei quantos meses". Porque não sei, mas, na primeira infância eu já sabia. Não, é claro que eu não posso te falar: "Eu já sabia que era gay". Mas já percebia que eu olhava para os caras, que tinha alguma coisa estranha. Acho que nessa descoberta da sexualidade, que começa ainda na infância, você vai sentindo algumas coisas estranhas. Eu já falava: "Ih, gente, aqui tem coisa". Mas, claro que… Eu não sei como é que é hoje, eu gosto muito de conversar com quem trabalha… Outro dia, eu estava conversando com a mãe de uma amiga minha, que é diretora do Pitágoras, e ela falou que hoje em dia, os gays na escola são os mais populares, famosos, legais e que você tem que ser do grupo dos gays, porque é a coisa mais legal para se fazer. Eu fico curiosíssimo para saber como é que é isso, porque na minha época, era uma coisa, um tabu, o pessoal não tinha dó mesmo para zoar. Eu me recriminei, me segurei, passei por todas as fases clássicas. Primeiro, você tenta fingir que não é. Depois, você tenta ser hétero de fato. Depois, você tenta isso. Fui tentando tudo que eu pude, mas o ambiente era tão opressor que quando eu passei no vestibular para Arquitetura, na UFMG, antes das aulas começarem, eu beijei um homem pela primeira vez, que era um veterano lá do curso, o Mário, que se tornou meu primeiro namorado. Eu lembro que achei isso tão emblemático. Entrar na UFMG foi tão maravilhoso na minha vida, eu tenho um carinho e uma memória realmente… Eu não sei te descrever a sensação de liberdade e alegria quando eu pisei na escola de Arquitetura, foi tipo uma das coisas mais… Sabe, alívio? Eu quase descansei na hora em que eu cheguei naquele lugar. É muito incrível esse poder que a comunidade tem na nossa vida mesmo. A coisa da gente não conseguir se espelhar em ninguém, da gente não conseguir se abrir, não conseguir ser a gente mesmo, é uma coisa muito opressora mesmo. Então, na hora em que eu entrei na UFMG foi uma coisa energética, parece que já está impregnado nas paredes daquele lugar ali. Eu falei: "Gente, é isso, estava aqui o tempo todo". Eu me libertei muito rápido, mas foi assim, como estou te falando, foi questão de uma semana e eu já tinha resolvido tudo na minha cabeça e já estava beijando homem. Foi muito absurdo e minha vida mudou completamente, eu sinto que, finalmente, virei eu. É como se eu tivesse nascido ali, em 2008, porque a gente… Eu não sei. Ah, engraçado, acho que só quem realmente passou por um período de auto negação muito grande sabe o que é isso. De você sentir, de repente, que pela primeira vez na vida você pode parar de se segurar.
P/1 – Vou perguntar um pouco sobre isso então. Qualquer coisa, você…
R – Não, tranquilo.
P/1 – Vamos voltar um pouco para o Loyola ainda, antes de voltar… Você falou dessas fases. Quais são mesmo essas fases que você falou? A negação…
R – Ah, acho que na primeira infância, enquanto eu ainda estava no Instituto, foi mais uma fase de descoberta, e aquela coisa de você ainda estar tentando entender, mas sem essa pressão externa. Acho também que quando a criança é mais nova, é muito desumano você já ficar tentando pegar um menino de seis anos e falar: "É viado". Às vezes, um outro menino de seis anos vai fazer isso, mas você sente que é muito mais fluido, ainda está naquele registro de: "Ah, é uma criança". Depois, quando eu fui para o Loyola, foi quando a coisa já estava mais clara para mim e, ao mesmo tempo, onde já teve uma pressão também mais forte, de fora. É muito engraçado porque quando as pessoas me perguntam: "Ah, você gostou de estudar no Loyola?". A minha resposta: "Sim, porque eu consegui passar no vestibular da UFMG de primeira". E eu nem sei se foi graças ou culpa do Loyola eu ter passado no vestibular, mas olha que engraçado: o que me agrada de pensar que eu estudei lá, foi o que aconteceu depois (risos). É o que eu fico pensando, porque de fato, todo mundo fica falando: "É uma excelente escola". E eu, realmente, acho que os jesuítas são bons educadores. Agora, eu gostaria muito de saber como é que é hoje, porque se você for ver a filosofia de Inácio de Loyola, é muito incrível. Eles educam a gente muito nesse sentido, desse pensamento Inaciano da compaixão, do perdão… Eu não lembro detalhes sórdidos, mas a história de Inácio de Loyola é que ele era um cara super bonachão, meio mulherengo, bebia para caramba e fazia muita festança. Um dia, ele teve um acidente e parece que ali no leito do hospital, ele conheceu Deus. Não tenho nem linguajar para contar esse caso, mas eles têm metáforas sobre isso, sobre o fato de você poder reescrever sua história, encontra Deus, de você poder mudar seu caminho. A compaixão, o perdão. E eu fico pensando: "Gente, cadê isso aqui na prática? Cadê Deus, os professores ou os coordenadores? Sei lá". Você entende o que eu estou dizendo? Eu senti um descolamento muito grande entre aquelas histórias lindas e maravilhosas e o que acontecia de fato. Não sei como é que é hoje, mas é isso.
P/1 – E você acha que tinha outros meninos e meninas que eram gays nessa época?
R – A maioria é meu amigo hoje em dia.
P/1 – Você conseguia reconhecer?
R – É muito engraçado isso. A gente conversa muito sobre isso. Meu melhor amigo é de lá do Layola, o Daniel. Nós tínhamos um grupo de três amigos homens e várias meninas. Típico. Então éramos eu, Daniel e Breno, mais algumas amigas.
P/1 – O que é típico?
