Projeto Braskem um Novo Lembrar - Compartilhando Experiência entre e a Comunidade e a Organização
Depoimento de Ivani dos Santos
Entrevistado por Isla Nakano e Marcelo Batalha
Mauá, 09/10/2012
Realização: Museu da Pessoa
BKHV20_Ivani dos Santos
Transcrito por Vinícius Rizzato
MW Transcrições
Revisado por Carolina Maria Fossa
P/1 – Dona Ivani, muito obrigada pela senhora conseguir conversar conosco e ter arrumado um tempinho. Sua agenda é corrida. Para deixar registrado agora em vídeo, quero que a senhora fale o seu nome completo, onde e quando a senhora nasceu.
R – Meu nome completo é Ivani dos Santos. Nasci em Sergipe, numa pequena cidade, Malhada dos Bois, mas me criei em Alagoas.
P/1 – E fale qual que é o nome dos seus pais.
R – Miguel e Mariana.
P/1 – E dos avós?
R – Aristide, que é o pai do meu pai, e a minha avó é Eucina.
P/1 – E conta um pouquinho da história da sua família. Como eles foram parar em Alagoas?
R – Os meus avós são alagoanos, mas não me criei muito próximo deles. Não sei falar muitas coisas, porque, no caso, a minha avó ela faleceu quando eu era pequena ainda. Conheci minha avó até uns oito, nove anos e, depois, cada um mudou de lugar. Minha avó faleceu, meu pai foi morar numa cidade vizinha e já não tínhamos muito contato. E foi assim.
P/1 – E fale um pouquinho da sua infância.
R – Bom, a infância foi na roça. A minha e a dos meus irmãos. Trabalhando e ajudando o meu pai. Infância mesmo, no norte, não tivemos, porque tínhamos que ajudar o meu pai. Não tivemos estudo porque não tinha como estudar. Tinha que ir para a roça ajudar. Os meus irmãos mais velhos tinha que enfrentar o batente com o meu pai para ajudar a criar os menores. E foi assim. Infância mesmo eu não tive, só depois dos 16 anos, mas já era mocinha. E com 19 anos, vim pra cá. Então, da infância, não tenho o que falar.
P/1 – Mas tinha umas festas na cidade?
R – Sim. Tinha a Festa da Primavera,...
Continuar leituraProjeto Braskem um Novo Lembrar - Compartilhando Experiência entre e a Comunidade e a Organização
Depoimento de Ivani dos Santos
Entrevistado por Isla Nakano e Marcelo Batalha
Mauá, 09/10/2012
Realização: Museu da Pessoa
BKHV20_Ivani dos Santos
Transcrito por Vinícius Rizzato
MW Transcrições
Revisado por Carolina Maria Fossa
P/1 – Dona Ivani, muito obrigada pela senhora conseguir conversar conosco e ter arrumado um tempinho. Sua agenda é corrida. Para deixar registrado agora em vídeo, quero que a senhora fale o seu nome completo, onde e quando a senhora nasceu.
R – Meu nome completo é Ivani dos Santos. Nasci em Sergipe, numa pequena cidade, Malhada dos Bois, mas me criei em Alagoas.
P/1 – E fale qual que é o nome dos seus pais.
R – Miguel e Mariana.
P/1 – E dos avós?
R – Aristide, que é o pai do meu pai, e a minha avó é Eucina.
P/1 – E conta um pouquinho da história da sua família. Como eles foram parar em Alagoas?
R – Os meus avós são alagoanos, mas não me criei muito próximo deles. Não sei falar muitas coisas, porque, no caso, a minha avó ela faleceu quando eu era pequena ainda. Conheci minha avó até uns oito, nove anos e, depois, cada um mudou de lugar. Minha avó faleceu, meu pai foi morar numa cidade vizinha e já não tínhamos muito contato. E foi assim.
P/1 – E fale um pouquinho da sua infância.
R – Bom, a infância foi na roça. A minha e a dos meus irmãos. Trabalhando e ajudando o meu pai. Infância mesmo, no norte, não tivemos, porque tínhamos que ajudar o meu pai. Não tivemos estudo porque não tinha como estudar. Tinha que ir para a roça ajudar. Os meus irmãos mais velhos tinha que enfrentar o batente com o meu pai para ajudar a criar os menores. E foi assim. Infância mesmo eu não tive, só depois dos 16 anos, mas já era mocinha. E com 19 anos, vim pra cá. Então, da infância, não tenho o que falar.
P/1 – Mas tinha umas festas na cidade?
R – Sim. Tinha a Festa da Primavera, coisas que de vez em quando se ia. Eu saia escondida porque o meu pai não gostava. Meus irmãos mais velhos me levavam e meu pai nunca deixou ficar saindo muito. Mas, de vez em quando, eu ia. Tinham muitas festas na cidade. A festa da santa da cidade, que é a padroeira. E o meu pai tocava nas festas de vez em quando. Aí, aproveitávamos e íamos juntos.
P/1 – E como era isso do seu pai tocar nas festas?
R – Ele tocava, não sei falar o nome do instrumento, mas aqui o pessoal chama de bumbo. Lá no norte chamamos de zabumba, que é aquele grandão e que bate com aquele (pausa). Lá, chamamos marreta. Ele era o zabumbeiro. O meu tio tocava caixa. O meu irmão mais velho tocava os pratos, que são duas coisas que se bate assim. Aqui, não sei se o pessoal usa. Eu já vi só o bumbo, mas o resto não. Mas o meu pai e seus irmãos tocavam nas festas da cidade. Eram chamados para os sítios para fazer festa de santo. Aqui festa de santo é espiritual e, lá no norte, é coisa de católico que festeja. O mês de agosto, de Nossa Senhora Santana, fazíamos a novena e o meu pai era chamado para tocar. Tinha o leilão para o santo. Por exemplo, São Sebastião. Colocava uma caixa, enfeitava tudo, bonitinho, e ia tirar o leilão. Tirar leilão era pedir para a festa do santo. Íamos para os sítios e falávamos: “Leilão para São Sebastião.” A pessoa já perguntava: “Onde será a festa? Quando é?” Já passava o endereço e, quando no dia marcado, o pessoal ia e levava uma galinha para leiloar. Era doce, goiabada, peru e, às vezes, ganhava boi, bode, essas coisas. A pessoa jogava o dinheiro para leiloar e arrecadar para aquela festa.
P/1 – E teve alguma dessas que foi marcante ou que teve alguma história mais interessante?
R – Bom, quase todas foram marcantes, porque era o que se vivia. Das histórias que eu sei de lá e que mais me recordo, são essas, porque muita gente lá no norte as pessoas são muito fracas da situação financeira. Então, todo mês é de um santo. Por exemplo, no final de ano, tinha a festa da padroeira da cidade, que era Nossa Senhora de Lourdes, que é da nossa cidadezinha. Aí, o pessoal arrecadava também, pedia o leilão para arrecadar para a festa. Aí tinha fogos, chegava parquinhos e tudo isso na cidade. Eram nove noites e só festa. Mas todas as festas marcaram porque era o que vivíamos. Não se tinha outro tipo de divertimento e outro lugar para sair. Mesmo porque não tinha condições de ir. Então, na nossa cidadezinha, tudo que vinha de alegria para nós era transformada numa grande festa.
P/1 – E chegou a passar algum circo?
R – Circo? Muitos.
P/1 – A senhora lembra como era o circo? O que a senhora gostava no circo?
R – Eu gostava de ir mais para ver as palhaçadas dos palhaços. Gostava disso. E o circo chegava pertinho da nossa casa, na nossa rua, onde tinha um campo de futebol, que o terreno era grande. Ali era onde eles montavam o circo. Aí, quando tinha bastante bicho, macaco, leão, essas coisas, para nós aquilo era uma alegria. Porque não víamos aquilo. Então, pela noite, não tínhamos dinheiro para ir ao circo, aí malhávamos. Lá se fala malhar, mas ficávamos escondidos (risos). Por várias vezes, aqueles que ficavam tomando conta, pegavam os meus irmãos pela orelha e tirava para fora. Mas entrávamos quando conseguíamos dinheiro. E era a maior alegria, porque não se tinha outro divertimento, só quando ia um circo para a cidade. Às vezes, um parquinho, quando tinha esses tipos de festas, essas coisa. Para nós, isso era o máximo. E era gostoso. Eu queria viver tudo isso de novo.
P/1 – E como que eram os vizinhos na cidadezinha? Fale-nos um pouquinho.
R – A cidade lá é muito pequena. Agora já cresceu bastante, mas nessa época era muito pequenininha e todo mundo se conhecia. Os vizinhos tinham aquele afeto por nós e, também, tínhamos por eles. Então, a vizinhança era a mesma coisa que a família. Eram irmãos. Às vezes, acabava alguma coisa dentro de casa, ia pedir para o vizinho. E com o vizinho era a mesma coisa. Então, o vizinho tomava as dores por nós, que também fazíamos isso. Então, era tudo quase uma família. Hoje não existe mais isso. Mas nessa época era gostoso, porque os vizinhos eram bem companheiros. Procuravam contar histórias de lobisomem, sentar à noite na calçada. O meu pai nos contava as histórias. O vizinho chegava e ouvia as histórias também. Era gostoso.