R – Ah, eu vejo, reparo até entre os outros gays, que eu lembro e conheço, que, geralmente, acabam se encontrando em grupos de mulheres. Não sei te explicar, nunca parei para ler ou refletir muito mais do que dois minutos sobre isso, mas é uma coisa que acho que é bem normal. Os homens extremamente preconceituosos e extremamente desagradáveis… Porque era desagradável! De repente, eles vão lá e as mulheres são extremamente abertas. Não é à toa que, hoje em dia, as mulheres estão mandando no mundo. Porque elas são mais evoluídas que a gente mesmo, não tenho a menor dúvida disso. Eu busco cada vez mais procurar o feminino dentro de mim, porque pensa o tanto que as mulheres são maravilhosas e elas eram totalmente sem preconceitos, muito mais humanistas, muito mais agradáveis; não sei, para mim era óbvio que eu tinha que estar entre as mulheres. Os dois caras que eram meus amigos também, nessa época, não à toa também saíram do armário, mas todos nós só saímos do armário depois da Faculdade. O Breno, inclusive, demorou uns dois ou três anos depois que a gente foi para a Faculdade, para você ter uma ideia. Eu acho que, na verdade, às vezes a gente para para pensar: "Quantos viados tinha com a gente lá no Loyola, na nossa época?" E a gente vai listando. Cem por cento só saíram do armário depois da escola. Inclusive agora tem até um cara que estudou com a gente e se tornou mulher, o que eu acho maravilhoso, porque ninguém imaginava. É legal ver como o mundo está, finalmente, evoluindo mesmo. Aquele cara ali era alguém que todo mundo tinha certeza que era hétero, banda, sei lá, acho que ele tocava bateria e não sei o quê… Agora, tem uns seis meses que ele virou mulher, postou um textão no Facebook e: "Pronto, agora sou mulher". Maravilhoso, não é? É legal ver como essas figuras estavam todas lá, entre nós. Olha que louco isso. Acho que eram uns dez gays, umas seis lésbicas e mais uma pessoa que se tornaria trans; e no entanto, um ambiente totalmente repressivo.
P/1 – Vocês viraram um grupo?
R – Não, o grupo somos só nós três - eu, Daniel e Breno - mas a gente sabe das outras galeras, sabe que estão por aí.
P/1 – E como foi esse negócio com o Mário? Como foi esse dia?
R – Ah, foi muito engraçado. Era época de Orkut e eu não sei se você lembra que tinha a história das comunidades lá. Eu lembro que na época do ensino médio e do vestibular, eu consultava muito as comunidades da Arquitetura - UFMG no Orkut, para eu poder… Ah, enfim, eu já queria ir entendendo como era a história lá, como é que eram as pessoas, os papos, os assuntos, os programas… Existia uma comunidade que se chamava "Arquitetura UFMG", e depois tinham subcomunidades das turmas. Então, tinha "Arquitetura UFMG 2007/1", "2007/2". Eu não sei por que, na época - eu tinha 18 ou 19 anos - eu cismei que queria ser o fundador da comunidade da minha turma. Só que... Eu acho que já tinha feito o vestibular, mas estava longe do resultado sair ainda. Eu lembro que o Orkut dava muito uns defeitos, às vezes você mesmo criava uma comunidade, jogava o nome certinho dela na busca e ele não achava, as coisas demoravam para anexar, dava um "sorry, no donuts for you", dava umas coisas engraçadas. Eu percebi que sempre que você criava uma comunidade, ela demorava muito tempo para ser indexada pela busca. Então eu falei: "Se eu criar uma comunidade antes do resultado do vestibular sair, eu não vou chamar ninguém para ela. Se o resultado sair e eu tiver passado, eu divulgo, o pessoal da turma entra aqui e eu vou ficar sendo o fundador dela". Por que... Não é? Não faz diferença nenhuma na vida (risos). Eu fiz isso e um veterano descobriu a comunidade, encontrou lá, não sei como e fez um post na comunidade, gigante: "Arquitetura UFMG". Eu lembro direitinho que o título do post dele era: "Já saiu o resultado do vestibular ou temos um pré-calouro muito confiante?" E aí, Nossa, eu sofri muito bullying, porque ele colocou minha foto, o perfil… O pessoal ficou me zoando muito porque eu criei uma comunidade e olha o tanto que eu fui audacioso: o nome da comunidade era "Arquitetura UFMG 2008/1". No vestibular, você entrava ou para o primeiro ou para o segundo semestre, e eu ainda coloquei como se eu fosse passar para o primeiro. Pronto, quase morri de medo de não passar para esse vestibular, porque eu teria virado uma lenda. Eu passei, graças a Deus, e ainda foi no primeiro semestre, você acredita? Então, deu certo (risos). Mas nessa história, o Mário era um dos caras mais ativos ali nas piadas, ele sempre foi muito engraçado. O Mário ficava lá me zoando e, em algum momento, a gente se adicionou no MSN, conversa vai, conversa vem, conversa vai, conversa vem, a gente se conheceu na vida real e o resto é história. Olha, que legal, eu nem tinha passado no vestibular ainda e a UFMG já estava sendo maravilhosa comigo. A galera fazia bullying mas, ao mesmo tempo, era engraçado, porque eu estava… Para mim, era tão bom sofrer bullying por uma coisa que não era: "Você é gay". Você entende o que estou dizendo? Claro que eu fiquei em pânico, tipo: "Ai, eu sou muito retardado de ter criado essa comunidade, mas azar, me zoem por isso mesmo". Até o bullying que eu sofri era melhor (risos).
P/1 – Como é que foram esses encontros.. Esse encontro com o Mário?
R – Ai, Nossa, difícil. Nossa Senhora, uma tremedeira sem fim. É muito engraçado, eu lembro direitinho da sensação de auto preconceito, lembro direitinho de eu estar com muito preconceito de estar fazendo aquilo, mas, ao mesmo tempo, muita vontade e muita curiosidade. É muito louco. Por exemplo, isso é uma coisa que eu imagino que os jovens de hoje em dia sintam menos, essa coisa de: "Quero muito fazer, mas isso é errado". Não sei. Por outro lado, acho que deixa as coisas um pouquinho mais divertidas também, tudo pode ter um lado bom.
P/1 – Vocês se viram onde?
R – Eu não lembro direito se o primeiro encontro… A gente ficou conversando online, mas acho que o primeiro encontro presencial foi na própria escola. No primeiro dia de aula eles fazem uma festinha lá dentro mesmo, com muita Catuaba, e acho que foi nesse dia. Minha memória é péssima, eu acho que sou muito ruim para contar caso antigo. Eu lembro mais do sentido das coisas e da sensação do que dos detalhes práticos assim, eu realmente não lembro (risos).
P/1 – Tudo bem. Você entrou lá na UFMG…
R – Isso.
P/1 – Onde que era e como que era esse Campus?
R – Ah, maravilhoso, porque a escola de Arquitetura da UFMG fica no meio da Savassi, que é um bairro muito emblemático aqui de Belo Horizonte. Nessa época, a Savassi era uma importante zona boêmia e era, sobretudo, a zona gay da cidade. Então, era juntar a fome com a vontade de comer. E era maravilhoso, a gente viveu anos áureos de Savassi, era muito maravilhoso. Todos os botecos que a gente frequentava, as boates, Nossa, era muito legal. Era muito bom a escola estar ali a dois quarteirões do boteco, sabe? Eu gostava muito disso, porque o curso é Arquitetura e Urbanismo e a minha opinião particular é de que o Campus é uma ausência de urbanidade (o Campus que tem lá na Pampulha). Ele tem alguma urbanidade, mas é uma urbanidade estranha, uma urbanidade modernista, mais baseada no carro, nessa coisa das grandes distâncias, dos espaços vazios muito grandes, que pressupõem muito controle. Então, se você for pensar a arquitetura dos Campus, geralmente ela existe para você poder reprimir a organização estudantil. Eu achava maravilhoso que a escola de Arquitetura não estivesse ali, que ela estivesse no meio da cidade, num lugar super denso. Eu lembro que tinha uma sala de aula que a vizinha tinha um papagaio e era maravilhoso. A gente tendo aula de História da Arte e o papagaio não parava de falar um segundo. Essas coisas que vão compondo uma imagem de uma... Não sei… A escola de Arquitetura foi uma coisa realmente muito importante. Eu fico brincando que acho que todo mundo tinha que fazer aquele curso. O primeiro ano é um ano em que eles colocam a gente para fazer muita experimentação, muita coisa criativa mesmo. O primeiro professor, da primeira disciplina, no começo da Faculdade, eu lembro direitinho que na primeira aula ele disse: "Agora, vocês vão construir a sua sala de aula". Era um espaço vazio na escola, tipo um galpão velho, meio abandonado, cheio de tralha e a gente tinha que se auto organizar para poder, tipo, construir a sala de aula. Eu lembro de umas coisas muito interessantes. De fato, a sala de aula que a gente montou a gente usou até o fim do semestre, do jeitinho que ela era.
P/1 – Você estava falando da UFMG. Agora falou da localização dela, da Savassi…
R – Sim.
P/1 – E uma coisa que fiquei curioso de perguntar é: o que você ouvia nessa época?
R – De música?
P/1 – É. Você saía para ouvir o quê?
R – Nossa, essa era aquela época da música indie. Eu lembro que foi uma coisa que me fisgou muito. Era muito legal, porque tinha muitas festas indie na Savassi e tinha um lugar incrível também, que era Yo-Yo, que era uma mercearia japonesa, só que não era um negócio… Não eram japoneses por trás. Acho que era um cara que, enfim, se inspirou nessa história da mercearia japonesa. Você podia ir lá e comprar várias daquelas coisas para cozinhar e tal, mas eu acho que o principal foco da coisa eram as mesinhas na frente para tomar cerveja; e sempre tinha muito DJ na calçada. Eu fiquei amigo dos DJs e fui entrando muito nesse mundo das festas indie. Depois, também, veio muito - sobretudo no mundo gay - uma fase de festa pop. Eu lembro que tinha muito esse fenômeno e é engraçado porque na época eu adorava ir para essas festas de música pop, das divas, as Britney Spears da vida. Hoje em dia, eu não consigo nem ouvir mais de duas, engraçado.
P/1 – É.
R – Mas era isso: indie e pop, ou indie-pop, talvez, não sei nem se existe esse gênero (risos).
P/1 – Ia te perguntar uma coisa, voltando um pouquinho: por que você pensou em Arquitetura, Lucas?
R – Nossa, na verdade eu não sei explicar muito bem o por que, mas desde que eu era muito criança eu já falava que queria ser arquiteto, sempre. Eu até tenho uma tia - a irmã da minha mãe - que é arquiteta. Mas também não sei até que ponto foi ela quem me inspirou. Eu era completamente aficionado por essa coisa de construir cabaninha, tinha a coisa do lego e cabaninha também. Eu tinha vários designs de cabaninha, eu combinava cadeiras com umas toalhas de baralho, vassoura, Nossa… Eu sabia fazer vários tipos. Eu inventava, ficava investigando e recombinando as coisas. Eu lembro que minha avó tinha um sítio em Lagoa Santa, que é uma cidade perto do aeroporto aqui, e era muito engraçado: a gente ia para lá sempre sexta-feira à noite. Quando chegava, sexta-feira à noite, eu já queria fazer cabaninha para sábado de manhã ela já estar pronta. Então, eu sempre gostei muito dessa coisa de construir coisas. Parece super clichê isso que estou falando, mas é superverdade. Sempre que tinha obra em algum lugar: "Ah vai reformar o banheiro lá de casa". Ou: "Está reformando a portaria do prédio". Sei lá, eu ficava horas no meio dos pedreiros. Eu queria saber tudo, oferecia ajuda para misturar o cimento e eu amava cheiro de obra. Depois, quando eu já estava um pouquinho mais velho, tinha muita mania de redesenhar planta de folder imobiliário. Eu pegava os folders, ia na papelaria… Eu sempre ia na papelaria também, adorava, ia todo dia. Eu colocava um papel manteiga e, na minha cabeça, é claro, eu melhorava as plantas dos prédios, consertava as plantas, sabe? Depois, eu fui me profissionalizando. Eu sentava com colegas da escola e falava: " Fale-me como é a casa dos seus sonhos". Eu anotava como se fosse uma entrevista de cliente mesmo, ia lá e desenhava a casa para a pessoa. Eu ganhei um computador e criei no Paintbrush um arquivo, onde eu desenhei, como se fosse minha biblioteca, então eu tinha o sofá, cadeira, as portas com todas as dimensões no Paintbrush. Aí, eu comecei a desenhar no computador, ficava com esse arquivo aberto e: "Ah, vou fazer o layout da sala". Eu já pegava o sofá e colava. É até engraçado, porque eu não sabia como o arquiteto trabalhava no computador, mas era justamente assim, só que com o Autocad. Assim... Eu tinha o meu próprio Autocad e mostrei para os meus colegas de Faculdade. Quando a gente estava no primeiro ou no segundo período, eu achei esse arquivo de Paintbrush e mostrei para eles. Eles morriam de rir, porque eu fiz um puff, só que eu tinha escrito "pof" e eles ficavam me chamando de "pof" o tempo inteiro, por causa do meu arquivo de Paintbrush com meus móveis. Foi isso. Quando chegou na hora de dividir o vestibular, minha mãe foi extremamente implicante com a minha decisão, ela não queria que eu fizesse Arquitetura de jeito nenhum. Tanto ela, quanto meu irmão são advogados e ela ficava tentando me convencer, de todas as formas possíveis, que eu devia fazer Direito, porque é uma profissão que você tem vários