P/1 – Tem alguma história que seu pai tenha contado e que tenha marcado, que tenha ficado com a senhora até hoje?
R – Olha, a história que o meu pai contou e que me marcou, foi a história espiritual dele.
P/1 – Conte-nos.
R – É que o meu pai incorporava. Ele era curador de cobra e, desde criança, com dez, 11 anos ele curava. Ele e o meu avô. Viajavam bastante. Eram aquelas malas grandes com cobra. E ele falava que gostava de fazer esse tipo de coisa por causa do meu avô. Ele gostava de viajar, sair da cidadezinha, ia para Sergipe e ia para lá. Ele era bastante chamado para essas coisas. E uma das histórias do meu pai é essa daí. Ele incorporava com dez, 11 anos de idade. O meu avô não aceitava, não queria. E isso foi pegando, quando um dia, meu avô o levou a um médico, algo difícil nessa época. Só tinha um ou outro, não é como hoje. E um desses médicos tinha mediunidade. Ele chegou para o meu avô e disse que o problema do meu pai não era doença. O meu avô achava que o meu pai estava ficando louco. Ele falou que o problema do meu pai era espiritual e que ninguém tirava. Que era uma coisa que acompanhava ele de nascença. Então, as entidades o pegavam com essa idade, às vezes, na feira, na rua e, também, quando estava viajando com o meu avô. O meu avô não sabia o que fazer. Às vezes, largava a mala de cobra para lá e tentava ajudar o meu pai, mas como ele não aceitava, ficava muito difícil. O meu pai sofreu um pouco até meu avô aceitar. E ele só aceitou quando viu que ninguém dava jeito, que era uma coisa que ele tinha que seguir mesmo. E essa é a história, foi o que me marcou. Eu achei que poderia acontecer com qualquer um da família. E, queira ou não, é uma coisa que nos deixa com um pouco de medo, até aceitar.
P/1 – A senhora se lembra de escutar o seu pai contando?
R – Lembro. Era muito gostoso. Às vezes, sentávamos na calçada em noite de lua, aquele clarão. A nossa casa não tinha lâmpada, não tinha a eletricidade. Tínhamos o candeeiro. Era luz de lamparina e, às vezes, o meu pai contava essas história, como as histórias de Lampião. Contava essas histórias de lobisomem. Então, passávamos quase a metade da noite só contando histórias, até dormir na calçada. E dormia no colo dele contando essas histórias.
P/1 – Então Ivani, além desses vizinhos que eram próximos, tinha a família da senhora que morava na cidade ou você visitava a família em alguma outra cidade?
R – O meu pai tinha as irmã e os irmãos dele. Uns moravam no sítio, outros na cidade, sempre perto de nós. Também moramos no sítio, foi lá que eu nasci. O meu pai tinha duas irmãs. Uma delas, que morava na cidade, era a coveira do cemitério. Ela, o seu marido e outro tio. Assim, íamos para lá e ela também contava história de cemitério. Então, ela era muito dada com o meu pai, tudo que ia fazer só chamava o meu pai e aproveitávamos para ir juntos. Meu pai às vezes não queria que o acompanhasse, mas, de vez em quando, dava para acompanhar. E ela uma pessoa próxima, que o meu pai tinha mais ligação. Os dois, às vezes, viajavam juntos, quando o meu pai era muito chamado para benzer. Meu pai era um curandeiro nessa época. Hoje não existe, como antigamente, mas ele era muito chamado para os sítios, para benzer em fazendas, curral de boi, essas coisas. E, às vezes, ele ia com essa minha tia. Os fazendeiros iam atrás dele: “Ah, Seu Miguel, sumiu uma vaca do meu curral e era a que eu tinha maior estimação. Quero saber se o senhor dá um jeito aí.” E o meu pai falava: “Vai para casa que amanhã aparece.” E era assim. Então, um pouquinho do que eu sei hoje, me espelho muito no meu pai. Sei que não é a mesma coisa, porque o meu pai ele tinha um entendimento totalmente diferente do que é hoje em dia. O meu pai era mais para a reza, a cura, mas hoje já não é mais a mesma coisa. Muita coisa mudou e a noção está totalmente diferente.
P/1 – E nessa fase ainda de criança, a senhora se lembra de algum momento em que tenha entrado em contato com esse seu lado espiritual?
R – Eu via e ouvia bastante coisa. Mas, como não entendia, corria bastante e, às vezes, achava que estava num lugar e ia me esconder. E, às vezes, eu contava para o meu pai meu pai, que começava a dar risada. Ele falava assim: “Filha, não é nada. É assim mesmo.” Foi assim até os meus 16 anos. Muitas vezes, eu estava conversando com o meu pai e lá todo mundo chega para bater um papo. Às vezes ele estava numa cadeira de balanço, que ele gostava, num desses horários da tarde, dava um cochilinho. E, de repente eu corria e falava a ele: “Olha, pai, eu vi um homem assim e assim.” Ele começava a dar risada. Ele falava: “Não fica com medo que isso daí é normal.” Mas ele não contava o porquê dessas coisas. Quando fui crescendo, continuei vendo, tive uns problemas de saúde e tudo. E o meu pai falava que esses problemas eram espirituais. Eu chorava demais porque não queria aceitar isso. Eu via o meu pai incorporando e, para mim, aquilo ali era o fim do mundo. Eu falava: “Eu não quero isso para mim.” Eu chorava e o meu pai falava: “Filha, você é meda. Você já trouxe isso daí. Não adianta. No dia que o pai for (embora), você que vai ocupar o meu lugar. E dentro de oito irmãos, só eu segui. O meu pai era uma pessoa muito humilde. Não cobrava nada de ninguém. As pessoas o agradavam como queriam, como achavam melhor. Nesse tempo não era como hoje, que para fazer uma coisa para a saúde, a pessoa pede um monte de coisas. Antigamente não. Uma reza já resolvia. O meu pai rezava, fazia as oração e falava: “Tal dia volta aqui só para me ver, fazer uns banhos, umas coisa assim.” Isso ele sempre mandava fazer, mas hoje, a religião, já não tem tanto valor como teve antigamente. Hoje tem muita perseguição sobre esse lado espiritual. As pessoas acham que não existe e não acreditam mais. É tanta coisa errada que acabo vendo. E aqueles que sabem um pouquinho, acabam pagando juntos.
P/2 – Eu fiquei curioso para saber o nome do sítio que a senhora nasceu. A senhora se lembra?
R – Não me lembro. Só sei que nasci num sítio e que é em Sergipe. Ah, o nome do sítio é Malhada dos Bois. Hoje é uma cidade. É bairro tudo, mas antigamente era sítio. Malhada dos Bois. Saímos de lá para morar em Alagoas quando eu tinha quase três anos de idade. Não lembro de muita coisa de lá. Depois, em Alagoas, moramos num sítio chamado de Serrote. Nasceram outros meus irmãos. A minha mãe teve 19 filhos, e só os três últimos que foram em hospital. O resto foi tudo em casa. O meu pai procurava a parteira e, quando chegava, às vezes, ela já tinha ganho o bebê. Então, ficávamos correndo embaixo e subindo nos pés de manga. Era aquela coisa toda (risos) e, muitas vezes, eu aprontava. (risos)
P/1 – Era isso que eu ia perguntar. Tem alguma história de molecagem da senhora e seus irmãos?
R – Tenho história. Às vezes não se lembra de tudo, mas história tem. Eu subia nos pés de manga, fazia xixi na cabeça dos que estavam lá embaixo. Às vezes os outros subiam e fazia cocô. Queriam sujar quem estava embaixo, acertar a cabeça de alguém. E era assim. Se escondia e era tanta coisa que acontecia. Mas têm coisas que aconteceram que, hoje, não lembro mais. Já se passou tanto tempo. Muitas coisas vão ficando no passado. Às vezes, você tenta lembrar porque é gostoso lembrar dessa fase.
P/2 – E eu fiquei com outra dúvida também.
R – Sobre?
P/2 – O que é o curado de cobras?
R – Curador de cobras?
P/2 – Isso que a senhora disse sobre o seu pai ser curador de cobras.
R – Curava com a cobra.
P/2 – Com a cobra?
R – Com a cobra.
P/2 – Descreva-nos o que é isso.
R – Era assim: o meu pai, meus avós... Acho que, dos meus irmãos, só um seguiu. Ele andava com aquelas malas, com cobras grandonas, quase quadrada de tão grossa que era, parecia uma jiboia. Mas, lá no norte, conhecemos por salamandra. Aqui não sei como o povo conhece. São cobras que não tem muito veneno, aliás, elas não têm veneno. O meu pai, às vezes, curava só na reza a pessoa contra o veneno da cobra. Como no norte as pessoas andam muito no mato, às vezes levavam picadas de cobra venenosa, e ele curava para fechar o corpo da pessoa contra a picada da cobra. Entendeu? Deu pra entender?
P/2 – E ele andava com a cobra?
R – Ah, era um monte de cobras. Ele e meu avô.
P/1 – E eles tinham um lugar que eles guardavam as cobras?