caminhos e várias possibilidades. Eu lembro direitinho do discurso dela. Meu irmão falava que eu ia virar "viado" se eu fosse para a escola de Arquitetura. Ele acertou, não é? (Risos). Ele falava: "Não, Arquitetura só tem mulher e viado. Você quer ir para esse lugar?" Ficava falando assim comigo. Eu, por dentro, ficava: "Demais! Que paraíso! Só tem mulher e viado". Mas… Minha mãe tentou me dissuadir de fazer Arquitetura até a última hora, e tinha hora que ela jogava pesado, ela falava: "Você vai ter que vender o almoço para comprar o jantar". Falava uns trens assim, que Arquitetura não ganha dinheiro, que é uma profissão superdesvalorizada, que no Brasil não tem espaço para isso. Na época, eu tentei me abrir para outras coisas, cogitei fazer Engenharia durante um período, eu ia muito nessas coisas vocacionais que tinha… Um dia, eu lembro que um coordenador do Loyola falou uma coisa que me marcou muito: ele falou assim que a gente tem que entender aquilo que a gente tem condição de ser bom e que ser bom em alguma coisa muitas vezes vai, sim, depender do tanto que você tem apreço e interesse legítimo por aquilo que você vai fazer. Eu fiquei pensando muito naquilo e falei: "Não é só uma decisão de "esses são os cursos, esse aqui tem mais emprego, esse aqui ganha melhor, esse aqui não sei o quê". Não é isso só, sou eu fazendo isso. Se eu for advogado, vou odiar tanto, mas tanto, que na melhor das hipóteses, vou ser um advogado mediano e infeliz". Em Arquitetura, realmente, se você for olhar a média salarial do arquitetos, é muito baixa. Mas eu ficava pensando: "Talvez eu tenha muito mais fãs para tentar ser um arquiteto, ainda que num cenário desfavorável do que o contrário, do que estar num cenário bom mas que eu deteste". Eu falei: "Ah, quer saber? Eu vou seguir meu coração mesmo". Por mais que nossas mães tenham muita influência na nossa vida, eu falei: "Ah, quem vai fazer o vestibular sou eu, quem vai fazer a Faculdade sou eu e quem vai trabalhar depois sou eu também". Fui lá e me matriculei em Arquitetura. Mesmo assim ela me convenceu a fazer vestibular para Engenharia Civil na PUC, só que graças a Deus eu passei nos dois e falei com ela: "Passei na UFMG para Arquitetura, tchau". E fui. Foi muito interessante, porque também durante a faculdade, foi um momento em que eu senti que não só consegui ganhar o respeito e admiração da minha família quando eu saí do armário - foi durante a Faculdade ainda -, mas também, não sei por que, em poucos semestres - eu devia estar no terceiro ou quarto período -, minha mãe já tinha se resignado de eu estar ali. Porque, no começo, ela ainda enchia o saco. E aí, ela tranquilizou. Foi bom. Acho que foi um momento em que eu finalmente senti que estava sendo respeitado mesmo.
P/1 – Você contou para ela que era gay, no meio da Faculdade?
R – Foi mais para o final.
P/1 – Mais para o final?
R – É, mas sim, estava lá ainda.
P/1 – Entendi. Você já tinha namorado e tal no começo, então você foi meio que escondendo um pouco da família ainda?
R – Ah, sim. No começo, sim. No começo, a gente morre de medo, Nossa Senhora. Lembro de que eu tinha muito medo do que podia acontecer. Eu sabia que meu pai não estaria nem aí, como eu te falei. Mas minha mãe era uma caixinha de surpresas para mim. Eu lembro que a gente foi ao cinema… Ah, eu não sei, é só jogar lá no Google qual foi o ano de lançamento de Brokeback Mountain. Eu lembro que a gente foi ao cinema, sem saber que filme iríamos ver, a gente foi a priori ao cinema. Lá, a gente viu: "Ah, tem esse Brokeback Mountain aqui e está todo mundo falando desse filme". Eu te juro, eu não fazia ideia de que era um filme de temática gay - e nem ela. Nisso, eu devia ter… Eu estava no Loyola ainda. Na hora em que ela percebeu que os caras estavam se apaixonando um pelo outro e que eles iam se pegar, ela levantou e foi embora. Simplesmente levantou e falou: "Estou indo embora, você vem comigo?". Devia ter meia hora de filme. Eu peguei e falei: "Eu não". Mas, na hora, pensei: "Ai, meu Deus, fui muito audacioso de falar para ela que não iria sair". Ela saiu e falei: "Quer saber? Foda-se, agora vou ficar aqui". Passou uns dez minutos e ela me ligou. "Estou indo e faço questão que você venha comigo". Eu fiquei com medo e fui. Mas isso reverberou na minha cabeça por muitos anos, eu falei: "Se a minha mãe não deu conta de assistir Brokeback Mountain, se ela foi a única pessoa do cinema inteiro que levantou e foi embora… Ela ficou ofendida com uma história fictícia numa tela, como é que vai ser quando for comigo?". Sério mesmo, engraçado demais, eu acho que se não tivesse sido esse episódio em específico, eu teria contado antes, porque aquilo ali era um fantasma na minha cabeça de: "Nossa, ela vai surtar". No entanto, não, mas eu fiz psicanálise por 200 anos. Minha mãe me colocou na psicanálise eu devia ter uns cinco anos de idade, não sei por que. Preciso até conversar sobre isso com ela. Eu acho que era porque ela desconfiava que eu precisaria disso em algum momento da minha vida (risos). Na época em que eu entrei em Arquitetura e que finalmente me libertei para mim mesmo num primeiro tempo, óbvio, eu conversava muito sobre isso com a minha psicanalista e falava com ela: "Quero contar para a minha mãe, preciso acabar com isso". Ela me segurou durante muitos anos, falou: "Não conta, você pode abreviar um processo que precisa acontecer naturalmente". E foi me segurando. Eu agradeço demais a ela por isso, a gente já conversou sobre isso algumas vezes. Porque, de fato, da forma como aconteceu, foi minha mãe quem me procurou, então eu acho que por isso que foi tão bom. Porque quando você decide, finalmente, falar alguma coisa para alguém, quer dizer que você já elaborou aquilo. Então, eu acho que ela elaborou, elaborou, elaborou e já veio me falar fofa, já carinhosa. Talvez se eu tivesse falado um ano ou dois anos antes, eu teria interrompido o processo e poderia ter sido outra sessão de Brokeback Mountain na minha vida.
P/1 – Mas então... Antes de você falar com ela, ela veio falar com você?
R – É, o episódio foi esse, na verdade. A gente teve essa conversa graças a uma procura dela, entendeu?
P/1 – Mas o que ela falou? Como é que ela te chamou?
R – Ai, esse caso, nem sei se quero gravar aqui, porque ele é muito pessoal e envolve uma outra pessoa (risos). Não sei se é legal deixar isso registrado, porque é engraçado, eu contaria para vocês, mas…
P/1 – Porque tem outra pessoa no meio…
R – Tem outra pessoa no meio.