R – Em casa. Elas andavam dentro de casa.
P/2 – As cobras eram vivas?
R – Sim, eram vivas. Eles enrolavam todas no pescoço. Essas coisas, às vezes, as pessoas falavam: “Eu quero ser curado na mordida da cobra.” Às vezes curavam só com a reza. “Quero ser curado na mordida.” Aí, pegavam às presas da cobra nesse molinho da orelha. As presas dela pegavam aqui. Eles benziam e faziam um ato na cabeça dela e ela soltava. Entendeu?
P/1 – E como que o pai da senhora aprendeu essas coisas?
R – Foi o dom. Já herdou do pai dele e dos avós que, no caso, são meus bisavôs mas que não cheguei a conhecer. É coisa de família e que vem. Ele aprendeu a rezar sozinho, ninguém ensinou. É o dom que cada um trás. É o que eu falo: eu acredito mais no dom do que em ir atrás para aprender.
P/2 – Existe alguma história de você e dos seus irmãos com essas cobras soltas? Já aconteceu algum fato inusitado por brincarem com elas?
R – Já. Quando éramos pequenos, não entendíamos muito e, então, elas estavam lá e íamos provocá-las. Elas ficavam nervosas e, às vezes, sumiam, porque ficavam nervosas. Quando provocávamos, o meu pai chamava a nossa atenção, pois não podia deixá-las nervosas, para não armarem o bote contra nós. Mas, mesmo assim, se elas mordessem nada ia acontecer, porque elas não tinham veneno. Mas o meu pai também pegava cobra venenosa, tipo cobra Coral, só que o meu tio tirava o veneno dela primeiro, para poder trabalhar com ela. E, às vezes, elas sumiam de casa porque ficavam nervosas conosco. Meu tio, um dos irmãos do meu pai, vinha almoçar ao meio dia em casa. Trabalhava na roça e, na casa dos meus avós, tinha uma que ele criou para curar com ela. Ele pegou um amor pelo animal e esse amor que ele tinha era louco. Eu não teria coragem.
P/1 – As cobras tinham nome?
R – Sim, eles colocavam nome. (risos)
P/1 – Qual era o nome? (risos)
R – Eu não lembro. Sei que tinha um nome. Minha avó ficou paralítica, teve derrame e um lado dela não movimentava. Então, tinha aquelas cadeiras de palha, que era de balançar. Ela ficava na porta da sala e nessa cadeira. E a casa do meu avô era muito antiga, esses casarões antigos. A cobra ficava pelos cantos e ela chamava pelo nome, porque ela não tinha muita força para andar. Ela chamava essa cobra pelo nome e ela vinha. Ela vinha e esticava uma das pernas dela e, então, ela subia, fazia aquele rodeio no colo dela e, ali, dormia a tarde todinha no colo dela (risos). Então, com o tempo, ficou meio louco (risos). Mas esse meu tio vinha almoçar em casa e todo dia ele gostava de brincar com ela. Não me lembro se ela era venenosa, só sei que era uma cobra. E não era uma cobrinha. Os meus avós e o meu pai gostavam era da cobrona, aquelas gigantes. A Salamandra é quase uma Jiboia. Não chega ao tamanho de uma jiboia, mas é grande. E esse meu tio chegava e ia brincar com a cobra. Um dia ele invocou que não conseguia segurá-la e ela ficou tão nervosa com ele que sumiu e ficou três semanas longe de casa. O meu fez as rezas dele para ela voltar e ela voltou. Depois de três semanas ela voltou. E ela acabou morrendo de velha. Descascava todinha, porque dizem que quando está ficando velha a cobra solta a pele e vai nascendo outra. Mas ela morreu de velha. Era o xodó dos meus avós. Era um horror. (risos)
P/2 – Seus avós e seus tios tinham apelidos? Eram conhecidos na região por mexerem com essas cobras?
R – Não. O meu pai, o meu avô e o meu tio eram conhecido na região e em outras cidades vizinhas, mas o meu avô era o Aristide Curador de cobra. O meu pai era a mesma coisa. Era Miguel Curador de cobra, filho do Aristide. E por aí vai, os curadores de cobra.
P/1 – E quando a senhora lembra-se de alguns casos que vieram chamar o seu pai...
R – Para curar?
P/1 – Sim.
R – Não lembro. Eu sei que já vi bastante caso de chamarem o meu pai: “Quero ser curado de cobra. Tal dia eu venho.” Aí o meu pai marcava e ia lá.
P/1 – E a senhora chegou a ir junto nenhuma vez?
R – Várias vezes.
P/1 – Você ia junto?
R – Eu ia, não tinha medo. Hoje eu acho que não tenho coragem, mas era mais corajosa à época.
P/1 – A senhora falou que subia pé de manga. Tem alguma coisa típica da região, alguma fruta ou coisa assim que a senhora sinta saudades e que tenha marcado a sua infância?
R – Pitomba. Conhece? Aqui eu não sei... Você já ouviu falar? Já me falaram que alguém viu na região do Brás. A pitomba é uma fruta que eu subia para pegar os cachinhos. Parece cacho de uva, só que a casca dela é dura. Gostava de subir no pé para tirar pitomba, siriguela, essas coisas. Eram as frutas que eu tinha mais próximo de casa. Pé de manga, mamão, essas coisas.
P/1 – Dona Ivani, seu pai tocava nas festas. Ele treinava em casa? A senhora foi acostumada com música?
R – Fui sim. Ele treinava bastante. Ele não era de ensaiar, gostava de pegar o instrumento dele e deixava sempre brilhando. Era igual um espelho. Ele gostava das coisas dele sempre assim. Às vezes ele dava uma tocadinha só para ver se o instrumento estava bem afinado, mas às vezes, ele se juntava com os irmãos e fazia uma festinha, só para ver se os instrumentos estavam bons. Eu fui criada assim, vendo o meu pai fazendo esse tipo de coisa, tocando em festas, curando as pessoas com cobra. Eu acredito muito porque tudo que ele fazia tinha resultado.
P/1 – E tem alguma música que ele tocava sempre nas festas?
R – Eu acho que tem algumas músicas do Luiz Gonzaga, não lembro qual delas no momento, mas tinha umas que ele gostava de tocar e que o meu tio ele puxava o pífaro, puxava na frente e os outros acompanhavam. Tinha a Asa Branca. Agora lembrei-me. Eles gostavam de tocar Asa Branca. Tinham outras do Luiz Gonzaga que eles gostavam de puxar para cantar. A minha mãe acompanhava o meu pai. Ela também gostava de tocar, às vezes tinha festa que, para o meu pai descansar, passava para ela que tocava também. Minha mãe já até foi chamada para cantar com o Luiz Gonzaga na época da infância dela, de mocinha. Foi quando ela conheceu o meu pai. Não deu certo, mas ela gostava muito do Luiz Gonzaga.
P/1 – E ela cantava também ou só tocava?
R – Minha mãe tinha uma voz maravilhosa para cantar. Muito bem afinada. Ela gostava de cantar as músicas do Luiz Gonzaga e desses cantores do sertanejo, como Milionário e José Rico. Ela gostava de puxar essas cantigas nas festas. Ela gostava também de puxar para ver os meninos tocando.
P/1 – E tinha alguma música, assim, da região que ela cantava para vocês?
R – Tinha, mas eu não lembro.
P/1 – Eu queria também perguntar se a aprendeu a dançar forró. A senhora dançava nas festas? Como era isso?
R – Não dançava, eu me mexia, porque nunca fui forrozeira (risos). Os forrós de antigamente eram diferente.
P/1 – Como era?
R – Era mais pé de serra. Tem vários tipos de forró que não me recordo muito, mas não é igual os de hoje, que o pessoal dança se rebolando. Antes era um respeito totalmente diferente. Era aquele forró pé de serra, tipo aquele do... Não é Luiz Gonzaga, têm outros que eu não lembro agora. Quando me recordar eu lhe falo.
P/1 – E como era a preparação para as festas? A senhora se arrumava com as irmãs?
P/1 – Não se tinha muitas roupas para ir às festas, então, uma vez por ano, a minha mãe tirava de algum lugar para comprar os cortes de pano e mandava fazer o vestido de final de ano. Guardávamos aquela roupa mais do que tudo, porque não tinha condições de comprar outras roupas. Falávamos: “Vamos para uma festa tal dia.” Três dias antes já estava deixando aqueles ferros de colocar brasa dentro. Não sei se vocês conhecem, é de ferro mesmo. Colocava fogo na brasa para por no ferro e já começar a esticar a roupa para ir à festa. Aí era uma alegria, porque era difícil acontecer uma festa. Era uma ou outra. E quando tinha uma, queríamos aproveitar (risos). Tirava o pé da lama (risos).
P/1 – A senhora tinha escola na cidade?
R – Não, nunca estudei lá porque não tive oportunidade. Éramos de uma família muito humilde e os meus irmãos iam para a roça trabalhar com o meu pai. Às vezes eu ficava em casa para cozinhar e levar almoço a eles no meio-dia, porque sempre fui a mais velha das mulheres. Então, fazia o almoço, ia para a roça já ficava a tarde para ajudar, quebrar fumo. A tradição de lá era o fumo, em Alagoas. Então, íamos ajudar o meu pai e nunca tivemos a oportunidade de estudar. O meu pai precisava trabalhar e os irmãos mais velhos precisavam ajudar. Na época, usava-se uniforme da escola e o meu pai não tinha nem condições de dar um uniforme da escola para irmos estudar. Então, quando fui estudar, em vez de falar assim: “Não, vou aprender alguma coisa.” Era quase maior. Estudei um pouco aqui em São Paulo. Lá eu não tive a oportunidade. Eu tinha uma vontade quando via aquelas meninas passando com a fardinha da escola. Eu falava: “Eu queria estudar também.” Minha mãe tinha a maior vontade que estudássemos.
P/1 – E, depois da roça, qual foi a sua primeira experiência de trabalho fora?
R – Com 17 anos, mais ou menos, fui trabalhar na cidade vizinha em uma casa de família. Como fui uma pessoa sempre criada em casa, nunca fui de sair... O meu pai era de uma família que não deixava ninguém dormir fora de casa. As filhas não tinha que trabalhar na roça, mas quando ele via que era preciso, ele não aguentava porque não queria ver as filhas dele trabalhando na roça. Mas, como não tinha outro jeito. E fui quando eu tinha uns 17 para 18 anos. A minha primeira experiência foi trabalhar em Arapiraca, na casa de família. Uma vizinha já trabalhava e me arrumou. Eu tinha vontade de ter um emprego, de ajudar a minha mãe. Aquele pessoal sofrido, se matando naquele sol quente da roça. Então eu fui, mas não fiquei por muito tempo, acho que nem um mês. Não era acostumada a sair de casa e, aquilo era o fim do mundo. Demorava a ver minha mãe. Recebi o primeiro salário e não voltei mais. Depois dessa experiência, vim São Paulo, com 19 anos. E qual era o intuito? Ajudar a minha mãe. Como pagávamos aluguel, lá no norte, o meu sonho era dar uma casa para a minha mãe. Então, sem estudo e sem nada, teve um irmão mais velho do que eu que veio ficar na casa de uma tia, também para conseguir emprego. Depois de um ano que ele estava aqui ele mandou o dinheiro e eu vim.
P/1 – E como que foi essa viagem para cá. A senhora se lembra?
R – Dessa viagem eu não gosto nem de lembrar (risos). Foi uma viagem tão complicada porque, como eu disse, nunca fui de sair de casa. Então, a viagem inteira foi de choro, por ter deixado a minha mãe, meu pai, minha família lá e tentar uma vida aqui, que era o fim do mundo, eu nunca tinha vindo a São Paulo e não sabia o que ia enfrentar e como ia ser a situação. Ia morar na casa de uma tia que eu não conhecia. Cheguei aqui. Mas essa viagem foi complicada porque eu era tão matuta, do sertão mesmo, daqueles que nunca foram numa cidade diferente. Então, pra mim, foi uma novidade. Foi sofrido, porque até pegar o ritmo de algumas coisas, acostumar e se adaptar na casa dos outros... Era uma tia, mas eu nunca convivi na casa da ninguém. Cheguei aqui e fiquei uma semana e já consegui um emprego em casa de família também. E, por lá, fiquei 15 anos. Quem me arrumou foi um amigo desse meu irmão, que trabalhava numa firma com ele. Ela falou que estava procurando uma pessoa, então foi à casa da minha tia e como eu não sabia me expressar direito, tudo era novo para mim. E me apresentaram essa pessoa, e eu fui fazer os testes na casa dela. Ela gostou e eu fiquei 15 anos por lá.
P/1 – E quanto a sua a São Paulo, qual que foi a sensação de ver uma cidade tão grande?
R – Nossa, era uma coisa totalmente fora... Era uma coisa muito estranha. Para pegar ônibus... Lá no norte era diferente. Você pagar um valor e o ônibus pode ir daqui até o fim do mundo e é aquele valor. Aqui tem os pontos. Por exemplo, daqui para São Caetano, você paga um valor e, daqui para Santo André é outro valor. Não é a mesma coisa. Então, como aqui o trólebus, o trem, o metrô, essas coisas, fiquei mais perdida do que cego no escuro, porque não sabia o que fazer. Então, foi muito sofrido até eu começar a me adaptar.
P/1 – Em que região o seu irmão e sua tia ficavam?
R – Aqui mesmo. Na padaria de cima. Eu vim pra cá em 1988.
P/1 – E como que era o bairro nessa época?
R – O bairro mudou. Os prédios, era mais mata. A firma também cresceu. Os ônibus também. Era outra empresa que hoje, não lembro o nome, mas mudou bastante. Tiveram mudança, porque antigamente o bairro era mais simples, não tinha os prédios, o CDHU e essas coisas. Então tinha mais mato, as ruas lá de baixo, que eram ruas de terra e hoje já não são. Então, foram muitas mudanças.
P/1 – E quem eram os vizinhos? Quem foram as primeiras pessoas que você conheceu?
R – Tem a Dona Maria, que mora até hoje, do lado da minha tia. A Bena. São pessoas que eu conheço e cumprimento até hoje. Não tem aquela amizade para ir à casa mas são pessoas que sei que são da época em que cheguei. As filhas dela também, que eram mocinhas, já casaram, tiveram filhos, já estão todos na sua casa. Então teve bastante coisa que mudou.
P/1 – E como era o dia a dia da senhora? A senhora ficava lá na casa dessa família ou voltava no final de semana? Como isso funcionava?
R – Eu trabalhava, dormia lá e só voltava no final de semana para a casa da minha tia. Depois de quatro anos que eu estava lá, porque quando entrei o mais novo dela tinha oito meses, e o outro tinha cinco anos. Aí, ela precisava de mais uma pessoa para ficar com o menor, porque ela era professora e foi pegando confiança em mim. Ela viu a minha conduta, nos conhecemos melhor e ela largava a casa na minha mão. Então, eu cuidava de tudo. E o menor, o Caio, ele tinha oito meses na época. Eu saí de lá e ele estava com 16 anos. Eu dormia lá. Trabalhava o dia inteiro, dormia, mas depois de quatro anos, falei: “Não quero mais dormir, quero ir pra casa todos os dias, quero estudar.” Eu gostava de cantar na noite, e foi a época que comecei a estudar, a cantar e ter alguns amigos que até hoje cantam. Às vezes ainda chamam, porque eu gostava de cantar sertanejo. Parece que eu gostava de jogar aquilo pra fora. Queria mostrar a alegria. Sempre gostei de música e de ir para um showzinho. Hoje não é mais a mesma coisa, mudou totalmente o ritmo, porque antigamente era show sertanejo, algo que me fazia bem. Hoje já não. Já não tem mais como antigamente. Hoje é outro. Eu gostava, cantava, estudava e trabalhava. Continuei trabalhando no serviço, mas não estava mais para dormir lá.
P/1 – E esses showzinhos eram aqui no bairro?
R – Sim. Foi aqui no bairro que começou.
P/1 – Conta então.
R – Tinha um showzinho de sertanejo em que vinha um pessoal de fora, de Mauá, de Santo André, montavam o palco na rua, no caminhão.
P/1 – Onde ficava o caminhão?
R – Atravessavam o caminhão e interditavam a rua, para que não passasse carros de lá para cá, só daqui para lá. Antigamente, o nome da dupla era Robert e Hebert, Choro e Chorinho. Aquilo era uma alegria só. Eu gostava de ver a música, de ver aquele pessoal vestido de sertanejo. O meu tio me incentivou bastante. Esse meu tio, que fiquei na casa dele, falava assim: “Se você gosta, canta. Você tem uma voz bonita. Vai lá e canta!” Eu ia no showzinho, comecei a me entrosar com o pessoal, a pegar amizade e tudo. Comecei a cantar uma musiquinha aqui, outra ali, e quando vi, já estava conhecida num monte de lugares, todo mundo chamando para cantar. Sempre tive muita paixão por instrumento musical, principalmente o violão. Sempre fui apaixonada por violão. Falei: “Vou comprar um violão para aprender a tocar.” Eu achava lindo aquilo e, aí, comprei um violão, mas não sabia nem por onde ia. Fiz aula de violão por dois anos e aprendi algumas músicas. Não aprendi muito porque eu trabalhava, estudava e não tinha muito tempo para me dedicar. Mas aprendi algumas coisas. Mas o meu dom mesmo era a voz, era cantar. Eu cantava com os ‘caras’, eles me chamavam para cantar três, quatro músicas. Quando, uma vez, o Caíque Calegari, quer dizer, o Tony Bill e Calegari, que era o nome da outra dupla aqui da região do São Rafael, eram os mais conhecidos, musicalmente falando, na região. Eles eram chamados para fazer shows, já gravavam e tudo mais e, uma vez, num show deles, alguém e falou: “Ela canta.” E ele falou: “Vem aqui então cantar uma música.” E me deu uma vergonha porque eles eram mais conhecidos. Eu falei: “Eu não vou.” “Venha.” E fui. Cantei. Daí para frente, eles começaram a me chamar para cantar todos os shows que eu ia. Eu cantava e, quando foi um dia, ele falou assim: “Você sabia que a sua voz é igualzinha à voz da Roberta Miranda?” Eu falei: “Eu sei, porque sou apaixonada pelas músicas dela.” “Mas você canta demais as músicas dela.” E foi aonde eu fui cantando. E realmente, a minha voz se parece muito quando canto. Já vieram pessoas lá do centro de São Paulo, que conheciam a Roberta Miranda, e que a minha fama já estava longe, para me conhecerem cantando e ver se realmente era aquilo. E fui convidada até para conhecê-la, já marcaram, só que eu fiquei com medo. Falei: “Será que isso não é jogada?” Fiquei com medo eu não fui. Fui convidada para gravar também com alguns amigos meus que cantavam também. Não fui porque, na época, não tinha dinheiro para isso. Era uma participação, fui convidada para um monte de coisas: para viajar, fazer show na região do interior de Minas Gerais. Já fiz show em Tatuí e num monte de lugares.