P/1 – Entendi.
R – Mas é muito engraçado (risos).
P/1 – Você conta depois para a gente.
R – Tá, na hora em que a gente for almoçar, eu conto para vocês (risos).
P/1 – Tá bom (risos)!
R – Porque é engraçado mesmo.
P/1 – Mas então, no finalzinho da Faculdade, que você…
R – Foi.
P/1 – A sua família inteira - pai e mãe - ficou sabendo, então?!
R – Eu contei… Essa conversa foi com a minha mãe e ela é tão louca e desesperada, que saiu e contou para a minha família inteira, contou para as minhas tias, contou para o meu pai. Ela mesma saiu contando para o povo. Eu peguei, fui xingá-la e falei: "Ô, que saco, para de sair contando para todo mundo. Agora que eu já te contei, eu vou contar, mas espera". E ela me deu uma resposta tipo: "Eu estou respeitando você e quero que você me respeite também". Pronto, fiquei sem resposta. Porque, de fato, ela tinha sido tão legal comigo, que… Ela falou: "Olha, eu estou aceitando o seu processo e você também aceite o meu". Foi um pouco disso, e eu falei: "Tá bom". Ela mesma que contou para o meu pai, não me deu nem a chance de eu ter a conversa com ele.
P/1 – E com a sua família, como é que foi?
R – Ah, não, minha família é maravilhosa, não posso reclamar. As duas únicas pessoas que não sabem são meu avô e minha avó - os pais da minha mãe. Minha avó é uma pessoa extremamente conservadora e ela não daria conta mesmo.
P/1 – Eles estão vivos até hoje?
R – Sim, só que meu avô tem Alzheimer já tem muito tempo e agora está num estágio em que ele já está bem… Ele fala muito pouco, então, é bem triste. É quase como se ele já não estivesse mais aqui com a gente, mas minha avó não, ela é o oposto. Minha avó tem mais vida do que nós quatro juntos aqui, é impressionante. Ela é uma pessoa de muita opinião, é ariana, é muito firme nas ideias dela e infelizmente, algumas ideias dela são muito antigas, já parou de receber atualizações tem umas décadas já (risos). Mas a gente tem uma relação tão legal... O problema é o seguinte: minha avó tinha um filho gay, que era o quinto e único filho homem. Minha avó talvez não vá poder nunca assistir essa entrevista. Ela nunca conseguiu lidar com isso, então, eu cresci percebendo isso dentro de casa, falando: "Olha só, tem um filho gay e minha avó está fingindo de boba". E foi isso a vida inteira até ele morrer - ele morreu ano passado. Eu lembro de que quando eu tive a conversa derradeira com a minha mãe, ela mesma falou: "Olha, eu acho que a gente não devia contar para a sua avó, porque a gente vê como ela lida com isso a vida inteira com relação ao seu tio, então, a gente já sabe como que a coisa funciona". É engraçado, porque todas as minhas tias, todos os meus primos, todo mundo sabe, isso é notório, mas quando chega na casa da minha avó, é o único lugar que até hoje na minha vida, eu preciso meio que ficar fingindo ser outra pessoa, nesse aspecto.
P/1 – Como foi quando você, vamos dizer assim, "saiu do armário", no começo da Faculdade?
R – Foi.
P/1 – Como é que foram, então, as relações que você teve? Tem alguma que você queira contar? Pode ou não pode contar uma que lhe marcou disso?
R – É, eu não sei se é o caso de falar, especificamente, sobre as relações, mas… É que eu fico com medo de expor as pessoas, sei lá, fico pensando: o cara vai lá, entra no museudapessoa.com e pensa: "Estão falando de mim".
P/1 – Não precisa citar nome.
R – Claro, claro, é verdade. Não, mas assim... Eu sempre fui muito namoradeiro. Quando fico solteiro, rapidinho eu já estou amando em outra história. Claro, já fiquei períodos de dois anos solteiro? Claro. Mas, geralmente, estou namorando. Não sei, assim... Eu já tive várias histórias muito legais e diferentes entre si. Acho interessante isso, da gente se permitir sempre descobrir coisas novas. Já namorei um espanhol. Espanhol, não, catalão, se não ele me xinga. Foi legal ter tido essa experiência também de namorar uma pessoa de outro país, de outra cultura, outra língua. A gente morou junto na Itália, então, era mais complexo ainda. Porque nós dois éramos gringos na Itália e a gente conversava em italiano (risos). Isso é muito engraçado, porque eu não falava Espanhol, ele não falava Português. A gente morava na Itália, então a gente conversava em Italiano.
P/1 – Você ficou um tempo lá, não é?
R – Sim, eu morei dois anos na Itália, durante a Faculdade. Foi uma fase que também foi extremamente importante na minha vida, me mudou e transformou muito. Foi quando eu voltei de lá que eu comecei a investigar e trabalhar com algumas coisas com as quais eu nunca tinha trabalhado e que hoje me preenchem e me significam muito mais do que eu imaginava que a minha vida seria. Como eu estava dizendo, eu sempre tive a coisa da Arquitetura muito clara para mim. Eu imaginava que sairia da Faculdade, que me tornaria um arquiteto projetista, que ou trabalharia no escritório ou até abriria o meu próprio… Isso era a minha imaginação durante a Faculdade. Só que mal sabia eu, que antes de terminar a Faculdade, eu começaria a empreender. Nunca imaginei que eu pudesse ter essa veia empreendedora, digamos assim. Eu abri, junto com o meu irmão e com a minha mãe, em 2013, o "Guajajaras", que foi um dos primeiros Coworkings aqui em Belo Horizonte. Foi super legal, porque eu ainda estava na Faculdade e a gente tinha aberto esse espaço. Quando eu me formei, o espaço já tinha tomado um vigor maior e eu optei por continuar nesse caminho, eu me formei e não fui trabalhar com Arquitetura.
P/1 – Me diz assim: como é que você foi parar na Itália? Onde você morava lá?