P/1 – E agora eu fiquei curiosa. A senhora vai cantar um trechinho para nós? Deixa só ele trocar a bateria. É só um trechinho. (risos)
R – Agora você me pegou. Já faz tanto tempo. Deixa-me ver se lembro de alguma coisa. Eu tenho vergonha de cantar assim. Canto em público, cheio de gente, mas assim eu tenho vergonha.
P/1 – Então, agora são duas pessoas. (risos)
R – Deixa-me ver. Vou lembrar uma da Roberta Miranda.
P/1 – Pode cantar.
R – (cantando): “São tantas coisas, só nós sabemos do que envolve o sentimento. O nosso amor está magoado, mas eu tento. Da vida, minha vida, que entreguei em suas mãos. Nossos momentos, as nossas brigas, nosso louco juramento. E esse medo de perder você que amo, me faz um frio diferente da situação. Vou confessar, renunciei você...” (cantando) E por aí vai.
P/1 – Oh! Está vendo (risos).
R – Faz tempo. Tenho que treinar mais.
P/1 – Quer perguntar dos pais dela?
P/2 – Sim. Você comentou lá atrás que os seus pais se conheceram também nesse meio musical, quando sua mãe foi convidada para cantar.
R – Não foi bem nesse meio. O meu pai viajava muito para Sergipe com o meu avô. E como ele curava de cobra, desde mocinho ele já lidava com essas coisas. E a minha mãe era mocinha, essa era a história que ela contava. Que ela era mocinha de 15, 16 anos. E, na cidade dela, lá em Malhada dos Bois, o Luiz Gonzaga ia muito lá, era o destaque na época. E ela o conheceu num show que foi ver. Ele a chamou para cantar. Ela cantou, ele gostou da voz dela e a chamou para viajar com ele só, que como ela era menor e era da roça, não se tinha essas coisas. E foi a época que ela conheceu o meu pai. Ela fugiu de casa com o meu pai com 17 anos. E, na verdade, a minha mãe é prima legítima do meu pai. O meu pai é pai-tio (risos). A minha mãe também, entendeu? E foi assim, nesse meio musical, sempre gostou de cantar. O meu pai não era de cantar, mas ele gostava de tocar. Então, uma coisa carregava e completava a outra. E eu fui a única que nasci com vontade de cantar, de mudar. Eu gosto de mudar. De coisas diferentes.
P/1 – E dona Ivani, como que era o sentimento de cantar para as pessoas, pensando na sua família com essa trajetória musical.
R – É muito bom, parece que você está tão feliz. É uma coisa, assim, que você canta com sentimento. Eu chorava, às vezes, ao lembrar da minha família. Como aquela música do Zezé di Camargo, que ele canta (cantando): “O dia que eu saí de casa a minha mãe me disse...” (cantando) Então, eu cantava muito essas músicas que lembrava e me emocionava cantando. Isso era muito gostoso de fazer. Parece que você canta com a alma e quer mostrar o que você está sentindo.
P/1 – E teve algum show que foi muito marcante e especial?
R – Ah, foram vários. Teve um que foi muito marcante. Eu morava no bairro, mas em outra rua. Depois que eu estava aqui, já fazia uns dez anos, mandei um dinheiro para o meu pai vir passar um final de ano comigo. Ele nunca havia saído de lá, não viajava para longe. E foi muito emocionante, porque eu falei: “Pai, eu canto.” E ele falou: “Eu quero ver.” Levei-o num dos shows, os meus amigos o conheceram e, quando me chamaram no palco para cantar, ele subiu junto comigo. Eu cantava e ele chorava agarrado em mim. Então, esse foi um dos mais marcantes. Ele falava: “Eu não sabia que tinha uma filha que cantava tão bonito.” “Siga.” Ele dava conselhos para eu seguir, mas só vamos até onde o destino permite.
P/1 – Dona Ivani, a senhora falou que foi nessa época também que a senhora conheceu o seu marido.
R – Sim, o meu marido era sambista, totalmente diferente do meu estilo musical.
P/1 – Mas ele era da região?
R – Sim. Ele era aqui da Juta, era de Recife, mas também morava aqui há muitos anos, com a mãe dele. Ele já teve uma mulher e tinha duas filhas quando eu o conheci, mas ele morava com a mãe, já estava separado há um bom tempo. Ele era sambista, da orgia, gostava da noite, de samba de roda. Era montar assim e ele já fazia um samba. Ele e os amigos. Então, foi aí que, através de uma amiga minha que o conhecia já, ela falou: “Vamos na quadra.” Que é aqui. Eu falei: “Mas eu não gosto de samba.” “Vamos lá.” Não estava fazendo nada e falei: “Então vamos.” Era um domingo à tarde. Fomos e eles estavam fazendo um samba lá. E ele também, com a turma, os parceiros de samba. Foi lá que eu o conheci. Depois, aprendi a gostar de samba convivendo com ele, que foi passando algumas coisas, de como era. Eu conhecia o samba, Agepê, mas ele era mais raiz do que isso. Tinha os antigos, Candeia, Nelson Cavaquinho, Arlindo Cruz. Então, ele sempre gostou mais desse samba. De pagode não, ele falava que diferenciava o pagode do samba.
P/1 – E na quadra, como que era, assim, tinha samba na quadra sempre, como que era a quadra nessa época?
R – A turma dele fazia um samba a cada 15 dias. Não sei se era um contrato, na época. Depois de muito tempo, parou. Hoje só tem a quadra quando precisa comemorar alguma coisa, como festa ou escola de samba mesmo. Mas ele tocava em outros lugares também. Era bastante chamado e ia para os lugares com os amigos tocar. Tanto que hoje os seus amigos estão, pelo que fiquei sabendo, gravando até um CD, com composição dele e com outras pessoas. Ele disse que está gravando. Então, estou esperando sair para ver se é verdade.
P/2 – Qual o nome dele?
R – Maxwell. Ele tocava com a Beth Carvalho aqui no Bar do Tim Maia, no São Rafael. E, de vez em quando, a Beth Carvalho vem. Eles ficavam a noite inteira tocando. Então ele era bem da orgia mesmo, da noite.
P/1 – E ele tinha uns parceiros de samba aqui da região?
R – Não, daqui ele conhecia bastante gente, mas os parceiros de samba mesmo, que o acompanhavam e cantavam junto era mais do São Rafael, São Mateus, da Fazenda da Junta. Aqui da região têm algumas pessoas que acompanhavam, mas não que era muito igual os outros. Ele tinha o grupo deles com o pessoal. Hoje esse pessoal toca num, que acho que se chama Favela Pesada.
P/1 – E dona Ivani, como que foi a aproximação de vocês depois do casamento?
R – Quando eu o conheci, não tinha intenção nenhuma, mesmo porque, na época, eu namorava uma pessoa e fiquei triste porque essa pessoa foi embora e me derrubou. (risos) Eu falei: “Não quero mais conhecer ninguém.” E, nesse dia, eu o conheci, mas depois de uns três finais de semana, que era a cada 15 dias, fomos nos conhecendo através dessa colega minha. E, depois de algum tempo, começamos a namorar, mas não era namoro. Eu nunca gostei de ficar, o meu negócio era coisa séria e ele, como já era mais malandro, da noite, conhecia várias mulheres...
P/1 – Pode continuar.
R – Depois de certo tempo, quando vi que eu estava grávida... Eu engravidei e falei: “Eu não vou cobrar nada, porque eu o conheço a tão pouco tempo e já engravidei, o ‘cara’ vai pensar o quê de mim?” E assim foi indo. Depois que ele viu que o filho era dele, aí cheguei e falei que estava grávida: “Se quiser eu faço até o DNA, porque foram coisas muito rápidas, aconteceu, sou mulher para assumir os meus atos. Não estou pedindo nada.” E por aí foi indo. Engravidei e, depois que o nenê nasceu, começamos a morar juntos. E ficamos juntos por noves anos.
P/1 – E onde vocês foram morar?
R – Eu morei em três ou quatro casas depois daqui. É uma casinha que tinha só dois cômodos, no seu Antônio, que já faleceu. Então, eram dois cômodos bem pequenininhos. Eu morava lá com a minha sobrinha e ela trabalhava em casa de família e só vinha para casa no final de semana. E eu trabalhava também em casa de família, nessa casa que falei. Ficava sozinha durante a semana. Foi aí que eu o conheci e, então, o Miguel nasceu, uma homenagem ao meu pai.