R – Eu sempre tive, desde criança… Desde criança, não, desde adolescente, muita vontade de morar fora, sempre tive uma admiração muito grande pelo exterior, outras línguas, sempre foi uma coisa que eu ficava muito espontaneamente curioso. Meu irmão teve a oportunidade de fazer aquele famoso intercâmbio do ensino médio e foi para a Austrália. Mentira, para a Nova Zelândia. Na época, quando eu estava no ensino médio, a gente passou por um momento financeiro muito apertado e minha mãe falou, "Meu filho, está bom, seu irmão foi, mas você não vai. Porque na época tinha dinheiro, mas hoje não tem". Eu fiquei com aquela cara de cachorro pidão e não fui. Claro, não tem dinheiro, não vai. Eu virei para ela e falei: "Poxa, então, quem sabe se na época da Faculdade já estiver rolando, eu não faço?". Na época, eu até pensei: "Melhor, muito melhor fazer intercâmbio na época de Faculdade do que com 16 anos. Você é muito novo, não tem nem a maioridade ainda". Enfim, me resignei com essa explicação que eu mesmo pus na minha cabeça e, quando começou a Faculdade, eu já mexia meus pauzinhos sempre. Eu ia no Departamento de Relações Internacionais saber como é que era, o que eu tinha que fazer, quais eram os países com os quais a UFMG tinha acordo, eu ficava sempre muito antenado nisso e decidi que queria ir para Londres. Pensei muito pragmaticamente… Londres não, perdão, pensei que queria ir para a Inglaterra. Pensei: "Poxa, falar Inglês é excelente, a Inglaterra é um país legal e tal". Tudo bem, fui. Vi que tinha um convênio para uma cidade chamada Nottingham e fiz a prova de Inglês. Só que a UFMG, naquela bagunça… Fiz a prova de Inglês, passei, só que a prova é antes do edital e quando o edital saiu não tinha mais a Inglaterra. Você entendeu? Eu fiz pensando num edital que sempre teve Inglaterra e, naquele ano, foi o primeiro ano que não teve. Eu perdi um ano, porque não tinha mais e nem tinha Estados Unidos; então a prova de Inglês não ia servir para nada. Eu liguei, falei: "Cadê a Inglaterra? Estava aqui". E a mulher falou: "Ah, a gente tem o direito de atualizar isso aí ao nosso bel-prazer". Eu olhei para a lista e tinha Portugal. Eu falei: "Eu não vou para a Europa para ficar falando a mesma língua". Tinha Espanha, mas era super concorrido, tipo uma vaga só, tinha alguns países na América Latina, mas eu estava muito cismado de ir para a Europa, e tinha Itália, entendeu? Então, não tem nenhuma história muito emocionante. A Itália era o país que tinha e que tinha um número maiorzinho de vagas. E eu falei: "Partiu, estudar Italiano". Estudei um pouco para, no semestre seguinte, já tentar a prova do outro edital. Eu consegui passar, não sei nem como, e fui para Roma. Estudei em Roma durante uns seis ou sete meses, que teria sido a duração completa do intercâmbio, era para eu ter voltado, mas quando estava lá na metade desse primeiro semestre, eu fiquei pensando: "Não, que voltar de jeito nenhum". Tipo assim: "Não quero voltar, quero ficar aqui". E aí, comecei a mexer os meus pauzinhos, fiz um portfólio na época, com um bando de trabalho de Faculdade, juntei meus trabalhos de Faculdade num PDF e comecei a mandar para um monte de escola de Arquitetura na Itália inteira, falando: "Oi, estou aqui e tal, sou brasileiro, estou em tal período e estou buscando uma oportunidade para estágio". Surgiu uma oportunidade lá em Milão, fui fazer a entrevista e achei o arquiteto muito legal. Ele tinha um micro escritório, era tipo, ele, o cara e eu. Eu achei muito legal poder estar muito próximo de quem faz as coisas, eu tinha uma intuição de que não queria ir para um escritório grande, onde eu ia estar ali, subordinado a um processo repetitivo, a uma coisa muito… É muito mais legal trabalhar com alguém pequeno, porque é muito mais diversa a experiência. Eu fui para Milão, fiquei mais uns seis meses lá, trabalhando com esse cara, e foi incrível. Nessa altura do campeonato, eu já estava apaixonado pelo país, pela cultura… Foi dando o meu tempo de voltar para o Brasil, alguém virou para mim e falou: "Você viu que o governo do Brasil lançou um programa que se chama ‘Ciência sem fronteiras’"? Eu fui e me inscrevi no ‘Ciência sem fronteiras’, antes de voltar para o Brasil, e passei. Voltei para o Brasil, fiquei seis meses aqui só, porque eu tinha que fazer um semestre na UFMG para eles não acharem que eu tinha abandonado a Faculdade e fui para o ‘Ciência sem fronteiras’ de novo. Nessa época, eu fiquei bitolado com a Itália e, sei lá, eu estava muito fanático: "Agora é a hora de eu poder morar fora". Eu fui conseguindo juntar essas coisas e foi rolando.
P/1 – Em que ano você foi?
R – 2012, 2013, 2014, porque teve esse intervalo no meio, então…
P/1 – E no ‘Ciência sem fronteiras’ você ficou em que cidade?
R – Fui para Milão de novo. Eu gostei bem mais de Milão do que de Roma.
P/1 – Ficou estudando lá…
R – Sim. Nesse ano, eu fui só estudar. Engraçado isso, eu lembro que quando recebia os meus amigos lá em Milão, eu já falava: "Olha, você vai odiar a cidade". Porque todo mundo acha Milão um saco, ninguém gosta de lá, mas eu gosto. Não sei explicar o porquê, eu me conecto com a cidade num lugar muito difícil de explicar. Eu me sentia mais em casa lá do que em Roma. Eu acho Roma muito grande, muito estranha, Roma não é uma cidade tão legal de se morar, então, não sei, depois de sete meses lá, eu não conseguia me sentir à vontade, e muito pela cultura das pessoas também. O romano é mais espalhafatoso, o milanês já é um cara um pouco mais sério, mais…
P/1 – Comedido?
R – É, talvez. Eles falam também que o milanês é muito fechado. Sabe que eu prefiro estar num lugar de pessoas fechadas, que quando elas se abrem elas se abriram de verdade, do que num lugar em que todo mundo é aberto, mas no final, fica parecendo que todo mundo é falso? Então eu tinha muito essa relação com as duas cidades. Eu preferi me fixar lá em Milão mesmo e foi ótimo, eu tenho um saudosismo muito grande.
P/1 – Enquanto isso, o Coworking Guajajara já estava rolando?
R – Foi, a gente abriu naqueles seis meses em que eu fiquei no Brasil (risos), entre as duas idas para a Itália. Então, foi muito louco porque a gente foi, inaugurou e um mês depois eu já estava voltando para a Itália e meu irmão e minha mãe ficaram cuidando de tudo in loco. E o que podia, eu fazia a distância. De Instagram, de site, de programação, responder e-mail… Tudo o que podia fazer a distância eu fazia e eles cuidando da coisa física mesmo.
P/1 – E quem é que surgiu com essa ideia, de vocês três?