P/1 – Dona Ivani, vamos entrar na história do Centro. Como e quando começou esse período da sua história?
R – Às vezes tem coisas que até me perco. Mas, como o meu pai falava que eu era uma médium e que um dia iria ter que seguir, eu só chorava, não queria aceitar que isso fazia parte da minha vida. Não é que eu não acreditava, mas porque eu tinha medo, muito medo. Então, quando cheguei a São Paulo, tinha 19 anos e o meu pai sempre pegava no meu pé para aceitar essas coisas, mas eu não queria. Eu tinha muitos problemas de saúde. Ia ao médico, vivia dopada de remédio e achava que era enxaqueca. Os médicos também falavam que era enxaqueca. Cada lugar que eu, às vezes ia benzer em algum lugar e falavam: “É porque você é espírita, você tem que seguir essa coisa.” Mas eu não queria aceitar. Tanto que teve certo dia que comecei a ver um monte de coisas e falei: “E agora, o que eu faço.” Ouvia vozes, risadas, chamados e um monte de coisa. Eu ligava para o meu pai, porque como aqui eu não conhecia ninguém que poderia me ajudar. Eu ligava para o meu pai e ele falava: “Toma um banho disso, disso e disso.” Ele me falava os nomes das ervas e eu ia atrás. Tinha erva que aqui eu não conseguia e, às vezes, até as pessoas podem conhecer por outro nome. Eu ia atrás e não conseguia. Aquilo que eu conseguia, através do meu pai, eu fazia e perguntava: “Como é que eu faço?” Ele: “Faz assim.” Eu fazia e amenizava o problema. Era muita dor de cabeça, ânsia de vomito e, às vezes, eu inchava do nada. Ia para o médico que falava que essa dor de cabeça era de enxaqueca. Fiz um eletro da cabeça, para saber se eu tinha algum problema. Fiz exame de vista. Na época, eu não tinha nada na vista. Fiz um monte de coisas e não resolvia nada. E vivia dopada de remédio. Até que um dia eu liguei para o meu pai e falei que eu ia para lá, para ele cuidar de mim, e ele falou: “Não. Porque aqui se cuida de outro jeito.” Mas na época do meu pai ele, um benzimento, às vezes cura, alguma coisa iria resolver. Mas não resolveu nada. Ele falou: “Filha, não tem jeito. Você tem que seguir e desenvolver esse seus lado. E começar a deixar o seu povo.” Que é como eles falam: “Deixa o seu povo trabalhar.” E eu: “Não, eu não tenho isso.” Tanto que, uma vez, fui me cuidar com um... Conheci um rapaz através do meu irmão que falou que ia me ajudar: “Você tem isso e isso.” Começou a falar o que eu sentia. Realmente, o que ele falava batia com o que eu sentia. Comecei a cuidar e, um dia, ele falou assim: “Você tem uma moça.” Aí eu falei: “Eu tenho uma moça. Que moça?” Aí ele falou: “Uma pomba-gira.” Aí eu falei: “Eu não tenho isso não. Quem tem isso é mulher da zona. Eu não sou da zona.” (risos) Então, aí, eu fico quietinha? Eu falei: “Eu não tenho isso não e quem tem isso daí é mulher de... Eu não sou.” Ele: “Mas não é assim não. É que você não me entende, mas vou lhe explicar como as coisas são.” Ele falou: “Toda mulher tem uma moça. Essa moça é a pomba-gira, mas não quer dizer que para ter uma pomba-gira você precisa ser da zona. Ela não foi só de zona, ela tem uma história.” E foi aí que começou a me explicar e eu comecei a entender um pouco. Fui buscar com o meu pai isso daí. Ele começou a explicar, só que o meu pai, na época, não lidava com esse lado. Ele lidava mais com a cura. Ele incorporava alguns guias, algumas coisa, mas pomba-gira, para ele, era o danado. Então, ele não queria saber. Ele falou assim: “Toda mulher tem umas cobras para trabalhar. Tem outros que, quando não faz as coisas direito, ela joga a pessoa na bebida e, às vezes, é mulher de muito homem e nunca se acerta. E começou a me falar e fui entendendo. Teve uma fase, quando eu estava nessa cobrança toda, eu falei: “Vou para a igreja tirar essa perturbação.” E todo mundo falava: “Você está perturbada.” Eu falei: “Então vou para a igreja tirar essa perturbação.” Fui para a igreja e me falaram: “Chega lá, todo mundo vai cair com essa perturbação.” Eu falei: “Está bem. Se eu cair e levantar, está tudo certo. Eu vou.” Frequentei a igreja por um bom tempo, a Assembleia. O pessoal lá, se batendo no chão e comigo não acontecia nada. Eu falei: “Mas porque todo mundo cai e eu não caio? Estou aqui.” Fui para a Universal também. O pastor orou, falou e gritou. Pegava na cabeça do povo e rodava. E foi fazer a mesma coisa comigo e eu falei assim: “Moço, não precisa rodar a minha cabeça. Deixe a minha cabeça quieta. Pode orar para o que tiver de sair.” Mas caíam as pessoas e eu não caia: “Que diacho, o que eu tenho?” Falei: “Sabe de uma coisa? Cansei-me e não vou mais.” Não fui mais à igreja e foi quando procurei um lugar, no Itaim Paulista, através de uma prima. Ela me levou porque as dores de cabeça que eu sentia eram muito constantes e eu não tinha paz, Esse lugar se chama “Pai Cícero”. É um Candomblé. Nesse lugar ele falou: “O que você tem é de berço, não adianta. Você já nasceu com um fundamento.” E eu não entendia que tipo de fundamento era esse, mas tudo bem. Eu estava ali para ouvir, e foi quando ele me falou: “O que você tem é uma cobrança muito forte espiritual e que você vai ter que seguir.” Só que os meus guias já me pegavam, mas eu não sabia diferenciar quem era quem e o porque que estava acontecendo isso. Sozinha, não tinha ninguém para me ajudar e, aí, fui nessa pessoa que me orientou um pouco. Ele falou: “Precisa fazer uns ebó, fazer uma firmeza para essa moça que quer trabalhar.” E foi aí que eu fui lidando melhor e aceitando. Até que depois que conheci o meu marido, a pessoa encostava bastante em mim. E ele só veio para nos ajudar a firmar melhor. E foi assim. E nessa luta eu bati bastante a cabeça também, sofri bastante com eles. Com eles, não, comigo mesmo. É ignorância não aceitar e achar que essas coisa não são de Deus. A ignorância não nos leva a lugar algum. Então, não vou dizer que não sou ignorante. Eu sou, porque aquilo que não conheço e não entendo é ignorância da minha parte. Por não buscar um entendimento e não saber o que fazer. E ficar calada, sofrendo e não buscar o que vai resolver. Hoje eu não me arrependo. Se fosse eu não queria passar por tudo que já passei com esse tipo de cobrança espiritual. Eu não queria, mas se fosse para começar de novo, começaria tudo e não me arrependeria.
P/2 – E o seu marido veio ajudá-la como? Ele já tocava no tambor?
R – No centro? Não.
P/2 – Não?
R – Ele tocou depois que eu abri a casa mesmo. Esse é o meu filho. Ele começou depois que eu abri. Ele me apoiava e falava assim: “Se você sofre tanto, você tem mais é que deixar.” Ele tinha muito medo também porque não entendia. Até para passar na casa de Umbanda ele atravessava a rua, porque ele achava que aquilo não era certo. Eu entendia mas não quis aceitar porque tinha muito medo. E tem gente que não tem medo, mas que são ignorantes ao ponto de achar que o lado espiritual só está lá para fazer maldades, que tudo é ruim. E não é isso. E ele tinha esse medo também. Achava que passava numa casa de Umbanda e os espíritos iam acompanhá-lo. E só fomos juntos para um ajudar o outro e reforçar mais o espiritual.
P/2 – E qual o nome da casa, do terreiro, do centro?
R – Deixa eu lembrar. É “Centro Cultura Afro-brasileiro.”
P/2 – Existe desde quando?
R – Eu não sei se esse nome vai ficar por muito tempo, porque eu preciso resolver algumas coisas com a federação, para saber se vai passar ainda tudo direitinho no registro. Já fazem quatro anos, se eu não me engano, que a casa está aberta. Eu já trabalhava, mas só atendia, não tinha uma casa aberta. Então, esse nome existe há quatro anos, mas ainda tenho que colocar algumas coisas e a casa mais em ordem, para saber se vai ser aprovado esse nome, porque já está tudo registrado e bonitinho. Mas precisa fazer outras coisas, por enquanto é só o estatuto.
P/1 – Dona Ivani, a senhora chegou e o primeiro contato da senhora foi com o Candomblé?
R – Isso.
P/1 – E como aconteceu essa passagem para a Umbanda? Conta um pouquinho disso.