R – Fui eu. Durante o meu primeiro ano na Europa, eu tive a oportunidade de ir para Londres e, um dia, caminhando por Soho, eu vi um Coworking na rua, um Coworking que funcionava dentro de… Como se fosse uma loja. Tinha escrito na vitrine "Coworking" com uma explicação embaixo e eu falei: "Nossa, que legal". Eu nunca tinha ouvido falar na vida, vi aquilo e falei: "Gente, isso é muito legal, é um escritório compartilhado e tal". No dia, devo ter dado um Google para saber mais a respeito, mas pronto, acabou, teria sido só uma curiosidade normal na minha vida. Até que, quando eu voltei para o Brasil, minha mãe, que é advogada, tinha um escritório nesse… Era um conjunto de salas comerciais, ali na rua do Guajajaras, no centro de Belo Horizonte. O escritório era maior do que a necessidade dela e ela me falou: "Olha, estou querendo dar uma enxugada, acho que vou ocupar só uma sala e alugar as outras, mas acho que preciso dar uma reformada, porque as salas estão muito antigas, as janelas estão muito velhas e tal. Queria que você me ajudasse, que me desse uma opinião". Eu fiquei matutando e falei: "Mãe, e se ao invés de você tão somente reformar para melhorar o imóvel para o aluguel, por que a gente não abre um Coworking?". Ela não entendeu, obviamente. Eu expliquei, mostrei na Internet e ela achou muito legal, realmente se interessou pela possibilidade e a gente levou o projeto adiante. Foi muito rápido. Como meu irmão trabalhava com ela e estávamos todos meio juntos já, a gente se tornou sócio e executou a coisa muito rápido. Começou super despretensioso. As pessoas acham que era o super sonho da minha vida, que eu tive uma grande visão… Não, coisa nenhuma, foi realmente uma oportunidade extremamente pragmática, que a gente tão somente resolveu aproveitar de uma forma um pouquinho criativa, no primeiro momento, mas que acabou, depois sim, se desenvolvendo de uma forma bem mais complexa, e aí sim, bem mais inesperada.
P/2 – O que aconteceu depois?
R – Uai, aconteceu que… Tá, a gente inaugurou, eu fui para a Itália, voltei, o Guajajara já estava com um ano de vida e o espaço já estava começando a ficar pequeno, a comunidade já estava grandinha e a gente estava pensando: "Poxa, mais tempo menos tempo a gente não vai caber mais aqui, o que a gente faz?" Eu lembro muito bem que toda hora que eu me fazia essa pergunta, para mim, a resposta não era só aumentar o espaço. Eu sempre falava: "Gente, se é que a gente vai realmente ter o esforço de fazer alguma coisa, eu não acho que é só replicar isso aqui só que um tamanho maior. Isso é pouco, não sei nem se isso me dá tesão, não sei nem se justifica o esforço. Se for só por isso, talvez fique desse jeito". Eu ficava pensando muito, muito, muito nisso e a gente começou a fazer muita pesquisa, pensando de uma forma mais macro. O Coworking nasceu como uma solução ou uma possibilidade para uma nova forma de trabalhar, de uma galera que, pela primeira vez, graças à Internet e a outras formas das empresas se organizarem, com a coisa do freelance ficando cada vez mais representativo e tal… As pessoas falaram: "Bom, agora posso ser mais nômade, estar mais solto. Não preciso montar um espaço para trabalhar". O Coworking entrou como uma solução, que, num primeiro momento, emulava aquilo que as pessoas já tinham na cabeça delas como expectativa de um espaço de trabalho, que é um escritório. Então, o que o Coworking fez? Ele foi o primeiro passo para as pessoas poderem entender uma transição possível, mas eu percebi que a coisa não ia acabar ali e eu falei: "Gente, o que está acontecendo aqui é mais profundo do que só você ter escritórios compartilhados, é maior do que isso, nós estamos falando de uma mudança de comportamento, uma mudança de sociedade mesmo, de economia". Eu comecei a me atentar para o tanto que outros espaços, que não necessariamente emulam a arquitetura de um escritório, já estavam sendo assimilados por muitas pessoas como espaços de trabalho. Esses espaços são, sobretudo, cafés. Hoje em dia, você vai até em Shopping e vê gente trabalhando nas mesas. Eu acho ruim, mas enfim, só para dizer do fenômeno. Eu comecei a ver: "Gente, a gente pode dar um passo de ter algo ainda mais amplo do que somente um escritório compartilhado". E foi aí que a gente começou a pesquisar essa coisa do café. Eu lembrei que tinha visitado, em Paris, uma rede que se chamava "Anti café", o que eu achei genial. O cara já tinha percebido tanto que os cafés estavam sendo utilizados como espaço de trabalho e ele meio que criou o próprio antídoto, mas claro, sendo o antídoto, o seu próprio modelo de negócios. Então, eram cafés os quais você não pagava pelo que você consumia, você pagava pelo tempo que queria passar ali dentro e tudo estava liberado, entendeu? Então, era um espaço, um café onde você não ficaria constrangido de sentar horas com o seu computador, porque ele era feito para isso, onde todas as pessoas ali dentro estavam alinhadas com isso também - um lugar de encontro e onde compartilhar o alimento não é uma decisão econômica, porque afinal de contas, ele está ali para todo mundo. Era tão genial que você podia ser membro desses cafés, o que é o modelo de negócios de um Coworking, então, você não precisava pagar só por hora, ou por diária, você podia pagar uma assinatura mensal para ter acesso irrestrito. Aquilo tinha ficado na minha cabeça e quando a gente foi pensar numa eventual expansão do Guajajaras, eu falei: "Gente, vamos tentar fazer um treco desse aqui no Brasil? "Ninguém nunca fez, será? A cultura… Vai dar certo? Será que o pessoal não vai abusar? Que o pessoal vai entender?" E a gente não conseguia chegar em resposta nenhuma. Muito difícil você tentar antecipar uma conclusão sobre algo que não tem precedente naquela cultura.
P/1 – Tipo seu avô, não é?