R – Eu não tenho o que falar do Candomblé, porque a primeira passagem foi no Candomblé. Tive boas orientações, ajudou-me bastante, tive muita coisa na mente e não cheguei a frequentar, fui só como cliente. Fui lá umas três vezes só e não via muita coisa lá, tanto que o dono da casa, o pai de santo, ele gostaria que eu tivesse ficado na casa, para frequentar e desenvolver tudo. Então, foi diferente porque eu tinha noção de como o meu pai cuidava das pessoas, que era só com benzimento, com oração e com reza. Eu via tudo diferente, todo mundo vestido de roupa colorida e falava: “Caramba, não vai ser, não é a mesma coisa. Porque o meu pai trabalhava de um jeito e eu venho para um lugar que é tudo diferente? Vejo bicho e essas coisas. Será que eu tenho que realmente seguir isso?” Aqui em São Paulo era tudo a mesma coisa para mim. Na minha cabeça, ia ser tudo a mesma coisa: Candomblé, Umbanda mas, ia ser tudo a mesma coisa. E assim, foi a primeira experiência de Candomblé que eu tive. Aí, depois disso, frequentei uma casa que é a casa de um pai de santo aqui embaixo que, pelo o que ouvi, ela era Umbanda Umblé. Como eu não tinha tanto conhecimento dentro de nação, e essas coisas porque frequentei só por seis meses. E, depois, fui adquirindo mais experiências e tive outra pessoa que chegou a ser o meu pai de santo, e que o considero até hoje e é do Candomblé também, o Ketu. E, assim, fui vendo e vi não era um bicho de sete cabeças como eu achava que seria. E via os fundamentos. Um tinha que raspar, o outro tinha que fazer isso. Só nunca aceitei isso, raspar. Então, como eu sigo algumas coisas que o meu pai falava: “Filha, você não precisa disso. Você não precisa raspar, já nasceu com o seu fundamento, entendeu?” Então quando ele falava assim: “Você tem que raspar.” Eu já me esquivo. Acho que eu não tenho nada a falar do Candomblé, tanto que o Candomblé me ajudou a ter, a tirar umas dúvidas, algumas coisas que eu achava o que era errado. Ele só me ajudou. No meu entender, todas as religiões são boas. Não tenho o que falar. Cada um segue do jeito que acha melhor. Eu sigo do meu jeito a minha Umbanda. A minha casa é muito simples, muito humilde, e assim, se for para ir ao Candomblé, se um dia o meu santo falasse: “Você tem que ir.” Eu vou numa boa, não tenho nada contra. Mas, muito pelo contrário, sei que me ajudou.
P/1 – Eu queria saber um pouquinho desse processo de sair lá da outra casinha, com os dois quartinhos.
R – Essa casa era muito pequenininha e quando o meu filho nasceu eu vi que estava ficando pequena. Eu tinha um contrato de dois anos lá e falei: “Tenho que arrumar uma casa maiorzinha, mesmo que seja de dois cômodos, mas um pouquinho maior”, porque tinha o berço e tudo e ele, com três meses de nascido, eu consegui alugar aqui através do meu vizinho, que conhecia o dono dessa casa. Depois que aluguei aqui, que eu já recebia as entidades, mas que ninguém sabia, era aquela coisa mais guardada, e, depois disso, foi aonde eu trabalhei em outro emprego, passei a trabalhar num motel como cozinheira, o Corpo a Corpo. Fiquei lá por dois anos. O meu filho era muito pequenininho e os guias queria que eu trabalhasse, mas eu não dava conta. Aí o meu marido falou: “Sai, porque o menino está pequeno. Deixe-o crescer mais e, depois, você vai trabalhar”, e foi aí que depois eu fui trabalhando, foi chegando muita gente aqui e falei: “Vou ter que dar um jeito. O que vou fazer?” Começamos a abrir gira na cozinha. Vocês vão entrar nesse assunto?
P/1 – Pode ir.
R – Então, começou a abrir gira na cozinha, lotava e o pessoal ficava às vezes pendurado na janela para ver, e essas coisas todas. Ficava muito apertado, não tinha espaço. E falei: “Não está dando para fazer muitos trabalhos aqui na cozinha.” Na minha mente falava assim: “É muita energia, tem muita gente que vem e, queira ou não, fica aquele ambiente pesado”. Mas, depois que acabava a gira, eu dormia em paz e todo mundo dormia em paz: o meu marido, meu filho. Então, era só falar assim: “Vai ficar o ambiente pesado”, mas não ficava nada. Quanto mais gente, melhor. E foi indo. O meu marido sempre falou: “Vamos fazer uma cobertura aqui para ficarmos mais à vontade para trabalhar com os guias, um espaço maior para o pessoal.” E eu falei: “Mas como se pagamos aluguel?” Até que um dia eu pedi para a dona da casa, só que aí o meu marido já tinha falecido. Ele chegou a falecer e eu pedi a ela se eu podia fazer uma cobertura aqui. Ela aceitou, e eu falei: “Só que eu tenho a minha religião e não quero reclamação.” Ela falou: “Eu já sei”, porque o dono da casa faleceu, e essa era a irmã dele, que cuidava dessa casa da frente e passou a cuidar daqui também. Eu pedi e ela permitiu. Eu cobri e foi aquela coisa. Foi com luta, porque eu falei: “Vamos reunir todo mundo, cada um dá um tijolo, um pouco de areia, uma pedra, alguma coisa e vamos levantar isso aqui.” E foi com bastante luta, mas ainda falta muita coisa para por em ordem. Mas chegamos aqui. Um cantinho só para eles.
P/1 – Como aconteceu esse processo de vir mais e mais gente e ficar lotado aqui?
R – Foi uma coisa que aconteceu de forma natural. Acredito que seja uma coisa que os guias trazem, é a energia mesmo que chama. Não é convite, eu não ando convidando ninguém e, às vezes, saio na rua: “Vai ter toque?” “Vai sim, tal dia.” Mas não sei, é a energia mesmo, é o axé que eles passam para nós. Vem um, gosta fala para o outro, que vai falando e, quando se pensa que não, vem gente de onde você não sabe. Acontece também de você receber pessoas que você não quer, mas a casa está aberta para todo mundo. E temos que fazer o nosso papel, a nossa parte espiritual, sem olhar a quem.
P/1 – Dona Ivani, como que foi o seu processo de desenvolvimento? Como a senhora foi se aprofundando e se entregando mais?
R – Mais. É muito complicado essas histórias. Então, na verdade eu me desenvolvi sozinha, não tive ninguém. Na época, como eu já falei, não sabia a quem ir atrás, então as entidades me falavam que queriam trabalhar e que eu tinha uma missão. Eu não aceitava. Então, veio uma, veio outra, falando que também tinha uma missão e, depois de certo tempo, eu conheci o pai de santo, que é do Ketu, que eu já falei. Eu fiz um jogo de búzios e ele falou: “Filha, não tem para onde você fugir, você tem uma missão a seguir, tem só que buscar mais entendimento”, e eu falei: “Aonde eu vou buscar esses entendimentos?” Foi quando ele falou: “Seus próprios orixás trarão. Se você fizer tudo certinho, eles mesmos lhe passarão.” E ele fala isso até hoje: “Você não é de raspar, você não é pessoa para isso, mas sim para cuidar do santo.” Fui aprofundando sozinha, fiz o jogo de búzios, ele falou essas coisas, e foi vindo o Seu Zé, que foi a primeira vez que ele veio e que foi um tormento. Fiquei com medo, não queria saber e ele veio. Disse: “Ela tem uma missão para seguir, tem muita gente que vai precisar dela e estamos aqui para isso. Só queremos que ela ponha a cabecinha no lugar e aceite. Ela tem que abrir e o coração para o lado espiritual.” As indicações maiores que eu tive foi dos meus próprios guias. Tive indicação, algumas explicações de pessoas do candomblé, do Ketu, da Angola e de outras nações e isso daí eu não posso negar. Agradeço também a todas essas pessoas que tentaram me ajudar e que ainda tentam. Tem uns que tentam até hoje me ajudar e eu só tenho a agradecer, mas o lado de desenvolvimento mesmo foi mais no brutal mesmo. Foi na raça: “Eu sou Fulana e quero trabalhar.” Entendeu? Um foi puxando o outro e, foi vindo e chegou uma hora que eu falei: “Pronto, agora não tenho para onde correr. Vou ter que fazer alguma coisa e seguir”. E foi assim.
P/1 – Conforme foi crescendo e mais gente chegou, como foi a recepção do bairro e dos vizinhos?
R – Para alguns vizinhos foi um choque, porque até então, eu trabalhava mas era quieta, não dava muita informação sobre essas coisas, era um ou outro que vinham aqui de outro bairro. Passava alguma entidade ou coisa assim. Mas depois que eu abri a casa, com toque e essas coisas. Isso abalou alguns vizinhos, porque muitos não aceitam. Por isso, eu já passo nos meus horários, tem um limite. Já começo à tarde para, quando for oito, no mais tardar nove horas da noite, já está fechando os trabalhos, para não incomodar. Apesar de ter o documento que eu posso ir até determinado horário. Mas eu procuro evitar isso para não ter muita conversa.
P/1 – E os moradores do bairro. Tem alguns que vem até a senhora?