R – É (risos). Eu ia falar disso agora. A gente falou: "E se a gente testar? E se a gente prototipar? A gente pega, encontra uma forma de validar isso no mundo real e se der certo, ótimo, quer dizer que a gente pode assumir mais riscos, enfim, investir nisso. Se der errado, a gente vai ter perdido pouco e não vai ter resgatado a marca, etc". E isso juntou com a história da alfaiataria, foi bem na época em que a minha família tinha decidido vender a casa. Eu juntei tudo na minha cabeça, e falei: "Já sei, nós vamos fazer um bem bolado aqui, onde nós vamos celebrar essa casa e celebrar nossa cidade, mas ao mesmo tempo a gente também vai aproveitar para poder prototipar várias ideias que a gente tem para o futuro do Guajajaras". A gente conciliou na mesma casa, Coworking, escola, loja, bar, estúdio de tatuagem, galeria de Arte, enfim, todas essas eram atividades que aconteciam ou de forma perene ou como programações ao longo do tempo que a casa existiu. Foi um projeto que nasceu efêmero, então, nasceu com data para acabar - foram três meses de experiência. Nós chamamos várias pessoas, vários grupos de BH para poder fazer isso junto com a gente, porque, é claro, a gente não dava conta de fazer isso sozinho e a gente entendia que havia uma oportunidade de construir uma comunidade, desde o princípio. Chamamos o pessoal da Perestroika, Quarto Armado, do Dias Estúdio, chamamos todos os designers que vendiam seus produtos na loja, que era uma loja colaborativa… Foi uma experiência incrível, que nos ensinou muito e, mais do que nos ensinou, nos deu coragem para continuar. Na parte dos ensinamentos, uma coisa, por exemplo, que ficou muito clara para a gente é que não basta você misturar vários ingredientes numa mesma casa para que você tenha uma receita gostosa, no final das contas. Pode parecer óbvio olhando agora, mas na época a gente achava: "Vai ter isso, vai ter isso, vai ter isso". Incrível, vai ter um monte de coisa. Não, não é só jogar tudo lá dentro. É: qual é a relação que essas coisas estabelecem entre si? Como é que uma enaltece a outra? Isso foi a principal lição que a gente teve, porque a gente percebeu que o Coworking não se beneficiava e nem ele próprio beneficiava nenhuma outra instância da coisa, então, não bastava ter um Coworking ali que funcionasse de segunda a sexta, das 9 às 18 horas e que tivesse uma comunidade legal, de pessoas que frequentavam. Sendo que de noite era quando começava o happy hour, o bar ficava cheio, ficava um burburinho na calçada, ia ter a inauguração da exposição de uma artista, era o horário que as pessoas iam lá visitar a loja e iam comprar os produtos locais… E o Coworking nem existia mais nesse momento. Querendo ou não, a gente até falou: "Nossa, a gente nasceu como Coworking, está fazendo isso aqui, e o Coworking ficou sendo uma coisa muito insignificante". Foi nesse momento que eu lembrei do "Anti café", em Paris. Falei: "Aqui pode estar uma chave, a gente pode entender o trabalho como algo que possa se diluir por todo o espaço e por todos os momentos, e não como algo setorizado". Eu não sei se vocês já tiveram a oportunidade de ir lá no Guaja, que é a evolução da história, que existe hoje e funciona hoje no bairro Funcionários, na Avenida Afonso Pena com Santa Rita Durão, literalmente ao lado da casa do meu avô. Então, a casa dele foi demolida e o Guaja nasceu ao lado. Para mim, é uma fonte de muito orgulho a gente estar ali, naquele mesmíssimo lugar, só que numa casa para a direita (risos). No Guaja, a gente fez isso: criou uma casa que fica aberta 16 horas por dia, seis dias por semana, onde talvez seja o único Coworking onde você se sente à vontade bebendo e talvez o único bar onde você se sinta à vontade trabalhando. É muito legal. A gente conseguiu aproveitar o protótipo para identificar algo que, se a gente não tivesse feito antes, teria sido um desastre. Só que já um desastre com muito investimento e muito risco, então, foi assim que a gente cresceu de um pequeno espaço de Coworking, no Centro, para uma casa maluca hoje que conjuga um bando de coisas, ao mesmo tempo.
P/1 – É isso que vocês estão fazendo hoje, então…
R – Sim.
P/1 – Você quer fazer mais alguma coisa? Está pensando em algo já ou está bom assim, por enquanto?
R – Ai, não sei. Eu não sei nem se já está bom, e também não sei se vou continuar inventando coisas. É provável que eu continue, pelo que eu já pude perceber. Mas não sei o quê, nem quando. Ano passado, eu e alguns amigos abrimos um segundo espaço, que é a Central, um espaço múltiplo de cultura e gastronomia, no Hipercentro de Belo Horizonte, e que é um espaço onde - pelo menos no meu ponto de vista pessoal -, a gente pode trabalhar outras plataformas e outras histórias diferentes do que a gente trabalha no Guaja. Claro que existe alguma intersecção entre os dois espaços, mas eu diria que o Guaja existe para emoldurar as pessoas num sentido mais profissional, e a Central faz isso mais no sentido cultural e do entretenimento. É como se o Guaja fosse trabalho e a Central fosse lazer, fazendo uma redução muito brusca e muito tosca. Mas é isso. As pessoas talvez vão mais ao Guaja para desenvolver o lado profissional, e vêm mais para a Central para fruírem coisas, seja uma comida gostosa, seja uma música, seja uma festa, enfim.
P/1 – Tem alguma coisa que você queria que a gente perguntasse para você e eu não perguntei?
R – Não, acho que não (risos). Não, a única coisa que… Até só para terminar de responder sua pergunta anterior e para ficar redondo com o resto da entrevista, é que no ano passado eu voltei a trabalhar com Arquitetura, que foi uma coisa muito importante para mim, de eu finalmente ter encontrado uma forma de equilibrar as coisas e não ter me desconectado, de forma definitiva, daquilo que sempre foi meu sonho. Realmente, ano passado, eu consegui... Fiz umas parcerias com alguns amigos da Faculdade e a gente encontrou uma forma super equilibrada e que é muito legal e vantajosa para todo mundo. Eu tenho conseguido fazer muitos projetos assim e estou muito feliz com isso porque, realmente, era meu sonho original e eu ficava frustrado de perceber que talvez eu tivesse deixado ele de lado. Agora eu percebo que talvez eu tenha encontrado um equilíbrio que me dá paz, sabe?
P/1 – Como é que foi contar essa história para a gente hoje?
R – Nossa, foi difícil. Não difícil no sentido negativo, difícil no sentido de que acessar tanta coisa ao mesmo tempo é um processo profundo, que mexe muito com a gente, evoca memórias e emoções que a gente, às vezes, deixa adormecer. Mas foi muito legal tentar colocar isso em perspectiva, eu nunca tinha passado por essa experiência antes, não com essa profundidade. É interessante tentar enxergar a relação entre aspectos que são extremamente familiares e pessoais, e outros que já são mais íntimos, depois profissionais, enfim, achei muito interessante.
P/1 – Obrigado, Lucas.
R – Obrigado a vocês.
Recolher