R – Tem, tem vários que vem, tem uns que se escondem, que faz que não está mais aqui. É assim (risos). Tem uns que já foram crentes, que já foram batizados e que, de vez em quando, estão aqui querendo falar com o Seu Zé. E é assim, filha (risos).
P/1 – Conta um pouquinho então do dia a dia da senhora aqui. Quais as linhas que a senhora trabalha?
R – Eu trabalho com as sete linhas. Antes eu não estava tendo sossego, porque a todo instante vinha gente para passar com a entidade, querer orientação, até para falar de sonho, essas coisas. Chegou um momento que falei: “Vou virar então uma astróloga”, que fala dos significados dos sonhos. Aí eu brequei um pouco isso, porque estava muito aglomerada de gente querendo a toda hora. Isso me ocupava e eu não estava dando conta da minha casa, do meu filho. Então falei: “Vou dar um chega pra lá nisso, porque eu tenho vida. Quero viver. Tenho que sair, que cuidar do meu filho, e tenho outras coisas para fazer”. Então, hoje: “Eu quero uma consulta.” “Então tenha hora marcada. Venha tal dia, que terá a sua consulta. Tal dia tem os trabalhos.” Abro as gira para os médiuns e para assistência. Assim, comecei a colocar cada coisa no seu lugar.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse um pouquinho da sua relação com a região. Tem alguns moradores que são amigos da senhora?
R – Eu conheço muita gente, tem algumas pessoas aqui que eu me dou muito bem. Não de ir à casa da pessoa ou de vir à minha, mas são pessoas que eu não tenho o que falar. Tem algumas pessoas que são contra a religião, por causa da sua religião, que não permitem, que colocam empecilhos, mas também com essas pessoas eu me dou bem, não tenho o que falar. Cumprimento na rua e, às vezes, falam: “Ah, é a Ivani.” Graças a Deus as pessoas tem certo respeito por mim, porque eu não sou de ir à casa de ninguém, não sou de falar mal de ninguém por aí. Então, sigo a minha doutrina do meu jeito e respeito a religião de cada pessoa. Como eu disse, aqui vem gente de outras religiões e todo mundo que chega na minha casa é bem vindo. Se vem para falar bem ou, se vai falar mal... Mas eu faço a minha parte.
P/1 – E tem alguma amiga daquele tempo de cantora?
R – Tem (risos). Só que a maioria se casou, tem família, não é mais a mesma coisa. Mas algumas ainda me veem por aí e falam: “Qualquer hora eu vou tomar um café.” Às vezes batemos um papo na rua.
P/1 – Bom, Dona Ivani, vou encaminhar a entrevista para uma parte final, mas antes eu queria que a senhora falasse um pouquinho do seu filho da senhora e do seu dia a dia.
R – Meu filho é o meu ouro, ele tem nove anos e o meu dia a dia com ele é corrido, porque é escola e tudo. Depois que perdemos o seu pai, então, eu sou o pai e a mãe, e tento suprir o lado dele, para ele não sentir tanta falta. Tenho que sempre conversar com as professoras para saber se não mexeu com a cabeça dele, mas ele também, graças a Deus, é um menino muito forte, não é fraco. Eu achei que eu ia ter problemas, que ia ter que passar por um psicólogo, mas é um menino que tem uma inteligência e, graças a Deus, tem nove anos mas é muito inteligente. Ele é Ogã, já nasceu com um dom de bater os tambores. Ele não se dedica por ser criança, está tocando e, de repente, chega uma criança. Aí ele quer brincar, mas eu também não posso exigir isso dele. Quero que, quando ele crescer, que escolha o que ele quer seguir. Não vou exigir: “Você vai ter que fazer isso.” Eu acho que, desde criança, temos que ter o livre arbítrio para fazer o que temos vontade e não o que os outros querem. Mas o meu dia a dia com ele é aquela coisa, de pai, de mãe, de dedicação, escola e, às vezes, tem que levar ao médico, mas é isso, é aquilo (pausa), entendeu?
P/2 – E qual o nome dele?
R – Miguel. É uma homenagem ao meu pai. Tenho uma sobrinha que mora aqui, que é a filha do meu irmão e que mora aqui nessa rua, é uma homenagem à minha mãe. O nome dela é Mariana. E o Miguel tem dois nomes, do meu pai e o sobrenome, que seria o sobrenome mas que também é nome próprio, de cantor de samba que o meu marido colocou, que é do mestre Marsal, que é do samba antigo, e eu falei: “Eu não quero esse nome. Quero o nome do meu pai”, e ele falou: “Então vai ficar Miguel Marsal”, e assim ficou. Miguel Marsal.
P/1 – E a relação da senhora com o samba. A senhora escuta?
R – Eu gosto, apesar de mexer muito comigo, porque o meu marido gostava demais, mas eu gosto do samba. Não gosto de sair para o samba, mas gosto de ouvir um Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e outros sambistas que ele gostava e que eu aprendi a gostar com ele.
P/1 – O que o bairro representa para a senhora?
R – O bairro representa um pouco da minha história, porque quando vim da terrinha, aqui eu aprendi muitas coisas, até de cantar. A minha história, se Deus me levar e eu estiver por aqui, a metade da minha vida vai ficar aqui nesse bairro, porque ela é a história, que são as coisas que eu aprendi aqui e que vi também. Tem muita coisa que continua do mesmo jeito, mas algumas casas, até a casa que eu morei, da primeira vez, continua do mesmo jeito. Essa padaria que tem aí está do mesmo jeito. Essa igreja evangélica, aqui do lado, que cantei muito, era uma adega antigamente. Então, tem muitas coisas que mudaram mas eu gosto demais daqui. Já morei em várias ruas desse bairro, em várias casas, mas eu não mudo muito de rua, só mudo de casa. Agora é difícil mudar de casa. Tenho fé em Deus que, quando for para mudar, que seja para a minha mesmo, porque aqui está a minha força, o meu axé.
P/1 – E qual que foi a sua maior conquista no bairro?
R – A minha maior conquista foi, na época que eu cantava, que eu achei que ia seguir esse caminho de cantora e todo mundo falava: “Você tem uma voz bonita, tem um dom”, e foi uma conquista. É uma história hoje. Se eu for num barzinho e estiverem alguns amigos, lembro daquele tempo: “Ah, vem cantar Robertinha”, porque colocaram esse nome em mim e ficou, por causa da Roberta Miranda. É uma coisa que eu gosto daqui, foi uma das conquistas. Tive várias coisas assim, mas que no momento eu não lembro. Já passei por muitas coisas, e a outra conquista é esse lado espiritual, que é difícil de se conquistar as pessoas. Principalmente se tratando de religião, é uma coisa que, a cada dia eu sinto que eu conquisto mais um pouco. Tem aqueles que falam bem, tem aqueles que falam mal, mas estou aqui vivendo e tocando a vida.
P/1 – E nesse tempo, desde que a senhora chegou à São Paulo, já voltou para Alagoas ou tem vontade?
R – Há algum tempo eu fui de férias, quando trabalhava nessa casa por 15 anos. Depois disso, fiz bicos em outros lugares, trabalhei no motel Corpo a Corpo e cheguei a ir de férias pra lá, enquanto o meu pai era vivo e minha mãe. Depois que o meu pai faleceu eu não fui mais. Tenho irmã e irmão lá, mas eu posso até ir um dia. Tenho vontade de ir para rever a minha família, o restinho que tem lá, mas perdi um pouco do encanto depois que perdi os meus pais. Mas eu gosto de lá, porque é a minha terra natal, onde eu nasci e cresci, onde se tem aquela humildade de ir lá, que se aprende também com toda a dificuldade. Mas se aprende também muita coisa, como o respeito, por sermos de uma família muito humilde, que não teve estudo, mas que entre temos de deixar para trás a ignorância e aprender a lidar com a cidade grande. São muita coisa que me veem à lembrança e que são boas.
P/1 – Quais são as expectativas da senhora em relação ao futuro do bairro e do centro?
R – Eu quero sempre mudança. Do centro eu não quero, não quero nada de luxo, nunca quis, só quero a humildade e pedir para os ancestrais do lado espiritual dar mais entendimento para adquirirmos ainda mais sabedoria e para ajudar a quem precisa. Eu gosto muito do bairro e o que tem que mudar, sei lá... Acho que está bom. Eu sou humilde.
P/1 – Dona Ivani, eu queria saber da senhora o que você acha de fazermos uma exposição contando a história do bairro através da história dos seus moradores, das pessoas que vivem aqui há tanto tempo.
R – Eu acho que é legal. E vocês já pesquisaram muitas pessoas aqui?
P/1 – Já.
R – Já?
P/1 – E como que foi para a senhora contar a sua história e voltar lá atrás?
R – Foi emocionante. Eu gostei.
P/1 – Então, Dona Ivani, agradecemos muito a senhora. Obrigada de novo.
R – Obrigada a vocês. Eu nunca tive isso, pensei que ia ser uma coisa...
P/1 – A sua história é muito linda (risos).
R – Tem mais, só que eu não me lembro de tudo.
FINAL DA ENTREVISTA
Recolher